Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares

A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.

Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.

Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.

Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.

Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.

A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.

Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.

O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.

Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.

Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.

O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.

No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.

Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.

Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.

Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.

A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.

O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.

Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.

A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.

Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.

Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.

Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.

O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.

O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.

A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.

O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.

Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.

Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: diorio@usp.br


ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.

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O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira – CUNHA JUNIOR (RBHE)

CUNHA JUNIOR, Carlos Fernando Defferira da. O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. Resenha de: GOELLNER, Silvana Vilodre; CARVALHO, Marco Antônio Ávila de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

Elaborado tendo como ponto de partida a tese de doutoramento em educação produzida pelo autor, o presente livro percorre os corredores e arredores de uma tradicional instituição escolar no período compreendido entre 1837 e os anos finais do Império. Suas páginas permitem identificar rastros de um modo de educar os jovens da elite imperial brasileira cujo objetivo primeiro estava direcionado para a formação da boa sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma obra ímpar cujas fontes arroladas fornecem dados fecundos para melhor conhecermos a atmosfera político-intelectual de um período no qual se buscava a formação dos corpos e sub­jetividades de homens representados como potenciais dirigentes do mundo imperial.

O livro é dividido em cinco capítulos. No primeiro deles, no qual o foco é a constituição do quadro de profissionais que atuavam no Colégio Pedro II(CPII), Carlos Fernando desenvol­ve uma interessante narrativa ao destacar os atributos, valores, funções e responsabilidades necessárias para tornar-se, tanto um professor, como um inspetor de alunos. Boa formação acadêmi­ca, erudição e notoriedade revelam-se como alguns dos critérios basilares para a contratação de docentes; já para os inspetores, exige-se o nível de instrução/formação com domínio de língua estrangeira bem como uma moral ilibada. Aos docentes cabia a tarefa não só de ensinar aos alunos as Letras e as Ciências como, também, lembrá-los de seus deveres perante Deus, Pais, Pátria e Governo. Aos inspetores, responsáveis pela ordem, disciplina e preservação da moral, era indicada a missão de vigiar, controlar e cuidar da boa conduta dos colegiais, assim como zelar pelo seu bom proveito nos estudos.

Ao dialogar fontes de diferente natureza (regulamentos, atas, ofícios, entre outras), Carlos Fernando faz ver que esse “perfil ideal” nem sempre era aquele que compunha o quadro profissional da instituição pois, não raras vezes, se depara com reprimendas e exonerações decorrentes de atitudes consideradas não apropriadas. Com relação aos docentes, identificou registros que apontavam para a falta de assiduidade, ofensas à moral e corrupção; no que respeita aos inspetores, além dessas falhas percebeu, ainda, denúncias con­tra mau tratamento aos alunos, bigamia e sodomia. Atos estes que feriam, sobremaneira, os princípios cristãos, a moral elevada e a construção da masculinidade desejada no e pelo Colégio.

Projetado para formar um determinado modelo de homem: “fiel, honrado, culto, disciplinado, católico e eloquente” (p. 37), o CPIInão aceitava mulheres como alunas nem mesmo integran­do o seu quadro profissional. O processo de masculinização lá desenvolvido deveria seguir regras viris evitando, sobretudo, a contaminação pela feminilidade. Nesse sentido, como afirma o autor, ao dificultar o ingresso das jovens ao universo letrado, “os dirigentes imperiais preservavam o monopólio do poder público dos negócios, da política e do poder em suas próprias mãos, ou seja, sob o controle masculino” (p. 47).

O segundo capítulo é dedicado a identificar o perfil dos alunos que ingressavam no Colégio considerando dois fatores: a origem socioeconômica e a naturalidade dos estudantes. Da análise docu­mental empreendida, o autor indica a existência de vários critérios tanto para o ingresso quanto para a permanência na instituição, o que não significa desconhecer que existiam, também, alguns apa­drinhamentos e predileções. Para entender essa afirmação deve-se levar em conta que, em função dos custos, apenas uma minoria da população poderia ter seus filhos matriculados no Colégio da Corte, reduzindo, sobremaneira, a formação da elite.

Ao desenvolver seus argumentos, Carlos Fernando destaca a existência de duas classes de alunos: Internato e Externato, explicitando ser a segunda delas a mais “acessível” às classes menos favorecidas. Nos primeiros anos após 1857, percebeu um significativo aumento no número de matrículas de alunos exter­nos e internos e um indício de que, pelo menos no Externato, esse acréscimo deu-se em função de um corte nas aulas avulsas de instrução pública secundária que eram ministradas na cidade do Rio de Janeiro. A diminuição da oferta de vagas dificultou a aquisição de conhecimentos mínimos por parte dos jovens menos favorecidos, razão pela qual, muitos dos alunos que ingressavam no Externato, frequentavam apenas os primeiros anos, o que era suficiente para realizarem os exames preparatórios. Em decorrência dessa situação, ainda que houvesse a presença de alunos vindos das escolas públicas, o ensino ministrado no CPII, acabou por facilitar o acesso ao ensino superior apenas para filhos da boa sociedade imperial.

Com relação à naturalidade e à carreira seguida pelos cole­giais após concluírem seus estudos, o autor aponta que a grande maioria dos alunos era natural do próprio Rio de Janeiro, fazendo ver que o CPII destinava-se, prioritariamente, à formação dos fi­lhos dos Saquaremas, grupo que circulava na Corte e região. Para analisar as atividades profissionais daqueles que ingressaram nas Academias Superiores, utilizando-se de um método semelhante ao de José Murilo de Carvalho (1980), Carlos Fernando destaca três grandes grupos: Governo: profissionais ligados ao Estado imperial e ocupantes de cargos políticos; Profissões liberais: médicos, advogados, poetas, jornalistas e engenheiros que não tinham relação profissional com o Estado imperial; e Economia: proprietários rurais, negociantes, comerciais e banqueiros. Revela, ainda, uma alternância na predileção da carreira a ser seguida, inicialmente voltada para o Governo e, partir de 1870, para as Profissões liberais. Essa alteração, segundo o autor, proporciona a formação de uma outra elite, menos comprometida com os in­teresses dos Saquaremas e, de certa forma, menos interessada nas ocupações do governo imperial. Esse período coincide, também, com as influências positivistas sofridas pelo Colégio, onde houve a abertura de espaços para uma maior divulgação e aplicação de conhecimentos de cunho científico.

O capítulo 3, inicia com uma descrição do entorno do CPII: a cidade do Rio de Janeiro, o crescimento populacional, o comér­cio, a urbanização, o sistema sanitário etc. A partir de relatos de professores e alunos, o autor expõe, também, as características estruturais do Colégio, a divisão de sua sede, o interno de seus prédios cuja precariedade acabou sendo evidenciado pela imprensa local. Precariedade essa que parece explicar os poucos registros iconográficos da instituição, uma vez que revelar suas deficiências poderia macular a imagem que se queria construir do Colégio como um símbolo da educação pública no Império.

Apesar dessa contextualização, o foco de análise recai em dois espaços que poderíamos denominar de lugares da memória: a cafua e o Salão Nobre. Carlos Fernando chama a atenção para esses espaços por perceber que é neles que se desenvolvem os minucio­sos e sutis processos de educação do corpo e do caráter revelado na aplicação das punições e recompensas. A cafua era destinada àqueles que não cumprissem as normas vigentes na instituição; já o Salão Nobre era ocupado pelos melhores alunos, o local no qual recebiam prêmios, destaques, honrarias e visibilidade. Ambiência simbólica construída a partir de dicotomias entre “o escuro e o luminoso; o fechado e o aberto; o escondido e o visível; o sujo e o limpo; o privado e o público; o vergonhoso e o célebre” (p. 85). Enfim, espaços pedagógicos nos quais aplicavam estratégias disciplinares que educavam para a formação de homens da boa sociedade brasileira.

No quarto capítulo, o autor analisa a instrução ministrada no CPII, instituição construída como modelar do governo imperial. Perscruta os planos de ensino, o projeto pedagógico, os decretos, as disciplinas ministradas e os conhecimentos valorizados, dentre os quais destacam-se, até o final da década de 1860, as letras clássicas e o ensino religioso. Essa orientação pedagógica, gradativamente, começa a perder força, cedendo espaço para a afirmação de uma cultura mais racional e científica, peculiar ao movimento positivista e à instauração da República. Oconhecimento, antes centrado nas letras, voltou-se também para o científico, o que não significa afirmar que a instituição tenha adotado uma função propedêutica destinada a preparar candidatos para os cursos superiores. Pela sua história e configuração, o Colégio da Corte era identificado como um local a formar e recrutar a elite nacional, “local em que os virtuais dirigentes imperiais deveriam aprender mais do que o conhecimento exigido nos preparatórios, mas um amplo conjunto de saberes, vivências e atividades” (p. 103).

Aprendizado esse que passaria pela educação do corpo, con­forme podemos observar no quinto e último capítulo. Nele ganha destaque a gymnastica, introduzida no Colégio em 1841, sob a orientação Guilherme Luiz de Taube, ex-Capitão do Exército Im­perial. Nos documentos analisados é recorrente a ideia de que a adoção da ginástica inspirava-se nos colégios europeus, nos quais tal prática era recorrente e recomendada como um importante elemento de educação da juventude.

Conhecida como científica, a ginástica ali aplicada estava pautada pelo modelo médico-higienista, oriundo da tradição eu­ropeia, a qual consolidou-se como um meio de controle social, de formação moral e disciplinar, de regeneração e aperfeiçoamento da raça, de construção de um sentimento de identidade nacional, de desenvolvimento e aprimoramento do físico e da saúde. Prática regular no CPII, este capítulo focaliza a gradativa consolidação deste elemento da cultura corporal no qual são evidenciados os seus principais mestres, os dias e horários das aulas, a construção do ginásio e do pórtico de ginástica, o regulamento que a oficiali­za, os planos de ensino e seus conteúdos, enfim, o seu acontecer dentro da instituição.

Inspirada inicialmente pela conduta militar, a ginástica passa a ser justificada e incentivada na sociedade brasileira em função de argumentos de ordem médica e higiênica, visto que a ciência positiva estava a alastrar-se e, com ela, a ideia de que a construção de um corpo forte e sadio seria obtida mediante a prática sistemática de exercícios ginásticos. Vale ressaltar, conforme aponta Carlos Fernando, que a ginástica desenvolvida no interior do CPIInão esteve orientada apenas por uma escola ou método. Da análise das fontes emergiram diálogos entre autores de diferentes tradições indicando certo ecletismo no seu fazer dentro do Colégio da Corte, ora ressaltando a prática da esgrima, ora de exercícios oriundos da escola francesa ou, ainda, outras filiações compondo, assim, um modo de educar o corpo masculino e, por consequência, de formar a elite imperial brasileira.

Feita essa síntese, gostaríamos de registrar que, muitas são as razões pelas quais a leitura desse livro é tarefa necessária e, diríamos também, prazerosa para quem se interessa pela história da educação no Brasil. Afora o fato de tratar-se de uma importante e tradicional instituição tomada como referência para tantas outras, o desenho metodológico e a densidade teórica aqui presentes mostram-se exemplares para investigações dessa natureza. A produção das fontes e os diálogos estabelecidos entre elas, a urdidura da trama e a construção narrativa proposta por Carlos Fernando são revela­dores de um investimento pessoal e, também, coletivo na medida em que indica novas abordagens sobre temas e fontes já outrora visitados. É exatamente esse tom que nos permite, ao folhearmos suas páginas, sentir os cheiros e as texturas, ouvir as vozes e os sussurros dos corredores e arredores do Imperial Collegio Pedro II. Ao tocar nossa sensibilidade, identificamos vestígios de um projeto político-pedagógico de educação da elite cujo desenrolar promoveu encantamentos e desencantos, liberdades e interdições. E, nesse sentido, não há como ler esse livro sem lembrar de O Ateneu, obra magistral de Raul Pompéia publicada em 1888, cuja narrativa focaliza uma instituição escolar destinada a formar meninos da e para a boa sociedade brasileira. Resguardadas as especificidades de cada um dos livros, vale lembrar a retórica de Aristeu Argolo dos Santos, seu diretor, quando relata o árduo trabalho de educação da mocidade:

Um trabalho insano. Moderar, animar, corrigir esta massa de carac­teres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e enca­minhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos precocemente; prevenir a corrupção; desiludir aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; descon­fiar das hipocrisias. Ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança para depois duvidar; punir para pedir perdão depois… (…) não é o estudo dos rapazes a minha preocupação… É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade! [Pompéia, 1967, p. 30]

Sem pretender analisar o componente da imaginação e da ficção presentes na obra literária e na investigação historiográ­fica, importa identificarmos o Ateneu e o Colégio Pedro II como instituições escolares destinadas à formação da elite Oitocentista. Ou melhor, a elite masculina, a qual se inferia a expectativa de representar, nos corpos e subjetividades de seus integrantes, um modo viril e qualificado de ser, atributos considerados necessários a futuros dirigentes. Por fim, os vestígios revisitados por Carlos Fernando permitem que, em pleno início do século XXI, possamos compreender o conselho de Aristarco aos ingressantes no Ateneu “faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se” (idem, p. 37). Palavras essas também pronunciadas e ouvidas nos corre­dores e arredores do Imperial Collegio Pedro II.

Referências

Carvalho, J. M. de. A construção da ordem – a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

Pompéia, R. O Ateneu. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1967.

Silvana Vilodre Goellner –  E-mail: goellner@terra.com.br.

Marco Antônio Ávila de Carvalho

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