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Arquivos pessoais / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2009
A escolha do tema deste Dossiê da Revista do Arquivo Público Mineiro é, em si mesma, um acontecimento a ser registrado, por algumas razões que merecem destaque logo no início desta apresentação – que se quer breve e modesta. A primeira é remarcar que a questão dos arquivos pessoais está sendo ressaltada por um periódico editado por um arquivo público de grande prestígio e visibilidade nacional. A segunda, e talvez mais importante, embora possa parecer óbvia a muitos leitores, é tratar de arquivos pessoais como um tema nobre e estratégico para se pensar o campo arquivístico e historiográfico, não só no Brasil.
Essas razões / observações já nos remetem diretamente ao conjunto de textos aqui apresentado, que, a meu ver, tem como objetivo principal realizar uma afirmação tão simples como polêmica: os arquivos pessoais precisam ser reconhecidos como legítimos arquivos pela teoria arquivística e, de posse de seu lugar, merecem e exigem reflexões teóricas que se beneficiem de um diálogo interdisciplinar crescente na área das ciências humanas e sociais, em particular. Aliás, apenas com tal perspectiva, seria possível entender que os responsáveis pela revista convidassem uma historiadora de ofício para a empreitada de organização do Dossiê. Nesse sentido, entendo que o resultado dá uma contribuição fundamental ao oferecer subsídios bibliográficos à esfera do conhecimento em que a produção é, ainda, bastante escassa e fragmentada. Leia Mais
Arquivos Pessoais / Estudos Históricos / 1998
CPDOC: 25 Anos
Jubileu de prata, um quarto de século. É grande a simbologia que envolve a comemoração de 2S anos. Já tendo sido inaugurada a maioridade, a impressão é de se estar festejando uma idade de plenitude, solidez conjugada a vitalidade. Uma idade em que a memória das realizações, longe de ancorar a embarcação, impulsiona os ventos de mudança.
No caso de uma instituição acadêmica como o CPDOC, criada e durante os primeiros anos conduzida pelo dinamismo de jovens pesquisadores -à época mais ou menos com a idade que hoje se comemora -, as razões para celebrar são de certa maneira evidentes. A própria estabilidade não seria uma motivação menor, num país constantemente sacudido por crises econômicas e pouco generoso com a área da cultura. Mas o CPDOC não se manteve apenas funcionando ao longo desse tempo. Ele se afirmou e se tomou reconhecido, dentro e fora do país, como instituição voltada para a preservação da memória nacional, produtora de conhecimento na área de história do Brasil e pioneira no desenvolvimento de metodologias nos campos dos arquivos privados pessoais e da história oral.
Entre as comemorações previstas para este ano, pensou-se em editar um número especial de Estudos Históricos, publicação que já há dez anos acompanha, e em certa medida divulga, a trajetória do Centro. Os fecundos resultados de um seminário recentemente organizado pelo CPDOC, que teve como objeto exatamente os arquivos pessoais, uma das matérias-primas do trabalho da instituição e, poderíamos dizer, a vocação primeira da casa, inaugurada em 1973 com a recepção do arquivo de Getúlio Vargas, apresentaram-se como material absolutamente oportuno para este número.
Estamos nos referindo ao Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais, promovido pelo CPDOC em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da USP, e realizado na semana de 17 a 21 de novembro do ano passado, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nesse seminário, pioneiro na sua concepção, reuniram-se nomes de destaque tanto da área arquivística quanto do campo das ciências sociais, para refletir sobre o tema dos arquivos pessoais a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Seu objetivo principal era lançar alguma luz sobre a especificidade desse tipo de conjunto documental dentro da área de arquivos e assim permitir o avanço das discussões teóricas e metodológicas que envolvem seu tratamento e usos.
O seminário foi organizado em quatro mesas-redondas, cujos remas buscaram acompanhar a trajetória dos arquivos pessoais desde sua gênese até tornarem-se disponíveis em instituições que detêm sua custódia. Assim, numa primeira discussão, procurou-se refletir sobre as motivações que podem orientar o indivíduo em uma atividade acumuladora de documentos e registros de sua trajetória, abrindo-se a discussão para outras modalidades de “produção de si”, tais como a constituição de coleções e a escrita autobiográfica. A seguir, a discussão se deteve na interferência do arquivisra sobre esses conjuntos documentais, mais especificamente na aplicabilidade dos princípios arquivísticos a essa modalidade de arquivo, nas condições a serem cumpridas para a sua abertura à consulta e nas exclusões praticadas nesse processo. Um terceiro eixo temário girou em torno da utilização dos arquivos pessoais enquanto fontes de pesquisa, das suas potencialidades e peculiaridades e das posturas metodológicas específicas que exigem por parte, principalmente, dos historiadores. Finalmente, sugeriu-se que fossem abordadas questões ligadas às políticas de preservação e acesso, especificamente quanto às convergências entre público e privado, contrapondo-se o dever de dar publicidade às informações consideradas de interesse público aos preceitos de proteção à intimidade.
Os resultados desse encontro foram considerados muito satisfatórios. As contribuições apresentadas em alguns remas superaram as expectativas iniciais, e os debates que se seguiram tomaram rumos muitas vezes surpreendentes. De posse de um rico material ainda inédito para o grande público, tivemos a idéia de apresentá-lo nessa publicação, não na íntegra ou sob a forma de anais, mas conferindo-lhe uma nova ordenação, afeita mais aos resultados do evento do que à sua formulação original. Assim, estamos publicando não apenas textos apresentados no seminário, mas contribuições posteriores relacionadas às problemáticas abordadas e que, em alguns casos, já incorporam questões levantadas nos primeiros.
As ênfases e os parentescos temáticos sugeriram a organização dos artigos em dois blocos. O primeiro, que chamamos Escrita de si I escrita da história, reúne os textos que abordam preferencialmente a dimensão da produção de si pelo sujeito, as diferentes formas pelas quais o indivíduo se forja uma identidade, seja pela escrita propriamente dita, de memórias ou diários íntimos, seja por outros “atos autobiográficos”, incluindo também textos que se detêm na escrita feita com base nesses registros pessoais, isto é, na história que se alimenta basicamente das memórias individuais, geralmente chamada história cultural, antropológica ou das mentalidades. No segundo bloco, O espaço do arquivo, encontram-se os textos que problematizam o estatuto dos arquivos pessoais para o campo arquivístico, seja em uma comparação com os fundos de natureza pública, seja em uma análise dos procedimentos recomendados para o seu tratamento, seja ainda no que diz respeito ao papel do Estado na atribuição do valor de interesse público a esses arquivos c na regulamentação do acesso a seus documentos.
Abrindo o primeiro bloco, o artigo de Philippe Artières dedica-se à relação complexa que liga o indivíduo a seus documentos, detendo-se na natureza das injunções sociais que levam as pessoas, cotidiana e silenciosamente, a manter arquivos de suas vidas. Abordando a produção autobiográfica como uma prática de arquivamento de si, analisa o caso de Emile Nouguier, jovem marginal condenado à morte no final do século XIX que, por meio de escritos autobiográficos, afirma uma identidade para si mesmo e funda um mecanismo de resistência. A seguir, o texto de Renato J anine Ribeiro discute as formas pelas quais os indivíduos, num mundo laicizado, marcado pelo universalismo e pelo individualismo, forjam uma glória para si mesmos. Janine sugere que a construção de uma memória de si se faz por meio de processos deliberados de monumentalização, o mais das vezes representados pelo entesouramento do próprio cotidiano. No sentido de uma caracterização do contexto cultural do Ocidente moderno caminha também o artigo de Contardo Calligaris, que chama a atenção para o privilégio atribuído à subjetividade do sujeito com relação à objetividade dos fatos. Por esse contexto se explica o lugar de destaque assumido pelos escritos autobiográficos, forma narrativa que o sujeito encontrou para se dizer, uma entre outras manifestações dentro de uma história da subjetividade moderna. Os arquivos pessoais provavelmente também encontrariam nessa história o seu lugar. Essa hipótese encontra no texto de Priscila Fraiz uma análise empírica bastante sugestiva. Interessada em estabelecer relações entre o campo da literatura e o da arquivística, a autora analisa o caso do arquivo privado de Gustavo Capanema propondo que, para esse sujeito acumulador, a produção cuidadosa de um arquivo pessoal substituiu o texto autobiográfico jamais escrito. Já o artigo de Ulpiano Bezerra de Meneses indaga o que ocorre no deslocamento do campo pessoal para o público com objetos materiais e coleções, quando mobilizados como documentos, e que implicações precisariam ser consideradas no que diz respeito à pesquisa histórica.
Mais diretamente dedicados à escrita da história, são os artigos de Christophe Prochasson e de Angela de Castro Gomes. No primeiro, o autor discorre sobre a valorização e mesmo a banalização das fontes privadas nos últimos 20 anos, no contexto historiográfico francês, correlatas ao desenvolvimento da história cultural e das elites. A historiadora brasileira, comentando o texto do colega francês, analisa brevemente a relação entre o surgimento de uma “nova” história política, social e cultural no Brasil e a disponibilização de arquivos privados para a pesquisa, problematizando as propaladas virtudes da espontaneidade e autenticidade dessas fontes sem, no entanto, ocultar suas preferências pelo trabalho com esse tipo de material.
O espaço do arquivo, segundo bloco temático da revista, é também o espaço dos arquivistas que, embora não exclusivamente, se encontram aí reunidos. Inicialmente, duas grandes escolas ou linhas, dentro da arquivística, estão representadas. A canadense, caracterizada por conjugar eficiência e renovação, e portanto, em geral, inovadora e polêmica no tratamento de questões de base da teoria e da prática arquivísticas, aparece representada pelo artigo de Terry Cook; enquanto a da França, um dos berços da própria arquivística e sem dúvida a tradição que mais influência exerceu no Brasil, aparece no artigo de Ariane Ducrot. Cook questiona a atualidade dos consagrados princípios da disciplina no que diz respeito tanto aos arquivos pessoais quanto aos fundos governamentais e institucionais, considerando as transformações por que passam tanto as instituições quanto os próprios registros documentais e seu gerenciamento; além disso, problematiza o caráter neutro tradicionalmente atribuído ao trabalho do arquivista. No artigo de Ducrot, de caráter mais normativo, a questão da aplicação dos princípios da arquivística aos fundos de origem pessoal ou familiar é abordada a partir da remissão às regras práticas que orientam o trabalho desenvolvido nos Arquivos Nacionais, na França. São abordadas também as políticas desenvolvidas no sentido do recolhimento desses fundos, bem como os critérios para sua comunicabilidade. O artigo de Ana Maria Camargo, a pretexto de contribuir para uma abordagem diplomática dos arquivos pessoais, discute a natureza de determinados documentos que, por resultarem de ações juridicamente irrelevantes, não obedecem a fórmulas rígidas. Em torno de um exemplo concreto – uma participação de casamento do final do século passado – a autora analisa as características que distinguem os documentos de arquivos pessoais daqueles de origem institucional.
Maria Madalena Machado Garcia explora em seu texto a questão dos documentos pessoais no espaço público, tanto do ponto de vista dos arquivos privados propriamente ditos, cuja custódia e acesso podem ou não estar a cargo de instituições de memória, quanto daquele relativo aos documentos ou informações de natureza pessoal mantidos em arquivos públicos. Trata-se de duas situações que colocam em pauta a dicotomia privacidade x interesse público. As origens filosóficas e os embasamentos legais para as discussões travadas no seio da comunidade arquivística sobre essa mesma dicotomia são abordados no texto de Célia Costa. Finalizando este bloco dedicado aos arquivos encontram-se os comentários de Heloísa L. Bellotto aos textos de Cook e Ducrot, que sumarizam as contribuições desses dois renomados profissionais e lançam alguns desafios aos seus colegas brasileiros.
O mais, apenas a leitura dos textos poderá oferecer. Esperamos que os fios que se buscou puxar tendo como inspiração os arquivos pessoais sugiram ainda novas teceduras aos leitores, convidados a participar desta “aventura” interdisciplinar que provou ser não apenas possível, mas sugestiva e provocadora.
Ana Maria Camargo
Célia Costa
Luciana Heymann
Priscila Fraiz
Editoras convidadas.
CAMARGO, Ana Maria; COSTA, Célia; HEYMANN, Luciana; FRAIZ, Priscila. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.11, n.21, jan. / jun. 1998. Acessar publicação original [DR]