Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social – VIEIRA (EL)

VIEIRA, Júlia Lemos. Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social. São Paulo: Anita Garibaldi & Fundação Maurício Grabois, 2017. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v 4, n. 6, 193-196, jun./nov., 2019.

O livro Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social de Júlia Lemos Vieira é um livro inédito que descreve a biografia intelectual libertária e democrática do chamado jovem Marx até seu ingresso, e mesmo durante,  a chamada fase da maturidade. O livro é resultado da Tese de Doutoramento em Filosofia da autora na Usp em 2014 sob a orientação do professor Sérgio Cardoso.

O que imediatamente nos atrai na leitura do trabalho de Júlia Lemos Vieira é sua desenvoltura para tratar de um tema caro, porém pouco compreendido pela tradição marxista: o da relação de Marx com a filosofia clássica – seja ela grega, latina ou alemã.

Não temos dúvidas do caráter original e crítico da teoria desenvolvida por Marx sobre a natureza contraditória e histórica da estrutura econômica, política, jurídica e ideológica da sociedade capitalista. Não temos dúvidas, ainda, da importância decisiva que tiveram na vida de Marx, pessoas geniais como Hegel, Feuerbach, Smith, Ricardo e mesmo Engels. O livro de Júlia Lemos Vieira, porém, vai além dessas certezas ao nos apresentar, de maneira clara e radical, a importância decisiva para Marx, para ela, maior ainda que Hegel e Feuerbach, do filósofo e materialista grego Epicuro.

É comum entre filósofos o debate e o questionamento sobre os princípios orientadores do pensamento propriamente filosófico. Em filosofia quem não tem princípios não tem pensamento e, por isso, não tem também filosofia. É comum atribuir aos gregos, ao platonismo e ao aristotelismo especialmente, o mérito de terem sido a grande matriz de todo o pensamento verdadeiramente filosófico do Ocidente, o mérito de terem compreendido que não se pode fazer filosofia sem a adoção de um princípio racional essencial para a realidade, da adoção de um princípio único capaz de unificar racionalmente a irracionalidade da pluralidade, da multiplicidade e da diferença.

A ideia de que haveria algo em-si, por-si e para-si na realidade, de algo totalmente autônomo e independente da realidade humana e natural, de algo único e essencial, dotado do poder de organizar, racionalizar e dar sentido e finalidade ao caótico mundo da pluralidade, da multiplicidade e da diferença esteve na base de todas as grandes doutrinas clássicas gregas – posteriormente adotadas por quase toda a história da filosofia.

Seria este sistema metafísico, racionalista, objetivo, hierárquico e desigual de pensar que estaria, segundo os críticos de Marx, na base de todas as tendências autoritárias, antidemocráticas, hierárquicas, monolíticas, estatistas, necessitaristas, deterministas, objetivistas, burocráticas, elitistas e violentas do marxismo. Teria sido a adesão de Marx, segundo esses críticos, ainda que de maneira nunca clara e explícita na sua própria letra, a esta filosofia de matriz teológica e metafísica que teria condenado o marxismo a não suportar a pluralidade, a multiplicidade, a autonomia, a liberdade e a diferença – sejam elas teóricas ou práticas.

O livro de Júlia Lemos Vieira desmistifica essa falsa interpretação do pensamento de Marx ao nos mostrar que ele, desde sua tese doutoral até a maturidade, sempre teria sido, ainda que nem sempre explícito e claro em seus textos, um epicurista e ardoroso defensor da democracia, da pluralidade, da liberdade, da autonomia, da subjetividade, da diferença, da contingência e da multiplicidade.

O mecanicismo epicurista, ao negar o finalismo aristotélico e o determinismo democritiano, ao negar a existência de um princípio único, necessário e autonomizado ordenando e dando sentido à realidade, ao pensar o deslocamento contingente e não necessário dos átomos através do clinamen, ao atribuir aos deuses um caráter não antropomórfico, não consciente e não ocupado com os destinos da vida humana, ao negar a existência de qualquer coisa ou realidade em-si, fora, independente e diferente da natureza e do homem, de uma coisa que organiza e dirige a vida natural e humana de maneira objetiva, impessoal, necessária e universal, teria produzido em Marx uma visão filosófica não somente antimetafísica, antiteológica e antiabstrata, mas, sobretudo, horizontalizada, igualitária, democrática e libertária.

O livro de Júlia Lemos Vieira ocupa-se, minuciosamente, em nos mostrar, desde sua tese doutoral até seus primeiros escritos filosóficos de juventude, chegando à maturidade da Ideologia Alemã e ao Capital, como Marx sempre teve em mente o sistema materialista aberto, múltiplo, livre, plural e não finalista de Epicuro, um sistema racionalista onde a verdade não pré-existiria ao debate, onde não pré-existiria um saber e uma verdade absolutos e essenciais só apreensíveis pelos especialistas do saber, mas, onde a verdade é uma coisa que se produz no interior do debate público entre as muitas verdades efetivamente existentes na realidade.

O livro de Júlia Lemos Vieira nos mostra como Marx sempre se preocupou em desenvolver uma filosofia não dogmática, não teológica, não finalista, não necessitarista, não determinista e não racionalista, mas sim, uma filosofia que condenaria toda pretensão filosófica de elevar-se ao púlpito da verdade única e em-si, daquela verdade separada e absoluta que pretende elevar-se acima de todas as verdades como sendo a Verdade.

O livro de Júlia Lemos Vieira é de leitura filosófica profunda e agradável, está organizado em quatro capítulos e nele viaja-se pela história da filosofia enquanto história da metafísica e da teologia, enquanto história da falsa concepção de que há uma razão universal, absoluta, autonomizada e livre que organiza a realidade segundo seus próprios princípios ideais, necessários e abstratos. Em cada capítulo o livro procura esclarecer os problemas filosóficos enfrentados por Marx, quase sempre ligados à história da filosofia enquanto história da razão como coisa em-si, e como Marx os resolve tomando como pressupostos os princípios elementares do atomismo epicurista.

O livro parte do estudo da Tese Doutoral de Marx de 1841, Sobre a Diferença entre Demócrito e Epicuro, e prossegue estudando todos os principais textos, e mesmo textos por nós desconhecidos, da juventude de Marx, textos como as cartas ao pai Heinrich, onde Marx relata sua insatisfação com o formalismo filosófico e jurídico de Kant e seu ceticismo em relação à capacidade do Direito de ser um efetivo promotor da justiça e da ética entre os homens; os artigos e polêmicas contra Hermes e Moses Hess da Gazeta Renana de 1842; a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel de 1842; os Anais franco-alemães e sua polêmica com o idealismo de Arnold Ruge de 1844; os Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844; a Ideologia Alemã de 1845 e seu rompimento definitivo com as abstrações do idealismo e com a fraseologia filosófica; o Manifesto Comunista de 1848 e O Capital de 1867; mostrando-nos quão profundamente democrática, aberta, libertária e não monolítica era a concepção filosófica de Marx desde seus primeiros trabalhos filosóficos até seu ingresso na maturidade e na velhice.

O livro de Júlia Lemos Vieira nos mostra, ainda, o papel positivo de Proudhon na formação do pensamento de Marx com sua crítica à propriedade privada em O que é a propriedade?; o papel positivo dos sentidos e da diferença para a formação da consciência humana no Emílio de Rousseau; o papel positivo do Contrato Social e a defesa rousseauniana de uma democracia direta, plural e aberta, de um Estado que seja o resultado não da vontade geral abstrata e alienada, mas da vontade geral real que se forma a partir da polêmica e do debate consciente entre as muitas vontades concretas e particulares.

Em todos os momentos de seu livro, Júlia Lemos Vieira nos lembra sempre da importância de Epicuro e da presença da Tese Doutoral nas diferentes etapas da crítica filosófica de Marx à teologia e à metafísica e de como a contingência, a liberdade, a pluralidade, a diferença, a autonomia e a democracia sempre foram tidas por Marx como valores fundamentais e que a verdadeira filosofia seria a filosofia fundada na racionalidade democrática, no debate e na pluralidade das argumentações que se apresentam publicamente.

O livro de Júlia Lemos Vieira é uma belíssima e profunda introdução ao pensamento e ao sentido político da crítica filosófica de Marx aos modelos de filosofia fundados na hierarquia do saber e da crença de uma verdade oracular em-si, necessária, objetiva, impessoal, abstrata e universal habitando fora e além da consciência humana real.

O livro também é uma crítica à falsa separação entre um jovem Marx filosófico, romântico e democrata e um Marx maduro científico, racional e revolucionário. O livro, por isso, é uma crítica rica e profunda ao chamado materialismo histórico dialético, que valoriza somente as chamadas obras da maturidade de Marx produzidas a partir da Ideologia Alemã e desmerecendo as anteriores, ao materialismo que abstrai tudo o que seja livre, consciente e subjetivo para valorizar somente as estruturas materiais objetivas, impessoais e racionais da realidade.

O livro de Júlia Lemos Vieira contribuirá, certamente, no desenvolvimento de um novo marxismo, mais vivo, trágico, dramático, radical e filosófico e que deve ser lido e apreciado até mesmo pelos mais experientes leitores de Marx.

Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (EL)

BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 91-97, dez. 2016/mai. 2017.

livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (São Paulo -SP: Annablume, 2015) de Hector Benoit é um livro extremamente claro e didático nos argumentos a favor de uma compreensão de Platão, e de todas as grandes filosofias, a partir de sua lexis imanente, i.é, a partir da narrativa dramática imanente ao texto, a partir do sentido temporal interno e arquitetônico do texto, desconsiderando todas as determinações externas e, por isso, superficiais, como a datação cronológica e a estilometria, na elaboração de determinada grande obra filosófica.

Hector Benoit é extremamente claro e preciso em mostrar os vários níveis e temporalidades do discurso filosófico de Platão, desde seus momentos mais simbólicos e alegóricos até seus níveis mais abstratos e propriamente conceituais, mostrando a ausência de sentido nas leituras dominantes e tradicionais que pretendem encontrar, e revelar, em Platão, a existência de uma teoria ou doutrina pronta, fechada, dogmática, e purificada de toda referência não propriamente conceitual contida no interior dos diálogos. O livro de Hector Benoit não ensina apenas a ler metodológica e corretamente Platão, mas a todos os grandes filósofos. Por isso, seu método parece ter uma aplicação universal –ao menos para as grandes filosofias.

O livro é uma crítica radical ao modo dominante de se fazer filosofia, ou, mais precisamente, ao modo dominante de se entender as grandes filosofias. O modo dominante de se fazer filosofia e se compreender os grandes filósofos tem sido o analítico, em seus vários matizes, tem sido o método de divisão de um texto em suas menores partes, de análise deste texto fatiado e  fragmentado em seus menores detalhes, sem, contudo, relacionar estes fragmentos com o conjunto e o sentido interno da obra, da história de vida do autor e dos grandes conflitos filosóficos e históricos enfrentados por ele.

Os métodos historiográficos, biográficos, estilométricos, e todos os demais métodos externos empregados no entendimento de uma grande filosofia, são a condenação ao esquecimento e à confusão de toda grande obra filosófica e o livro de Hector Benoit deixa isto muito bem claro em relação à grandiosa obra de Platão. Ainda que a prática de se estudar um texto possa querer levar em consideração todos os seus aspectos empíricos, é preciso encontrar nesta leitura a ordem imanente, dramática e conceitual, é preciso encontrar a ordem própria ao discurso filosófico do autor que considere esta obra como a obra de uma vida.

O livro de Hector Benoit nos ensina não apenas a estudar corretamente um texto filosófico, mas a entender corretamente o que seria a filosofia. Seria a filosofia, uma ciência, uma episteme, ou uma arte? Seria a filosofia, uma obra destituída de esforço, de paciência, de tempo, sem relação alguma com a experiência de vida, com a experiência política, com a experiência em geral de seu autor? Seria ela, uma obra produzida exclusivamente pelo intelecto do filósofo, pela genialidade e pureza de sua alma racional, seria a filosofia, por isso, uma obra sem qualquer relação com o universo simbólico das representações de uma época e de seus leitores, sem qualquer relação com a experiência e a vida prática destes mesmos leitores e autores?

O livro de Hector Benoit nos ensina que a filosofia estaria, por este aspecto, muito mais próxima da arte do que da episteme. Neste aspecto, Aristóteles não pareceria ter algo de platonista, porque para ele a filosofia não pareceria possuir qualquer relação com a arte e a experiência de vida de seu autor. A questão fundamental exposta por Hector Benoit parece ser exatamente a crítica ao modo aristotélico de se fazer filosofia, ao modo de se estudar um autor através de recortes despedaçados de sua obra convenientes à construção de sua própria obra.

O modo socrático de exposição, o dialógico poético, parece ser sempre mais complicado politicamente do que a prosa corrida de Aristóteles. Galileu Galilei que o diga. Dizem que a causa da desgraça de Galileu não teria sido tanto as suas concepções heliocêntricas sobre o universo, mas, sim, porque o Papa fora convencido por seus assessores de que o personagem Simplícius, personagem ridicularizado por Galileu como defensor do sistema ptolomaico, representaria no Diálogo sobre os dois mundos a posição do Papa e da Igreja. Por este motivo, Galileu teria sido condenado à prisão. Numa narrativa de tipo aristotélico não há, geralmente, personagens da vida real, não há condenação destes personagens, não há a vida atrapalhando o pensamento. Por isso, a narrativa lógica e linear aristotélica parece ser sempre menos perigosa e ofensiva politicamente que os diálogos vivos e dramáticos platônicos.

De acordo com o livro de Hector Benoit, a filosofia estaria mais próxima da arte do que da episteme, porque uma obra filosófica é construída da mesma maneira que se constrói uma obra de arte, como a obra de um artesão-operário. O importante na análise desta obra não consiste tanto em compreender cada uma de suas peças isoladamente, mas, sim, o conjunto e o sentido interno e vivo desta obra. Numa obra de arte, as diferentes peças do conjunto não precisam necessariamente ser fabricadas na ordem da montagem, do funcionamento e da importância desta peça para o conjunto. Cada peça pode ser fabricada, até certo ponto, de maneira totalmente independente das outras peças. A peça principal, por exemplo, pode ser fabricada por último em relação a todas as outras peças.

O importante no estudo de uma obra de arte, por isso, não é compreender a ordem de fabricação destas peças no tempo, a ordem cronológica desta obra, mas, sim, a posição e o papel de cada peça fabricada no conjunto da obra construída. Já imaginastes montarmos um carro na ordem da fabricação de suas peças no tempo, segundo a ordem do tempo em que cada peça individual foi fabricada? Evidentemente, não teríamos um carro ao final do processo, mas apenas um agregado linear de peças sem sentido algum.

A leitura e interpretação de Hector Benoit sobre os diálogos de Platão possuem como premissa fundamental as mesmas premissas e fundamentos da ordem encontrada nas obras feitas pela mão humana. Não há sentido algum, segundo sua interpretação, querer estudar os diversos diálogos de Platão segundo a ordem cronológica de sua feitura. Não há sentido racional algum querer dispor esta ordem segundo a ordem de sua produção temporal externa, segundo o momento em que esta obra foi redigida empiricamente. Uma disposição dos diálogos platônicos segundo esta ordem alógica corresponderia à disposição, e montagem, de nosso carro segundo a ordem do tempo de fabricação de suas peças.

O entendimento correto da obra platônica, segundo Hector Benoit, é o entendimento que compreende esta obra como uma obra dotada de beleza plástica e poética, como uma obra que só revela seu sentido e direção se seguirmos o sentido e a direção contidos e apontados pelo próprio Platão no interior dos próprios diálogos, no interior de sua sequencia dramática e poética.  O racional, o poético/poiético, consiste, por isso, em compreender estes diálogos segundo sua ordem dramática interna, segundo sua construção conceitual interna, segundo o desenrolar temporal interno à própria trama dramática dos diálogos, e não à suas tramas e tramoias cronológicas externas.

O livro de Hector Benoit, por isso, transmite esta importante lição metodológica: de compreendermos, até certo ponto, uma obra filosófica como a obra de arte de um artesão, de um artesão do pensamento. Digo até certo ponto porque o artesão comum realiza uma obra que desde o princípio já se encontra pronta e acabada no pensamento, somente mais tarde, com a prática, esta obra ganha realidade como coisa feita, enquanto que o filósofo, por sua vez, não possui, desde o começo de sua trajetória filosófica, uma ideia clara e pronta do que quer fazer, de onde quer chegar e quais caminhos irá percorrer. Esta ideia vai sendo iluminada e ganhando sentido na mesma medida em que a obra vai sendo realizada. Por isso, são normais as frequentes idas e vindas do filósofo, as frequentes revisões, correções, reedições e aperfeiçoamento de sua obra. Fato que também geralmente ocorre com os produtos da mão humana. O lançamento, a primeira edição da obra é, por isso, geralmente, inferior à obra lançada nos anos seguintes.

Neste sentido, argumenta Hector Benoit, o que seriam os personagens de Platão, senão diferentes operários-artesãos, diferentes artesãos do pensamento, diferentes artesãos que, em conjunto e de maneira mais ou menos combinada, trabalham em vista de uma obra comum, a obra de uma vida, da vida dos que começaram e morreram durante sua construção, e da vida das novas gerações que surgirão para continuá-la. Quem seria Platão nesta história senão um mero coordenador, um mero condutor e dirigente, um mero engenheiro do pensamento e, como tal, um artesão, um operário qualificado, o operário-chefe de uma obra coletiva.

Como na construção dos grandes templos anônimos da cidade, que não levam o nome do engenheiro chefe, de seu arquiteto, onde cada operário parcial trabalha em vista de uma obra coletiva que ultrapassa o tempo de suas próprias vidas, não seria a obra de Platão semelhante ao Parthenon e todas as obras coletivas da cidade? Não seria, assim, a obra de Platão equivalente à obra de Phidias, uma obra da cidade, de seus operários, de seus arquitetos, uma obra sem autoria definida, uma obra que conta com o esforço, o trabalho e a participação de todos os personagens da cidade, de todos os seus artesãos, cada um com sua ocupação específica, onde alguns participam como soldados, outros como sacerdotisas, adivinhos, jovens, anciãos, anfitriões, sofistas, políticos, filósofos de profissão, visitantes estrangeiros e assim por diante?

O livro metodológico de Hector Benoit é muito útil e instrutivo para todos os estudiosos da filosofia que desejam acordar da sonolência metafísica moderna. A metafísica e a analítica, a pretensão de encontrar a essência e a verdade em um pedaço estilhaçado da realidade, a metafísica em todos os seus múltiplos modos, como o racionalismo, o positivismo e o sociologismo, domina por inteiro nossa filosofia. As diversas “filosofias”, as filosofias da linguagem, do conhecimento, da ciência, da política, da arte, da ética e assim por diante, não passam de formas mascaradas de metafísica, de formas analíticas de se compreender a filosofia e a tarefa do filósofo. Estas diversas “filosofias” não são mais do que epistemes, não são mais do que formas aristotélicas modernizadas de se fazer e se compreender a filosofia.

O livro de Hector Benoit nos leva a pensar que todos estes métodos modernos de se fazer filosofia estariam inteiramente impregnados pelos princípios práticos da época moderna: a negação do trabalho como a forma própria e fundamental da vida humana coletiva, a visão meramente negativa do trabalho, do trabalho como roubo do tempo destinado ao prazer e ao ócio. O hedonismo que domina nossa prática filosófica moderna é inteiramente incompatível com o esforço que vem do trabalho e da arte, com o esforço da leitura lenta, sistemática e total de uma obra filosófica, com o esforço do labor exercido pelo pensamento, por isso, para este hedonismo, é necessário abreviar todo esforço em vista do prazer, é preciso construir atalhos que evitem o desperdício de tempo e esforço do leitor, é preciso construir filosofias fragmentadas, fáceis, superficiais, passageiras, ao gosto do mercado editorial e do senso comum burguês.

A crítica de Hector Benoit a Goldschmidt e ao método estruturalista de interpretação de um grande autor e de uma grande filosofia parece clara em associar este método ao método do estilhaçamento e da confusão, próprio das práticas filosóficas modernas.  Pelo caminho de Goldschmidt parece ter seguido toda a história da filosofia. Para o cristianismo era necessário batizar e cristianizar todos os grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, era necessário negar o paganismo filosófico antigo e construir uma filosofia que justificasse as crenças religiosas cristãs. Para o mundo moderno trata-se não mais de construir uma filosofia, não mais de criticar a filosofia, mas de destruir a filosofia, de transformá-la em coisa fácil de ser feita, em coisa feita pelas mãos e cérebro de um único gênio, de transformá-la num ramo da ciência e, como tal, num ramo da indústria do entretenimento, da fantasia e da ideologia.

Se para Hector Benoit, o modo filosófico de se fazer filosofia em Platão deve ser compreendido a partir da compreensão do modo de se fazer as grandes obras coletivas da mão humana, para o mundo moderno, pelo contrário, trata-se de radicalizar a visão aristotélica de filosofia, de separá-la do trabalho, da arte e da vida em geral. Para o mundo moderno, como para Aristóteles, o trabalho é uma coisa negativa, é desperdício de tempo e de vida, é roubo do tempo destinado ao ócio e ao prazer, por isso deve ser erradicado da vida humana e destinado apenas a escravos, a homens inferiores, sem logos e sem episteme.

Por essa visão poiética de Platão, de Platão como um operário do pensamento, operário do logos que é ação de pensar e ação de fazer, a interpretação de Hector Benoit é um alento e sopro de vida sobre nossas almas cansadas desta monotonia e lenga-lenga filosófica moderna, desta filosofia que padece lentamente a cada dia nas teias da lógica e da linguagem, desta filosofia que tem se tornado um agregado mecânico de peças mortas, de peças fatiadas e sem organicidade, de peças isoladas e sem conexão com a totalidade da vida, desta filosofia que já não possui qualquer negatividade e impulso vital criativo.

O livro de Hector Benoit é mais do que um livro de interpretação de Platão, o livro é uma crítica radical deste modo moderno de se fazer filosofia e uma luz para nossas almas românticas e poéticas, presas às cadeias da tradição positivista e da metafísica em todos os seus modos de existência. A filosofia, para ser filosofia, não pode permanecer presa às cadeias da lógica e dos métodos quantitativos e segmentados da ciência. Para ser filosofia, ela tem que ser poesia, tem que ser arte e existir como obra que existe na totalidade da vida e em vista desta mesma vida.

O livro de Hector Benoit é uma crítica destruidora a toda a tradição filosófica que acredita ser o logos uma coisa, uma propriedade, uma substância que pode ser tomada e revelada isoladamente ao gênio individual de cada autor. O logos, como nos diz Hector Benoit lembrando Heráclito, não é substância, não é coisa nem propriedade. O logos é koinonia, é o-que-é-em-comum, é o que se manifesta no ser-em-comum, como nas grandes obras coletivas feitas pelas mãos e cérebros humanos. Nada de grandioso pode ser feito isoladamente – é o que nos ensina o logos heraclitiano e o Platão revelado por Benoit: nem mesmo uma obra filosófica. Os filósofos não constroem nada sozinhos, os filósofos são somente aqueles que sabem que tudo-é-ser-em-comum e querem, com seu intelecto e esforço, juntar-se ao ser-em-comum de sua época.  O filósofo não trabalha nem constrói sua obra isolado em seu gabinete de estudos. Para ser filósofo e fazer filosofia é preciso sair para o mundo e misturar-se com ele: como Sócrates em seus diálogos mundanos e Platão em suas aventuras políticas pelo Mediterrâneo. Nesta construção coletiva são necessários não apenas cérebro e intelecto, são também, e fundamentalmente, necessários braços e energia física humana para fazer do Parthenon da Filosofia uma realidade tal qual foi no passado o Parthenon de Phidias.

O livro de Hector Benoit é uma obra revolucionária que merece, mais do que nunca, ser lido e discutido por todos os amantes das grandes filosofias, destas filosofias que têm como meta a reconstrução completa e impiedosa da realidade segundo o que-é-em-comum. O livro deve ser lido por todos aqueles que se compreendem como operários de uma obra e de um mundo em construção, que se compreendem como membros menores de uma grande obra coletiva que transcende a vida e a vaidade de toda existência idiotizada pela propriedade privada, pelo empilhamento de dinheiro, pela desmedida da ganância e pela metafísica. Nesta obra e projeto coletivo, cada personagem participa de acordo com suas próprias forças e capacidades, alguns com o cérebro, outros com os braços e outros com a poesia e o sonho romântico dos grandes filósofos do passado –como parece ser o caso de Hector Benoit.

Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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