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Mil 1499: O Brasil Antes de Cabral – LOPES (RA)
LOPES, Reinaldo José. 1499: O Brasil Antes de Cabral. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017. 248p. Resenha de SOUZA, João Carlos Moreno de. Resenha de: SOUZA, João Carlos Moreno. Revista de Arqueologia, v.31, n.1, 2018.
Reinaldo José Lopes é jornalista científico, escreve para a Folha de São Paulo e é autor do blog ‘Darwin e Deus’. A publicação de matérias de temas arqueológicos é muito frequente, e tornam o autor um dos maiores divulgadores do conhecimento arqueológico para o grande público a nível nacional, e ‘1499: O Brasil Antes de Cabral’ é uma prova disso.
O livro se propõe a realizar um apanhado geral da história pré-colonial do território atualmente conhecido como Brasil. O autor, no entanto, pouco escreve sobre as ocupações mais antigas que 14 mil anos atrás ou sobre o povoamento inicial da Américas, provavelmente para evitar ir de frente ao consenso da arqueologia norte-americana, começando a retratar a (pré-) história do Brasil a partir de 13.500 anos antes do presente. É importante notar que as idades mencionadas no livro são idades calibradas e podem dar a impressão de serem equivocadamente mais antigas do que costumamos ver em outras obras não acadêmicas, quando na verdade foram representadas de uma forma mais acurada.
A introdução do da obra realça o fato de que o entendimento que possuímos atualmente sobre o passado da humanidade é nitidamente diferente e muito mais detalhado do que tínhamos há poucos anos atrás e explicita a importância que os estudos sobre o passado humano têm nas sociedades atuais. Os próximos seis capítulos do livro são focados em realizar um apanhado cronológico dos grupos de primeiros habitantes do território brasileiro.
O primeiro capítulo trata sobre os grupos caçadores-coletores da transição Pleistoceno-Holoceno e Holoceno Inicial. Por um lado, o Lopes retrata muito bem aspectos biológicos destas antigas populações. Por outro lado, ignora os aspectos culturais. As únicas (e raras) menções às mais antigas indústrias líticas e representações rupestres brasileiras são todas relacionadas à microrregião de Lagoa Santa, em Minas Gerais, deixando de lado a associações de diferentes conjuntos de cultura material a diferentes grupos humanos.
Já o segundo capítulo é totalmente voltado aos grupos litorâneos, especialmente os Sambaquis. Mais uma vez, o autor se preocupa em retratar a biologia e a idade destes grupos humanos, mas ignora quase que totalmente os aspectos culturais e materiais destas sociedades. Não são retratadas as indústrias de artefatos de pedra e osso, é mencionada apenas brevemente a construção dos sambaquis, os zoólitos e os aspectos simbólicos dos sepultamentos.
Posteriormente, o terceiro capítulo retrata o início do manejo e domesticação das plantas, com foco na Amazônia. O autor descreve bem as principais hipóteses sobre os processos que iniciaram a domesticação das plantas, mas volta a ignorar a cultura material que acompanha esse novo modo de vida nas populações pré-cabralinas.
O quarto e o quinto capítulo também são voltados à “queridinha” da pré-história brasileira: a Amazônia. Ambos os capítulos, mais uma vez, retratam muito bem as discussões teóricas de complexidade social, política e econômica sobre as populações que ali viviam durante o Holoceno Tardio, e desta vez menciona alguns importantes aspectos de cultura material, como as estruturas de montículos e geoglifos, e a cerâmica tupi-guarani e marajoara.
Ainda, Reinaldo José Lopes, no sexto capítulo, trata de descrever a dispersão dos grupos ameríndios em território brasileiro, baseando-se nas famílias linguísticas destes mesmos grupos. Mais uma vez, o autor se prende na Amazônia, tendo como exceção uma menção aos estudos de grupos Jê em Santa Catarina.
Por fim, Lopes encerra o livro com um epílogo, em que discute como a chegada dos colonizadores (invasores) europeus causou diversos problemas para a sobrevivência das populações que vieram a ser referidas como indígenas, e como a relação entre as sociedades indígenas e a sociedade “moderna” poderia ter sido diferente desde o começo.
A obra não é voltada ao público acadêmico, mas a um público muito mais abrangente. O autor escreve de forma pela qual a leitura flui facilmente, evitando o uso de termos técnicos os quais apenas arqueólogos e outros cientistas entendem. No entanto quando o faz, o autor busca explicá-los de uma forma simples, porém acurada, para que o leitor os compreenda. Quando o autor entende que o assunto tratado no livro é muito complexo para a maioria dos leitores, ele se dá ao direito de realizar pausas para “explicações técnicas” e elucida estes mesmos assuntos, tais como datação radiocarbônica, análise genética, análise isotópica e estudos de complexidade social. Apesar de não ser um arqueólogo, Lopes, enquanto jornalista científico, toma o cuidado para respeitar e utilizar termos que evitam a propagação de estereótipos pré-históricos. Um exemplo disso é a aplicação correta do termo “humanos anatomicamente modernos”, ao invés de Homo sapiens, para se referir aos seres humanos atuais em certos momentos.
As principais falhas do autor estão em retratar a pré-história brasileira com um foco quase que limitado aos aspectos biológicos dos primeiros grupos humanos do atual território brasileiro, e no foco quase que limitado à Amazônia ao tratar de grupos menos antigos. Lopes é muito preciso no apanhado que realiza sobre a pré-história, mas esta poderia ser muito mais acurada se ele tivesse descrito os principais conjuntos de materiais (representações rupestres e indústrias de artefatos líticos e cerâmicos) que levaram arqueólogas e arqueólogos a identificar diferenças culturais em todo o território brasileiro. Talvez em uma segunda edição da obra algumas páginas que descrevam resumidamente a diversidade de cultura material pré-histórica brasileira seja possível.
Apesar das falhas em sua obra, Reinaldo José Lopes claramente tem uma noção excelente da importância da arqueologia para as sociedades atuais e é muito feliz em transmitir esta mensagem. O último trecho da obra é a prova disso, sendo uma perfeita resposta à questão da importância dos estudos de arqueologia pré-histórica brasileira: “A pré-história é a chave para entender estas condições iniciais [de contato de indígenas e europeus] e para demonstrar que o passado profundo do Brasil é tão rico e complexo quanto o do Velho Mundo. Em nome dos herdeiros dele, convém não esquecê-lo” (p. 232). Enfim, ‘1499’ é uma obra que definitivamente despertará o interesse de muitas pessoas à pré-história brasileira e convém ser lida por acadêmicos não arqueólogos que buscam ter uma mínima noção no tema.
João Carlos Moreno de Sousa – PPGArq, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Das pedras aos homens: tecnologia lítica na Arqueologia Brasileira – BUENO; ISNARDIS (BMPEG-CH)
BUENO, Lucas; ISNARDIS, Andrei (Orgs.). Das pedras aos homens: tecnologia lítica na Arqueologia Brasileira. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007. 270 p. Resenha de: FONSECA, João Aires da. Pesquisas recentes sobre material lítico na Arqueologia Brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.2, maio/ago. 2010.
O livro “Das pedras aos homens” surgiu a partir das ideias discutidas no seminário “Tecnologia Lítica no Brasil. Fundamentos teóricos, problemas e perspectivas de pesquisa”. Organizado por Lucas Bueno e Andrei Isnardis, o livro tem como proposta reunir pesquisadores de diferentes formações científicas dentro da arqueologia, disponibilizando aos leitores um panorama não somente interessante como também essencial para que a arqueologia brasileira se torne cada vez mais sólida em conceitos e metodologias de pesquisa. Não há dúvida de que somente com esta diversidade de pesquisadores foi possível alcançar a proposta de se escrever um panorama de problemas e perspectivas sobre o contexto do material lítico em sítios arqueológicos brasileiros.
O que o livro apresenta ao longo de seus onze capítulos são as novas abordagens para o estudo deste tipo de material, não permanecendo somente nos estudos das ‘pedras’ (rochas) em si, mas indo além, criando contextos e quadros hipotéticos que permitem ir “das pedras aos homens”. Esta coletânea de artigos passa a ser uma referência atual sobre o estudo de tecnologia lítica na arqueologia brasileira, disponibilizando referências bibliográficas úteis sobre os temas abordados, o que permite aos leitores, em especial estudantes de arqueologia, um maior aprofundamento sobre os temas descritos.
Como exemplo, quais são as referências existentes sobre arqueologia experimental no Brasil? Como esta parte da arqueologia vem se desenvolvendo atualmente? É neste ponto que “Experimentação na Arqueologia Brasileira: entre gestos e funções”, de André Prous, e “Recent advances in stone-tool reduction analysis: A review for Brazilian archaeologists”, de Michael Shott, trazem à tona uma revisão do uso da experimentação.
André Prous introduz a importância da etnoarqueologia e do esforço próprio que o arqueólogo precisa ter ao reproduzir e utilizar o que poderiam ser as réplicas de instrumentos arqueológicos. Desta forma, o pesquisador aborda o material lítico a partir da experimentação, adquirindo mais dados para suas interpretações dos vestígios coletados e de seus prováveis contextos. É neste sentido também que a argumentação de Michael Shott incide sobre os diversos processos de redução que um artefato lítico pode ter passado, seja por meio do uso intenso ou de retoques para reavivar gumes, por exemplo.
As interpretações sobre o contexto arqueológico assumem um papel muito importante neste livro. Tal importância é justamente por ser esta a principal meta das pesquisas arqueológicas recentes. Para Andrei Isnardis, autor do capítulo “Notas sobre a solidão das indústrias líticas”, a distribuição espacial de diversos vestígios é essencial para retirar as indústrias líticas do que ele considera como “solidão”. Trata-se de uma crítica às pesquisas que lidam com os materiais analisados de maneira isolada, deixando de lado a interpretação do restante do material coletado, criando, assim, interpretações parciais do contexto do sítio.
Tal problema de interpretações parciais pode advir das divisões por grandes classes de vestígios. Para Isnardis, alguns pesquisadores acabam sendo caracterizados como ‘arqueólogos do lítico’, ‘arqueólogos da cerâmica’ ou ‘arqueólogos da arte rupestre’. A especialização dos pesquisadores acaba por causar este isolamento do material analisado, contudo, como o principal objetivo das pesquisas são as sociedades humanas, existe a necessidade de estudos que usem os vários artefatos dentro de um conjunto para que se chegue às possíveis interpretações de contextos sociais mais complexos, e não apenas de uma parte especializada.
Como exemplos desta necessidade de interpretar diversos dados, buscando uma visão dinâmica sobre a pré-história brasileira, na tentativa de articular vestígios, sítios, regiões e macrorregiões, pode-se citar os capítulos sobre o Brasil Central, “Organização tecnológica e Teoria do Design: entre estratégias e características de performance”, de Lucas Bueno, e “Metodologia de análise para as indústrias líticas do Pleistoceno no Brasil Central”, de Águeda Vilhena-Vialou.
Outra vertente clara no livro, tomada por todos os seus autores, é a inviabilidade, ou ineficácia, em se produzir estudos arqueológicos que contemplem estudos tipológicos baseados unicamente em instrumentos acabados. Como abordado por Jacqueline Rodet em “Uma terminologia para a indústria lítica brasileira”, e por Paulo Jobim em “Possibilidades de abordagens em indústrias expedientes”, existe uma tendência, iniciada na década de 1980, para a inserção nos estudos de contexto e de tecnologia dos conceitos de cadeia operatória, gesto, teoria do design e experimentação, em vez de estudos meramente tipológicos de peças já acabadas, enfatizando a necessidade de homogeneização da terminologia utilizada pelos pesquisadores, buscando-se sistematizar as nomenclaturas para a análise da tecnologia lítica.
Mais exemplos advém de Pedro Schmitz em “O estudo das indústrias líticas no PRONAPA, seus seguidores e imitadores”; de Adriana Schmidt em “Da tipologia à tecnologia: reflexões sobre a variabilidade das indústrias líticas da Tradição Umbu”; e de Sirlei Hoeltz em “Contexto e tecnologia: parâmetros para uma interpretação das indústrias líticas do Sul do Brasil”.
O capítulo de Pedro Schmitz caracteriza o papel da ciência arqueológica: cada época possui um contexto e limitações de pesquisa, e cada época sucessora irá acumular conhecimentos de épocas anteriores, reformulando-os e aplicando novos. A principal diferença entre o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) da década de 1970 e as pesquisas recentes, como a desenvolvida na Floresta Atlântica, é o maior dinamismo das pesquisas que, com o quadro teórico atual, possibilitaram chegar a conclusões regionais e mais amplas sobre a ocupação humana na região Sul do Brasil. Nesta mesma linha, Adriana Schmidt e Sirlei Hoeltz enfatizam a importância dos estudos que enfocam o caráter regional e que respeitam a contextualização espacial dos sítios, em suas características internas e externas, associadas a propostas metodológicas que compreendam a variabilidade artefatual como resultado de escolhas tecnológicas, na busca por identidades sociais no registro arqueológico.
Por fim, temos o divertido experimento literário escrito por Klaus Hilbert, “Indústrias líticas como vetores de organização social ou: Um ensaio sobre pedras e pessoas”. Hilbert preferiu intuir, explicando por meio de crônicas e múltiplas narrativas, “as pedras arqueológicas e as pedras lúdicas da infância e adolescência”, deixando um pouco de lado as listas de sequências analíticas de gestos e de atributos tecnotipológicos, descrevendo algumas relações entre pessoas e ‘pedras’.
A meu ver, o principal ponto do livro incide nas experiências dos autores, através de projetos de pesquisas que exemplificam seus fundamentos teóricos, seus problemas e as perspectivas abordadas. Contudo, como a proposta do livro refere-se à arqueologia brasileira, a principal crítica diz respeito em não ter explorado, por exemplo, referências sobre estudos de materiais líticos na porção Norte do Brasil, mais especificamente na região amazônica. Talvez esta seja uma lacuna importante a ser apontada, até mesmo devido à escassez de produção bibliográfica sobre o tema.
Como, provavelmente, ainda serão feitos novos congressos sobre tecnologia lítica brasileira, certamente não só a região amazônica entrará em pauta, como também as demais regiões que não foram discutidas neste primeiro livro, formando, assim, um panorama mais amplo, semelhante ao apresentado com maestria pelos organizadores.
João Aires da Fonseca – Mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo. Bolsista do Programa de Capacitação Institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCT. Curador do Museu do Marajó. E-mail: airesarch@gmail.com
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