História, arquivos e mulheres: perspectivas interdisciplinares | História e Cultura | 2022

Luiza Tavora e Virgilio Tavora na Hidreletrica de Paulo Afonso 1965 Imagem Historia da energia no Ceara Ary Bezerra LeiteFortaleza em Fotos
Luiza Távora e Virgílio Távora na Hidrelétrica de Paulo Afonso (1965) | Imagem: História da energia no Ceará (Ary Bezerra Leite)/Fortaleza em Fotos

Desde a década de 1970, historiadoras vêm apontando a ausência das mulheres nas narrativas da história tradicional. Como lembra Michelle Perrot, em seu hoje clássico texto “Práticas da Memória feminina”, “no teatro da memória as mulheres são sombras tênues”. As razões para isso estavam no fato da história privilegiar o espaço público, a política e a guerra, lugares sociais que foram durante muito tempo pouco acessíveis às mulheres, mas também à ausência de fontes para uma escrita da história das mulheres, o que Perrot denominou de “o silêncio dos arquivos”. A ausência das mulheres nas narrativas da história, contrapunha-se com o seu papel como guardiãs da memória. Se, como defendeu Perrot, “a memória feminina é verbo”, as fontes primeiras de uma história das mulheres que começou a ser escrita nas décadas de 1970 e 1980 foram os relatos orais, os diários e autobiografias.

Atualmente, como demonstra Joana Maria Pedro, é possível traçar uma historiografia da “história das mulheres” – de vocação interdisciplinar – e mapear um vocabulário específico que foi construído ao longo do tempo pelo uso de categorias como “mulher”, “mulheres”, “gênero” e “feminismo”, impactado mais recentemente por reflexões decoloniais. A proliferação desse campo de estudo a partir dos anos 2000 e a importância não só acadêmica, mas também política e cultural que ele adquiriu é patente e fica visível nos muitos artigos, publicações e eventos acadêmicos dedicados à área. A própria revista História e Cultura lançou dois dossiês sobre “História e Gênero”, em 2018 e 2019. Leia Mais

Organização do conhecimento em arquivos/Acervo/2022

A aproximação entre a arquivologia e a ciência da informação, observada nos últimos anos, deve-se principalmente ao aumento da busca de informação e da construção de conhecimento pelos sujeitos. A partir de teorias e práticas arquivísticas para organizar e tratar documentos, é possível apontar as interações com a ciência da informação, entre elas a identificação de conceitos comuns às duas disciplinas, como indexação, análise de assunto e classificação, embora com suas respectivas especificidades. Leia Mais

Etnografia Nos Arquivos e a Produção de Conhecimento Sobre Populações Subalternizadas | Ofícios de Clio | 2021

Candangos na construcao de Brasilia 2
Candangos na construção de Brasília | Imagem: Senado Federal

Quando propusemos um dossiê dedicado a recolher etnografias nos arquivos, tínhamos como principal interesse interligar distintos estudos e objetos, pois entendemos que a escrita histórica alinhada à prática etnográfica é uma junção fundamental na produção de conhecimento científico, servindo como ponto de partida, ou mesmo como retórica, nas pesquisas dos profissionais das ciências humanas. Aqui, a categoria de “subalterno” e os conceitos derivados da ideia de subalternidade, contemporaneamente, ocupam os debates e servem de base aos estudos acadêmicos que se alinham aos trabalhos propostos por Gramsci (2002), Said (2007) e Spivak (2010), entre outros. Arquivos, textos jornalísticos e jurisdicionais, por vezes, denotam como determinados grupos eram – e alguns ainda são – tutelados, ordenados e reagrupados pelas instituições governamentais ou/e eclesiásticas.

Ao analisar os fenômenos históricos, sociopolíticos e culturais, os trabalhos que aqui se encontram reunidos, carregam e apresentam discussões que confrontam visões estabelecidas por instâncias de poder. Os textos, assim, refletem esforços analíticos centrados em alguns conceitos-chave, marcas de perspectivas voltadas à compreensão de processos e dinâmicas que envolvem atores e agências sociais em campos de disputas. Numa clave que abarca a Etnografia nos arquivos, percebemos o resultado de coletas de materiais de diferentes formatos que passam a compor acervos construídos com variadas intenções institucionais. Leia Mais

Dados e arquivos/Acervo/2021

O advento das novas tecnologias de informação e comunicação, associado a um cenário de movimentos sociais, políticos e econômicos, proporcionou um ambiente de intensas transformações no contexto da produção e circulação de objetos informacionais digitais nas últimas décadas. Considerando dados, informações e documentos como partes desses objetos informacionais digitais, grandes volumes são criados diariamente e podem ser tidos como resultado do uso intensivo da tecnologia em diversas áreas do conhecimento e da sociedade. Nesse contexto, inúmeras reflexões são necessárias e urgentes para entender as implicações, barreiras e potencialidades do uso desses objetos digitais para diferentes fins. Leia Mais

Os arquivos na Cadeia de Produção do Conhecimento – Formação Profissional | Revista do Arquivo | 2021 (D)

Bilros 2

Como acontece a produção do conhecimento humano? Eis aí um dos enigmas que perpassa quase toda a história. A cada resposta esboçada, novos questionamentos se impõem. Afinal, a sociedade humana, sob todos os aspectos, está em permanente mutação, especialmente no cultural. Portanto, esse será sempre tema oportuno, sobre o qual haverá muito o que se refletir e se escrever.

Esperemos que esta nossa edição nº 12 se apresente como mais um grão no debate sobre os saberes humanos.

INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ

“…se a Arquivologia é muito antiga como prática, é recente como saber”. Esta afirmação é do texto introdutório de Mariana Lousada, que nos oferece uma apresentação sumular do desenvolvimento dos conceitos e conhecimentos da arquivologia. Trata-se de um bom aperitivo para esta edição que nos propõe reflexão sobre a produção do conhecimento na arquivologia.

A professora doutora Marcia Pazin Vitoriano foi a nossa entrevistada para tratar do tema do dossiê. Feliz escolha da nossa editoria, Pazin tem o perfil perfeito como atuante docente do curso de arquivologia, com larga experiência em organização de arquivos e produção intelectual sobre o tema do dossiê. Não bastasse tudo isso, a nossa entrevistada é colaboradora de longas datas do Arquivo Público do Estado de São Paulo e colaboradora e membro do Conselho Editorial da Revista do Arquivo. De forma objetiva e substancial, essa querida professora aborda temas candentes e polêmicos sobre o assunto.

ARTIGOS DO DOSSIÊ TEMÁTICO

Quatro são os artigos que apresentam bem distintas abordagens sobre o tema do dossiê temático, e se somam a outros dois que tratam de temas que não dialogam diretamente com o dossiê proposto, mas abrilhantam esta edição, colaborando com excelentes reflexões que expandem o nosso conhecimento sobre os arquivos e suas fontes de informação.

Atentem os leitores desta edição para a dimensão das questões levantadas pelo artigo assinado por Beatriz Carvalho Betancourt, Eliezer Pires da Silva e Priscila Ribeiro Gomes: “a formação em arquivologia contempla as atribuições profissionais? O que a regulamentação profissional e o mundo do trabalho demandam da formação? Como a análise entre currículo, legislação e concursos públicos contribui para a harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro?”. Na busca de respostas a questões desse quilate os autores do artigo intitulado Recomendações para harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro atingem o âmago do proposto pela chamada de artigos, apresentando excelente reflexão teórica fundamentada em “pesquisa documental e bibliográfica em arquivologia, educação, sociologia e história”.

A classificação é atividade essencial e central dos arquivos e, portanto, um dos conceitos articuladores da área da arquivologia, cujos “desdobramentos teóricos e metodológicos foram responsáveis por alçar a Arquivologia ao posto de disciplina científica”, conforme justificam as autoras do artigo intitulado A Função Classificação na Formação do Arquivista: Uma Análise Histórica dos Modelos de Ensino dos Cursos de Arquivologia do Sudeste do Brasil, assinado por Juliana de Mesquita Pazos e Clarissa Moreira dos Santos Schmidt. Fruto de investigação empírica, Pazos & Schimidt tecem ótima reflexão teórica sobre tema crucial da área, com a originalidade de pensá-lo sob ótica do ensino no nível superior, buscando “identificar os modelos de ensino dos conteúdos fundamentais relativos à função classificação”.

A Revista do Arquivo tem o prazer de anunciar a publicação de artigo que tem originalidade como ponto forte e oferecer ao público a primeira reflexão descritiva sobre aspectos da elaboração daquele que é o “primeiro curso técnico em arquivos do Brasil”, fruto de “uma parceria entre Arquivo Público do Estado de São Paulo e Centro Paula Souza”, conforme consta no título do artigo de autoria de Antonio Gouveia de Sousa, Fernanda Mello Demai, Noemi Andreza da Penha, Aline Santos Barbosa e Flávio Ricci Arantes. Eis aí um bom motivo para se multiplicar a reflexão sobre esse importante tema, que também aparece na citada entrevista de Márcia Pazin.

Outra abordagem inusitada é publicada por Ismaelly Batista dos Santos Silva, que nos oferece a oportunidade de reflexão sobre um assunto ausente como objeto de pesquisa, que aparece explicitado no título Consultoria arquivística: da contextualização ao planejamento do consultor. Ismaelly Silva ousa afirmar que seu objetivo é “estruturar ideias passíveis de serem convertidas em conhecimento explícito”, almejando, assim, “compor referência literária para aprendizagem de potenciais consultores na área de Arquivologia”. Confiram e avaliem os leitores.

AUTORES CONVIDADOS

Desta vez, publicamos três artigos na subseção autores convidados, com temas bem distintos, mas idênticos em qualidade e relevância.

A edição nº 12 da Revista do Arquivo tem a honra de publicar o artigo cujo título já divulga o trabalho de mais de uma década sobre O processo de atualização do Plano de Classificação e da Tabela de Temporalidade de Documentos da Universidade de São Paulo (USP): desafios e soluções heterodoxas, subscrito por Ana Silvia Pires, Johanna Wilhelmina Smit, Lílian Miranda Bezerra e Marli Marques de Souza de Vargas.

Utilizando-se de narrativa descritiva de um caso, o artigo disserta sobre um processo de trabalho específico e não expõe grandes reflexões teóricas. No entanto, trata-se de um texto original, de extrema relevância, capaz de gerar pulsantes debates no meio arquivístico e, acima de tudo, que demonstra o processo de aprendizagem, de acúmulo e de produção do conhecimento exemplares a partir do “chão” de arquivos, tendo como objeto instrumentos de gestão, que são uma das pedras de toque da arquivologia: o plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos.

Pesquisadora do teatro brasileiro, pela segunda vez publicamos artigo de Elizabeth R. Azevedo1, agora sob o título A inserção do patrimônio artístico na estrutura universitária: o caso do centro de documentação teatral (USP). O artigo trata da criação e da trajetória do Centro de Documentação Teatral na ECA/USP, reflete sobre as escolhas teórico-metodológicas para sua constituição, sua relevância para a comunidade artística, sua importância para a preservação do patrimônio histórico e cultural, bem como sua inserção na estrutura da universidade.

Não são raros os exemplos de cooperação entre instâncias universitárias e instituições executivas do poder público com finalidade de compartilhamento de benefícios mútuos para usufruto do manancial informativo cultural dos arquivos. Mirem-se no Acordo de Cooperação firmado entre a Universidade de São Paulo, por meio da área de Filologia e Língua Portuguesa, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e a Justiça Federal de Primeiro Grau de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O artigo sob o título Da arquivística à produção linguística: estudo interdisciplinar de um Summario de Culpa de 1892 é um exercício multidisciplinar de exploração conjunta de uma instigante peça de processo judicial do final do século XIX, assinado por Phablo Roberto M. Fachin, Vanessa M. do Monte, Sílvio de Almeida Toledo Neto, Ana Carolina E. P. do Amaral, Ana Laura M. Cinto, Carla A. di Lorenzo Midões de Mello, Heloisa Ribeiro Bastos e Luisa Biella Caetano. Mais uma boa oportunidade para rememorarmos as profícuas interfaces entre a linguística, história e arquivos, conforme já publicamos nas edições nº 1 e nº 4 deste periódico. Vale conferir.

RESENHA

A Revisa do Arquivo realizou esforço suplementar em decorrência do falecimento de Vicenta Cortés Alonso em 4 de janeiro passado e propôs a elaboração de resenha que abordasse a obra, parte da obra ou a vida intelectual dessa arquivista que nos lega produção vasta e fecunda. Tivemos a felicidade de receber a contribuição de Rafaela Basso, Diretora de Gestão e Preservação de Documentos e Informação no Arquivo Central da Unicamp, que engrandece esta edição com sua resenha intitulada Vicenta Cortés Alonso, uma vida dedicada à luta pelos arquivos. Com ela, fica aqui registrada a nossa singela homenagem.

INTÉRPRETES DE ACERVO

Essa seção traz relatos fascinantes sobre pesquisas em arquivos, com ótimos depoimentos de pesquisadoras com suas distintas experiências, apresentando objetos de estudos muito interessantes e dicas para quem se propõe a buscar informações nos labirínticos arquivos. Façam companhia às brilhantes historiadoras Marisa Midori, Marília Cánovas e Yaracê Morena.

PRATA DA CASA

Monitoria e fiscalização: funções inusitadas em instituição arquivística. É o título da matéria do Prata. O que faz um Núcleo com essas aparentes competências expressas na sua nomenclatura? Como assim, “monitoria”? Como assim “fiscalização”? Como atua esse setor? Ele pratica, de fato, o que propõe sua nomenclatura. O que se fiscaliza? Têm os arquivos públicos essa competência?

Leia a entrevista com o diretor da área, Benedito Vanelli, e tire suas dúvidas.

VITRINE

Nesta edição, um belo depoimento de uma pesquisadora que revela com paixão as suas experiências e descobertas nos arquivos sobre A indústria oleira da Vila de Piratininga. Ao final do texto de Edileine Carvalho Vieira fica aquela sensação de “quero mais”.

O segundo texto é de Isaura Bonavita que nos toca com sua refinada crônica memorialística sob o título Lembranças miúdas.

Conteúdo de qualidade.

Atentem. Comentem. Critiquem!


Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 12, abr. de 2021. Acessar publicação original [DR]

Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020

Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.

Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.

Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.

Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.

Não é para gostar, é para ficar atento!

Introdução ao Dossiê

Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.

Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.

Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.

Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!

“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.

Artigos

Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.

Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.

“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.

Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.

Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.

Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.

A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.

Intérpretes do Acervo

Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.

Prata da Casa

Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Vitrine

Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.

Arquivo em Imagens

O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.

Memórias na Pandemia

Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.

Atentem. Comentem. Critiquem!

Notas

1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM

2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)

Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Arquivos: teoria e ensino em diálogo com diferentes públicos/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2020

Tomados em diferentes áreas disciplinares e perspectivas teóricas, desde as tipologias científicas e tecnológicas de organização de documentações variadas até o uso comum e corriqueiro das informações cotidianas, os arquivos são referenciais e suportes dotados de finalidades, usos e interesses múltiplos voltados à orientação espaço-temporal da vida individual e coletiva. Leia Mais

Arquivos de Instituições médicas e de saúde / Revista do Arquivo / 2019

Medicina, saúde pública e arquivo entre os espaços de memória e de história

Recentemente, temas relativos à memória se tornaram objeto de reflexão historiográfica, em particular a partir dos anos 1970, quando os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com essa temática, aproximando-se de estudos já avançados no campo da filosofia, da sociologia, da antropologia e, principalmente, da psicanálise. É essa história que se empenha em sua cientificidade, ganhando a memória um lugar de importância decisiva. A partir de um problema em torno da contemporaneidade, uma iniciativa retrospectiva e a renúncia a uma temporalidade linear em favor de tempos múltiplos, a relação de enraizamento do individual no social e no coletivo ganha a atenção desses analistas, fermentando pesquisas em torno de lugares da memória coletiva. Para Jacques Le Goff (1996, p. 473), esse seriam:

[…] lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais e as autobiografias, mas não podendo esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou gerações, levando a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória.

Se a identificação da memória está entre os próprios alicerces da história, muitas vezes se confundindo com o documento, com o monumento ou com a oralidade, é essencial ao ofício do historiador a relação estabelecida com memórias, sejam elas de que natureza forem, exigindo, ao mesmo tempo, cuidados que devem incluir uma clara conceituação entre história e memória, evitando considerar as memórias como um discurso mais verdadeiro, mais próximo do que teria sido o que se poderia chamar de uma “verdadeira história”. O historiador também se deve preocupar em definir em torno das memórias uma clara exposição de métodos, tanto no que tange à coleta dessas memórias como em seu emprego posterior no interior de um discurso historiográfico. Esses cuidados buscam dirimir tensões que existem entre os conceitos de memória e de história, que, longe de serem sinônimos, têm entre si um jogo sobretudo de oposição.

Sempre carregada de grupos vivos, a memória estaria aberta à dialética das lembranças e dos esquecimentos, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, enquanto a história seria a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não mais existe:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, enquanto a história é uma representação do passado, porque é uma operação intelectual e laicizante, demandando análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica (NORA, 1993, p. 9).

Nesse sentido, a memória trata dos outros, mas para falar do indivíduo, numa relação consigo mesma e, por isso, construtora de identidade, presa a grupos, à visão de grupo ou grupos que é expressão, envolvendo em seu discurso uma maior ou menor distância em torno da polaridade memória individual-coletiva, envolvendo tríplice atribuição: “a si, aos próximos, aos outros, afinal, não existe um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos?” (RICOEUR, 2007, p. 141-142).

É nesse campo problemático envolvendo memória, identidade e construção de discursos que a história se elabora na externalidade com o acontecido. É uma interpretação a posteriori do fato, trabalhando com as experiências de inúmeros grupos e indivíduos, querendo conhecê-los e, consequentemente, interpretá-los, numa relação com a alteridade, numa relação com a identidade que é a de localizá-la para descobri-la em suas diferenças.

Quando as questões médicas e de saúde pública ganharam compreensão historiográfica, era esse um de seus maiores dilemas: como construir um discurso histórico em torno de uma memória já tão alicerçada em alguns cânones considerados pétreos e como capturar um novo discurso considerando as preocupações que a própria história colocava em seu campo de trabalho, diferenciando o que é a memória e o que é a história, apontando novas possibilidades interpretativas e temáticas?

A proposta de um dossiê

Entre os anos 1960-70, quando a Medicina Social abriu o debate acadêmico e social sobre os processos saúde-doença e as formas de organização das práticas sanitárias em sua visão interdisciplinar, identificou na História e em sua dimensão crítica um campo de saber fundamental. Apresentando a primeira coletânea brasileira sobre aspectos teóricos e históricos da Medicina Social, Cecília Donnangelo (1983, p. 10) recomenda a seus estudiosos e defensores uma atenção particular à dimensão histórica de sua constituição e de seus dilemas, “apreendido[s] e reconstruído[s] também através da análise histórica”.

Esse empreendimento intelectual se distanciou da História da Medicina que vinha sendo difundida desde o século XIX sob balizas positivistas do conhecimento, quase sempre escrita por médicos, que:

[…] ordenavam fatos à luz de esquemas evolutivos que combinavam os marcos cronológicos da história política e administrativa brasileira com a marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de importância nacional e local (BENCHIMOL, 2003, p. 108).

Entre os clássicos dessa produção no Brasil, estão História da Medicina no Brasil (1947), de Lycurgo de Castro Santos Filho, e História da Medicina no Brasil (1948-49), de Pedro Nava.

Assim, no âmbito da saúde e das práticas médicas, a medicina social procurava compreender mais amplamente a história da produção e difusão desses conhecimentos e dessas práticas não mais se restringindo à investigação fechada na ideia de um “irretocável” patrimônio científico e técnico, mas percebendo-os num contexto em que circulam e se articulam inúmeros fatores, inseparáveis das condições econômicas, sociais, políticas e culturais. Em particular, entre os historiadores, o impacto da tradição da Escola dos Annales entre os anos 1970-80 alargou todo um repertório de objetos, abordagens, ferramentas conceituais e fontes, originando temas, metodologias, problemas e alternativas requalificadas por metodologias específicas da ciência histórica e de sua lógica.

Nesses termos, o território da geração da Medicina Social, como George Rosen, Henry Sigerist e Entralgo, viveu incorporações e discussões importantes em torno da perspectiva historiográfica:

Questões pertinentes à raça e ao gênero, uma visão mais refinada de classes e categorias sociais, a atenção aos atores e particularismos locais passaram a informar os estudos sobre políticas, instituições e profissões de saúde. A história da medicina deixou de ser apenas a história dos médicos para se tornar também a dos doentes, e a história das doenças experimentou um verdadeiro boom historiográfico. O corpo, a infância, as sensibilidades, o meio-ambiente e outros objetos atenuaram as fronteiras entre a ciência da história e outras ciências humanas e naturais (BENCHIMOL, 2003, p. 109).

Eis a motivação maior para a construção deste dossiê, reunindo um conjunto de estudos nacionais e internacionais sobre temas médicos e de saúde pública, mas afinados com o lugar da documentação, de sua guarda, conservação e disponibilização para a pesquisa histórica. Isso porque há todo um esforço dos pesquisadores frente à dificuldade de acesso a arquivos que tratam de medicina e saúde pública advinda do próprio campo arquivístico, envolvendo o lugar da memória documental e sua relevância na explicação do passado e na formação de um pensamento presente:

[…] as instituições arquivísticas públicas brasileiras apresentam aspectos comuns no que se refere às suas características fundamentais. Trata-se de organizações voltadas quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de valor histórico, ignorando a gestão de documentos correntes e intermediários na administração que os produziu (JARDIM, 1995, p. 7).

Num plano específico, por outro lado, devem-se notar particularidades advindas no campo médico e de saúde pública que tangem ao esforço dos centros arquivísticos para transformar documentos, quase sempre de natureza privada ou institucional, em documentos de valor histórico e público, tendo que acolhê-los, conservá-los e disponibilizá-los a pesquisadores em todo um percurso difícil, fazendo com que parte dessa documentação seja descartada antes de chegar aos arquivos:

Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da ideia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, sua função social ou sua utilidade pública (COSTA, 1998, p. 197).

É nessa dinâmica, que vai da identificação de acervos e da possibilidade de acolhê-los até a escolha do que deve ou não ser preservado e de sua disponibilização para a pesquisa, que o Arquivo Público do Estado de São Paulo vem há anos se preocupando em resgatar parte dessa memória, traduzida por uma intensa experiência acumulada de projetos, atividades e apresentação de temas que variam entre ações educacionais, de pesquisa e divulgação, permitindo:

[…] a integração de diferentes conhecimentos, de diferentes áreas, de diferentes profissionais. Envolve pesquisa, comunicação, ação pedagógica e uso da tecnologia, o que justifica o envolvimento não apenas de historiadores e arquivistas (os profissionais típicos dos arquivos permanentes), mas jornalistas, publicitários, designers, professores, revisores (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 8).

É essa ampla e abrangente dimensão arquivística que permite ampliar métodos e, sobretudo, divulgar suas fontes, trazendo como documentos históricos pistas e rastros possíveis que levem a compreensões capazes de repercutir neste dossiê as práticas dos médicos e de seus pacientes, bem como seus espaços institucionais de ensino, pesquisa e trabalho, mas, com a mesma força, as práticas e representações do homem comum, os espaços de associações profissionais, sociedades científicas e periódicos, sem perder de vista o universo popular, suas formas de organização e sua leitura do mundo que o cerca. Assim:

[…] além da legitimidade da memória no fazer histórico, o que se quer perceber são os contrastes de sua facção pela experiência vivida, sempre conduzida pela preocupação da história de apresentar um determinado tempo passado, com seus homens e suas mulheres, revelando por isso o tempo presente, também com seus homens e suas mulheres, mas estes carregados de projeções de um futuro incerto (MOTA, 2018, p. 81).

Referências

BARBOSA, Andresa Cristina Oliver; SILVA, Haike Roselane Kleber da. Difusão em arquivos: definição, políticas e implementação de projetos no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n.1, p. 45-66, 2012.

BENCHIMOL, Jaime L. História da medicina e da saúde pública: problemas e perspectivas. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de (Org.). Ciência em perspectiva: estudos, ensaios e debates. Rio de Janeiro: MAST / SBHC, p. 97-106, 2003.

COSTA, Célia Leite. Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 189-199, 1998.

DONNÂNGELO, Maria Cecilia Ferro. Apresentação. In: NUNES, Everardo Duarte. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, p. 10-12, 1983.

JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, p. 1-13, 1995.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4a ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

MOTA, André. Tempos cruzados: raízes históricas da saúde coletiva no Estado de São Paulo 1920-1980. Tese (Livre-docência em História da Medicina) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

NORA, Pierre. Entre memória e história: o problema dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

André Mota – Historiador, Professor Livre-docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina- USP e Coordenador do Museu Histórico-FMUSP.


MOTA, André. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.8, abril, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Tecnologia da Informação aplicada aos arquivos / Revista do Arquivo / 2018

Há, com frequência, uma dose de narcisismo da geração em como as novas mídias e as tecnologias de comunicação são avaliadas por contemporâneos; em outras palavras, há uma forte tendência de pensar que nossa geração é aquela que tem o tipo certo de tecnologias que fará tudo mudar[1].
Marko Ampuja

Os arquivos mais organizados, em geral, apropriam-se de técnicas e tecnologias para fins de exercício de suas funções. Os afazeres em arquivos estão vinculados às esferas da comunicação; da movimentação, acondicionamento e guarda de grandes volumes (em geral, documentos e caixas de documentos); e também de tudo o que diz respeito à localização, transporte e disponibilização de documento. Há, ainda, conhecimentos aplicados à preservação de diversos tipos de suportes documentais. Lembremos dos enormes mecanismos de geração de cópias por meio de equipamentos fotoelétricos, de fitas magnéticas, das técnicas para empreender desinfestações ou mesmos dos robôs usados para localizarem e disponibilizarem documentos em grandes depósitos “inteligentes”.

Entretanto, nenhum dos avanços tecnológicos impactou de forma tão decisiva na formação dos profissionais de arquivo quanto aqueles ligados à chamada tecnologia da informação. Na mal chamada “era da informação”, esperar-se-ia que os arquivos recebessem o reconhecimento de sua função estratégica. Afinal, o saber-fazer dos arquivistas não é senão o tratar as informações (e seus suportes) para que estas estejam preservadas e acessíveis a todos.

Mas, não é bem assim o que ocorre. Se, desde a década de 1980, a área dos arquivos parece florescer na prática e na teorização sobre os mesmos, é no âmago dessa chamada “era da informação” que se percebe aqui e ali o desprestígio ou mesmo possibilidades de retrocesso de políticas de arquivos no Brasil. É do alto de sua reconhecida competência técnica que Vanderlei dos Santos conclui em seu artigo, que as instituições vêm repetindo o comportamento dicotômico de afirmar que as informações são recursos estratégicos e, ao mesmo tempo, não investir em programas de gestão de documentos e informações, quer sejam ou não digitais.

De fato, assistir ao desempenho de um autômato ou um sistema automatizado operando costuma causar-nos espanto, sensação de estranhamento e de vulnerabilidade, ou de encantamento. Porém, isso está na base da fetichização da tecnologia no mundo atual. É necessário, no entanto, o esforço para enxergar que por detrás de todo o mecanismo há a imprescindível ação da inteligência e da mão humanas. De elaboradores e de operadores. É o que nos alerta o mesmo Vanderlei Santos: “o certo é que o fator humano é um dos principais responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de qualquer mudança institucional em que precise ser considerado e, sobremaneira, na execução de políticas de gestão de documentos arquivísticos”

Tecnologia é a expressão permanente e acabada da relação do ser humano com o seu ambiente e se vincula à incessante busca pelo fim do sofrimento causado pelo esforço penoso do trabalho. Entretanto, a evidência é historicamente comprovada: a tecnologia aprisionada para atender aos interesses de uma minoria que a controla e a explora significará a aniquilação humana e não a sua libertação como muitos apregoam.

Por outro lado, a visão equivocada fundada no determinismo tecnológico obscurece o papel estruturante daqueles que detêm o poder de decisão, inclusive sobre as escolhas de equipamentos a serem usados. Conforme afirma José Carlos Vaz, em vídeo disponível nesta edição, a tecnologia é também uma construção social.

Encerro este singelo editorial com as certeiras palavras de Alicia Barnard Amozorrutia:

Para lidar com o imensurável número de dados que se encontram nos servidores das instituições, cujas características, como unicidade, suporte de uma ação ou atividade, a inter-relação com outros documentos e o valor probatório que cumprem ou o qualificam como um documento de arquivo digital, requer profissionais da arquivística, e estes ainda não têm preparo para lidar com esse ambiente, pois é fato que apenas esses profissionais sabem tratar de contextos, conhecem planos de classificação e de temporalidade documental, fatores imprescindíveis para a produção, gestão e preservação de documentos de arquivos digitais. Essa falta leva a consequências desastrosas, tanto para a prestação de contas, quanto para a transparência ou preservação desses materiais a longo prazo.[2] [tradução livre minha].

Boa leitura!

Notas

1. Marko Ampuja, A Sociedade em rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na Teoria Social Contemporânea. Disponível em: http: / / revistaseletronicas.fiamfaam.br / index.php / recicofi / article / view / 295 / 311

2. Trecho extraído da apresentação do livro Archivos electrónicos: textos y contexto II. 1ed. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2013, v. 1, p. 111-133. Serie Formación Archivística, organizado por Alicia Barnard Amozorrutia.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.6, abril, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Os arquivos e a produção do conhecimento histórico / Revista do IHGSE / 2018

CAMPELLO, Lorena de Oliveira Souza; VITORIANO, Marcia Cristina de Carvalho Pazin. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.48, v.1, 2018. Sem acesso ao original [DR]

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Diversidades e(m) arquivos/Acervo/2018

Nos últimos anos, observamos uma série de políticas e ações em prol da diversidade cultural no Brasil e no restante do mundo. E os arquivos não estão indiferentes a esse contexto. Em 2010, a Declaração Universal sobre os Arquivos e o Conselho Internacional de Arquivos (ICA) reconheceram a importância da “diversidade dos arquivos ao registrarem todas as áreas da atividade humana” e, em 2017, o tema do encontro anual do ICA foi “Arquivos, cidadania e interculturalismo”. Leia Mais

Arquivos e Direitos Humanos / Revista do Arquivo / 2017

Finalizo com as palavras de Santo Agostinho: “A esperança tem duas filhas queridas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a recusar as coisas como estão e a coragem, a mudá-las”. Continuamos a lutar!

Margarida Genevois

No próximo ano se comemorará os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, que advoga uma norma comum a ser alcançada “por todos os povos e nações”. Para nós, a comemoração deve ter sentido de reflexão e debate, pois as razões que a motivaram permanecem, agregadas pelas demandas postas pelas mudanças socioculturais nesses 70 anos.

O tema direitos humanos se pretende universal, mas as abordagens possíveis são tantas quantas as possibilidades de apropriação ideológica dele. Há quem não ultrapasse a generalidade pueril que enxerga essa bandeira como um discurso acima da política e das classes sociais. Há quem defenda a prática da tortura como válida em nome da “democracia e do progresso” e que o extermínio de “bandidos” não é assunto de direitos humanos. Há outros que concebem os direitos humanos como cidadela da propriedade privada e do conceito de indivíduo genérico, portanto, não histórico, a justificar práticas de terrorismo de Estado com suas artilharias de ogivas ou de mercadorias contra povos inteiros.

Encontrar-se-ão várias nuances em torno do conceito de direitos humanos nos artigos e textos desta Revista, mas, em todos eles nota-se a adoção do conceito na perspectiva da luta contra o terror da tortura, contra a violência nua do Estado ou em defesa dos seres humanos mais vulneráveis, submetidos às mais vis crueldades, porém, sem qualquer visibilidade social. Em suma, os direitos humanos como campo de luta contra a barbárie.

De qualquer forma, tratar desse tema é sempre oportuno e necessário, afinal, continuamos a conviver com guerras regionais e com o terror da guerra total, atômica, hidrogenada e convencional. Bombardeios por Estados “democráticos”, “desenvolvidos” e “civilizados” a povos que, de alguma forma se contrapõem à lógica estrita dos impérios do capital. No mundo capitalista globalizado, permanece a massacrante concentração de renda e de riqueza nas mãos de um punhado de afortunados, geradora de misérias, de deslocamentos humanos maciços, desestruturados e até letais

Governos pelo mundo afora alimentam esse caos humanitário contemporâneo com combustível inflamável das políticas que quebram direitos econômicos e sociais duramente conquistados; restringem verbas para as atividades humanas mais elementares, como alimentação, saúde e educação, sempre em prol da acumulação financeira insaciável.

As rebeliões sangrentas nos presídios brasileiros superlotados e a persistente violência policial, com práticas de tortura, geradoras de mais violência social, são apenas expressões visíveis de uma sociedade assentada na desigualdade e na violência estruturada e institucional.

De qualquer modo, a propositura dos direitos humanos, sob quaisquer perspectivas, continua sempre atual e dependente dos arquivos, desde que foi sugerida. Como afirma Paulo Sérgio Pinheiro, “não existe avanço linear em direitos humanos, há retrocessos e progressos, é quase um jogo de xadrez”.

Não obstante a polêmica em torno das práxis e do conceito de direitos humanos, são os arquivos e os arquivistas elementos indispensáveis para se trazer à tona evidências e provas de atrocidades empreendidas por organizações estatais e civis em quaisquer partes e circunstâncias.

E esta edição da Revista do Arquivo convoca o leitor para um olhar especial sobre a luta da Comissão Teotônio Vilela como exemplo de abnegação, coragem e prática de quem não espera respostas, mas as praticam diante dos gritos de dor que ecoam de corpos e mentes destroçados sem qualquer amparo. Depois do seminário e da exposição, a nossa Revista já anima a outra vida da CTV, conforme definiu José Gregori: “Com a guarda dos documentos no Arquivo, a Comissão Teotônio Vilela começa a ter uma outra vida. Teve a vida real e agora terá a vida contada, que eu sei que os pesquisadores têm muita curiosidade de saber como foram esses anos de ditadura e sabem que a Comissão Teotônio Vilela exerceu um papel importante”.

Boa leitura!

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.5, outubro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Estado Novo, 80 anos: arquivos e histórias/Acervo/2017

A revista Acervo apresenta ao leitor, neste número, um dos temas mais importantes da história brasileira: o Estado Novo, nome pelo qual a ditadura de Getúlio Vargas ficou conhecida (1937-1945). Implantado pelo golpe de estado, desferido em 10 de novembro de 1937, esse regime político completou, em 2017, oitenta anos. Seu nome oficial, entretanto, era Estado Nacional, como de fato aparece na Constituição outorgada pelo presidente. Oficialmente, Estado Novo era o nome da ditadura portuguesa de Antônio de Oliveira Salazar, instituída quatro anos antes do golpe, e cujo nome acabou sendo adotado livremente no Brasil. Leia Mais

Comissões da verdade e os arquivos dos porões à luz do acesso / Revista do Arquivo / 2016

É destas dores que trata este livro. É desta triste história que nos falam estas páginas marcadas de sangue e dor.

Paulo Evaristo Arns

Arquivos para quê?

O arquivista francês Bruno Delmas publicou instigante livro com esse título, onde ele cita fato ocorrido em 1976, quando a Secretária de Estado da Cultura da França reuniu seus diretores para apresentações rotineiras e indaga ao diretor geral do Arquivo da França: “Senhor diretor geral, arquivos servem para quê?”.

O livro de Delmas, aqui recomendado à leitura, é todo ele uma resposta contundente e convincente à questão levantada no título deste editorial. Não obstante, a inexistência e invisibilidade dos arquivos é fato ainda muito longe de ser superado, o que nos força a nunca parar de elaborar respostas, em todo tempo, em todo lugar.

Este número 2 da Revista do Arquivo vem aumentar o repertório de respostas à questão “arquivos para quê?”. E a resposta se inicia com outra questão: o que seria das comissões da verdade sem os arquivos? Sim, porque a disputa pela verdade, justiça e reparação no Brasil ganhou novo capítulo com a instalação da Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012 e a publicação de vários relatórios conclusivos (mas provisórios) entre 2014 e 2015. Durante esse período, vários arquivos no Brasil foram (re)visitados por um novo perfil de pesquisadores, muitos dos quais nunca haviam experimentado a pesquisa numa instituição de custódia.

O arquivo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), que compõe o acervo do APESP, foi consultado como nunca. O movimento de pesquisa nele triplicou em decorrência da instalação das Comissões da Verdade. Essa demanda não ocorreu apenas no arquivo do DEOPS, mas também no de processos administrativos da esfera estadual, no de livros do Instituto Médico Legal e no de jornais.

Nos dois últimos anos, o Arquivo Público do Estado de São Paulo se notabilizou pela recepção e atendimento especial a operários, estudantes, professores e trabalhadores em geral que buscaram documentos, seja respondendo a demandas das comissões, seja para atender aos casos específicos de cidadãos que foram vítimas do Estado no período de ditadura militar.

Aliás, essa ditadura que está sempre a gerar debates controversos e que não podem ser considerados ultrapassados, pois se trata de um passado que teima em não passar. Lamentavelmente, a ditadura não é assunto encerrado.

Além do mais, arquivo não guarda apenas “documentos do passado”. O arquivo do DEOPS, por exemplo, guarda documentos que os arquivistas chamam de correntes, pois esses documentos ainda mantêm a sua função primária, que é a função de prova. Portanto, documentos do passado podem ser “históricos” e correntes, a um só tempo.

Por esse motivo, os editores da Revista do Arquivo optaram por dedicar a sua primeira publicação de 2016 ao tema dos arquivos na busca pela revelação da verdade. Não poderia ser diferente, afinal, este mesmo Arquivo teve seu papel reconhecido como protagonista, há 22 anos, quando recolheu e abriu o arquivo do DEOPS para toda sociedade, demonstrando gesto pioneiro, de coragem e compromisso com a nossa democracia.

A pequena equipe de Editoria do APESP realizou enorme esforço para produzir uma revista de qualidade, prezando pelo aprofundamento em torno dos sensíveis temas abordados. Agradecemos à inestimável colaboração dos profissionais do Arquivo, mas, principalmente àqueles que nos ajudaram a produzir esta revista com seus artigos e entrevistas.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano I, n.2, abril, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Memória, arquivos e direitos / História & Perspectivas / 2016

Atualmente, vivemos, hoje, no Brasil, momentos que nos impelem a insistir na pergunta sobre que projeto social queremos para nossa sociedade. Parece-nos inadiável retomarmos as reflexões sobre o que é viver em uma democracia, sobre qual seu inverso, sobre como cultivar valores democráticos e valores para a construção e a conquista de direitos sociais.

No Brasil, e em diferentes países, vimos emergir grupos e lutas que reivindicam o direito à memória, enfatizando que, enquanto prática social, deve ser perguntada e investigada para compreendermos campos e percursos de disputa pela história. Essas experiências vêm conquistando vocalização importante nos espaços de debate e de pesquisa, ao passo que ganham formas como conquista social. Muitos historiadores, arquivistas e outros cientistas sociais, em grande medida provocados por estas demandas, têm se dedicado a pensar o direito à memória e seus desdobramentos temáticos.

As articulações entre memória, arquivos e direitos foram a base para a proposição deste dossiê que a Revista História & Perspectivas ora apresenta. O interesse em discutir e aprofundar diferentes dimensões da memória como direito e em explorar as políticas de arquivo e documentação na perspectiva dos direitos humanos motivou esse processo.

Nessa perspectiva, importava trazer para reflexão as análises que tratassem sobre memória, documentação e direitos humanos, sobre as políticas de memória e sua força na afirmação de direitos, sobre os arquivos e centros de documentação compreendidos como lugares de memória e espaços de afirmação de direitos. No âmbito das relações entre ações e políticas de patrimônio, importava considerar o patrimônio documental como dimensão explorada pelos historiadores no processo de luta cultural, de luta pela afirmação e conquista de direitos, incluindo a preservação documental e o direito à memória. O presente dossiê é composto por cinco artigos que destacam a articulação entre memória, arquivo e direitos.

O primeiro artigo, de Ricard Vinyes, “Memoria, democracia y gestión”, nos provoca a pensar nos significados dessas dimensões que formam o título do artigo. Problematiza que políticas públicas de memória devem ser tratadas como condicionantes da qualidade do sistema democrático e argumenta sobre a importância de o Estado garantir, como direito civil, o exercício da memória de passados políticos traumáticos por constituir um patrimônio ético cuja proteção e conservação enriquecem a cidadania.

O segundo artigo, “Direito à memória e patrimônio documental”, de Heloisa de Faria Cruz, aborda as relações entre a historicidade das lutas pelo direito à memória no Brasil, a identificação, a preservação e a patrimonialização de conjuntos documentais relativos à história do Brasil contemporâneo e sua vinculação a acervos de direitos humanos. A autora destaca a força de extensão de uma discussão sobre o direito à memória e sobre a preservação do patrimônio histórico para além dos espaços acadêmicos, indicando a cidadania e as políticas públicas de memória como campo fundamental de disputa, construção de novos espaços de direitos e conquistas sociais.

O artigo “Caminhos para autodeclaração: a luta por reconhecimento de mulheres quilombolas de Santa Tereza do Matupiri, na fronteira Amazonas-Pará” de Renan Albuquerque Rodrigues, João Marinho da Rocha e José Vicente de Souza Aguiar, toma por base diferentes estudos acerca da produção do conhecimento na Amazônia e sobre a Amazônia, junto a memórias de lutas de mulheres quilombolas, para analisar comunidades negras do leste do Amazonas, com destaque para as mulheres como lideranças na luta por direitos e memória na perspectiva da autodeclaração identitária.

“Conflitos pela memória no semiárido cearense: relações entre as comunidades rurais do Tabuleiro de Russas e o DNOCS”, artigo de Mário Martins Viana Júnior e Diego Gadelha de Almeida, analisa os processos de construção de memória investidos por ação do Estado, aqui representado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Essa análise se conjuga ao estudo do processo de construção, em seus conflitos e contradições, de memórias de comunidades rurais da localidade Tabuleiro de Russas, no Ceará, atingidas por políticas de modernização no campo, em fins do século XX e no início do XXI.

O último texto que compõe o dossiê, “Imagens para lembrar: o caso das fotografias do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo – MJDH (1984-1986)”, de Francisca Ferreira Michelone e Roberta Pinto Medeiros, empreende discussão em torno da relação entre memória, fotografia e direitos humanos, explorando fotografias que integram o acervo do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, proposto, organizado e mantido pela Organização Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).

Compõem ainda esse número da revista cinco artigos e uma resenha que estão em outras duas seções, versando sobre temas diversos. Merece destaque, na última seção, a entrevista realizada com a Professora Cláudia Sapag Ricci, que aborda questões relativas ao texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular da disciplina de História.

No que concerne aos procedimentos de escrita dos artigos do dossiê, destacamos o desafio enfrentado por todos os autores em abordar a memória, situando-a no tempo, no espaço e na conjuntura social, para indagar seus significados enquanto prática social e para construir sentidos históricos na relação com cultura, história e cidadania. Outro desafio foi o da atenção permanente para a relação entre pesquisa, acervos documentais e a sociedade onde os registros da vida social e política se constituem, ganham importância ou são silenciados, num processo que, longe de ser natural e linear, é composto pelas marcas de conflitos e pelas contradições que também pontuam a vida em sociedade. A relação que se assinala entre história e memória indica a possibilidade de reconstrução de práticas por meio da abordagem e da problematização dos filtros que traduzam, revelem ou mesmo pretendam ocultar essas contradições e esses conflitos.

Lembramos a reflexão de Déa Fenelon sobre historiografia, pesquisa e a necessária atenção para as pulsações que brotam da própria realidade. No horizonte de conceitos e de áreas por onde nos movemos constam acervos documentais e linguagens que contribuem para definir vigorosas teias em torno dos conceitos de memória e cultura. Atentamos para a noção de que o vivido e o narrado precisam ser pensados, trabalhados enquanto criação de registros e produção de sentidos das relações sociais – de dominação, de subordinação, de conciliação ou de resistência. O que nos faz valorizar a reflexão sobre símbolos, valores, meios que enunciam, forjam, preservam a memória de grupos sociais diversos, para entender as maneiras pelas quais se produzem e também os usos que deles se faz no jogo de perpetuação de efeitos de verdade. Um trabalho acadêmico, mas, sobretudo, um trabalho político.

Heloisa de Faria Cruz

Marta Emisia Jacinto Barbosa


CRUZ, Heloisa de Faria; BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Memória, arquivos e direitos. História & Perspectivas, Uberlândia, v.29, n.54, 2016. Acessar publicação original [DR].

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Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História / Revista de Fontes / 2015

Neste terceiro número da Revista de fontes apresentamos um dossiê que é fruto da “II Jornada de fontes: os arquivos das casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História” realizada em 18 de novembro de 2015, pelo Departamento de História da Unifesp. Nessa ocasião, pesquisadores convidados demonstraram diversas possibilidades de investigação da produção e circulação de impressos, bem como a riqueza da documentação presente nos fundos de coleções e arquivos de editoras, bibliotecas e outras instituições de produção e guarda. O dossiê convida todos a conhecerem algumas abordagens vinculadas à História do Livro, das Edições e da Leitura, que nos permitem compreender historicamente projetos editoriais, processos de seleção, edição e circulação de impressos, bem como formas de organização e preservação de acervos.

Editoras com grande projeção nacional, no século XX, foram alvo das pesquisas ora apresentadas: Fábio Franzini analisa a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio Editora. Essa mesma editora foi objeto de investigação de Gustavo Sorá, que propõe uma etnografia histórica de seus arquivos. Paulo Teixeira Iumatti explora a materialidade do livro a partir de suas pesquisas sobre preservação e restauro do acervo da Editora Brasiliense. Também merecem destaque os artigos sobre a Companhia Editora Nacional, cujos arquivos estão sob a guarda do Centro de Memória da Unifesp. Os trabalhos de Maria Rita de Almeida Toledo, Jaime Rodrigues e Márcia Eckert Miranda revelam a importância histórica de seu acervo e as muitas possibilidades de pesquisa.

Para além das fronteiras nacionais, Gabriela Pellegrino Soares analisa a circulação da prestigiada publicação francesa Revue des Deux Mondes, distribuída na América Latina, no século XIX; e Richard Oram esmiúça o arquivo literário da editora norte-americana Knopf, Inc., um dos maiores do gênero em língua inglesa. Fechando esse número, já fora da temática da II Jornada de fontes, Denise Soares de Moura apresenta uma ferramenta de pesquisa produzida na Unesp, que disponibiliza em formato digital parte do patrimônio histórico-documental das câmaras do Brasil-colônia existente no acervo do Conselho Histórico Ultramarino.

Boa leitura!


[Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.2, n.3, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Literatura nos Arquivos / História Social / 2012

O conhecimento histórico contemporâneo continua a purgar o pecado da ingenuidade narrativa nele predominante até o passado recente. O cuidado agora devido às dimensões retóricas da disciplina produz amiúde certa instabilidade no que tange a seus modos realistas tradicionais. Ademais, a crítica a concepções ditas “historicistas” do ofício leva a reconfigurações significativas de noções tais como temporalidade, agência, determinação e outras concernentes à prática dos historiadores. Much ado about nothing , quem sabe, ou assim me parece, pois a história pode, ou deve, ser em igual medida arte narrativa e discurso de demonstração e prova, como Carlo Ginzburg tem argumentado incansavelmente, às vezes com alguma dose de impaciência, faz tempo.

Digamos que boa parte da culpa caiba a Hayden White, ou quiçá que muito do mérito seja dele, a depender do ponto de vista. White expulsou os historiadores do paraíso da suposta abstenção retórica em nome do idioma empírico pertinente à disciplina. Ao fazê-lo, contudo, enamorou-se da própria escultura, esgarçou o argumento ao ponto de professar a descrença na possibilidade do discurso referencial em história. A hipótese idealista da redução do mundo a redes de textos, tornando impossível qualquer teoria do conhecimento baseada em pressupostos referenciais, permanece indemonstrável, opção que conduz ao colapso de texto e contexto no mesmo abismo reducionista da experiência exclusivamente estética da historiografia, da literatura, da cultura. Em assuntos que tais, melhor evitar alternativas falsas, “o texto ou o autor”, pois “nenhum método exclusivo é suficiente” (Compagnon, 2010, p.94).

História e literatura. Ao dizer literatura pode-se pensar em obras de ficção propriamente ditas; ou na disciplina dedicada a interpretá-las, a crítica literária. No primeiro caso, literatura igual a obras de ficção, a questão é refletir sobre metodologias de abordagem delas a partir de uma perspectiva histórica. No segundo caso, literatura igual a crítica literária, o que interessa é comparar epistemologias ou modos de saber – jeitos de construir objetos de pesquisa, de conceber a perspectiva do sujeito do conhecimento, de constituir o legado do conhecimento, suas tradições e assim por diante. Em suma, comparar história e crítica literária no que concerne à maneira como lidam com o seu mistério central: isto é, como se chega a saber, em cada disciplina, aquilo que seus praticantes alegam saber.

Apresso-me, pois, em definir “literatura”no sentido de obra de ficção, para evitar discussões intermináveis em torno de palavra sobre a qual não há muito acordo sobre o que significa, mas também porque chegar a uma tal definição permite passar logo em seguida ao labor de qualificá-la ou relativizá-la, o que ajuda a pensar. Ao que parece, não obstante a diversidade de visada entre eles, críticos literários comumente concebem obra de ficção como texto narrativo não-referencial (Candido, Cohn, Gallagher). Ademais, tendem a adotar como parâmetro um acontecimento histórico específico, a saber, a emergência do romance e o modo de ser dele no Oitocentos ocidental. “Não-referencial” no sentido de que esse tipo de texto se emancipa de qualquer base de dados específica, cria o mundo ao qual se refere ao se referir (sic) às personagens e acontecimentos que o constituem. Textos que não operam por meio da oposição entre verdade e mentira, verdadeiro e falso, eles pressupõem um leitor que aceite o jogo no terreno da verossimilhança, que adote a atitude de suspender o juízo realista para adentrar outro nível de discurso, inteiramente inventado no detalhe, constituído por enquadramentos imaginários, não-referenciais, ainda que jamais independente da circunstância histórica na qual vem a ser. Textos de ficção são narrativos porque neles as vozes são instáveis, podem ser dissociadas de sua origem autoral, daí decorrendo que muito da tradição da crítica literária se constitua em torno da interpretação de narradores e seu significado na fatura das histórias contadas. Autores supostos ou narradores imaginários produzem situações nas quais dão a ver, por assim dizer, o que há nas mentes das personagens do mundo que criam.

Desnecessário dizer que nesses procedimentos de escrita não há nada que se assemelhe ao que fazem os historiadores, cuja retórica leva outro barro. O melhor então é mudar de roupa sem trocar de pele, observar de novo que as linhas gerais desse jeito de definir ficção remetem a um processo histórico específico, isto é, à maneira de ser de muito da literatura ocidental no século XIX, a era de ouro do romance. Ao dizer história e literatura, nós, historiadores, ou ao menos este historiador, quer refletir sobre procedimentos de interrogação de uma série específica de, a saber, a ficção ocidental oitocentista, em especial o romance, mas não só ele.

História e literatura, conhecimento histórico e crítica literária, quiçá história social e crítica literária. Há entre essas duas disciplinas diferenças importantes na abordagem da literatura. As tradições disciplinares criam matrizes, grades de visão, que não precisam ser excludentes e que parece ridículo conceber em estado de competição entre elas. Gabrielle Spiegel refletiu sobre essas diferentes perspectivas de interpretação. Ao se voltar a um texto literário específico como objeto de estudo, o crítico literário o transforma numa realidade constituída, delimitada em sua essência, por mais que permaneça aberto a leituras diversas, a interpretações conflitantes. A literatura parece especialmente capaz de produzir “objetos” desse tipo, cousas quase mágicas em sua suposta desconexão coma história, com o lugar e tempo de seu vir-a-ser primário. Um volume de Dom Casmurro, qualquer volume, qualquer impressão dele, será sempre Dom Casmurro, parecerá haver nele o sopro de uma alma capaz de se subdividir infinitamente sem deixar de estar inteira em cada novo artefato dela. Esse tipo de perspectiva tende a tornar o intérprete mais sensível ao que há de imaginário na literatura, aos procedimentos artísticos que fazem com que ela funcione enquanto literatura, pois criam eficazmente a fantasia (isto é, uma ilusão resultante do trabalho e da habilidade artísticas) de autonomização do mundo de personagens e acontecimentos que a constituem (Wood, Todorov).

O historiador, por seu turno, estuda contextos e processos históricos que não existem eles próprios, cujos contornos se definem no andamento da pesquisa. O historiador constói o seu objeto, e construí-lo é por sua vez interpretá-lo. Spiegel leva o paralelo entre a história e a crítica literária ao ponto de argumentar que o crítico é um leitor de seus objetos de investigação, enquanto o historiador se torna um escritor dos seus, já que ele mesmo os constitui por meio de procedimentos empíricos e conceituais específicos correntes no ofício. Decerto o contraste é esticado demais. Tanto críticos literários quanto historiadores sabem, por exemplo, que a literatura do século XIX acontecia na imprensa, era indissociável dela. Jornalismo e literatura eram ofícios quase intercambiáveis: as mesmas personagens praticavam regularmente os dois ofícios, e se exercitavam nas variadas formas de texto existentes em cada um deles. O dossiê que ora apresento é prova cabal disso. Ademais, a imprensa do século XIX estava permeada por procedimentos de ficcionalização nos vários tipos de textos que a constituíam (Thérenty), fosse noticiário, correspondência, anúncio, humor, até editorial, além de crônica, conto e romance-folhetim, gêneros os quais se suporia literários, apesar de sobre a crônica ainda pairar um preconceito documentário duro de matar. A separação entre os ofícios de literato e jornalista foi processo longo, doloroso quiçá em especial para os leitores de jornais e revistas, submetidos hoje ao protocolo difícil da escrita neutra, supostamente independente, que expulsa a imaginação para deixar entrar, sem peias, a ideologia.

Não importa o quão limitadas em sua abrangência, as observações de Spiegel permitem abordar outro problema, respeitante aos ruídos comumente havidos quanto a tentativas de teorizar uma perspectiva historicamente informada da literatura. História não é termo estável, passível de estabilizar e ancorar interpretações de alegorias mais ou menos complexas presentes em textos literários. Às vezes fica-se com a impressão, ao ler a crítica, de que ocorre uma estranha combinação entre o entendimento do caráter complexo, fraturado e heterogêneo do texto literário e a postulação de um processo histórico linear e incontroverso, como se o conhecimento histórico consistisse na elaboração de uma narrativa mestra da história nacional, ou ocidental, ou universal, ou o que seja, pois nada disso ele pode ser. A alternativa, pior ainda, é que o entendimento impressionista de que a história não pode ancorar cousa alguma, de que o conhecimento histórico se produz numa arena de luta, num campo de forças em disputa por sentidos e interpretações, resulte na adoção de um ponto de vista decididamente hostil à história, levando o reducionismo estético às fronteiras da insensatez crítica e do casuísmo político. Em suma, para resumir: se as obras literárias permitem deslocamentos discursivos diversos, autorizam interpretações variadas, às vezes divergentes, o mesmo é verdade quanto ao processo histórico; acontecimentos passados não são necessariamente mais lógicos, menos permeados por contradições e intenções não declaradas, do que qualquer texto ou discurso.

Em texto recente, Susan Buck-Morss apresentou o que talvez seja um exemplo extremo de o quanto a atenção à história pode contribuir para o entendimento mais complexo de obras “geniais”, intemporais ao menos enquanto continuam a ser lidas em determinados nichos do mundo acadêmico. No caso, a filosofia de Hegel, mais precisamente as páginas nela existentes dedicadas à análise dialética das relações entre senhores e escravos, decisivas até há bem pouco tempo nos estudos sobre a escravidão moderna, pois conducentes a interpretações definitivas sobre a reificação da experiência escrava, o arbítrio senhorial, as características específicas da alienação de senhores e escravos pertinentes a esse tipo de formação social. Pois Buck-Morss demonstra que Hegel filosofava a partir da leitura regular que fazia das notícias que lhe chegavam, em jornais e revistas, sobre a revoluçãodo Haiti, na virada dos séculos XVIII ao XIX, que resultou na formação do único país independente nas Américas originário duma insurreição de negros escravos, libertos e livres. A revolução do Haiti permaneceu um episódio inimaginável, às mentes europeias, mesmo enquanto acontecia; ler as mesmas páginas de Hegel com isto em mente as torna outras, quem sabe com repercussões quanto às injunções políticas contemporâneas de nossas opções a respeito do modo de recortar objetos e imaginar métodos de pesquisa.

A leitura dos artigos constantes de mais este dossiê da ousada e duradoura História Social: Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp é instrutiva e prazerosa. Uma ou duas palavras sobre cada um deles, à guisa de aperitivo. Jefferson Cano explora os primórdios da presença do romance na imprensa da Corte, em seu jeito folhetim de ser, seriado, mui comentado, central nos debates a respeito de que literatura convinha àquele país por fazer. Daniela Silveira aborda os contos de Machado de Assis publicados no Jornal das Famílias, descobre maneiras de o autor tirar proveito do que aprendia a respeito das expectativas de suas leitoras, suas artimanhas para driblar a aflição masculina em relação ao que se dava para ler às moças. Ana Flávia Ramos analisa as crônicas de Machado de Assis na série Balas de Estalo, descreve as características dessa série coletiva e a maneira de inserção nela de Lélio, a personagem inventada pelo autor para figurar como seu narrador. O texto mostra a densidade política e literária dessas crônicas ao acompanhar as mudanças de percepção e humor de Lélio diante da resistência escravocrata às leis de emancipação escrava. Leonardo Pereira escreve sobre “cousas do sertão” em Coelho Netto. Ao fazê-lo, oferece contribuição importante ao tema candente do pós-emancipação, mostra como o debate a respeito do caráter do sertanejo expõe as incertezas e ambiguidades inerentes ao processo de pensar o mundo sem escravidão e monarquia na ainda tão pouco conhecida década de 1890. Julia O’Donnell tira do esquecimento Benjamin Costallat, provoca reflexão a respeito dos mecanismos de atribuição de relevância pautados pelo mercado e pelos interesses políticos de momento, capazes de alçar uma obra à glória momentânea para reduzi-la em seguida ao silêncio mais cabal. Além disso, há na personagem uma preocupação constante com a referencialidade, o que torna a sua obra um jeito de imaginar em detalhe os cinematógrafos, automóveis, janotas e vaporosas de um outro tempo. Ana Porto nos diz de gente de papel assassinada, esquartejada, carregada em malas, ainda que muita vez o que aparecia nos livros e folhetins fosse recriação de crimes e esquartejamentos tidos e havidos. Conta-se pois uma história da popularização da literatura de crime no país, em diálogo com o que ocorria noutras paragens, sempre fascinante o problema de entender os motivos pelos quais essas histórias seduzem tantos leitores.

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Hegel, Haiti, and universal history. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2009.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 2ª. ed.

COHN, Dorrit. The distinction of fiction. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1999.

GALLAGHER, Catherine. “The rise of fictionality”. In: MORETTI, Franco. The novel. Volume 1: history, geography and culture. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2006, pp.336-363.

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SPIEGEL, Gabrielle M. The past as text: the theory and practice of medieval historiography. Baltimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1997.

THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature au quotidien: poétiques journalistiques au XIXe. Siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007.

TODOROV, Tzvetan. A literature em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

WHITE, Hayden. Como funciona a ficção. São Paulo: Edusp, 1992.

WHITE, Hayden. Meta – História: a imaginação histórica do século XIX. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1990 (edição original: 1978).

WOOD, James. Tropics of discourse: essays in cultural criticism. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

Sidney Chalhoub – Professor Titular, Departamento de História, UNICAMP.


CHALHOUB, Sidney. Apresentação. História Social. Campinas, n.22-23, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Arquivos, objetos e memórias educativas: práticas de inventário e de museologia / Revista Brasileira de História da Educação / 2011

Lugares de memória, espaços de saberes e vestígios da cultura escolar: estratégias propedêuticas em prol da história da educação

No dossiê “Arquivos, Objetos e Memórias Educativas: práticas de inventário e de museologia” pretende-se apresentar projetos desenvolvidos no âmbito da preservação do Patrimônio Histórico Educativo, sobretudo, práticas de salvaguarda e difusão dos acervos, elaboradas no interior desses projetos.

Os autores desta apresentação sentem-se honrados com o convite das organizadoras do dossiê, pela oportunidade, sobretudo, enquanto iniciadores da Rede Iberoamericana para a investigação e a Difusão do Patrimônio Histórico-Educativo (RIDPHE), que hoje se mantém em atividade como lista de discussões, gerenciada pela UNICAMP, com o endereço Ridphe_l@listas.unicamp.br da qual somos moderadores, Vicente Peña Saavedra e Maria Cristina Menezes.

Os textos deste Dossiê, escritos por pesquisadores que participam da Ridphe, trazem a marca das preocupações que, na atualidade, se encontram no bojo daquelas que se colocam na intersecção dos campos da história da educação, arquivologia e museologia. Tal conjugação traz o indicativo da interdisciplinaridade das pesquisas que têm investido no conhecer, identificar e prover, com ações de preservar, acervos históricos indicativos de práticas educacionais de tempos passados, que permitem a nostalgia de um desconhecido por vezes apenas vislumbrado, diante do pouco que se pôde reter.

Essas colocações vêm ao encontro daquelas apresentadas quando do lançamento da Ridphe, no VIII Congresso Ibero-americano de História da Educação (Cihela), em Buenos Aires, durante a exposição do painel “A constituição de lugares de memória para a história da educação: museus, arquivos e bibliotecas na reconstrução histórica das práticas educativas”, coordenado por Rogério Fernandes, de Portugal, e Maria Cristina Menezes, do Brasil. Na ocasião, o professor Vicente Peña Saavedra, da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, fez a proposta de criação de uma Rede Ibero-americana que conclamasse os investigadores voltados para a discussão da recuperação, custódia, estudo, valorização e difusão do patrimônio histórico educativo. Tal proposta teve o apoio efusivo dos participantes e possibilitou que ali se desse o lançamento de mais essa instância de comunicação coletiva. O número de aderentes e o entusiasmo em torno da ideia, que rapidamente se concretizou, possibilitaram que se organizasse no rol de Redes de Discussões da Unicamp, no Brasil, uma lista eletrônica de intercâmbio científico promovida pela Ridphe. A lista conta com a moderação dos seus coordenadores e com a participação de vários pesquisadores latino-americanos, representantes de diversos países, além de colegas de distintas universidades portuguesas e espanholas, que totalizam a esta altura 127 investigadores, especialistas e interessados no tema de muitos variados perfis.

Os textos que compõem este dossiê trazem as preocupações de pesquisadores, em sua maioria, envolvidos com a preservação do patrimônio histórico pedagógico, em escolas, museus escolares, centros de memória, laboratórios científicos de caráter retrospectivo, enfim, com as práticas de manter e inventariar, mas também com a preocupação da difusão dos acervos organizados de forma segura e historicizada.

Portanto, os textos trazem as experiências de seus autores e, conjugadas a elas, as preocupações e angústias que acompanham esse tipo de trabalho, em especial, quanto à garantia de continuidade das propostas e condições para a sua propagação.

Uma suposta interlocução entre os autores nos levaria a examinar preocupações e ideias que se coadunam em prol de objetivos que também se alinham.

Os textos que mobilizam para o inventário de objetos, seja em um museu ou em um centro de memória em construção, como em uma instituição escolar, apresentam-se com a intencionalidade de que a preservação não seja um fim, mas meio de instaurar a comunicação, diante do desafio de se investir na tentativa de transformar a informação científica em conhecimento.

Vera Gaspar e Marília Gabriela Petry trazem o questionamento de como incorporar num registro sistematizado materiais pedagógicos, documentos e registros iconográficos, que carregam os vestígios do ordinário escolar, sem esterilizá-los, ou mesmo transformá-los em objeto qualquer que sofre os efeitos do registro burocrático. As autoras perguntam como fazer esse trabalho sem aprisionar os objetos e perder a riqueza das práticas inscritas em sua materialidade.

Segundo as autoras, essas inquietações articulam-se ao desafio de preservar o objeto e as informações que ele comporta, que o qualificam como documento histórico. Sobretudo, ao compreender-se a preservação como um meio de se instaurar processos de comunicação, e não como uma meta em si.

Também na linha da preservação dos objetos pedagógicos históricos, o texto de Reginaldo Alberto Meloni carrega seus avanços e suas limitações, advindos do trabalho voltado para a preservação dos instrumentos científicos, dos antigos laboratórios, da EE Culto à Ciência, de Campinas / SP, instituição escolar de origem dos objetos escrutados. A sua investigação acaba por tomar outros rumos, o da própria instituição, com o seu precioso acervo documental textual, iconográfico, bibliográfico e arquitetônico, além do material pedagógico e do mobiliário, possibilitando uma pesquisa interna rica em sua localização temporal e espacial. A pesquisa enveredou pela busca de vestígios das práticas pedagógicas que envolviam os usos dos materiais, a partir, sobretudo, das correspondências oficiais da escola, dados obtidos em livros de registro de materiais, com datas e nome de fornecedores, referências dos próprios utensílios, espaço pedagógico dedicado ao seu ensino, programas de ensino, manuais adotados pela escola, avaliações.

O autor investe nas peças enquanto objetos pedagógicos que contribuem para o conhecimento das finalidades das disciplinas de ensino às quais se articulam, especialmente, quanto a conteúdo e método. Ou seja, há uma busca pelas práticas educativas que ocorreram em momentos anteriores na instituição. Os vestígios dessas práticas fazem-se mais presentes neste caso, em que os objetos se encontram na instituição de origem, pelo menos da origem de uso. Mesmo ao se compararem os inventários com os catálogos dos fabricantes, que muitas vezes contêm recomendações de uso, emergem pistas de apropriações realizadas pelos sujeitos escolares.

Ao mesmo tempo, as possibilidades de difusão, com a abertura do acervo ao público, melhor se concretizam no caso do Museu Catarinense. Isso se percebe tanto no aspecto presencial como na constituição do banco de dados, e na construção do site do centro museal, o que não significa a inviabilidade dessas práticas também para o acervo escolar campineiro.

As autoras que tratam do Museu Catarinense expressam também a sintonia do processo de institucionalização do Museu da Escola Catarinense com a política nacional de museus; adotaram-se como base metodológica para elaboração do Banco de Dados as convenções estabelecidas no Caderno de Diretrizes Museológicas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Outrossim, informam que as descobertas mais significativas acerca dos objetos que compõem o acervo estão vinculadas a projetos de pesquisa que buscam perseguir origens e usos dos artefatos escolares, um percurso que se assemelha em múltiplas vertentes ao que já se vem realizando no projeto da Escola de Campinas. Entretanto, em muito se enriqueceria tal projeto, ao dialogar com a experiência dos pesquisadores catarinenses, sobretudo, quanto à difusão da informação como conhecimento.

As autoras trouxeram o fato de a subjetividade fazer-se presente no trabalho de inventariar, no entanto, apostaram na interdisciplinaridade e nas soluções conjuntas, que apontam para o caminho do coletivo, para além dos desejos pessoais.

O quadro exposto revela que os dois percursos se entrecruzam em vários momentos e em seus distanciamentos, se não se complementam, deixam transparecer a fertilidade de uma possível e salutar comunicação entre os projetos. Para além das duas experiências aqui relatadas, e que se encontram em tantos outros e nos mais diversos espaços, ao desafio do trabalho, visando à retenção de perda dos acervos e a preservação da memória escolar, cabe a nossa insistência na necessidade da interlocução.

No texto “Herança educativa e museus”, no qual discorre em primeiro plano sobre os museus pedagógicos e escolares na história da educação, Margarida Louro Felgueiras também chama a atenção para o fato de o inventário, na organização dos arquivos e museus, não se constituir na finalidade da investigação histórica.

Maria Cristina Menezes, por sua vez, considera, em seu texto, que o inventário permite a abertura dos acervos para as pesquisas, visitas, novas elaborações que enunciarão outros saberes, desde que garantidas condições seguras para a consulta aos bens preservados. No entanto, pondera que após dez anos de trabalho na recuperação de acervos, em risco de perda, em porões, sótãos, e outros espaços escolares, percebeu o quanto exige dos pesquisadores o trabalho de inventário. Tal trabalho requer conhecimentos de várias áreas, demanda pesquisa histórica, a leitura nos próprios documentos, portanto, é interdisciplinar e as equipes nem sempre permanecem as mesmas, o que muitas vezes dificulta a continuidade dos estudos, além do agravante da falta de verbas. Justamente pelo desconhecimento das várias frentes abertas nesse tipo de projeto, nem sempre eles são tratados com o devido merecimento por órgãos de fomento e similares.

Menezes cita Saavedra em seu texto, quando este pesquisador assevera que o registro e a sistematização dos acervos informativos, dos quais se vale o investigador para tecer e fundamentar os seus discursos sobre a memória do ocorrido, poucas vezes recebem a ponderação devida, diferente do que ocorre, com maior frequência, com as obras que em tais suportes se sustentam.

O recorrente, segundo a autora, tem sido os investigadores, ao realizar suas pesquisas nas instituições, utilizarem os acervos como fonte, dar a estes uma ordem precária, apenas o suficiente para o desenvolvimento da pesquisa em curso, e os abandonarem após a finalização delas. Essas investidas deliberadas e sem um plano de organização dos acervos não poucas vezes resultam em perdas ou alterações nos suportes por falta de manuseio correto e outros cuidados. Os trabalhos de conservação, descrição, acondicionamento ficam para outros. Essas práticas deixam marcas nos acervos, com lacunas e ordenações precárias, fora da ordem original. São reordenações, com períodos ou temas específicos, em geral sobre os quais se detiveram os pesquisadores em suas investigações.

O texto sob a coordenação de Carmen Sylvia Vidigal Moraes coloca como objetivo apresentar trabalho de pesquisa histórica e arquivística, realizado por um grupo do Centro de Memória de Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (CME / Feusp), o qual consistiu no recolhimento, organização, acondicionamento e referenciação das fontes do legado do educador anarquista João Penteado, composto de documentos produzidos e acumulados por uma das escolas criadas e mantidas por anarquistas no Brasil. Os pesquisadores enfatizam que se trata de pesquisa histórica e arquivística, o que tem caracterizado esse tipo de investigação. Anunciam o teor da equipe, ao afirmarem que o trabalho foi realizado por um grupo de pesquisadores, professores e alunos bolsistas (iniciação científica, mestrado e doutorado) da Feusp, o que vem comprovar a necessidade de braços e pesquisadores em modalidades diferenciadas de formação, além da equipe que comporta o CME / Feusp com arquivistas e historiadores da educação, evidenciando a interdisciplinaridade da proposta.

O acesso à documentação inédita dos arquivos das escolas dirigidas por João Penteado, no largo período de quase cinquenta anos, com certeza permitirá que muitos pesquisadores se beneficiem da recolha e organização desse acervo inédito que contém um número espantoso de itens documentais. Enfim, são experiências distintas que se coadunam, se complementam e se entrelaçam em muitos de seus propósitos.

As pesquisadoras do Museu da Escola Catarinense, com um acervo de objetos de procedências diversas, têm investido em projetos de pesquisa que buscam perseguir origens e usos dos objetos escolares; essas buscas inferem ao retorno às instituições de procedência dos objetos. A pesquisa, ao construir um banco de dados, enxerga-o como ferramenta de consulta ao público, considerando que esse trabalho deverá ser contínuo dentro das atividades do museu, com o surgimento de novos dados a serem registrados. O fundo físico, por sua vez, constitui-se como material de pesquisa.

O acervo de instrumentos científicos do antigo Ginásio de Campinas encontra-se no mesmo espaço que o adquiriu, quando desembarcou de algum navio, vindo da Europa, o mesmo local onde sofreu as apropriações que o conformou aos propósitos dos sujeitos que praticavam a educação naquela instituição de grande importância republicana. Os espaços também enunciam, trazem vestígios das práticas que acolheram.

O grupo do CME da Feusp recebeu um acervo valioso, diretamente dos familiares de João Penteado, o educador anarquista, que era um arquivista por convicção. O acervo foi recebido pelo CME conservado, organizado, referenciado para nele permanecer. Trata-se, no entanto, de um espólio com a mesma origem, do mesmo fundo.

O estudo que resultou na publicação do inventário das fontes documentais do arquivo histórico da Escola Normal de Campinas, apresentado por Menezes, realizou-se no interior da instituição de guarda do arquivo. Os documentos foram produzidos na instituição de depósito, que é também a de origem. A arquitetura monumental da Escola Normal de Campinas revela a austeridade e a importância da instituição e de seus sujeitos para a época. Apesar das condições do acervo, da insalubridade dos espaços de guarda, que, mesmo após limpeza e reforma, mantêm a umidade de outrora, há a força da arquitetura, dos espaços planejados para um tempo e para as práticas escolares de outrora.

Alguns apontamentos já foram enunciados nesta apresentação, mas acreditamos que somente a interlocução com propósito e aprofundamento entre os autores poderá trazer ganhos substanciais e transformar informações em conhecimentos do interesse de todos. O que, de fato, diferencia e aproxima esses trabalhos, quanto às ações que incidirão sobre os itens, quanto aos termos de preservação, organização, descrição e guarda definitiva?

Retornamos ao texto de Felgueiras, para quem foi a premência da recolha e preservação das fontes para a história da educação que, tanto em Portugal quanto no Brasil, levaram ao inventário e registro dos acervos, com a construção de bases de dados. Por conseguinte, a autora pondera, como em plena sociedade do conhecimento e da informação se corre o risco de viver num presente sem memória e sem futuro, ao que intenta pelas condições básicas para a conservação de arquivos “reais”, físicos, e não apenas virtuais.

Tal tema retoma discussão, já iniciada, sobre a necessidade de políticas públicas para essa área específica, o que tem suscitado a preocupação e a busca de alternativas por pesquisadores, quando estas falham ou mesmo não existem, e ainda também naqueles supostos nos quais caminham ao avesso das nossas expectativas. As experiências no desenvolvimento de projetos sobre a preservação dos acervos que conformam a cultura material e imaterial das instituições educativas têm apontado caminhos e mostrado as possibilidades, as dificuldades, os acertos, os erros para encarar o porvir. Daí a importância de investir na interlocução, no conhecimento das várias experiências, percebendo, nessas vias fertilizadoras de participação dos investigadores, critérios de referência para a formulação de políticas que valorizem esses esforços que hoje se realizam em prol da recuperação e preservação dos espaços de memória e história educacional. O que se busca é ainda a garantia de continuidade dessas realizações, a sua visibilidade e difusão, para que esses tantos trabalhos não tenham sido em vão. Nessa linha de ação coloca-se a Ridphe, como espaço para a acolhida e o estímulo da interlocução dos pesquisadores, que persistem e resistem neste trabalho árduo, moroso e de pouca projeção socioinstitucional, em prol da recuperação do patrimônio histórico da nossa educação.

Galícia e Campinas, junho de 2010

Vicente Peña Saavedra

Maria Cristina Menezes


SAAVEDRA, Vicente Peña; MENEZES, Maria Cristina. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.11, n.1, jan. / abr., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Antropologia e Arquivos / Estudos Históricos / 2005

Quando o campo é o arquivo

Este número de Estudos Históricos reúne uma seleção de trabalhos apresentados no seminário “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias guardadas”, realizado em 2S e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS / UFRJ, com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia [1].

O objetivo do seminário foi refletir sobre o uso de fontes arquivisticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como sobre a constituição e organização de arquivos de antropólogos, de instituições de antropologia ou que apresentassem grande interesse para a disciplina.

Nossa motivação, tanto para o seminário quanto para esta publicação, advém da percepção de que, cada vez com mais intensidade, antropólogos têm realizado um tipo de trabalho de pesquisa-nos arquivos e sobre arquivos- tradicionalmente associado a historiadores ou arquivistas. Além de utilizar arquivos como fonte de conhecimento para a produção de suas análises, desde, pelo menos, os anos 1980, os antropólogos têm refletido sobre a natureza de registros documentais transformados em fontes e, em alguns casos, têm produzido e / ou organizado arquivos e coleções a partir de uma perspectiva antropológica. Ainda assim, persiste, entre o público em geral e no mundo acadêmico (mesmo entre os próprios antropólogos), a idéia de uma associação privilegiada da antropologia com um modelo de pesquisa de campo consagrado desde a clássica introdução de Malinowski a Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922.

Apesar de vários antropólogos importantes terem feito pouca ou nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowskiano – Mauss e Lévi-Strauss são dois exemplos eloqüentes -, o trabalho de campo permanece como uma marca distintiva da disciplina aos olhos dos não-antropólogos, bem como uma espécie de ritual de passagem identitário para os próprios antropólogos, como se quem não fizesse pesquisa de campo não fosse “realmente” antropólogo.

Nos 80 anos decorridos desde a publicação de Argonautas, os “primitivos” deixaram de ser tão “primitivos” – deixaram de ser povos sem documentos, característica que então os diferenciava dos ocidentais. Antropólogos já não têm mais o objetivo de acumular!!m arquivos e coleções específicas os registros de seus “feitos”, conquistas e contatos com nativos e “exóticos”. Arquivos criados desde o século XIX com tais finalidades vêm sendo objeto de contenda, recusa, crítica e novos usos por parte de povos etnológicos e / ou populações tradicionalmente transformadas em objeto da pesquisa antropológica. Além disso, a antropologia deixou de se interessar apenas pelos “primitivos” e passou a se interessar também pelo povos “ocidentais”, com seus arquivos e patrimônios documentais já constituídos. Alguns desses investimentos resultaram numa espécie de inversão dos modelos de objetificação tradicionalmente adotados, uma vez que antropólogos e, por conseguinte, procedimentos metodológicos e relações estabelecidas no campo transformaram-se em fontes de novas leituras, poderes e disputas. Os territórios dos arquivos têm sido ocupados por novos sujeitos. Ainda que novos usos dos arquivos por parte dessas populações venham sendo observados e, por vezes, partilhados pelos antropólogos, as implicações políticas e discursivas dessas formas de intervenção nos permitem imaginar o arquivo como campo povoado por sujeitos, práticas e relações suscetíveis à análise e à experimentação antropológica.

Ao pensar esse seminário, nossa intenção não era, de forma alguma, negar o papel fundamental que a pesquisa de campo “tradicional” teve e ainda tem para a constituição da antropologia como disciplina e como recurso de método poderoso para a produção de etnografias. Nosso objetivo envolvia, no entanto, uma ampliação e diversificação da forma como se pode pensar a prática antropológica, que não a deixasse restrita à pesquisa de campo.

Há ainda muito pouca reflexão no campo da antropologia, em particular da brasileira, sobre esse tema. Imaginamos que uma forma útil de contribuir para essa discussão era partir da experiência concreta de antropólogos lidando com arquivos. Com isso, não estávamos desprezando a reflexão “teórica” sobre o tema, e sim enfatizando nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e princípios metodológicos abstratos. Esperamos que o resultado dessa experiência, aqui reproduzido, ajude a estimular novas discussões sobre o tema.

Nota

1. A homepage do seminário, que inclui a programação, os resumos e o texto completo de algumas comunicações que não foram incluídas neste número da revista) é: http: / / www.cpdoc.fgv.br / campo-arquivo /


CASTRO, Celso; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.36, jul. / dez. 2005. Acessar publicação original [DR]

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