Arméniens: le temps de la délivrance – MINASSIAN (RH-USP)

MINASSIAN, Gaïdz. Arméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 pp. Resenha de: BOGOSSIAN-PORTO, Pedro. Para além do genocídio: novas luzes sobre a Questão Armênia. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Arméniens: le temps de la délivrance, de Gaïdz Minassian, é uma obra de fôlego sobre a história e a memória dos armênios, na qual o autor propõe-se a analisar, ao longo dos quase três mil anos de existência desse grupo étnico, suas diferentes configurações políticas e sociais. Seu objetivo é destrinçar o conhecimento científico produzido a respeito da “questão armênia” e, assim, abrir espaço para novas perspectivas históricas (p. 32). O genocídio dos armênios, realizado pelo Império Otomano ao longo da Primeira Guerra Mundial, e o reconhecimento internacional desses massacres como “genocídio” são componentes centrais daquilo que o autor define como a “questão armênia”, mas seu estudo não se restringe a esses dois elementos: outras questões atualmente relevantes para os armênios, incluindo a própria existência da Armênia enquanto um Estado independente, são igualmente objeto de reflexão.

A partir da premissa de que as narrativas a respeito dos armênios são marcadas pela primazia da memória coletiva sobre o conhecimento histórico, Minassian divide o seu trabalho em quatro partes: a primeira, em que se analisa a relação entre história e memória, tem como foco as formas de dominação a que os armênios estiveram submetidos através do tempo; a segunda se volta à superação de uma lógica exclusiva da memória; a terceira introduz uma reflexão sobre as potencialidades da memória; por fim, a quarta se propõe a desbloquear a relação história-memória. Cada uma dessas partes se subdivide em três capítulos extremamente densos e marcados pela descrição, em grande profundidade, dos processos históricos e das conjunturas em que eles se desenvolveram.

O primeiro capítulo, intitulado La domination internationale (p. 43-125), é o mais longo de todo o texto e se compõe de três seções. Nesse capítulo, o autor remonta às primeiras formas de organização política da população armênia para refletir sobre o tratamento que lhe foi conferido pelas potências internacionais e pelos grupos vizinhos. Dividida em dois momentos, a primeira seção do capítulo trata dos períodos em que os armênios constituíram Estados independentes e dos períodos de submissão a poderes estrangeiros. Segue-se uma discussão acerca da “questão armênia”, de finais do século XIX até os dias de hoje, com reflexão a respeito da forma como as potências estrangeiras e os Estados vizinhos têm se portado em relação à existência de um Estado armênio. A terceira seção do capítulo se volta aos movimentos de criação de uma estrutura política independente, descritos pelo autor como “haitadismo” (termo originado a partir do radical hai, que significa “armênio” na língua armênia).

No segundo capítulo, La domination politique-religieuse (p. 127-176), faz-se um novo recuo histórico para analisar as estruturas políticas e religiosas nas quais os armênios se organizaram através dos séculos. O capítulo é novamente dividido em três seções, cada uma delas dedicada a uma instituição social: o sistema dinástico, a Igreja e os partidos políticos. Embora não haja uma nítida análise cronológica, é possível associar essas instituições a determinados períodos históricos – respectivamente a Idade Média, o período de dominação otomana e uma espécie de século XX estendido (dos anos 1880 até hoje). De acordo com o autor, a célula dessas formas de organização seria a família patriarcal (p. 129), que lhes serviria não apenas de unidade constituinte mas também de modelo de organização: dinastias, Igreja e partidos se estruturariam, assim, nos moldes da estrutura familiar.

A terceira forma de dominação é a socioeconômica, objeto da análise do capítulo 3 (p. 177-209). O principal argumento dessa parte do texto é que a longa experiência de dominação estrangeira condicionou o pensamento dos armênios e os colocou sob forte dependência econômica e social (p. 177). Essa situação teria dois importantes desdobramentos: em primeiro lugar, impediu o avanço de um pensamento individualista e reforçou, pelo contrário, as demandas coletivas (p. 188); em segundo lugar, teria dado origem a uma sociedade profundamente violenta, que perceberia no enfrentamento direto o principal meio de resistência à dominação estrangeira (p. 193). Os massacres realizados pelo sultão Abdul Hamid II, o genocídio e as perseguições dos períodos stalinista e pós-stalinista seriam alguns dos exemplos da violência de massa à qual a sociedade estaria submetida e à qual ela teria respondido de modo igualmente violento.

Dedicado ao movimento revolucionário, entre 1878 e 1914, o capítulo 4 (p. 215-250) tem como principal objeto de reflexão a fundação da Federação Revolucionária Armênia – Dashnaktsutiun (FRA / Dashnaktsutiun) e as ações empreendidas por esse partido durante a passagem do século XIX para o século XX. Na realidade, o foco recai quase que exclusivamente sobre a figura de Christapor Mikaelian, descrito pelo autor não apenas como um “fundador do partido” ou como “profeta da revolução”, mas como a própria encarnação da autoridade entre os armênios (p. 216). Outras organizações ou personagens atuantes no período são relegadas a um segundo plano na análise, que apresenta o “grande homem” Christapor como o sujeito de todas as importantes ações e decisões. É tamanho o protagonismo dessa personagem que o autor cunha um termo para definir todo o período, christaporismo, e dedica à sua análise uma parte significativa do capítulo, a seção Christaporisme, le politique incarné (p. 217-242).

O capítulo 5 (p. 251-271), o segundo da parte II, volta-se à chamada 2a República da Armênia, período em que o país esteve sob dominação soviética (1920-1991). A partir do pressuposto de que foi pela cultura que os armênios assumiram o controle de sua história entre os anos 1920 e a queda do muro de Berlim (p. 251), desenvolve-se aqui uma investigação sobre as manifestações artísticas dessa população, enfocando não apenas a produção oriunda da República Soviética da Armênia, mas também incorporando aquela realizada nas comunidades da diáspora. Toda essa produção é observada à luz da sua contribuição para a preservação de um sentimento de armenidade e do fortalecimento da ideia de uma nação armênia – em acordo com o propósito do livro de analisar os armênios enquanto grupo étnico, não necessariamente vinculado a uma instituição política ou a um Estado nacional. A atuação estritamente política dos armênios, tanto dentro da URSS quanto na diáspora, ocupa aqui uma posição secundária, sendo-lhes dedicadas apenas as cinco páginas finais do capítulo.

Instituída a partir da crise da União Soviética, é objeto de investigação do capítulo 6 a 3a República da Armênia, mais precisamente o primeiro decênio desse período, de 1988 a 1998. Ao observar o renascimento político e o deslocamento do eixo econômico da Armênia ao longo da década de 1990, o autor pretende aqui avaliar a relevância de dois processos distintos, embora conectados: por um lado o declínio e o desmembramento da União Soviética e, por outro, a transferência do território do Alto Karabakh para a República da Armênia. O argumento do autor é que as decisões tomadas nesse período pautariam todo o posicionamento político posterior da Armênia e, para sustentar sua posição, ele apresenta a discussão a respeito do “inimigo a ser enfrentado” pelo Movimento do Karabakh (p. 277-8), se o governo central em Moscou ou se o governo da República do Azerbaijão, em Baku. Vinculado administrativamente à República do Azerbaijão, a região do Alto Karabakh era habitada por uma maioria armênia pelo menos desde os anos 1920 e, por isso, o Movimento Karabakh reivindicava a sua transferência para a República Socialista Soviética da Armênia. A opção pelo enfrentamento ao governo azerbaijanês, tomada pelos líderes do Movimento, produziu um alinhamento a Moscou que até hoje persiste e que pauta grande parte das decisões do governo armênio atualmente, o que implica em certa dose de dependência em relação à Rússia. Outro importante desdobramento da opção pelo enfrentamento a Baku teriam sido as significativas vitórias armênias, que lhes proporcionaram uma “revanche sobre a história” (p. 290) e possibilitaram que os “traumas psicológicos se apagassem pouco a pouco do pensamento”, um aspecto que teria impacto direto sobre a memória do genocídio mantida na República da Armênia.

O capítulo 7, Fortunes et infortunes de la révolution culturelle haïtadiste, 1972-1991 (p. 307-333), volta-se ao movimento de revalorização da identidade armênia, que teria se desenvolvido nas diferentes comunidades da diáspora a partir de 1972. Originada no congresso realizado pela FRA em Viena naquele ano, essa revolução cultural teria dado origem a um “nacionalismo de diáspora” (p. 314), marcado pelo reposicionamento dos armênios na cena política internacional: o partido estabelecia então uma agenda terceiromundista, em que rechaçava o alinhamento automático a qualquer dos polos envolvidos na Guerra Fria e tentava estabelecer sua própria pauta de reivindicações. O resgate e a preservação da língua armênia voltaram a ser uma prioridade, bem como o reconhecimento do genocídio pela comunidade internacional e, mormente, pela Turquia – o que motivou os ataques aos quadros da diplomacia turca ocorridos a partir dos anos 1980.

Enquanto o capítulo 7 se concentra quase que exclusivamente na análise de processos ocorridos na diáspora, o capítulo 8, L’État mémoriel arménien, de 1998 à nos jours (p. 335-350), é dedicado a temáticas mais estritamente relacionadas à República da Armênia, embora não perca de vista as relações entre o Estado e a diáspora. O autor aborda aqui o papel desempenhado pela memória na construção da ideia de “nação armênia”, dividindo a temática, porém, em duas dimensões opostas: no primeiro momento, destaca-se a centralidade da memória na construção de uma identidade coletiva, na qual a tradição, a religião e o genocídio exercem uma função primordial (p. 336) – o que explica a denominação de État mémoriel no título do capítulo; no segundo momento, por outro lado, destaca-se a impossibilidade do trabalho de memória, uma vez que são recalcadas páginas importantes do passado armênio, tais como os crimes do período stalinista ou a atividade dos grupos terroristas armênios. A argumentação do capítulo evolui no sentido de demonstrar que a memória é evocada ou silenciada de acordo com os interesses dos grupos que controlam o governo, o que fica claro, por exemplo, nos movimentos de aproximação e de afastamento em relação à diáspora, à Rússia e à Europa.

A utilização da memória para fins políticos é também o objeto de análise do capítulo 9 (p. 351-373), que se volta ao negacionismo turco em relação ao genocídio dos armênios. Seu objetivo é compreender as causas e os mecanismos empregados pela historiografia definida como “historiografia de Estado” turca, para preservar certa narrativa a respeito de seu passado. Novamente, o autor aborda dois posicionamentos opostos sobre a questão: primeiramente o discurso negacionista, desde aquele produzido pela administração otomana durante a Primeira Guerra até as análises realizadas atualmente nos meios acadêmicos; em seguida, os estudos que, desenvolvidos por autores de origem turca ou com ampla utilização de arquivos locais, rompem a barreira de discurso monológico instituído pelo governo turco. Apoiado em obras recentes, o autor aproveita para discutir aqui teses tradicionais como a compreensão de que o período republicano representaria uma ruptura profunda com o período imperial na Turquia: para Minassian, o governo instituído por Mustafa Kemal herdou do período anterior não apenas a estrutura política e econômica, mas também o discurso em relação ao genocídio (p. 269).

A quarta parte do livro se inicia com um capítulo intitulado Democratiser l’identité (p. 381-403), cujo foco recai sobre as relações entre a República e a diáspora, por um lado, e entre o Estado e a sociedade, por outro. Embora tenha como objeto de investigação a identidade coletiva armênia, o capítulo é marcado pela percepção de uma desconfiança da população em relação às instâncias de participação coletiva: desconfiança em relação à integração com a diáspora (p. 383), em relação ao governo (p. 385), em relação aos partidos políticos e especialmente em relação à FRA (p. 386-7), em relação ao apoio russo (p. 389)… Na segunda seção do capítulo, o autor apresenta o que parece ser o seu receituário para o Estado armênio sair da crise de legitimidade em que se encontra e entrar no que seria o “mundo das democracias modernas”: romper com a suserania russa (p. 395), libertar-se do trauma do genocídio (p. 397), promover uma real conquista do Estado pela população (p. 398) e racionalizá-lo (p. 399), realizar uma reforma política que leve à adoção do bicameralismo (p. 400) e integrar a diáspora no sistema decisório (p. 401). A análise se volta a diferentes temáticas, mas, embora algumas das propostas apresentadas possam de fato trazer benefícios para o país, a argumentação em defesa delas muitas vezes carece de fundamentação e parece desconsiderar aspectos importantes da realidade local.

O capítulo 11, Trouver les voies et les voix du dialogue avec les Turcs (p. 405-446), propõe uma reflexão sobre a necessidade de se restabelecer as relações diplomáticas entre a Armênia e a Turquia, bem como os recursos disponíveis para isso. Seu principal argumento é que, ainda que o governo turco possa ser refratário a essa aproximação e à discussão da questão do genocídio, é não apenas possível, mas também necessário estabelecer um diálogo direto com a sociedade daquele país, que frequentemente não teria acesso a uma informação completa e/ou precisa. Estabelecida como temática a normalização das relações diplomáticas, torna-se imprescindível observar os protocolos armeno-turcos, assinados em 2009 precisamente com essa finalidade: identificar os agentes envolvidos, as motivações de cada um e as razões para o fracasso das negociações tornam-se objetivos centrais para a reflexão desenvolvida ao longo do capítulo.

Já abordada no primeiro capítulo do livro, a atuação das potências internacionais em relação aos armênios é trazida novamente à discussão no capítulo 12 (p. 447-494), L’engagement de la communauté internationalle et scientifique, em que se demonstra como as grandes forças da cena mundial têm utilizado a “questão armênia” para atingir seus próprios objetivos. A primeira seção do capítulo trata desses diferentes usos da questão armênia e de como ela vem sendo empregada para legitimar determinadas políticas – os exemplos são abundantes. O Genocídio, por exemplo, não é reconhecido por Estados que prontamente se apresentam como defensores da paz e dos direitos humanos, como Estados Unidos e Inglaterra (p. 449). A Rússia, supostamente comprometida com a paz na região do Nagorno Karabakh, não se furta a fornecer armas para os dois países beligerantes e mantê-los, assim, sob a sua tutela (p. 454). A União Europeia busca atrair a República Armênia para a sua zona de influência desde que isso signifique o enfraquecimento russo (p. 462), e não movida por uma preocupação com o desenvolvimento econômico e social na região.

A segunda seção do capítulo se volta à aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso armênio e ao debate em torno das leis sobre o negacionismo na França: a discussão é intensa e envolve políticos, intelectuais e formadores de opinião, que oscilam entre legitimar uma “restrição à liberdade de expressão” e tolerar a “negação de eventos históricos”. Esse debate traz à luz uma reflexão sobre o papel do historiador como detentor da “verdade” e sobre a legitimidade de o Estado definir os discursos históricos legalmente aceitos: negar o genocídio dos armênios não seria, assim, diferente de negar o holocausto ou a escravidão (p. 472).

O principal mérito de Arméniens: le temps de la délivrance é introduzir, no campo de estudos sobre a Armênia e sobre os armênios, questões que fogem à temática do genocídio sem, contudo, negligenciar esse tema. Trata-se de um movimento de suma importância, uma vez que grande parte das pesquisas relacionadas aos armênios adota como enfoque exclusivo os acontecimentos ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial – proporção ainda mais representativa no caso dos estudos realizados por pesquisadores originários das comunidades armênias da diáspora.

O interesse que essas comunidades têm no tema é facilmente explicado se considerarmos que são elas que abrigam a maior parte dos descendentes das vítimas das perseguições, que formaram, em seu exílio, o embrião das comunidades que existem atualmente. Contudo, observar a história dos armênios unicamente sob a ótica dos sobreviventes do genocídio traz o risco de empobrecer a reflexão sobre o assunto, visto que os estudos passam a girar quase que exclusivamente em torno de um mesmo ponto. Nesse sentido, a ampliação do foco das pesquisas proposta por Gaïdz Minassian é muito bem-vinda, pois possibilita romper com um discurso monotônico e diversificar os tópicos relacionados à “questão armênia”, conferindo-lhe, assim, maior complexidade.

Todavia, para um estudo dessa magnitude e que se propõe a tão importante deslocamento do eixo das análises, o livro, ainda que relacione uma vasta bibliografia, apresenta muito poucas referências a fontes primárias que possam dar sustentação aos seus argumentos. Afirmações relativas a assuntos sobre os quais não há consenso poderiam ser mais desenvolvidas e melhor fundamentadas. Esse é o caso, por exemplo, da menção à quantidade de armênios executados durante o Genocídio, apresentado pelo autor como sendo 1,5 milhão (p. 44): mesmo entre os pesquisadores que concordam com o conceito de genocídio para definir o caso armênio, há grande discordância sobre os números, que variam entre 800 a 1,5 milhão, em função do estudo e da metodologia aplicada. Não informar o leitor a respeito de tal divergência numérica em relação a uma questão elementar para o estudo dessa temática traz o risco de fragilizar a argumentação e de colocar em xeque toda a obra, que poderia então ser classificada mais como uma obra de divulgação do que um texto com rigor científico.

As afirmações pontuais que não apresentam fontes que lhes sustentem, a despeito de tratarem de temas relevantes, são diversas – poder-se-ia destacar a alusão a “le rêve de libération de l’Arménie occidentale sous l’administration de la Turquie” (p. 61) surgido na Armênia soviética nos anos 1950 ou a declaração de que “contrairement à ce que rapporte la légende, les premiers à s’être prononcés pour le maintien du haut-Karabakh à l’Azerbaïdjan ne sont pas les Bolcheviques, mais les Britanniques” (p. 77), entre outros. Mais problemático do que essas afirmações, porém, parece ser o texto cair muitas vezes na armadilha daquilo que ele pretende combater, a saber: observar a “questão armênia” a partir de uma lógica da memória, reificando narrativas espacial e temporalmente localizadas e que não necessariamente correspondem aos processos históricos. Nesse sentido, o autor frequentemente assume uma perspectiva recorrente nas comunidades da diáspora e que não observa os movimentos internos à República da Armênia, de 1918 até hoje, em todas as suas especificidades.

A implicação de se observar a República da Armênia sob a ótica da diáspora é avaliar os posicionamentos adotados pelo Estado a partir de parâmetros que lhe são estranhos ou que desconsideram as dinâmicas locais e regionais. Quando o autor afirma, por exemplo, “les Arméniens ont collectivement le sens de la politique, mais pas le sens du politique” (p. 128), ele avalia e classifica essa coletividade a partir de uma lógica que deslegitima toda a experiência social na Armênia como dotada de um “senso do político”. O mesmo ocorre quando, ao tratar da aproximação com a Europa, ele afirma “l’Arménie doit s’appuyer sur ce socle démocratique [européenpour assurer son avenir, la paix régionale et son développement économique (…) Mais Erevan a opté, sous la pression de Moscou, pour l’union douanière du projet poutinien d’Union eurasienne avec la Russie” (p. 338-9), sem contudo avaliar os fatores estratégicos que conduzem a Armênia a se aproximar da Federação Russa em detrimento da Europa. O Estado armênio é retratado, assim, como movido por certa ingenuidade ou como uma estrutura inábil na realização de cálculos políticos.

Esse posicionamento do texto, no entanto, não abala a qualidade da obra, que continua sendo um trabalho extremamente original, articulado a uma bibliografia atualizada e que aborda com grande profundidade diferentes questões. Trata-se de um livro indispensável a qualquer estudo que se proponha a refletir hoje sobre a temática armênia, em qualquer de suas dimensões.

Referências

MINASSIAN, Gaïdz. Arméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 p. [ Links ]

1Resenha do livro: MINASSIAN, GaïdzArméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 p.

Pedro Bogossian-Porto – Doutorando em Antropologia na Université Paris 7 – Paris Diderot (UP7) e bolsista do Programa de Doutorado Pleno da CAPES (Processo nº 99999.001062/2015-08). Com interesse na memória e na identidade nacional armênia, o pesquisador possui mestrado em Antropologia e bacharelado em História, ambos pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, e é membro associado do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (Neom/UFF) e da Unité de Recherche Migration et Société (Urmis/UP7). E-mail: pedro_bogo@yahoo.com.br.

A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX – MORGENTHAU (A)

MORGENTHAU, Henry. A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 314 p. Resenha de: SILVA, Rogério Fernandes. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.

Demorou 92 anos para que a obra do embaixador dos Estados Unidos Henry Morgenthau fosse traduzida e editada em língua portuguesa. O livro cujo título em nossa língua é extremamente longo: “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX (Tradução de Marcello Lino)” diferente do título original em inglês “Ambassador Morgenthaus Story” bem mais simples. A obra é um dos documentos mais importantes do século passado, pois relata o início do extermínio étnico e cultural contra os cristãos armênios (1915-1923), inaugurando uma prática que, com o passar dos anos, seria conhecida através da palavra genocídio. A expressão surgida em 1944 gerou um termo que visava dar um estatuto jurídico específico aos crimes de guerra contra minorias étnicas, religiosas ou culturais na Segunda Guerra Mundial. O livro é dedicado ao presidente americano Woodrow Wilson (1912-1921), idealizador da Liga das Nações. A obra é dividida em 29 capítulos curtos, sendo os  últimos um pouco mais longos, todos eles ricos historicamente. As 324 páginas passam rapidamente, pois o texto é elegante e de fácil compreensão. Pode-se dividir em apresentação em língua portuguesa dos tradutores, um pequeno prefácio do autor e o corpo do livro em duas partes principais. A primeira seria sobre a convivência de Henry Morgenthau com os políticos turcos. A segunda parte começa a partir do capítulo vinte e dois que está relacionada com o genocídio do povo armênio. Na segunda parte, estão muitos dos relatos dos massacres que foram feitos por missionários norte-americanos, pois ao chegarem à capital do império procuravam o embaixador para comunicar as atrocidades.

Diante das informações dessas fontes e de outras um quadro terrível de atrocidades começa a ficar nítido. Demorou um pouco até que a história das atrocidades armênias chegar à embaixada americana com todos os detalhes horríveis. Em janeiro e fevereiro, relatórios fragmentados começaram a surgir aos poucos, mas a tendência, no início, era considerá-los meras manifestações das desordens que haviam prevalecido nas províncias armênias por muitos anos. Quando chegaram de Urumia, tanto Enver quanto Talaat os descartaram como exageros descabidos […]. Naquele momento não estava claro, agora vejo que o governo turco estava determinado a esconderas notíciais do mundo exterior enquanto fosse possível (MORGENTHAU, 2010, p. 255).

Os dois principais grupos envolvidos nos massacres têm origens distintas. Primeiramente é preciso uma breve introdução eles. A nação Armênia fazia parte do Império Otomano. Uma nação de tradição milenar, com língua própria e cultura. São descendentes das tribos hurritas que vieram da Índia a partir do século XVIII a.C. Os armênios são, portanto, do ramo linguístico indo-europeu. Eles chegaram à Ásia Menor e lá se estabeleceram. No primeiro século de nossa era, segundo a tradição, a região foi evangelizada por Bartolomeu e Judas Tadeu, apóstolos de Cristo. Os dois foram martirizados na região, mas implantaram o cristianismo nas áreas montanhosas da Armênia. A nação teve uma história de numerosos martírios um forte indício da implantação a fé cristã na região. No ano de 301, a Armênia tornou-se o primeiro país do mundo a proclamar essa doutrina religiosa como religião de Estado.

Na formação do antigo Império Otomano e, consequentmente, da atual Turquia, o grupo étnico dos turcos seljúcida, ramo dos turcos oguzes, vieram da região onde hoje é o Turquestão, eram um povo guerreiro que aderiu a fé islâmica. A partir do século XI eles invadiram a Ásia Menor e converteram-se ao Islã, através da força, a maior de todos os habitantes desta região. Dominaram os povos de outras etnias, entre estes, os armênios. Em 1071, invadiram a região da Armênia e em 1300 chegaram à Anatólia, tomou todo o leste do Império Bizantino, Constantinopla no oeste caiu, no meado século XV, junto do que restava de tal Império.

Voltando à narrativa de Henry Morgenthau, norte-americano de origem judia, foi embaixador na Turquia no período da Primeira Guerra Mundial e presenciou uma das primeiras atrocidades promovida por um Estado-nação. A Alemanha, no início do século XX, levou a Bulgária, a Romênia e a Turquia a Primeira Guerra como aliadas, Morgenthau era na época embaixador norte-americano em Constantinopla. A obra em questão é um depoimento pessoal de quem conviveu com os políticos turcos, estes diretamente responsáveis pelo mais longo massacre do século XX. Cerca de um milhão e meio de cristãos armênios foram mortos a mando dos fundadores da Turquia moderna, um grupo que ficou conhecido como os Jovens Turcos.

O grupo dos Jovens Turcos pretendia modernizar a sua região de maneira autoritária: Essa afirmação representava o ideal dos Jovens Turcos para o novo Estado, mas era ideal que evidentemente estava além da capacidade de realização do grupo. As raças que foram maltratadas e massacradas durante séculos pelos trucos não podiam se transformar da noite para o dia em irmãs, e os ódios, ciúmes e preconceitos religiosos do passado ainda subdividiam a Turquia em uma miscelânea de clãs em guerra.

Acima de tudo, as devastadoras guerras e a perda de grandes partes do Império Turco haviam destruído o prestígio da nova democracia. Houve muitos outros motivos para o fracasso, mas não é necessário discuti-los neste momento (MORGENTHAU, 2010, p. 22). Os Jovens Turcos formaram um grupo político heterogêneo que pretendia reverter às perdas territoriais e esfacelamento do Império Otomano. Além de promover reformas constitucionais, muitas de caráter secular e pró-ocidente, e assim acabaram impondo suas idéias através de muito derramamento de sangue. Os principais articuladores, para Henry Morgenthau, foram Talaat Paxá, ministro do interior, o germanófilo Enver Paxá, ministro da guerra. Como Morgenthau os descreve? Apesar do ideal inicial dos Jovens Turcos, este acabar sendo deixado de lado por causa das prerrogativas do poder político. Eles não eram mais uma força política regeneradora, pois haviam abandonado qualquer expectativa de reforma. Talaat, Enver e Djermal (outro Paxá) tinham por detrás deles uma comissão de quarenta homens. Morgenthau chega a comparar os Jovens Turcos com gangues americanas, isto por causa do recurso do assassinato e “homicídio oficial” o governo turco não era bem visto pelas autoridades americanas da época.

O embaixador americano conviveu com os administradores do Império Otomano que usurparam o poder com um golpe. Esses homens pretendiam modernizar a nação que acreditavam estar em frangalhos depois de sucessivas derrotas militares.

Para tanto, o embaixador notou que a aproximação da Turquia com a Alemanha levaria o país, contando com capital alemão, a uma reestruturação. Os Jovens Turcos acreditavam na possibilidade de tornar-se uma potência regional graças à aliança com as nações da Europa central. Alguns vislumbravam o Império retornar a sua glória antiga e estender seu poder pelo mundo. Os dirigentes turcos estavam interessados na ajuda modernizadora dos germânicos e esses últimos na posição estratégica da Turquia, que poderia ser utilizada para ameaçar o Império Russo, em caso de guerra.

Como bom americano, o embaixador fala sobre a Doutrina Monroe de forma positiva, para ele foi ela que salvou o México da interferência francesa e faltou igual à Turquia, pois esta acabou nas mãos alemãs sem que nenhuma potência ocidental interviesse (Idem, p.33).

No caso do México, a ingerência desastrada do Imperados francês Napoleão III, na tentativa de estender a influência na América, implantou uma monarquia fantoche no México (1864–67). Com ajuda dos americanos esse governo foi derrubado e o imperador estrangeiro Maximiliano, arquiduque austríaco executado. A Doutrina Monroe podia ser resumida como “América para os americanos” que visava à interferência dos norte-americanos em caso de haver novas ações dos países europeus sobre as Américas. Essa ideologia possibilitou a reserva de mercado para os americanos e intervenções militares em vários países da América Latina.

Vale ressaltar que o primeiro capítulo do livro é dedicado a influência alemã sobre o Império Otomano e ao representante máximo desse poder: o embaixador barão Von Wangenheim, escolhido pessoalmente pelo Kaiser, representante perfeito dos preconceitos teutônicos, raciais e militaristas, em moda no império alemão. Von Wangenheim foi um dos maiores incentivadores da aliança turca com a Alemanha e ficou indiferente diante dos massacres. Para o embaixador americano, a atitude alemã e de seu embaixador no Império Otomano foram responsáveis pelo genocídio durante os anos da Primeira guerra Mundial. Ao descrevê-lo, Henry Morgenthau ressalta: “Ao escrever sobre Wangenheim, ainda me sinto afetado pela força de sua personalidade; […], ele era fundamentalmente impiedoso, despudorado e cruel.” (MORGENTHAU, 2010, p. 19). Consequentemente, Morgenthau via o embaixador alemão como seu antagonista perante a defesa de sentimentos humanitários, segundo ele, em uma terra governada por bárbaros.

A luta para assegurar a integridade dos estrangeiros pelo embaixador, junto às autoridades turcas foi titânica, pois os alemães as instigavam e manipulavam. No princípio dos combates o governo do Império Otomano já estava nas mãos da Alemanha. Os argumentos da oposição civilização versus barbárie foram usados diversas vezes por Morgenthau. A polidez do embaixador não permitia expressar sua opinião publicamente seus preconceitos sobre a cultura turca, que apesar de compreendê-la um pouco, via-os como “selvagens com sede de sangue” (MORGENTHAU, 2010, p. 200).

A época está relacionada à consolidação do Imperialismo, a disputa por mercados lucrativos levam as nações mais industrializadas a ocuparem regiões diversas pelo mundo. Os países europeus acabaram criando Uma das justificativas era que as colônias seriam tuteladas pelas nações mais adiantadas, por isso mais civilizadas.

Seriam como crianças bárbaras aprendendo a crescer como civilizações e o modelo seria a própria Europa Ocidental. No período que exerceu como embaixador em Constantinopla eclodiu a Primeira Guerra Mundial. As nações europeias já estavam há muito tempo em disputa pelas colônias mais lucrativas começam a combater umas as outras, o embate era ansiosamente esperado. O Antagonismo Inglaterra e Alemanha cresceu tanto que leva diversos países ao combate levando outros países com eles.

Porém, existia um medo de que elementos cristãos dentro do Império Otomano se aliar aos russos. A intenção de eliminar os armênios foi premeditadamente planejada com afinco pelos governantes turcos. Quando ocorre a Primeira Guerra Mundial os turcos aproveitam a chance: Para que aquele plano de assassinar uma raça fosse bem-sucedido, dois passos preliminares teriam de ser dados: seria necessário neutralizar o poder de todos os soldados armênios e privar de armas os armênios em todas as cidades e vilarejos. Antes que a Armênia pudesse ser massacrada, era necessário torná-la indefesa (MORGENTHAU, 2010, p. 237).

O governo turco resolveu deportar os armênios sobreviventes dos massacres iniciais, em sua maioria idosos mulheres e crianças e os forçaram a sair de suas casas e marcharem para o deserto, muitos só com as roupas do corpo. Forçados a voltar para sua terra ancestral foram expulsos das cidades e vilarejos, pois estavam espalhados por todo Império. Numerosos morreram no caminho de fome e exaustão; nessas marchas da morte as pessoas eram atacadas e mortas ou feitas prisioneiras para servirem de escravas.

Em vez de simplesmente massacrar a raça armênia, eles decidiram deportá-la. Nas seções sul e sudeste do Império Otomano fica o deserto sírio e o vale da Mesopotâmia […], e hoje uma terra estéril triste e desolada sem cidades, aldeias nem vida de qualquer espécie, povoada apenas por algumas tribos beduínas selvagens e fanáticas (MORGENTHAU, 2010, p. 242).

O autor conta detalhes quase íntimos da diplomacia envolvida e os planos dos embaixadores europeus em Constantinopla. Tramas políticas, movimentos militares, características culturais, físicas e psicológicas dos personagens, nada fica de fora da percepção de Morgenthau. Sua estadia propiciou um relacionamento muito próximo como os protagonistas políticos da região. E essa intimidade fora determinante para seu afastamento voluntario de Constantinopla e retorno aos EUA, não aguentava mais a companhia dos homens responsáveis por tantas mortes. Muitos desses políticos locais queriam que ele permanecesse como embaixador, mas: Meu fracasso em deter a destruição dos armênios transformou a Turquia em um lugar terrível para mim e considerava intolerável a minha associação diária com homens que, por mais gentis, […], ainda exalavam o cheiro do sangue de quase um milhão de seres humanos (MORGENTHAU, 2010, p. 296).

A impressão que fica é a de um Henry Morgenthau que se tornou em Constantinopla uma figura quase quixotesca lutando pelos seus ideais humanitários, porém, amargurado pela sua impotência. Os políticos turcos demonstravam afabilidade para com sua pessoa, mas dissimulavam que iriam resolver em favor dos armênios e continuaram com as mortes. O que o desanimou foi uma estrutura de poder antiga alicerçada na subjugação violenta, no ódio e na intolerância. Portanto, a leitura desse livro é de suma importância, pois nos ajuda a compreender o surgimento do genocídio no século XX, e a sua relação com o Estado-nação moderno. Esse tipo de eliminação em massa persistiu durante todo o século passado, mas ainda ameaça persistir e continuar a desenvolver-se nos tempos atuais.

Rogério Fernandes da Silva – Professor de rede pública da cidade de Maricá e Estadual do Rio de Janeiro, especialista em História do Brasil. E-mail: prof_rfernandes@yahoo.com.br.

A História do Embaixador Morgenthau: O Depoimento Pessoal sobre um dos Maiores Genocídios do Século XX | Henry Morgenthau

Dizer que de forma unitária ou coletiva o homem é capaz de crueldades não revela nenhuma novidade, praticamente toda a história humana é salpicada de lutas cruentas, guerras e genocídio desde o momento em que a pedra foi lascada e o ferro se transformou em seta. O livro de Kenneth Waltz, O Homem, o Estado e a Guerra, havia procurado investigar as reais motivações da natureza humana que conduzem o homem à violência, mas sem concluir, com fórmulas apressadas e mecânicas, como a de que o homem é necessariamente mal (Waltz, 2004). Isto porque se a humanidade produziu seres como Hitler, do outro lado, ela é também foi capaz de criar Martin Luther King e Tereza de Calcutá. No fundo, tudo depende da correlação de forças políticas e morais que conformam o mundo para a guerra e para paz.

A violência humana, expressada em guerras, genocídios e lutas gerais, nos acompanha até a atualidade, citemos Ruanda e ex-Iugoslávia nos anos 1990. Se a Primeira Guerra Mundial revelou o empenho “profissional” para aprimorar a morte por meio de invenções, já a Segunda o aprofundou e o sistematizou por intermédio de estudos e enquadramentos burocráticos que fez com que Hannah Arendt escrevesse livro para compreender como ocorreu a racionalidade da morte em mentes burocratizadas que cumpriram seu dever na eliminação de judeus em campos de concentração, como Adolf Eichmann (Arendt, 1999). Leia Mais