Eudemo | Aristóteles

Hacer una contribución dentro del ámbito de la historia de la filosofía no es una tarea fácil. Por ello, cabe destacar la labor realizada por Benjamín Ugalde en la edición de los fragmentos y testimonios del diálogo Eudemo de Aristóteles. Este libro, que recopila y comenta sistemáticamente los fragmentos del –supuestamente– joven Aristóteles sobre el alma, se nos ofrece como ejemplo de que aún se le pueden sumar importantes contribuciones a la producción de textos en el ámbito de la historia de la filosofía.

En su introducción (pp. 14-15; 25-28), Ugalde aborda la siguiente cuestión: ¿Qué aporte tiene para la comprensión del pensamiento sistemático de Aristóteles la consideración de un texto fragmentario como el Eudemo? Nos atreveríamos a responder que la teoría evolutiva del pensamiento del filósofo encuentra aquí un punto a su favor y nos recuerda que el pensamiento de los filósofos puede ser influenciado por sus maestros, cambiar y devenir a una posición propia. En este contexto, el aspecto más notable corresponde a lo que oportunamente destaca Ugalde (p. 28) sobre el tránsito que habría en el pensamiento de Aristóteles en relación al estatus ontológico del alma, ya que en el Eudemo la concebiría como una cierta idea (εἶδός τι), mientras que en el De Anima como una forma de algo (εἶδός τινος). Leia Mais

Poética – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução, Introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: FRANCO, Irley Fernandes. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 417-425, set., 2016.

Poética pertence ao grupo dos chamados escritos esotéricos, ou acroamáticos 1  (como eram nomeados pelos primeiros estudiosos de Aristóteles), isto é, escritos ou anotações “do que foi ouvido”ou lido 2. Mais do que isso, a Poética  é considerada, por seu caráter incompleto, fragmentário e muitas vezes desconexo, como o exemplo mais perfeito desse gênero aristotélico. Não só não foi escrita para ser publicada, tal os escritos “exotéricos”(ἐξωτερικών συγγράμματα) 3, os diálogos perdidos que o próprio estagirita teria publicado em vida, como é, dentre os “não publicados”, o mais condensado e enigmático. Ela é talvez parte daquele outro gênero, para o qual já havia apontado Cícero, em suas observações acerca dos escritos morais aristotélicos 4: o dos “Comentários”(hoje identificado aos acima citados “esotéricos ou acroamáticos”), gênero que abrange desde os tratados enciclopédicos com argumentação rigorosa e sofisticada, até as anotações mais descuidadas, como, aliás, parece ser aqui o caso. À palavra “comentários”equivale o termo grego ὑπομνήματα, ie, o conjunto de notas que servem para trazer à lembrança determinados temas, possivelmente já tratados (em aulas?) e certamente já publicados.

O próprio Aristóteles jamais usou a terminologia acima citada. na Poética,  ele se refere a “escritos publicados”(1454b18: ἐκδεδομένοι λόγοι) justificando o fato de não estar aí explicando os temas que estão sendo tratados, o que fortemente sugere que esta fosse a única classificação dada por ele à sua obra: “publicados”e “não publicados”. na passagem em questão, ele está certamente se referindo ao diálogo Dos poetas (Περὶ ποιητῶν), livro exotérico perdido, mencionado em catálogos antigos e do qual restam-nos apenas fragmentos. neste livro, o filósofo, conhecido e admirado, desde a Idade Média pelo rigor de seus argumentos, teria feito todas as articulações essenciais referentes à matéria esquematicamente apresentada na Poética.

A Poética, ademais, não chegou inteira aos nossos dias. Ela sobreviveu, como os demais escritos acroamáticos, mas, à diferença deles, nunca foi comentada ou revisada durante o período de grande atividade exegética, sobretudo no séc. II com Alexandre de Aphrodisias. Do séc. III ao V, a Poética  parece ser totalmente desconhecida. E, conforme o catálogo que nos foi transmitido por Diógenes Laércio (Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres  3 48), ela era composta de dois livros. Um segundo volume teria sido dedicado à comédia e disso sabemos através tanto da própria Poética, onde se lê, no capítulo VI (1449 b21) “da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois”, quanto de outros tratados de Aristóteles, principalmente a Retórica, que, em dois lugares diferentes, — I, 11, 1372 a 1; III, 18, 1419 b5 —, refere-se ao “γελοῖος”(engraçado, risível) de que já tratara na Poética. a Política, quando menciona que o sentido de catarse será esclarecido ἐν τοἶς περὶ ποιητικῆς (“nos [livros] sobre a poesia”) e tal esclarecimento não aparece no livro I, também nos leva a supor a existência desse segundo livro.

Há ainda o problema peculiar da transmissão do texto da Poética, pois ela descende de quatro manuscritos autônomos: o Parisinus Graecus 1741 (sécs. X-XI), somente descoberto no séc. XVIII, o Ricardianus  46 (séc. XII), a versão latina (Moerbeke, 1278), e o Parisinus Árabe 2376 (c. séc. X) 5, o que agrava bastante a situação já fragmentária do texto acroamático, porque, com a passagem dos séculos, e à medida que os manuscritos foram sendo descobertos, o texto foi também se transformando, sofrendo intercalações, acréscimos, omissões etc. a tradução que ora se comenta usa o texto estabelecido por Rudolf Kassel, edição relativamente recente (1965) e amplamente adotada pelos especialistas em Aristóteles. a versão de Kassel tem a preferência dos scholars porque considera com muita atenção as quatro fontes acima citadas do texto aristotélico. De fato, somente Kassel conseguiu sintetizar de maneira satisfatória esses quatro manuscritos.

Sendo essa, então, a situação em que nos encontramos diante da Poética, considere-se o valor de uma tradução que, além de enfrentar as dificuldades naturais do grego antigo, — língua a que poucos têm acesso — tenha ainda como perspectiva dar a esse texto coerência e unidade. Pois foi essa a tarefa ciclópea a que se entregou Paulo Pinheiro. a fim de dar ao leitor condições de pensar a partir do texto original, pois é essa a finalidade de toda tradução, nosso tradutor não só foi à fonte grega como generosamente a ilustrou com fartas e elucidativas notas, única maneira de garantir que o mais “torturado”dos textos aristotélicos — como o qualificou Eudoro de Souza 6  — ganhasse corpo e clareza. Sem notas, permaneceria ininteligível a maior parte das teses apresentadas na Poética. Tampouco fariam sentido aqueles pontos que nos parecem intransponíveis se não os relacionamos com outras obras do corpus aristotelicum, principalmente com a Ética Nicomaqueia e com a Retórica.

Essa é, pois, a vantagem de termos um tradutor filósofo. E, de fato, em língua pátria, essa é a primeira tradução que tenta dar conta, através de notas explicativas, do vasto material conceitual trazido pela Poética. Termos como μίμεσις, μύθος, κάθαρσις, τύχη, πράξις, ἁρμαρτία etc., alguns hoje caros à teoria da literatura, e cujos sentidos têm sido exaustivamente investigados por estudiosos da Poética, são aí brevemente mencionados, como se fizessem parte de um vocabulário com o qual os leitores já devessem estar familiarizados. Da mesma forma, a maior parte das teses de Aristóteles sobre a poesia é aí lançada sem maiores explicações.

Assim, por exemplo, e em especial, a famosa teoria aristotélica da catarse, cujo sentido aqui somos obrigados a deduzir da definição desesperadoramente lacunar de tragédia, resumida por nosso filósofo em um único parágrafo (cap. VI). as poucas teses aí desenvolvidas, algumas de grande importância para a atual disciplina da Estética, como é o caso do problema da origem da tragédia e da comédia — tema que se tornou caro à filosofia desde O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, de Nietzsche — o são de modo extremamente econômico.

A edição em comento é bilíngue, mas a tradução é perifrástica; sacrifica a forma ao conteúdo. É natural que assim seja, uma vez que o texto parece ser, como já dissemos, um conjunto de anotações descuidadas e que têm por finalidade trazer à memória o que antes já foi ensinado e escrito. o texto é, sem exagero, além de curto (15 páginas, ou 30 colunas) 7, extremamente condensado e tem, no geral, uma estrutura gramatical bastante irregular, sendo seus conteúdos, os mais complexos, tratados inúmeras vezes através de “frases quebradas”. o grego “ao lado”permite-nos constatar a infinidade de anacolutos que nos obrigam a “interpretar”, em lugar de simplesmente “traduzir”.

Nem sempre concordamos com as escolhas do tradutor. algumas vezes, porque destoam de nossas próprias interpretações, tais como a de μύθος por “en- redo”, φόβος por “pavor”, ἁρμαρτία por “erro”, e assim por diante. Já em outros casos, porque consideramos que a escolha do tradutor não reflete todo o conteúdo semântico do termo de origem. Tal é, por exemplo, o caso da tradução de πάθος (1452b 10) por “comoção emocional”. Ora, “comoção emocional”é expressão fraca para significar a violência que se abate sobre o herói trágico e que se dá após o reconheci- mento (άναγνώρισις) e a reviravolta (περιπέτεια), momento tópico, clímax da tragédia complexa. Πάθος é o terceiro elemento da trama (μύθος) e é definido por aristóteles como “uma ação destrutiva ou dolorosa”(1452b 12: πάθος δέ ἐστι πρᾶξις φθαρτιὴ ἢ ὀδυνηρά). o uso da palavra “emocional”sugere uma situação estritamente psicológica, mais presente na mente do que na ação, como se o psicológico estivesse separado e distante da ação. De acordo com a passagem, entre- tanto, o πάθος trágico é uma ação e não uma “emoção”.

Poder-se-ia pensar, por essa razão, que se trata aí de uma tradução que obriga seus leitores a aceitar e seguir suas próprias opções sem lhes dar a possibilidade de reflexão. Mas não é esse o caso, pois nosso tradutor justifica e generosamente explica cada uma de suas escolhas, como o faz justamente em relação ao termo cuja tradução acabamos de criticar: πάθος. Em nota ao termo, Paulo Pinheiro cita diversas traduções já oferecidas na longa história dos estudos da Poética. assim, Eudoro de Souza, traduz por “catástrofe”, Magnien e Hardy, por “événement pathétique”, Dupont-Roc e Lallot por “effet violent”, Else, por “suffering”e, finalmente Halliwell mantém simplesmente “pathos”.

Como observação final, destacamos a importância, muitas vezes negligenciada, da Poética para o pensa- mento e cultura ocidentais. Tomando como exemplo as poesias épica e trágica, Aristóteles, diverge radical- mente de seu mestre Platão, e dá à poesia a dignidade de um domínio próprio, que não mais depende de propostas políticas ou de uma filosofia moral. Pode-se dizer que, pela primeira vez, a mimesis poética é pensada como tendo uma potência própria e que, desde aí, não parou de contar a sua história. os cânones aí introduzidos para a composição da boa tragédia acabaram se tornando paradigmáticos para os demais gêneros literários e, através deles, para outras formas de produção artística, fazendo da Poética  um dos livros mais poderosos e influentes da história da literatura ocidental.

Notas

1 ἀκροαματικά, do verbo ἀκροάομαι, “ouvir”, “escutar”, don- de ensinamentos orais.

2 Ao contrário de Platão, que parece desprezar a escrita (vide principalmente Fedro 275a-276a e Carta VII 341a-d), Aristóteles era um grande amante da leitura —Platão o apelidou de “o leitor”(άναγνώστης) na academia – e teria sido o inventor do que hoje chamamos de “biblioteca”. Segundo Estrabão (séc. I  a.C), ele « foi o primeiro a colecionar livros e teria ensinado os reis do Egito o modo como organizar uma biblioteca.” Sabemos, além disso, que ele possuía uma coleção particular de livros, a qual, mais tarde, colocou à disposição de seus alunos do Liceu.

3 A expressão aparece em vários autores da antiguidade, por ex., Clemente de Alexandria (c. 250 d.C.), aulo Gélio (séc. I  d.C.), Jâmblico (séc. III) e Cícero. Este último refere-se aos escritos “exotéricos”de Aristóteles de modo extremamente elogioso: “flumen orationis aureum fundens “(a cademici Libri 2 119), “dicendi incredibili quadam cum copia tum suavitate “(Topica 1, 3).

4 Cic. Fin. V 5, 12.

5 Em sua Introdução, Paulo Pinheiro comenta brevemente as questões relativas à tradição manuscrita do texto grego. Para uma abordagem ultra detalhada do tema, ver Yebra (1992). Ver também Else (1967) e Eudoro de Sousa (1966). 6 Em sua Introdução à Poética (1966).

7 Comparativamente, a Metafísica tem 114 páginas e a Ética Nicomaqueia 98 páginas. Cf. Whalley (1970, p.77-106).

Referências

ELSE, G. F. (1967). Aristotle Poetics (translated with an introduction and notes). Ann arbor, University of Michigan Press.

RACKHAM, H. H. (1931). Marcus Tullius Cicero. De Finibus Bonorum et Malorum, V 5, 12. Loeb Library. Cambridge, MA.

SOUSA, E. de (1996). Poética  de Aristóteles. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndice. Porto Alegre, Globo.

YEBRA, V. García (1992). ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΟΥΣ ΠΕΡΙ ΠΟΙΗΤΙΚΗΣ. ARISTOTELIS ARS POETIKA. POÉTICA DE ARISTÓTELES. Edición trilíngue. Madrid, Editorial Gredos.

WHALLEY, G. (1970). On translating aristotle’s Poetics. University of Toronto Quarterly, vol.39, n.2, January, p.77-106.

Irley Fernandes Franco – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: irley.franco@gmail.com

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Econômicos – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Econômicos. Coleção. Obras Completas de Aristóteles, Volume  VII – Tomo 2. Introdução, notas e tradução do original grego e latino de Delfim F. Leão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Resenha de: COITINHO, Denis. Revista Archai, Brasília, n.14, p. 155-158, jan., 2015

Qual a relação adequada que deve haver  entre a ética e a economia? Uma relação de subordinação da economia à ética e, assim, os valores  morais serviriam de fundamentação para os valores econômicos ou, alternativamente, economia e  ética não teriam nada em comum, uma vez que  os juízos morais seriam puramente prescritivos  e, por isso, subjetivos e arbitrários, enquanto os  juízos econômicos seriam objetivos por descreverem um certo estado de coisas? Mas, dessa forma, não teríamos um empobrecimento da ciência  econômica? Dados os problemas atuais de crise  financeira global, pobreza, desemprego, impacto  da globalização econômica e crise ambiental, por  exemplo, não seria reducionista tomar a economia apenas como um saber técnico na determinação dos meios necessários ao enriquecimento, tais como os relacionados à produção, distribuição e consumo  dos bens e serviços? Levando em consideração uma visão de economia mais atenta a esses problemas, a relação mais adequada entre as duas disciplinas parece ser a de complementaridade, uma vez que a ética poderia auxiliar à economia na determinação do fim bom para o ser humano, enquanto que a  economia poderia auxiliar na identificação dos meios mais eficientes para a realização desse fim (Ver A. Sen, On Ethics and Economics, Blackwell, 1988, p. 2-7). Esse contexto parece evidenciar a atualidade e urgência do pensamento de Aristóteles, uma vez que ele vincula o saber econômico à ética e à política, com a especificação da vida virtuosa como àquela que deve ser vivida e a eudaimonía como o bem a ser perseguido. Mas qual é a posição aristotélica  a respeito dos meios adequados para a realização desse fim? A obra Econômicos pode nos auxiliar a responder a essa questão. E, mais ainda, penso que ela pode nos ajudar a compreender que a relação  que está sendo proposta é a de complementaridade entre a ética e a economia e não uma relação de total subordinação.

Dito isso, é com enorme satisfação que recebemos a publicação no Brasil dos Econômicos em língua portuguesa. Esta obra pertence ao  corpus aristotelicum e sua datação provável é do último  quarto do Séc. IV e o primeiro do Séc. III AC e,  provavelmente, foi escrita por algum discípulo do Liceu. Importante frisar que, até o presente, só se contava com uma tradução para o vernáculo feita por Moses Bensabat Amzalak, em 1945. Essa publicação faz parte da coleção Obras Completas de Aristóteles, que é organizada pelo Prof. António Pedro Mesquita. Obra originalmente editada pela Imprensa  Nacional – Casa da Moeda em 2004, no quadro do projeto de tradução anotada das Obras Completas de Aristóteles, promovido e coordenado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e subsidiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia. A coleção está sendo adaptada para publicação no Brasil pela Editora Martins Fontes. A edição em questão conta com a tradução, introdução e notas de Delfim F.  Leão, além de apresentar um eficiente glossário dos termos gregos e latinos e índice onomástico no final.

Delfim Ferreira Leão é doutor em filologia  clássica e professor catedrático da Faculdade de  Letras, docente do Instituto de Estudos Clássicos e investigador do Centro de Estudos Clássicos e  Humanísticos da Universidade de Coimbra. É uma importante referência na área dos estudos clássicos, com inúmeras traduções do grego e latim para a  língua portuguesa. Sua tradução ao  Econômicos é segura e competente e adota o texto de Van  Groningen-Wartelle (1968), que também serviu  de guia para boa parte de seu comentário feito na introdução. Além disso, a tradução é enriquecida com esclarecedoras notas de rodapé que ora buscam elucidar o significado das palavras em grego e latim e ora contextualizá-las. Na maior parte das vezes, as notas apresentam a palavra em grego (Livros I e II) e latim (Livro III) do original, o que é muito positivo por situar o leitor na complexidade semântica do texto peripatético e mostrar a escolha de tradução que está sendo adotada. Também é  relevante frisar o acerto no uso da transliteração em caracteres latinos dos termos e expressões  gregos, o que possibilita ampliar o alcance da obra para um público não versado na língua grega, mas que pode ter um interesse especial no tema, tais como estudiosos de teoria política e econômica,  direito, história, filosofia etc. Delfim F. Leão procura destacar em sua introdução os motivos do por que a obra, em que pese seu título, não despertou muito interesse no quadro do debate em torno da economia antiga: “(…) em primeiro lugar, porque o trabalho de Xenofonte constitui um exemplo muito mais significativo da abordagem tradicional (…); em segundo, porque as reflexões feitas nos Econômicos são, apesar de tudo, bastante menos fecundas do que as apresentadas no Livro V da Ética nicomaquéia e no Livro I da Política “(p. VIII).

Em que pese a verdade da afirmação acima, sobretudo por não contar com uma teoria do valor como na Ética Nicomaquéia (EN V, 5, 1133 a 7-18), quero destacar três conceitos chaves que parecem estar pressupostos nas teses apresentadas nos  Econômicos  e que são fundamentais no  corpus aristotelicum. Em primeiro lugar, há uma reflexão teleológica, isto é, se partirá da finalidade do ente para se identificar qual é o seu dever. Aqui o conceito de função (ergon) e natureza parecem ser determinantes na administração da casa, que tem como  centro o homem e a propriedade. Em segundo lugar, a pesquisa em economia parece se fundamentar no conceito de virtude (arete), uma vez que a formação do caráter virtuoso do agente será fundamental para a eficiência econômica. Por último, a finalidade buscada na economia é a autárkeia (autossuficiência) e, assim, o parâmetro normativo da casa é o mesmo que o dos agentes e da comunidade política.

Mas, quais as teses mesmas que são apresentadas nos Econômicos ? No Livro I, já há a tentativa de um enquadramento geral da ciência econômica a partir de uma importante distinção feita entre a economia (oikonomike administração da casa) e  a política (politike administração da  pólis) que  revelará uma certa prioridade da casa frente à pólis:

A pólis resulta, por conseguinte, de um agregado  constituído por casas, terras e bens que seja autossuficiente (autarkes) e capaz de garantir o bem-estar (to eu zen). Essa realidade afigura-se evidente, pois, quando as pessoas não se mostram capazes de atingir aquele objetivo, a comunidade (koinonia) acaba por dissolver-se. (1343 a 10-14).

Assim sendo, há um espaço relevante deixado em aberto para o saber específico da administração da oik îa, que será condição de possiblidade da  política e que se concentrará na investigação dos elementos da casa, a saber, o homem e a propriedade. Nesse livro, teremos por destaque os deveres dos homens para com as mulheres e os escravos  (1343 b 8 – 1344 b 21) e, também, se destacará as funções do senhor da casa no tocante aos bens, consistindo na capacidade de adquirir e manter os bens, além da capacidade de organizar e fazer bom uso das posses (1344 b 22 – 1345 b 4). Isso parece revelar a importância da virtude para a economia. Assim, o que parece ser a tese central nesse primeiro livro é que o caráter virtuoso é peça chave da boa administração da casa. Além de um conhecimento específico ser importante para a vida boa, tal como saber as melhores técnicas de produção, armazenamento, compra e venda, o agente econômico deverá ser um agente moral, no sentido de ter um caráter virtuoso, o que lhe propiciará estabelecer as relações adequadas com os indivíduos (esposa, filhos e escravos), com o trabalho e, também, com os bens.

O papel do Livro II parece ser o de buscar  delinear um enquadramento geral da economia de uma forma mais apropriada e, para tal, estabelecerá uma relação de complementaridade entre a esfera econômica e a esfera ética em razão da importância desses dois saberes para a vida boa: “A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa da forma  correta terá de estar familiarizada com os lugares de que vai se ocupar, ser dotada, por natureza, de boas qualidades e possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e justiça”(1345 b 7-10). Esse livro também distingue quatro formas de economia, a saber, a real (basilike), dos sátrapas (satrapike), política (politike) e individual (idiotike), e trata de alguns dos temas centrais da economia, tais como: cunhagem da moeda, exportação, importação, controle nas despesas, impostos, produção agrícola, comércio, pecuária,  juros, entre outros temas econômicos (1345 b 20 – 1346 a 15). Também, faz uma acurada descrição de casos econômicos bem-sucedidos, apresentando pessoas e cidades que usaram os meios adequados para obter riqueza e administrá-la corretamente  (1346 b 1 – 1353 b 25).

O Livro III reforça a ideia ética já apresentada no Livro I, ressaltando os deveres e sentimentos  necessários do marido para com a esposa e filhos, principalmente, para a obtenção de uma vida bem-sucedida. Em que pese o problema da não conservação do original grego, sendo o texto conhecido por traduções latinas medievais, em especial a translatio Durandi, creio que esse livro tem um importante  papel de reforçar a ideia da necessidade da ética  para a economia. Nele se ressalta a tese da virtude ser necessária tanto para os homens quanto para  as mulheres, uma vez que ambos “são guardiões de interesses comuns”(145 7), além de defender uma divisão de trabalho entre os sexos, sendo a mulher responsável pela administração do interior da casa. Também, a fidelidade aparece como um dever central do marido à esposa em razão dela assegurar a concórdia e a harmonia, isto é, a “sintonia das vontades entre marido e mulher”na maneira de administrar uma casa (146 18).

Creio que a exposição dos principais temas que são tratados nos Econômicos mostra a relevância do pensamento do Estagirita para o atual estágio da  economia, uma vez que está no cerne da discussão contemporânea a tentativa de abordar a ciência  econômica de uma forma menos descritiva e mais prescritiva. Por fim, só resta recomendar vivamente a leitura e esperar que ela possa contribuir com a qualificação do estudo do pensamento aristotélico no Brasil, além de possibilitar o surgimento de  alguma(s) alternativa(s) aos desafios que enfrentamos enquanto coletividade.

Denis Coitinho – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: deniscoitinhosilveira@gmail.com

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