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Historia de la apropiación de la cultura escrita entre el pueblo qom del nordeste chaqueño (1960-1976) | Victoria Soledad Almiron
La vacancia de la temática indígena ha caracterizado por algún tiempo al campo de la historiografía educativa latinoamericana y argentina. Tal vez, porque supone centrarse en sujetos históricamente excluidos de los relatos históricos oficiales. Tal vez, porque la mirada estuvo cierto tiempo focalizada en la escuela, obviando otros modos de educación y, con ello, a sujetos y culturas como la indígena (Cucuzza, 1996, citado en Artieda y Nicoletti, 2017). Aunque se registran avances importantes en las investigaciones sobre educación y pueblos indígenas, Artieda y Nicoletti (2017) plantean que la temática sigue siendo incipiente en el campo de la historiografía educativa argentina, que aún no logra formar parte de relatos históricos mayores, lo cual requiere de tiempo, equipos que lo promuevan y de investigaciones. La tesis que aquí se reseña contribuye a esta línea de investigación, pues busca comprender las modalidades de apropiación de la cultura escrita de los qom del noroeste chaqueño, en un periodo aún poco estudiado que comprende las décadas del sesenta y del setenta. Leia Mais
1913: antes da tempestade – ILLIES (FH)
ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016. 368p. Resenha de: VIEIRA, Vinícius de Castro Lima. Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies. Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.472-477, jan./jun., 2019.
Ao texto de prazer, Roland Barthes, em 1973, propôs uma caracterização como o texto que procura ser desejado pelo leitor, que produz o deleite pelas/das palavras, que contenta pela ironia, pela erudição, pela fineza, pela cultura e pela inovação. Um texto de prazer, e esse é um detalhe crucial, não é aquele necessariamente dedicado a narrar o prazer, não é o pornográfico; o texto de prazer é aquele no qual se regozija pela forma de produção, pelo erotismo das palavras que instigam.
Para mim, não houve possibilidades – e aqui já me entrego de imediato – de ler o livro, 1913: antes da tempestade, de Florian Illies, e não lembrar das palavras de Barthes. Aliás, o prazer do texto no livro de Illies, ao menos nesta edição brasileira, começa – em um oximoro erótico – antes mesmo da leitura: já está encaminhado na belíssima capa estampada pelo quadro Rua à Noite, de Max Beckmann, que envolve o miolo composto por papel off-white de excelente qualidade e com uma agradável composição tipográfica. Por isso, não pretendo aqui fazer apenas comentários críticos sobre o trabalho de Illies, mas também escrever uma resenha que instigue a leitura do livro.
Mas atenção: não é porque o livro de Illies tenha sido um texto de prazer para este leitor, agora alocado na posição de autor, que o será, automaticamente, para outros. Pode ser que alguém sinta um completo enfado pelo livro; como também é possível que eu mesmo, num outro momento, eventualmente não o identifique mais como um texto de prazer. O prazer é individual, presente, momentâneo e efêmero. Como o sentido de um texto que só se completa nas co-criações do leitor, o prazer, por mais que o texto o procure, não está garantido. O prazer existe em função de alguém e é específico de um leitor em um certo momento; afinal, “se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer este é bom, aquele é mau (…). O texto (o mesmo acontece com a voz que canta) só me pode arrancar este juízo, nada objetivo: é isso. E mais ainda: é isso para mim!” (BARTHES, 2009, p. 137).
O livro de Illies cativa pela fina ironia, pelo bom humor, pelo nítido cuidado com as palavras e pelo vasto trabalho de pesquisa. A estrutura narrativa é descontínua, cada capítulo se refere a um mês do ano de 1913 e é subdividido em pequenas seções. Isso não impede, contudo, a percepção e o acompanhamento do transcorrer de determinadas situações, casos e conflitos ao longo do ano. Dessa forma, o livro pode ser apreciado em vários regimes de leituras, dentre os quais dois se destacam: o primeiro seria o da leitura fragmentária, mais interessada nas crônicas envolventes do cotidiano de personagens admiráveis como Rilke, Picasso, Kafka, Schiele, Freud e Schönberg; o segundo seria o da visão totalizante, que permite a percepção de uma espécie de zeitgeist do modernismo europeu no início do século XX. Evidentemente, esses regimes de leituras são mais complementares do que excludentes.
A nacionalidade alemã, a formação em história da arte e a atuação profissional como marchand de arte e jornalista cultural, são aspectos biográficos e profissionais de Illies que ajudam a compreender alguns desses encaminhamentos narrativos, como a natureza jornalística da prosa curta, direta e objetiva e, também, o decalque no destaque evidente ao mundo artístico-cultural germanófono.
Em 2000, o nome de Illies já havia reverberado bastante na intelectualidade alemã com a publicação de seu primeiro livro, Generation Golf, em que fazia uma análise de sua própria geração, nascida nos anos 1970 e modelada no transcorrer das duas décadas seguintes. Não foi por acaso, portanto, que 1913 se tornou um sucesso de crítica e de vendas logo após o seu lançamento, em 2012, na Alemanha; sendo, posteriormente, traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e português. O livro chegou ao Brasil, em 2016, numa edição publicada pela editora Estação Liberdade, com tradução de Silvia Bittencourt e sob auspícios do Ministério das Relações Exteriores alemão.
Ao final da leitura de 1913, fica uma certa impressão de que este ano foi arrebatador, repleto de eventos inaugurais que seriam emblemáticos durante um longo período. Para me ater apenas a exemplos integrantes do inventário de Illies, poderia citar: o início da operação da primeira linha de montagem nas fábricas da Ford; a inauguração dos 57 andares do edifício Woolworth, em Nova Iorque, assumindo o posto de mais alta construção do mundo naquele momento; a publicação do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, marco da literatura modernista; as primeiras audições públicas de Canções de Guerre e de Sagração da Primavera, obras-primas de Schönberg e de Stravinsky, respectivamente; o retorno de Mona Lisa ao Museu do Louvre, dois anos depois de ter sido roubada; a realização da exposição Armory Show, que consolidaria a hegemonia do modernismo nas artes; a circulação do primeiro número da revista Vanity Fair entre muitas outras coisas. Tudo isso em 1913.
Ora, se for feito um levantamento tão detalhado quanto o de Illies para outros anos do último século, talvez se chegue a impressões similares de importância, de efervescência e de singularidade. O diferencial do ano de 1913 é especialmente definido pelo que se segue, pois o desenvolvimento econômico-tecnológico, a agitação cultural e, até mesmo, um certo chacoalhar nos costumes ocorre às vésperas da Primeira Guerra Mundial. E isso se torna ainda mais peremptório na narrativa de Illies por não haver indícios no cotidiano das pessoas de apreensão, medo ou desconfiança generalizados para com o futuro.
Evidentemente, as pessoas, em 1913, não poderiam conhecer a “tempestade” que lhes aguardavam; sobretudo porque as experiências traumáticas da Primeira Guerra Mundial estavam tão recheadas de ineditismo que não seria viável nem mesmo vislumbrá-las no horizonte de expectativas. A clivagem que a grande guerra mundial operou no espaço de experiências daquela geração permite que nós, hoje, retrospectivamente, compreendamos como foi possível a formulação de certos prognósticos, como o de David Starr, presidente da Universidade de Stanford em junho de 1913: “A grande guerra europeia, uma ameaça eterna, jamais chegará. Os banqueiros não arranjarão o dinheiro para tal guerra, a indústria não a manterá, os estadistas não terão como levá-la a cabo. Não acontecerá nenhuma grande guerra” (STAR apud ILLIES, 2016, p. 177); ou mesmo o de Lênin, em março desse mesmo ano: “Uma guerra entre a Áustria e a Rússia seria muito útil para a revolução na Europa Ocidental. Todavia, é quase impossível imaginar que Francisco José e Nicolau nos façam este favor” (LÊNIN apud ILLIES, 2016, p. 89).
Essa percepção de que a grande guerra mundial não estava inserida no campo das probabilidades, em 1913, emerge no olhar microscópico lançado por Illies sobre o período. Um olhar que focaliza o cotidiano de determinados integrantes – ou daqueles que viriam sê-los, em breve – das elites culturais, políticas, intelectuais, acadêmicas e científicas do continente europeu, em especial, das “capitais do modernismo” – Viena, Paris, Berlim e Munique. Illies pouco ou nada nos diz sobre os pobres e os camponeses europeus, nem sobre o cotidiano nos trópicos ou nos continentes asiático e africano. Um historiador, por outro lado, que empregasse um olhar instrumentalizado pelo telescópio1, sobre o mesmo período, talvez pudesse afirmar, pautado em elementos – que o próprio Illies menciona – como o aumento dos gastos militares, o incremento no contingente do exército austro-húngaro ou o aumento das tensões políticas nos Balcãs, que já estaria sendo tramado um cenário de guerra. E, assim, estaríamos diante de um bom exemplo das variações interpretativas proporcionadas pelos chamados jogos de escalas (REVEL, 1998).
Porém, Florian Illies não é esse historiador, não é essa sua intenção, nem, muito menos, é esse o seu olhar. Ele prefere nos deliciar com as intimidades da vida dos outros. Prefere nos contar a ida de Hitler para a Alemanha, em maio, fugindo do recrutamento do exército austríaco; a intensa paixão do feioso Oskar Kokoschka com a belíssima Alma Mahler, que lhe promete casamento se ele pintar uma “grande obra-prima” (ILLIES, 2016, p. 138); a apreensão de Freud para o encontro com seu ex-colaborador Jung, no IV Congresso da Associação Psicanalítica; e as indecisões de Kafka, suas “gagueiras por escrito” (ILLIES, 2016, p. 191), nas cartas trocadas com sua amada Felice Bauer.
Aliás, Kafka é um dos personagens mais proeminentes da narrativa de Illies e merece aqui um comentário mais detido. Quando finalmente consegue se decidir, um dos maiores escritores do século XX, pede Felice Bauer em casamento de uma forma no mínimo sui generis. Escreve Kafka: […] pondere Felice, diante desta incerteza é difícil pronunciar as palavras e também deve ser estranho ouvi-las. Ainda é cedo demais para dizer. Mas depois será tarde demais, não haverá mais tempo para discutir essas coisas, como você menciona na última carta. Mas não há mais tempo para hesitar demais, pelo menos é o que sinto, e por isso pergunto: dadas as condições acima, difíceis de eliminar, não quer pensar em se tornar a minha esposa? Você quer isso? […] Considere, Felice, as mudanças que se sucedem conosco em um casamento, o que cada um perderia, o que cada um ganharia. Eu perderia a minha solidão, assustadora na maioria das vezes e ganharia você, a quem amo acima de todas as pessoas. Você, porém, perderia a vida que tem agora, com a qual tem estado quase inteiramente satisfeita. Perderia Berlim, o escritório de que tanto gosta, as amigas, os pequenos prazeres, a perspectiva de se casar com um homem saudável, alegre e bom, de ganhar filhos bonitos e com saúde, algo que você, pense bem, realmente almeja. No lugar destas perdas incalculáveis, você ganharia uma pessoa doente, fraca, insociável, taciturna, triste, inflexível e quase sem esperança (KAFKA apud ILLIES, 2016, pp. 191-192).
Illies então segue, comentando ironicamente, “Quem não diria sim imediatamente? Um pedido de casamento em forma de admissão de falência” (ILLIES, 2016, p. 192).
Tudo bobagem, poderiam dizer os estudiosos presos à ortodoxia de uma história estrutural desencarnada. Mas acho que a essa altura já está bastante evidente que as miudezas, as de Illies aqui, em particular, podem municiar importantes reflexões. Se ainda não estiver, vamos a um exemplo ainda mais claro.
Um exemplo de reflexão teórico-conceitual que o livro de Illies encaminha aparece bem localizado no início do capítulo dedicado ao mês de março e diz respeito à importância em conferir uma dimensão histórica ao conceito de moderno. Como sabemos, o que é tomado, proposto e entendido como moderno, em uma determinada época, é objeto de disputa, envolvendo, em alguns casos, passado e presente, tradição e ruptura. À cada geração, ao menos desde meados do século XIX, o que é identificado como moderno é redefinido constantemente, de modo a consolidar o rompimento com parcelas de um passado e ser associado às experiências presentes. Toda essa reflexão é belamente ilustrada por Illies a partir do relato das relações do crítico de arte Julius Meier-Graefe com as vanguardas artísticas: Sempre assistimos, espantados e admirados, a como os propagandistas mais impetuosos da vanguarda têm olhos apenas para aquela única revolução artística. Quando chega a geração seguinte, disposta a fazer a última vanguarda parecer antiquada, a perícia, o discernimento, o “olho” firme muitas vezes não funcionam mais. É o caso aqui. Meier-Grafe, que por iniciativa própria abrira os olhos dos alemães para Delacroix e Corot e Cézane e Manet e Degas e muitos outros, está sentado na casa de campo em Berlim-Nikolassee e escreve, impassível, a sentença: “Frente ao nome de Picasso, o historiador do futuro ficará paralisado e constatará: aqui se chegou ao fim”. Ponto. Inimaginável que, depois da destruição das formas do cubismo, seja possível seguir em frente. O grande autor, talvez o estilista mais ardente da crítica de arte do século, um mestre em narrar a “evolução” da arte, agora a enxerga, sobriamente, chegando ao fim. Lá, no mesmo ponto em que hoje enxergamos seu início (ILLIES, 2016, p. 87).
É preciso, ainda, fazer três comentários sugestivos e críticos sobre aspectos formais do livro, dois deles de responsabilidade do próprio autor e o outro me parece que mais específico à edição brasileira. Primeiramente, a ausência de indicações precisas das referências das fontes, ao meu olhar viciado de historiador, incomoda bastante. A lista das referências bibliográficas que segue ao final do livro é muito geral e não ajuda muito outros pesquisadores que eventualmente quiserem desenvolver ou mesmo checar algumas informações citadas por Illies. Certamente, o autor e os editores optaram por suprimir as notas de rodapé para favorecer a fluidez do texto, mas, ainda sim, poderiam ter se valido das notas de fim, com as quais obteriam efeito parecido, sem comprometer o rigor. Outra carência importante é a de um índice remissivo. Como são muitos nomes citados inúmeras vezes, esse índice, provavelmente, seria gigantesco, porém ajudaria os pesquisadores, estudantes e mesmo os curiosos com interesses mais específicos, a identificar os momentos exatos em que cada personagem é mencionado. Não posso deixar de sinalizar, por fim, os problemas de ortografia e de digitação que a edição brasileira apresenta. Para me bastar no mais grosseiro, o nome de Virginia Woolf aparece, ao menos três vezes, erroneamente grafado como “Virgina”. Detalhe que não anula a qualidade do livro, mas que precisará ser objeto de uma revisão mais cuidadosa em futuras reedições.
Estamos, portanto, diante de uma obra que tem méritos, defeitos e limitações, mas que consegue, antes de tudo, despertar o interesse do leitor pelo período e pelo desenrolar do próprio livro. Illies escolhe tão bem as palavras que nos deixa em dúvida se lemos num único fôlego para conhecer os desfechos de todas aquelas situações ou se diminuímos o ritmo para desfrutar pausadamente das imagens produzidas pela narrativa. E, ainda assim, no final, ficamos curiosos dos destinos das vidas ali narradas, desejosos de perceber de que modo a grande guerra alterou aqueles cotidianos e produziu outras sociabilidades, apreensões e “normalidades”. Por isso, seria formidável se Illies nos presenteasse com um 1915 ou um 1918. Enfim, foi ótimo para mim. Espero que para vocês também seja.
Notas
1 Quando me refiro aos olhares telescópicos e microscópicos faço alusão ao comentário de José Gonçalves Gondra sobre o trabalho de Jacques Revel. Sobre esse tema, consultar: GONDRA, 2012; REVEL, 1998.
Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 2009.
ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016.
GONDRA, José. Telescópios, microscópios e incertezas: Jacques Revel na história e na história da educação. In.: LOPES, Eliane; FARIA FILHO, Luciano (Org.). Pensadores sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. v. 2.
REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
Vinícius de Castro Lima Vieira – Mestre em História Política pela UERJ, Rio de Janeiro-RJ, e doutorando em História Política na mesma instituição. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES). E-mail: vinicius.vieira@folha.com.br.
[IF]How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves – DAVIS (REF)
DAVIS, Kathy. How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves. Durham and London: Duke University Press, 2007. Resenha de: VEIGA, Ana Maria. Uma viagem transnacional do feminismo: outra lente para a história. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.
A historiadora holandesa Kathy Davis compartilha no livro How Feminism Travels across Borders, de maneira autêntica e singular, os resultados de uma ampla pesquisa que buscou abordar a circulação das teorias feministas sobre a saúde da mulher, com a obra que se tornou best seller dentro e fora dos Estados Unidos na década de 1970 e manteve essa posição até o final dos anos 1980, Our Bodies, Ourselves.
Davis, que é pesquisadora sênior do Research Institute for History and Culture na Utrecht University, na Holanda, analisa essa obra estadunidense de maneira crítica e com um distanciamento necessário. Sua proposta foi observar o modo como o livro “viajou” por diversos países – foi traduzido para mais de 30 idiomas – e as implicações dessa viagem na maneira de se pensarem o conhecimento feminista e as políticas de saúde em um mundo “globalizado”. Ela percebe a produção e a recepção do livro como uma teoria que transita entre as especificidades de um contexto mundial e nos conta que Our Bodies, Ourselves surgiu da compilação das discussões sobre “as mulheres e seus corpos” em encontros pontuais que aconteceram em diversos países, no final dos anos 1960, promovidos pelo grupo Boston Women’s Health Book Records – BWHBC. O resultado foi um manual com relatos de experiências pessoais e informações úteis a respeito da saúde das mulheres.
Editado em 1970, Our Bodies, Ourselves passou por diversas traduções e reedições, a última em 2005. De acordo com a autora, nesse ano já havia vendido mais de quatro milhões de exemplares (quatro vezes mais do que O segundo sexo, de Simone de Beauvoir), tornando-se uma obra de popularidade única na história do feminismo. Sua função principal, além do esclarecimento, teria sido a de desafiar os dogmas médicos sobre os corpos das mulheres, sendo denominado a “bíblia da saúde das mulheres”.
A interpretação de Davis é apresentada em três partes, que dimensionam a elaboração da obra e suas viagens a outras localidades; as políticas feministas de conhecimento, com o empoderamento que elas trazem; e a política transnacional do corpo, com uma crítica aos padrões ditados por modelos médicos pretensamente hegemônicos, mas também a um modelo de feminismo considerado imperialista.
Por meio de entrevistas, com o apoio das ferramentas da história oral e no campo da teoria feminista transnacional, a pesquisa foi realizada principalmente nos Estados Unidos, contando com depoimentos da maioria das autoras do livro, que formavam na época (1969) o grupo de Boston. Além disso, Kathy Davis promoveu encontros de discussão com um grupo de tradutoras da obra para os mais diversos idiomas. Assim, pôde analisar de que maneira o livro foi adaptado às necessidades específicas de cada país ou de cada região aonde chegava. Certamente não era possível prever uma aceitação das ideias que circulavam entre as feministas estadunidenses naquele momento por mulheres situadas na Ásia ou no Oriente Médio, lugares aonde a obra também chegou, principalmente no que se referia às questões sobre aborto e direitos reprodutivos.
Davis informa que o Brasil é um dos países que aguarda a tradução e que a adaptação mais próxima é a versão feita na Espanha, Nuestros cuerpos, nuestras vidas, já que a versão latino-americana acabou ficando incompleta e não chegou a ser editada devido a conflitos regionais. As editoras e as tradutoras locais não achavam possível pensar uma unidade do contexto latino-americano, alegando que não seria o mesmo traduzir o livro para uma mulher nicaraguense da periferia ou para uma mulher da classe média argentina. As especificidades nas traduções que a autora aponta nos sugerem que a distância cultural faz toda diferença para a leitura e a compreensão da obra, moldada mas também subvertida em cada situação.
Um aspecto interessante da análise proposta pelo livro How Feminism Travels across Borders é a compreensão de como as políticas de localização puderam gerar diferentes visões sobre a história, o conhecimento e as práticas feministas, e as possibilidades e os limites de alianças políticas entre mulheres de dentro e de fora dos Estados Unidos, país tido como missionário das ideias imperialistas. Com isso, aparece a crítica a Robin Morgan, que idealizou e organizou o livro Sisterhood is Global1 em 1984, com a proposta de alcançar um “feminismo global”. Davis contrapõe a essa perspectiva a ênfase na localização, que faz um movimento para fora das histórias lineares do feminismo no intuito de explorar como ele emerge, muda, viaja e se traduz em diferentes contextos espaciais e temporais. Dessa forma, a autora busca tornar visível o significado histórico do livro, tomando como paradigma de sua crítica o que chamou uma “história transnacional”, situada no contexto de um mundo em processo veloz de globalização.
O historiador e sociólogo francês Roger Chartier é peça importante nessa discussão, trazendo a noção da leitura como apropriação da obra original e todas as possibilidades que essa troca direta pode proporcionar. Para ele, é necessário que se reconheça a pluralidade das leituras possíveis de um mesmo texto, em função das disposições individuais, culturais e sociais de cada um dos leitores.2
No caso de Our Bodies, Ourselves, o livro pôde fazer-se e refazer-se seguindo as indicações das próprias leitoras, que escreviam para as autoras permitindo a elas acrescentar ou reelaborar informações e narrativas de experiências. Portanto, mulheres lésbicas, idosas, portadoras de deficiência ou com outras necessidades específicas foram sendo incluídas nas novas edições. Kathy Davis aponta a obra como um elemento móvel, um “documento vivo” atuando na constituição de sujeitos feministas em diferentes localizações, não como um material de consumo.
Outras autoras têm construído reflexões sobre as circulações e as viagens das teorias, buscando compreender as dinâmicas do feminismo transnacional. No campo dos estudos pós-coloniais encontramos o trabalho de Cláudia de Lima Costa, com a proposta similar à de Davis de se olhar para o feminismo como uma teoria que viaja, dentro do que esta última chamou de “projeto epistemológico feminista”. Costa propõe pensarmos sobre a circulação de teorias dentro do campo feminista, levando em conta o trânsito entre o hemisfério norte, tradicionalmente visto como emanador, e o hemisfério sul das Américas, que seria o receptor das teorias.3
Como contraponto a esse argumento, Adriana Piscitelli fala sobre a hierarquização evidenciada por ele e mostra que é preciso ter atenção quanto à apropriação de concepções feministas fora do âmbito em que elas se desenvolvem, pois as referências externas podem obscurecer a compreensão de como operam as práticas locais.4
Cláudia de Lima Costa aponta a tradução cultural como um espaço privilegiado para se elaborarem análises críticas sobre a política de representação e as assimetrias entre linguagens no deslocamento das teorias feministas por espaços geopolíticos diferentes.5
María Luisa Femenías e Nelly Richard colaboram com esse debate, valorizando as reflexões produzidas pelas feministas em âmbito local e a não subordinação às ideias que chegam por meio dos materiais estrangeiros. Para Femenías, o “lugar de apropriação” que resulta do traslado das teorias fratura, de maneira decisiva, o discurso original, permitindo uma revalorização e uma ressignificação contextualizada.6
Nelly Richard também discute a questão da apropriação das teorias dos chamados países do “centro” por aqueles considerados de “periferia”. Para ela, as operações de códigos das práticas subalternas reinterpretam e criticam hibridamente, a partir do seu interior, os signos da cultura dominante. A autora ataca e desconstrói os argumentos das feministas dos países do norte, que apontam para a divisão entre a teoria produzida por elas e a experiência compartilhada pelas latino-americanas. De acordo com Richard, muitas teóricas escrevem a partir de elaborações formuladas por mulheres latino-americanas, consideradas incapazes para a produção teórica.7
Kathy Davis, com sua interpretação sobre o fazer-se do livro Our Bodies, Ourselves, situa-se em confluência com a crítica suscitada por esse debate e termina o livro com reflexões a respeito da postura das feministas estadunidenses, que veem o feminismo como um produto de seu país. A autora contrapõe o que chamou de declínio da “segunda onda branca” com a ascensão de um feminismo multirracial. Para ela, o livro mostra que o feminismo não está limitado aos Estados Unidos e ganha mais força fora de lá, enriquecido pela multiplicidade de contextos.
Davis apresenta uma pesquisa de fôlego e relevância para os campos dos estudos feministas, da teoria feminista transnacional, da história cultural e, também, dos estudos póscoloniais (que recebem da autora uma crítica importante por reforçar a ênfase nas sociedades do chamado Primeiro Mundo).
O título How Feminism Travels across Borders – The Naking of Our Bodies, Ourselves nos faz pensar sobre o tipo de fronteira (border) ao qual a autora se refere, uma vez que as fronteiras territoriais geográficas estão sendo cada vez mais apagadas pelos movimentos transnacionais, como é o feminismo, ele próprio situado num espaço “entre-fronteiras”, a princípio marginalizado, atualmente problematizado com interesse por diversos campos, dentro e fora da academia. De qualquer maneira, o livro de Kathy Davis abre outras perspectivas para pensarmos a história do feminismo de modo mais amplo e torna-se leitura indispensável para quem se interessa por quaisquer dos campos mencionados.
Notas
1 Robin MORGAN, 1996.
2 Roger CHARTIER, 2001.
3 Cláudia de Lima COSTA, 2004.
4 Adriana PISCITELLI, 2005.
5 COSTA, 2003.
6 María Luisa FEMENÍAS, 2006.
7 Nelly RICHARD, 2003.
Referências
CHARTIER, Roger. “Do livro à leitura”. In: ______ (Org.). Práticas da leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 77-105. [ Links ]
COSTA, Cláudia de Lima. “As publicações feministas e a política transnacional da tradução: reflexões do campo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v. 11, n. 1, p. 254-264, 2003. [ Links ]
______. “Feminismo, tradução, transnacionalismo”. In: COSTA, Cláudia de Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Org.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 187-196. [ Links ]
FEMENÍAS, María Luisa. “Afirmación identitaria, localización y feminismo mestizo”. In: ______ (Comp.). Feminismos de París a La Plata. Buenos Aires: Catálogos, 2006. p. 97-125. [ Links ]
MORGAN, Robin (Ed.). Sisterhood is Global – The International Women’s Movement Anthology (1984). 2. ed. New York: The Feminist Press at The City University of New York, 1996. [ Links ]
PISCITELLI, Adriana. “A viagem das teorias no em-bate entre práticas acadêmicas, feminismos globais e ativismos locais”. In: MORAES, Maria Lygia Quartim de (Org.). Gênero nas fronteiras do sul. Campinas: Pagu; UNICAMP, 2005. p. 143-163. [ Links ]
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: UFMG, 2003. [ Links ]
Ana Maria Veiga – Universidade Federal de Santa Catarina.