O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus – OLIVEIRA (VH)

OLIVEIRA, Myriam Ribeiro. O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Resenha de: KLAUSING, Flávia Gervásio. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.31, p. 278-282, jan., 2004.

O Brasil tem se preocupado em catalogar e estudar as obras do seu acervo artístico, já há algum tempo. Desde o resgate e reconhecimento do barroco, feito pelos modernistas no primeiro quartel do século XX, a arte colonial luso-brasileira vem sendo estudada. Entrementes, foi o próprio Mário de Andrade que realizou um anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, no então governo de Vargas; órgão que, desde sua abertura preza não só pela preservação dos monumentos característicos da nossa história, como também pelos estudos sobre os mesmos.

Na sua “fase heróica”, tendo na presidência Rodrigo Melo Franco de Andrade, procedeu-se ao levantamento de obras a nível nacional, jamais visto até então — inventário este, documentado pela Revista do SPHAN. Deve-se levar em conta, entretanto, o caráter nacionalista desta empreitada. A influência do movimento modernista e o próprio contexto de construção de nação delegaram a estes estudos um aspecto essencialmente patriótico- buscava-se uma originalidade e uma brasilidade incipiente no período denominado então de “barroco mineiro”, sendo que hoje, até o uso deste termo, é discutível.

Ao longo dos anos, o interesse por esta arte persistiu, visto, por exemplo, a criação e extensão da Revista BARROCO, que divulgou estudos que tratavam de forma mais ampla aquele fenômeno cultural. Segundo Affonso Ávila, poeta, ensaísta e coordenador da revista, o barroco é mais que uma manifestação artística, consiste em uma visão de mundo. Uma das pesquisadoras mais atuantes de então é Myriam Ribeiro de Oliveira, historiadora doutora que se dedica ao inventarioo e à análise da arte luso-brasileira. Seus estudos — que englobam temas como Aleijadinho e sua oficina, pintura em perspectiva nos forros das igrejas mineiras, tipologia de retábulos e da imaginária, dentre inúmeros outros — são reconhecidos e tidos como referência para os pesquisadores da área. Seu método fundamenta-se na perspectiva do “connaisseur”, que parte da observação empírica da obra e, em confronto com as fontes arquivísticas, estabelece informações sobre a datação e autoria, escola regional/nacional, estilo individual e de época, e análises técnica e iconográfica.

Partindo da suposição de que a manifestação do rococó no Brasil não estava definida de forma clara e precisa, o livro da professora Myriam intitulado “O Rococó Religioso no Brasil — e seus antecedentes europeus” visa compreender melhor o estilo e favorecer sua fruição estética. Ela principia definindo sua origem na França, em fins do século XVII, quando houve uma reação ao excessivo peso ornamental do barroco e uma necessidade de redimensionamento do espaço da alta burguesia e da nobreza. Buscou-se criar assim, um ambiente de luxo, com uma decoração leve e suntuosa baseada no uso de formas fluidas e sinuosas, principalmente do ornamento rocalha.

Dividido entre os períodos Regência e Rococó, o estilo que teve sua origem no campo civil, poderia se adaptar à esfera religiosa, mesmo levando em conta os valores em importantes ao Oitocentos — o hedonismo, o racionalismo e o anti-religiosismo? Myriam responde afirmativamente a esta questão bastante controversa, alegando que a fé cristã passou por uma mudança de concepção, tornando-se mais serena e positiva. Citando o forte crescimento da Igreja (vide o grande número de construções de capelas), a autora considera o propalado anti-clericalismo do século XVIII, como, antes de tudo, um ataque às Instituições, e não à doutrina católica que se encontrava forte e revigorada.

A maleabilidade do rococó que não estava ligado sistematicamente a nenhuma doutrina teórica, sua coexistência com o estilo barroco tardio, desenvolvido na Itália no século XVIII, sua adaptação a tradições locais e, conseqüentemente, sua apresentação em aspectos variados, dificulta uma sistematização em um conjunto de categorias estéticas e histórico-artísticas. Myriam delega também a estes fatores a visão equivocada do estilo — geralmente visto como um desdobramento do barroco, sem autonomia e sem conhecimento do seu repertório formal. Foram nomes como Starobinski, Fiske Kimball, Minguet e Schoenberg que, a partir de 1950, não se limitaram a interpretações restritivas ou preconceituosas daquela concepção visual. Assim como a própria autora coloca, é fundamental perceber o longo caminho ainda a percorrer visando desvendar a diversificada gama de manifestações estilísticas, tanto no âmbito civil, como no religioso.

É também importante ressaltar o processo de internacionalização do estilo, através do intercâmbio de obras e artistas, mas, principalmente, por meio da divulgação em fontes impressas. Com a ascensão do mercado editorial de livros leigos — que tinha nas cidades francesas e na cidade germânica de Augsburgo, seus principais centros irradiadores —, se deu a circularidade dos elementos constitutivos do rococó através dos tratados teóricos, manuais e gravuras, usados permanentemente nas oficinas e levados para terras distantes da Europa Central, Portugal e colônias, onde foram, posteriormente, reinventados.

Esse papel das fontes impressas vem sendo estudado na Europa, inclusive em Portugal1 mas, no Brasil, ainda há muito o que investigar. Hannah Levy2 escreveu artigos demonstrando a recorrência às gravuras na pintura colonial e abriu o caminho para correlações afins. Fazer um levantamento destas fontes e relacioná-las com a produção artística, é um ponto fundamental na análise da arte colonial e, principalmente, na determinação das influências da mesma.

O rococó, à medida que se internacionalizava, se integrava às tradições locais. Assim, na região da Baviera, o rococó religioso vai se desenvolver de forma original, buscando produzir uma sensação de bem estar e conforto e privilegiando a oração na fé e na alegria, através de uma “obra de arte total” — na qual os efeitos de conjunto têm função primordial.

Foi assim também em Portugal, local que se caracteriza pela diversidade das escolas regionais. Em terras lusitanas porém, o estilo sofria forte concorrência com o barroco tardio, visto a grande influência italiana que o “império pombalino” vai somente acentuar. As regiões de Porto e Coimbra irão apresentar maior homogeneidade e originalidade na divulgação do rococó por meio, principalmente, da talha e da azulejaria. Componente característico da arte portuguesa, os azulejos irão se tornar um importante veículo do estilo francês, se utilizando da rocalha, da assimetria e ondulação dos contornos e, tendendo, com o tempo, a uma maior delicadeza e elegância. Myriam Ribeiro de Oliveira assinala também o papel destes azulejos na divulgação do repertório do rococó no Brasil, visto o grande número de importação para o litoral brasileiro. Ao mesmo tempo, vemos em Minas uma carência da utilização deste recurso — provavelmente devido à dificuldade de transporte — o que originou a criação de uma técnica, pelo Ataíde, da pintura em madeira de fingimento de azulejo, presente na Capela de São Francisco da Penitência em Ouro Preto, e na Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara.

A circularidade propiciada pelas fontes impressas permitiu à colônia brasileira receber a influência não só de Portugal, mas também da região da Alemanha e da França e, juntamente com as tradições locais, realizou-se um mosaico de interpretações do estilo rococó. É elucidativo pensar a aproximação entre o rococó germânico e aquela produzido em Minas — muitas vezes o que se delega como “original”, é uma peculiaridade do rococó religioso — e também a grande semelhança entre as duas sociedades, visto que, em ambas, a maioria dos artistas eram locais, formados em oficinas e eram fortemente ligados às tradições artísticas próprias da região e ao seu tipo específico de sensibilidade estética.

Myriam assinala também o papel das irmandades leigas na estruturação da sociedade colonial e, a partir de meados dos Oitocentos, período em que o rococó inicia sua penetração no Brasil, na promoção de construções religiosas, visto a sua abertura à experiência de novas tendências. A autora aponta para a necessidade de se estudar a vida econômica destas confrarias, elucidando assim, aspectos importantes daquela sociedade.

Ao analisar as condições de trabalho e as categorias profissionais, Myriam ressalta o papel fundamental dos mestres de obras portugueses, que, devido à sua perícia técnica, legaram obras de grande apuro. A historiografia sobre a arte colonial tendeu a supervalorizar a contribuição dos mulatos para assim reconhecerem na colônia, um símbolo de liberdade social. Esta postura vem sendo revista e trabalhos estão sendo feitos no sentido de apurar ponderações feitas a priori.3

A autora também mostra, ao considerar detidamente a arquitetura, talha e pintura mineira, que a arte em Minas não se resume a dupla Aleijadinho-Ataíde. O panorama artístico da capitania era muito mais rico e composto de nomes que, na sua maioria, ainda estão para serem estudados. Um exemplo é a região de Diamantina em que, além do trabalho do Guarda-mor José Soares de Araújo, já analisado, vem sendo descoberto outros nomes de artistas atuantes na região, como o do cartógrafo e pintor Caetano Luiz de Miranda e Silvestre de Almeida Lopes.4

A obra não se resume à análise da produção artística do território mineiro, abarcando também o estudo do rococó no Rio de Janeiro — com uma produção específica, porém, mal conservada —, no litoral nordestino — de forte influência portuguesa — e no Pará — onde se encontra obras do arquiteto italiano Antônio Landi, grande nome do barroco tardio. A ênfase da historiografia em Minas, muitas vezes relega a importância destes centros, que também possuíram uma produção artística de forte expressão.

O livro de Myriam, como toda síntese, peca por trazer lacunas. O que, de modo algum retira o mérito desta obra, abrangente, cuidadosa e inovadora em sua interpretação. A autora inclusive reconhece que ainda há muitos estudos a serem feitos, que irão complementar este grande quadro da nossa arte colonial. Um passo importante a ser realizado ainda é o de inventariar as obras artísticas brasileiras, processo iniciado pela equipe do então SPHAN, em meados de 1940 e ainda não completado. Esse trabalho filológico é o ponto de partida para todos aqueles que querem estudar a arte luso-brasileira. Pode-se dizer, contudo, que Myriam alcança seus objetivos de, ao revisar conceitos tradicionalmente aceitos, ajudar a compreender melhor o rococó e assim, produz uma obra de referência fundamental.

Notas

1 Sobre o assunto ver o artigo de MANDROUX , Marie-Thérèse: ‘La circulation de la gravure d’ornament em Portugal du xvie. au xviiie”. In: Congresso Internalionale di Storia dell’Arte, Bolonha, 1983.

2 Cf. LEVY, Hannah. “Modelos europeus na pintura colonial” In: Revista do SPHAN, 8 (1944): 07-66.

3 Ver SANTOS, Antônio Fernando B. dos. A Igreja de Nossa Senhora do Carmo e a pintura ilusionista de José Soares de Araújo. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais, Escola de Belas Artes/UFMG, 2002.

4 Cf. ARAÚJO, Jeaneth Xavier. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica setecentista. Dissertação de Mestrado em História/ UFMG, 2003; vj. Ainda CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas Gerais: José Gervásio de Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde” IN: PAIVA, Eduardo F. & ANASTASIA, Carla (0rg). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver — séculos XVI a XIX. Belo Horizonte: UFMG- Annablume, 2001. Pp. 247-264.

Flávia Gervásio Klausing – História/UFMG-FAPEMIG. Bolsista de Iniciação no Projeto Pompa e Semana Santa no Barroco luso-brasileiro, CNPq coordenado pela profa. Adalgisa Arantes Campos.

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