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Memoria e Identidad – CANDAU (H-Unesp)
CANDAU, Joel. Memoria e Identidad. Buenos Aires: Ediciones Del Sol, 2008, 208 p. (Título Original “Mémoire e Identité”, Traducción Eduardo Rinesi). Resenha de: SILVA, Wilton C. L. História [Unesp] v.29 no.1 Franca 2010.
Joel Candau é professor de Antropologia na Universidade de Nice-Sophia, na França, e coordenador do LASMIC (Laboratório de Antropologia e Sociologia Memória, Identidade e Cognição Social), onde desenvolve estudos sobre antropologia sensorial e cognitiva, antropologia da cooperação e abordagens naturalistas nas ciências sociais.
Embora inédito no Brasil, publicou Anthropologie de la mémoire (1996), Mémoire et identité (1998), ambos com tradução para o espanhol em edição argentina (em 2001 e 2002 respectivamente), e Mémoire et expériences olfactives: Anthropologie d’un savoir-faire sensorial (2000), entre outros.
Neste ensaio (Memória e Identidade) o autor revisita algumas das ideias expostas no Anthropologie de la Memoiré, sobre as relações entre memória e identidade, quando afirma que
não pode haver identidade sem memória (assim como lembrança e esquecimento) porque somente esta permite a auto-consciência da duração. […] Por outro lado, não pode haver memória sem identidade, pois o estabelecimento de relações entre estados sucessivos do sujeito é impossível se este não tem a priori um conhecimento de que esta cadeia de sequências temporais pode ter significado para ele.
Memória e Identidade são ideias centrais nas teorias clássicas das ciências humanas e sociais, presentes em reflexões de diferentes áreas e orientações teóricas como nas análises da memória e/ou da identidade por autores tão diferentes quanto Henri Bérgson, Pierre Nora, Michel Maffesoli, Jacques Le Goff, Maurice Halbwachs, Gerard Namer, e Phillipe Áries, Norbert Elias, Paul Connerton, Erving Goffman, Stuart Hall, Paolo Montersperelli, Paul Ricoeur, entre outros.
O trabalho de Joel Candau enfrenta o desafio de refletir sobre algumas dessas contribuições e propor o enriquecimento das relações entre esses dois temas, que sofrem constantes reavaliações e redimensionamentos, em um amplo diálogo com diferentes áreas do conhecimento, sendo que as obras de Maurice Halbwachs (A Memória Coletiva) e Pierre Nora (Les Lieux de mémoire) ocupam certa centralidade em sua reflexão ao longo de todo o texto.
O antropólogo francês estrutura o seu texto em oito partes, compostas por uma introdução, seis capítulos e uma conclusão, nos quais as relações entre individual e coletivo, orgânico e cultural, lembrança e esquecimento, construção e transmissão, unidade e fragmentação, da memória e da identidade são discutidas.
Já na introdução são explicitadas “algumas ideias simples” que estariam presentes “ad nauseam” em diversas publicações sobre os temas da memória e/ou da identidade: 1) os conceitos de memória e identidade são fundamentais nas ciências humanas e sociais, 2) existe um certo consenso de que a identidade é uma construção social, permanentemente redefinida em uma relação dialógica com o outro, 3) também existe um certo consenso de que a memória é uma reconstrução continuamente atualizada do passado, 4) o “mnemotropismo” (a obsessão pelos “lugares da memória”) está diretamente relacionado a diferentes fatores como a crise das certezas do presente, a diluição das identidades e ao desaparecimento de referenciais, e 5) memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas.
A justificativa para o ensaio, e a busca de sua originalidade, se dá justamente pela proposta de um enfoque antropológico sobre o tema, no qual identidade e memória são abordadas em uma perspectiva social e cultural com destaque para as interrelações entre o individual e o coletivo no compartilhamento de práticas, crenças, representações e lembranças.
O primeiro capítulo se dedica ao mapeamento de conceitos e questões ontológicas fundamentais do campo, assim como as relações entre indivíduo e coletividade, se recusando a aceitar de forma acríticas as “fórmulas consagradas” pelas abordagens “holistas” das noções de memória e identidade coletiva.
Em uma abordagem antropológica da memória, em diálogo com seu livro de 1996, Candau estabelece uma classificação taxiológica de sua dimensão individual em três níveis:
1) memória de baixo nível ou protomemória, composta pelo saber e pela experiência mais profundos e mais compartilhados pelos membros de uma sociedade e que se inserem na categoria de memória procedimental (repetitiva ou hábito) de Bérgson, socialmente compartilhada e fruto das primeiras socializações;
2) memória de alto nível ou memória de lembranças (ou de reconhecimento), que incorpora vivências, saberes, crenças, sentimentos e sensações, podendo contar com extensões artificiais ou suportes de memória; e
3) a metamemória, ou seja, tanto a representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, quanto aquilo que fala sobre ela, em uma dinâmica de ligação entre o indivíduo e seu passado, como uma memória reivindicada.
Enquanto o primeiro e o segundo nível dependem da faculdade de memorização, o terceiro é uma representação sobre essa faculdade. Justamente por essa característica ser uma enunciação, é a única dimensão compartilhada de forma intersubjetiva, enquanto memória coletiva, ou seja, produção social de alguns acerca de heranças supostamente comuns aos membros de um determinado grupo.
Candau chama a atenção para o fato de que enquanto a dimensão individual desse nível se relaciona à constatação de uma capacidade comprovada – memorizar – a dimensão coletiva se refere à atribuição de uma comunidade hipotética.
Essa mesma dimensão metafórica, enquanto representação, encontra-se no conceito de identidade, tanto cultural quanto coletiva, uma vez que as noções de semelhante, similitude ou pertencimento também são atribuídas. Embora reconheça a existência de similitudes a partir da protomemória, essa dimensão apresenta duas objeções: a expressão identidade em realidade pode projetar na forma de totalidade aspectos que seriam apenas majoritários, e as estratégias identitárias de qualquer grupo envolveriam um jogo complexo muito mais amplo do que a exibição passiva de um conjunto de hábitos incorporados.
De certa forma tais perspectivas afirmadas pelo autor situam sua análise dentro de uma abordagem situacional da identidade, na qual esta é construída a partir de relações, reações e interações sociais das quais emergem visões de mundo e sentimentos de pertencimento.
Assim, sua análise não aceita os malabarismos retóricos “holistas” que tendem a afirmar, a priori, através de termos, expressões e figuras totalizantes supostos conjuntos estáveis, duráveis e homogêneos de indivíduos e representações como realidades empíricas, embora os aceite como instrumento analítico (ou como “configurações narrativas”, segundo Ricoeur).
No segundo capítulo a questão privilegiada são as diferentes formas de construção e reconstrução da memória e da identidade no nível individual, da “mnemogênese” à “memogênese”.
A relação entre identidade e memória coloca de forma clara que a identidade se manifesta como um relato, um discurso autoreferenciado que se projeta como uma totalidade significante, em uma convergência entre curiosidade e “anamnesis”, alicerçada sobre três bases: a natureza do acontecimento recordado, o contexto sincrônico do acontecimento e o contexto sincrônico da rememoração.
Tais processos que se manifestam na esfera coletiva, a qual surge na confluência das imagens e da linguagem, são responsáveis por totalizações existenciais. Elas permitem tanto a manutenção de memórias fortes, que buscam criar marcas sólidas que vêm reforçar sentimentos de origem, historicidade e pertencimento, quanto em memórias fracas, que se diluem e fragmentam conforme as identidades se transformam ou novas identidades se afirmam.
No terceiro capítulo o autor relaciona as formas de apropriação da memória com uma domesticação do tempo a partir de uma estruturação fundada na origem e no acontecimento. A partir de abordagens filosóficas e antropológicas sobre a temporalidade o autor reafirma a multiplicidade de tempos sociais como questão fundamental para a compreensão da memória.
Nessa perspectiva relativista discute as formas de apreensão e representação das temporalidades, relacionando esses processos com as ideias de “tempo profundo” e “memória larga”, as práticas de mensuração, os tempos privados e os tempos anônimos, vinculados aos seus conceitos de memória forte e memória fraca.
Entre o quarto e o sexto capítulo são elencadas algumas formas de passagem entre as formas individuais e coletivas da memória e da identidade, assinalando os processos de transmissão e recebimento, fundação e construção, assim como de esgotamento e desmoronamento.
A partir do mito de Teuth, o deus egípcio que apresentou a escrita a Thamus (Amon), Candau discute nesses capítulos finais as possibilidades da “hypomnésis”, recordação do banal pela sua conservação, e as dificuldades da “anamnésis”, a manutenção da memória, contrastando a obsessão “mnemotropista” da sociedade contemporânea com a glorificação do presente e da simultaneidade.
A distinção entre a reprodução e a invenção da tradição, identificada como dinâmicas protomemorialistas e memorialistas, permitiria, segundo o autor, uma mudança de uma construção social de uma tradição “tradicionante”, legitimadora no presente, para uma tradição “tradicionada”, uma referência objetivada.
É nesses capítulos que a questão do patrimônio ganha centralidade, na qual este é reconhecido como uma relação que envolve mais uma afiliação do que filiação, uma materialidade que é mais reivindicada que herdada, assim como menos comunitária que conflitiva.
Em uma época de “mnemotropismo” deve-se manter uma ênfase crítica em relação às concepções holistas do patrimonialismo, que demonstram uma perspectiva performática dos textos e discursos da memória, quando buscam favorecer e valorizar o arcaísmo a celebração do passado, o fundamentalismo cultural, o mito da autenticidade e o fantasma da pureza, a representação estereotipada do pertencimento, a reificação das diferenças, as complacências comunitárias, um relativismo patrimonial sem limites, e as multiplas formas de nostalgia e paixões identitárias.
O reconhecimento de estruturas de memória individual e coletivas que se tornam vagas, numerosas e complexas, com múltiplos processos de aquisição e assimilação não exclui a compreensão de novos processos nos quais as grandes memórias desaparecem ou são destruídas. Mas outras memórias densas e numerosas são elaboradas, com igual força, fundamentando identidades em recomposição – embora a quimera da homogeneidade de memórias e identidades deva ser rechaçada tanto no passado quanto no presente.
Assim, o texto tenta se equilibrar entre a compreensão dos jogos da memória e da identidade, assim como dar conta das ambiguidades desse jogo e de seu dimensionamento, ao reconhecer, ao mesmo tempo, tanto a sua importância como a amplitude de forças sociais e culturais, múltiplas e complexas, que não são necessariamente memorialistas ou identitárias.
Referências
CANDAU, Joel. Antropologia de La Memória. Buenos Aires: Nueva Vision, 2002. [ Links ]
____. Anthropologie de la Mémoire. Paris: PUF, 1996. [ Links ]
____. Mémoire et Identité. Paris: PUF, 1998. [ Links ]
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. S. Paulo: Vértice, 1990. [ Links ]
NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984. [ Links ]
RICOEUR, Paul; FRANÇOIS, Alain. A Memoria, A Historia, O Esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2008. [ Links ]
Wilton C. L. Silva – Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: wilton@assis.unesp.br.