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Canibalismos Disciplinares. Entre a História da Arte e a Antropologia: museus, coleções e representações | MODOS. Revista de História da Arte | 2019
Em sua origem, aquilo que a história da arte e a antropologia apresentam de comum é a constituição de saberes sustentada pela constituição de coleções. O que as diferenciou ao longo do tempo foram os critérios de valores que as levaram a construir coleções e a acumular cultura nas instituições que ajudavam a legitimar ambos esses campos do saber – notadamente os museus. Hoje a antropologia já se distanciou dos objetos, dando lugar à arte que passa a se apropriar de um conjunto de referências culturais requalificando-as como obras. E a história da arte, por sua vez, abriu-se para questionar os mecanismos que formam os distintos sentidos do “artístico”, suas implicações e ativações sociais, ampliando seu campo de atuação para diferentes culturas visuais e formas de circulação poéticas1. A disputa iniciada no final do século passado entre a linguagem científica e a linguagem artística, já não apresenta validade para as análises sobre estes diferentes regimes de valor2 no contexto contemporâneo, sendo mais recentemente preconizadas as análises que consideram as intermediações entre um campo e o outro, e as práticas por detrás das apropriações culturais (Chartier, 2002) que, no presente número, escolhemos nos referir como “canibalismos disciplinares”. Leia Mais
Estudos africanos no Brasil: um diálogo entre História e Antropologia / História – Questões & Debates / 2015
Na última década testemunhamos um aumento importante de publicações (livros, artigos, coletâneas, etc.) sobre política, economia, cultura e história das sociedades africanas, tanto no campo da literatura, linguística, como no das ciências políticas e relações internacionais, porém, o incremento mais significativo aconteceu nos campos da história e antropologia. Este fenômeno não é aleatório, responde a um esforço comum de intelectuais, ativistas, acadêmicos e acadêmicas, entre tantos outros, de implementar uma reforma político epistemológica no campo da educação no Brasil, reforma que finalmente teve seu sustento legal na lei 10693 de 2003 e que envolveu, entre outras coisas, saldar uma dívida histórica ao estabelecer a obrigatoriedade de inclusão nos planos de ensino em todos os níveis, da história e cultura africana e afro-brasileira. O porquê desta dívida histórica, mesmo sendo uma questão de suma importância, não será tema deste dossiê, acreditamos que chegará um momento, neste multifacetado processo, de confrontar-se com os porquês destas omissões e embora já existam indícios bastante eloquentes na história nacional brasileira para compreender a exclusão dos currículos escolares da história e cultura africana e afro-brasileira, este debate será possível quando o campo dos “estudos africanos no Brasil” termine o seu processo de consolidação.
Em relação a este processo de consolidação dos “estudos africanos” na atualidade, precisamos antes fazer o devido reconhecimento do trabalho sistemático da produção acadêmica sobre o mundo africano, de uma série de instituições no âmbito acadêmico brasileiro desde a década de 1960 como o Centro de Estudo Afro Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, ou o Centro de Estudos Afro –Orientais da Universidade Federal da Bahia, ou finalmente o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo. Feito isto, precisamos explicitar esta ideia de processo relacionada ao significativo fenômeno de ampliação destes estudos para áreas de conhecimento que antes mostravam um manifesto desinteresse pela temática como seria o caso particular da filosofia, disciplina que por considerações de ordem histórica, infelizmente continua com o dogmático exercício da repetição de um dispositivo hegemônico de transferência de conhecimento eurocentrado. Mas também pela ampliação das escolhas sobre o que pesquisar relacionado às sociedades africanas, saindo de uma vez do enquadramento que significaram os estudos sobre escravidão, os quais se por um lado contribuíram de forma substancial para desmontar os modelos racistas de compreensão da história da população afrodescendente no Brasil, por outro, voluntária ou involuntariamente, condicionaram as escolhas de outros recortes e temáticas, também importantes para a compreensão diacrônica e sincrônica desta mesma população.
É nesta interface, possibilitada em grande parte também pela obrigatoriedade estabelecida pela legislação, que a produção bibliográfica nos campos da história e da antropologia aumentará e se diversificará consideravelmente. E este evento trará uma série de outras implicações no âmbito da pesquisa como, por exemplo, o caráter interdisciplinar que começa a ter maior peso epistemológico, assim como a ampliação dos recortes espaço temporais e temáticos, desta vez majoritariamente centrados no continente africano, começarão a ser privilegiados por pesquisadores e pesquisadoras tanto no nível da pós-graduação como também já na graduação, em projetos de iniciação científica.
Todos estes desdobramentos, ou “momento expansivo” [1] da formação deste campo de estudos africanos no Brasil, têm contribuído significativamente também para desessencializar a ideia da África como uma única totalidade exótica e a-histórica, incentivando a busca por um paradigma que explique integralmente os problemas africanos, redimensionando debates candentes, como os que envolvem a ansiedade em torno das relações raciais, revisitando a temática afro- -brasileira nos discursos sobre a formação nacional e ressignificando a própria leitura e difusão de clássicos africanistas que constituem o cerne desta área de interesse.[2] Ao mesmo tempo, essa abertura pressupõe uma multiplicação de perspectivas e a busca por explicações pluricausais, considerando a diversificação dos contextos / situações de pesquisa, as possibilidades e (ou) as limitações da língua portuguesa como veículo de acesso e de expressão de conhecimentos sobre o continente africano, e os vários diálogos estabelecidos em cenários de produção de saber transnacionais. O conjunto de artigos selecionados neste dossiê pretende ser uma amostra importante do mencionado no parágrafo anterior.
No presente dossiê, o artigo de Michel Cahen aponta para uma crítica ao conceito “pós-colonial – póscolonial – pós (-)colonial” na produção historiográfica em torno dos países do PALOPS (Países de Língua Oficial Portuguesa). Para ele, na maioria das produções, talvez dos últimos 30 anos, o conceito “pós” remeteria apenas a uma definição cronológica e não situacional. Esta opção traria consigo dois problemas fundamentais. O primeiro seria a superestimação do discurso em volta das elites independentistas nas antigas colônias portuguesas em detrimento das formações sociais realmente existentes. Como consequência desta opção se produziria uma espécie de hipertrofia historiográfica que impediria pensar os processos a partir das suas contradições próprias. Para explicar esta defasagem Cahen questiona, de maneira bastante pertinente, as leituras sobre os processos que cada movimento independentista teria vivido na construção da sua realidade política pós-libertação, constatando que essa leitura historiográfica ao se guiar apenas pelo discurso doutrinário dos partidos não só não conseguiriam explicar o porquê destes movimentos terem se identificado inicialmente com os princípios do socialismo, para tempo depois assumir ferrenhamente os princípios neoliberais tornados hegemônicos nos finais dos anos 80 do século XX. A explicação simplista da derrota dos princípios socialistas seria para Cahen insuficiente, pois se fosse uma derrota, esta acarretaria a substituição da elite “socialista” por uma outra. Entendendo que discursivamente socialismo e neoliberalismo seriam duas ideologias antagônicas, este antagonismo não impediu que praticamente em todos os países africanos ainda governem os mesmos partidos que iniciaram a libertação.
Outro aspecto que o autor chama atenção é que a partir da concepção cronológica do “pós-colonial” tanto a formação do partido único assim como seu imaginário político e social e o papel do Estado na consolidação do poder destes partidos, todos estes processos caríssimos à compreensão da realidade política contemporânea das antigas colônias portuguesas, são explicados com base em concepções ideológicas atreladas ao marxismo-leninismo, desconsiderando voluntária ou involuntariamente que estas formações políticas e seus próprios imaginários teriam uma origem múltipla e não seriam apenas opções dos partidos únicos governantes na atualidade, mas também de seus opositores políticos derrotados durantes as respectivas guerras civis que assolaram os países no pós-independência. Um terceiro e último aspecto que o autor traz ao debate é uma prática problemática na historiografia chamada “lusófona”, precisamente porque para o autor as realidades da cada um dos países ocupados pelos portugueses estariam mais vinculadas à sua localização regional e muito pouco à própria presença lusitana. Este aspecto é significativo, pois ao tornarem estes países “mais africanos e menos ex-portugueses” se abriria um leque de outras possibilidades de análise para entender as realidades sociais e políticas dos países em questão. Estes questionamentos nos parecem substanciais para uma revisão dessa produção historiográfica, daí a importância de incluir este texto neste dossiê.
No caso de Osmundo Pinho, a análise aponta para as vicissitudes e contradições dos processos de construção jurídica de estatutos como efeito da extensão da malha administrativa na produção do estado colonial português em Moçambique. Usando fontes e registros oficiais específicos da década de 40 do século XX, o autor discorre sobre as dificuldades e contradições do próprio processo de produção de estatutos jurídicos, entendendo o período como marcado por um contexto de debate antropológico e político-jurídico sobre as colônias africanas de maneira geral. Neste contexto conceitos como os de “razão etnológica” e “pluralismo jurídico” definiram as formas e condições do debate entre o funcionalismo antropológico britânico “triunfante” e um evolucionismo em vias de se tornar anacrônico aos olhos das ciências humanas, as mesmas se constituindo em processo acelerado. Segundo o autor, no mesmo contexto é possível identificar alguns aspectos substanciais ao processo de colonização como seria o caso da racialização (culturalização) africana, a qual teria caminhado ao par das estratégias de dominação política e à necessidade de elaboração de um arcabouço jurídico conceitual, capaz de conferir inteligibilidade aos processos administrativos, associando a diferença cultural à diferença racial como instrumento político de dominação. Neste contexto o funcionalismo antropológico britânico teria jogado um papel significativo na produção de uma “miragem” em relação aos sistemas sociais africanos paralelos aos criados pelo sistema colonial, outorgando aos primeiros um caráter homogêneo e criando a ideia da falta de temporalidade histórica das sociedades africanas, entregando de maneira insuspeita talvez a melhor justificativa ao discurso colonial. Outro aspecto bastante significativo na análise de Pinho está relacionado a dois discursos aparentemente antagônicos e separados temporalmente. Antagônicos por serem um eclesiástico e outro “socialista”, no entanto, e como mostra Pinho, o centro de cada um destes discursos apontaria para uma visão civilizatória e iconoclasta das práticas africanas referidas a condenar e justificar a desarticulação da poligamia, o lobolo e o levirato, entre os “usos e costumes” nativos mais atacados. Esta “semelhança civilizacional” dos discursos, mesmo apontando para projetos, em teoria, divergentes e antagônicos, torna o texto de Pinho da maior relevância para uma revisão histórica desde uma perspectiva mais situacional, perspectiva que é defendida neste dossiê.
O trabalho de Jefferson Olivatto da Silva incursiona no campo da medicina como dispositivo de controle dos corpos colonizados e as respostas africanas a estas práticas. Localizando seu trabalho nas regiões da atual Zâmbia e o Malawi durante finais do século XIX e começo do XX, e usando uma perspectiva de longa duração o autor reflete sobre os efeitos que a ocupação militar e o desenvolvimento e ingerência da medicina tropical nas políticas de reassentamento e controle de doenças – todos estes entendidos como agentes da colonização efetiva dos territórios recém mencionados – terão no desenvolvimento das resistências aos processos de mobilidade forçada que atingiram as populações nativas. Formas de resistências que durante muitos anos não foram consideradas enquanto tais pela historiografia africanista. Com efeito, como demonstra o autor, a situação colonial que descreve evidencia o não reconhecimento do comportamento social evasivo e adaptativo das populações afetadas pelas políticas higienistas, sob e égide do combate às epidemias que afetavam tanto a produção quanto o uso da mão de obra nativa, já que para os administradores, coletores de impostos, militares, missionários e médicos estas práticas eram entendidas como manifestações de esquiva pertencentes a um universo desprezado sem função social significativa. Um aspecto significativo ressaltado pelo autor é atrelar estes processos de construção de formas evasivas às políticas invasivas da administração colonial, devido ao seu caráter exógeno e violento, às formas atuais de resistências às políticas de controle de doenças como o HIV / SIDA. Novamente são evidenciados aqui práticas e agentes em um constante e tensionado relacionamento por definir o poder de autodeterminação frente ao controle sobre os corpos dos colonizados. A perspectiva de longa duração como princípio metodológico para a análise dos eventos e seus efeitos na configuração das sociedades africanas durante a colonização abre-nos uma nova possibilidade de revisar a história sobre o continente africano.
Quase no mesmo viés, Sílvio Correia, se debruça sobre como ciência e literatura se valeram de saberes locais para produzir um conhecimento rotulado como científico sem, contudo, reconhecê-los enquanto um conjunto de saberes, práticas e posturas com validade social nos lugares em que foram produzidos. Para tal centrará sua obra no período da descoberta do maior primata até então conhecido: o gorila. De acordo com sua linha de análise, se antes não havia consenso sobre o parentesco entre os primatas, a descoberta do gorila fomentou polêmicas e especulações que se inscrevem na produção de saberes que viriam a servir de suporte ideológico ao empreendimento colonial à época da “Partilha da África” e também ao longo da primeira metade do século XX. Este evento também incentivará o desenvolvimento de uma série de novas áreas consideradas naquele momento como científicas como os estudos de craniometria. Outro paradigma que ganhará força será a ideia de raças degeneradas, a qual assumirá um lugar importante no campo disciplinar da antropologia física. O “descobrimento” deste primata acentuará a tendência a comparar anatomicamente as “raças humanas mais degeneradas” com os macacos. Este aspecto terá desdobramentos muito mais complexos, pois de acordo com Correia, se na Antiguidade a comparação era entre o homem e o macaco, no pensamento moderno esta se racializa e se torna cada vez mais uma comparação entre o negro e o macaco. Para a antropologia do final do século XIX, a comparação entre “hotentotes”, “pigmeus”, gorilas e chimpanzés foi uma prática comum dos estudos de anatomia comparada. Mas alguns estudos extrapolavam a comparação anatômica, estabelecendo comparações em termos de comportamento. Mesmo que não houvesse consenso na comunidade científica, os “zoos humanos” não hesitavam em exibir “bosquímanos” e “pigmeus” como elos da evolução humana.
Finalmente o trabalho de Lorenzo Macagno analisa duas narrativas sobre o apartheid da década de 1980. O primeiro destes relatos engloba múltiplos microrrelatos: trata-se do trabalho do antropólogo norte-americano Vincent Crapanzano sobre os africâneres (ou bôeres) da África do Sul. Naquele momento Crapanzano teria realizado uma etnografia “plurivocal”, “polifônica” e “dialógica”, segundo o próprio autor um exercício de questionamento da “autoridade” etnográfica, segundo Macagno, uma discussão presente no debate pós-moderno da época. Sobre este aspecto bastante significativo para a produção antropológica, Macagno questiona pertinentemente quais são os limites do relativismo antropológico e das abstenções do juízo em relação a um regime que não admitia ambiguidade? Apesar das dificuldades que esta etnografia coloca para o debate disciplinar, Crapanzano teria conseguido mostrar alguns sinais diacríticos da identidade construída pelos próprios africâneres como a língua e seu distanciamento dos ingleses se colocando como um tipo de vítima do “imperialismo” inglês, eludindo, desta forma, uma importante questão: a relação com os negros sul-africanos. A outra narrativa é do jornalista sul-africano Rian Malan, sobrenome pertencente a “dinastia” Malan que fora um dos nomes que em 1948 implementara o apartheid na África do Sul. Uma das primeiras questões que Macagno questiona é: “é possível ser um Malan e ser contra o apartheid?”. Na análise do livro o autor descreve o caráter auto-irônico de Malan ao se confrontar com um sistema que por lei o privilegiava e que por outro lado gerava desconforto a uma pequena elite branca devido à violência praticada contra a população negra. Segundo Macagno, para Rian Malan, apesar das boas intenções, o papel dos brancos na luta anti-apartheid estava condenado por uma “lei de cumplicidade genética”. O livro do jornalista apresenta uma crônica das violências cotidianas decorrentes do apartheid. Malan articula e integra a descrição da violência política com as consequências que ela mesma produz na subjetividade dos atores envolvidos. Malan, como jornalista, vai em busca do saber antropológico. Sem cair no essencialismo – tão criticado por Crapanzano – traz ao seu universo de compreensão as forças simbólicas que ainda operam na África do Sul, procurando encontrar uma coerência e um sentido naquilo que, aparentemente, resulta arbitrário e caótico. Em suma, Macagno tentará refletir a partir destas duas narrativas sobre quais seriam as estratégias estilísticas, políticas e éticas escolhidas no momento de descrever o apartheid. Quais as consequências e os dramas morais produzidos por um sistema de segregação que não admitia ambiguidades classificatórias, nem dissidências políticas ou étnicas? Desde uma perspectiva comparativa o autor analisa estas duas narrativas, indagando sobre os efeitos do apartheid na subjetividade individual e coletiva de uma sociedade dividida.
Esse número da Revista História: Questões & Debates conta também com a sessão de artigos. O primeiro deles, de autoria de Valeska Alessandra de Lima e Dóris Bittencourt Almeida, é produto da pesquisa “Escritos de alunos: memórias de culturas juvenis (1940- 1960)”, que toma como objeto de investigação os periódicos produzidos por alunos de diferentes instituições escolares de Porto Alegre / RS. O estudo vincula-se aos pressupostos teóricos da História Cultural e inscreve-se no campo da História da Educação em suas interfaces com a Imprensa Escolar e a História das Instituições Educacionais. O foco da análise foi perceber as marcas deixadas pelos jovens no periódico “Colunas”, anuário produzido pelo Instituto Porto Alegre / IPA, procurando distinguir indícios de saberes e práticas escolares que evidenciam as identidades daqueles sujeitos. O segundo texto pertence a Christiane Heloisa Kalb e Mariluci Neis Carelli, analisando a importância do patrimônio industrial, especialmente no que se refere às ferramentarias de moldes e matrizes para a cidade de Joinville / SC. O artigo tenta mostrar a ligação entre a identidade dos entrevistados, em sua maioria ferramenteiros ativos ou já aposentados, com a cidade de Joinville conhecida por sua pujança industrial, por esse motivo merecedora de estudos mais aprofundados sobre o patrimônio cultural industrial em seus aspectos materiais e imateriais, a partir das memórias desses profissionais ferramenteiros. O último trabalho nesta sessão é de Helder Henriques e Carla Vilhena, que aponta para o estudo dos comportamentos chamados antissociais na infância e juventude em Portugal entre as décadas de 70 e 90 do século XX. Pretende identificar e analisar os principais discursos relacionados com este problema social no arco temporal previsto. Para isso apresentam o quadro histórico de evolução do sistema de justiça de menores em Portugal ao longo do novecentos, para depois tentar compreender as conceições de risco, tendências e influências sociopedagógicas e as formas de prevenção e de regeneração em articulação com o discurso do Estado, da Escola e da Família.
Notas
1. Marques, Diego Ferreira e Jardim, Marta D. da Rosa. “O que é isto: ‘a África e sua História’”? In: Trajano Filho, Wilson (Org.). Travessias Antropológicas: estudos em contexto africanos. Brasília: ABA Publicações, 2012. pp.31-62.
2. Chegen, Michael “Las teorías de la ciencia política como un obstáculo para entender el problema de la violencia política y de Estado en África”. ISTOR, Año IV, Núm. 14, 2003, pp. 32-47.
Héctor Guerra Hernandez
HERNANDEZ, Héctor Guerra. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.62, n.1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]
Questões indígenas contemporâneas: História e Antropologia em fronteiras / História Unisinos / 2011
Os textos reunidos no dossiê Questões indígenas contemporâneas: História e Antropologia em fronteiras resultam das pesquisas de sete historiadores de diferentes pontos do país que tem procurado estudar a História Indígena da perspectiva do presente, em fronteiras disciplinares, tarefa ao mesmo tempo difícil e fascinante. Assim, os temas abordados refletem os diálogos travados por cada um deles com outras áreas do conhecimento, tais como a Psicologia, o Direito, a Educação e, notadamente, a Antropologia. O que aproxima os textos é a tentativa de compreensão, por parte dos autores, de uma trama histórica complexa e que durante muito tempo foi negligenciada pela historiografia tradicional. Já vai longe, portanto, o tempo em que para os índios não haveria história, mas apenas etnografia, como anunciara Varnhagen, no século XIX.
Anna Maria Ribeiro Fernandes Moreira da Costa apresenta a simbologia que envolve o espaço fluvial dos grupos indígenas Nambiquara do Cerrado, localizados a Oeste do Estado de Mato Grosso. O espaço Nambiquara é, dessa forma, apreendido em suas representações, imagens e concepções, sendo construído em função de seus sistemas de pensamento e de suas necessidades.
Por sua vez, Carlos Alberto dos Santos Dutra instiga o leitor a rever a história da ocupação do território sul-mato-grossense, lançando um olhar sobre os conceitos de poder e violência e buscando revelar que muitas terras indígenas demonstram ter sido bem mais que simples áreas de migração de grupos autóctones isolados. Os conceitos de nação, identidade, território / territorialização / desterritorialização, dominação, poder e cultura são analisados pelo autor a partir da história dos Ofayé.
Giovani José da Silva apresenta informações a respeito da construção da Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, bem como dos impactos que esta construção provocou sobre a vida das populações indígenas, especialmente sobre os Chiquitano (e os estigmas a estes impingidos). No caso dos Kamba, descendentes dos Chiquitano, esse impacto se traduziu na saída de uma determinada parcela das proximidades de Roboré, Tapera e San Jose de Chiquitos e de sua entrada no Brasil, em meados do século passado. A construção da ferrocarril (1939-1954) provocou o engajamento de grande número de indígenas bolivianos, muitos dos quais penetraram em território brasileiro de forma clandestina aos olhos oficiais.
Já Rosely Aparecida Stephanes Pacheco mostra que uma análise mais ampla dos desafios que os povos indígenas têm enfrentado em relação a seus direitos territoriais na América Latina, passa por um desvelar histórico sobre a forma como a questão territorial foi tratada nestes países, tanto administrativa quanto juridicamente. Para o estudo do tema, cujo foco são as lutas e reivindicações dos Guarani (Kaiowá e Ñandeva), a autora buscou referenciais teóricos em diversas áreas do conhecimento: a História, a Antropologia e o Direito.
Edson Hely Silva percebe, por meio dos relatos orais dos índios Xukuru do Ororubá, de Pernambuco, acontecimentos que expressaram o cotidiano, os espaços e os momentos de sociabilidade vivenciados na Serra do Ororubá, além do significado de Cimbres como um espaço de referência da memória mítico-religiosa para a afirmação da identidade daquele grupo indígena.
Léia Teixeira Lacerda apresenta reflexões realizadas desde o final da década de 1990, no campo da Educação e da Saúde Preventiva das DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e da Aids com professores indígenas que habitam e atuam em escolas no Pantanal Sul-mato-grossense. A autora realiza uma breve análise pedagógica, psicológica e histórica dos Programas de Prevenção das DST e da Aids desenvolvidos com professores indígenas daquela região.
Finalmente, Vanderléia Paes Leite Mussi discute como os Terena no contexto urbano de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, constroem sua etnicidade, nos “entre lugares” das relações fronteiriças, mantendo os laços de continuidade com seus antepassados, isto é, com sua tradição. A partir dessa abordagem, a autora mostra como esse grupo indígena foi construindo diferentes estratégias de inserção e negociação no entorno da sociedade não indígena para garantir a sua sobrevivência, tendo como principal impulsionador o trabalho.
Em comum, os historiadores participantes do dossiê utilizaram fontes orais em suas pesquisas, mas sem a pretensão de “dar voz” a quem quer que seja, muito menos aos indígenas. Antes, cada um deles procurou “dar ouvidos” às narrativas contadas pelos Nambiquara, Chiquitano, Guarani, Terena, Ofayé, Xukuru do Ororubá, Kadiwéu e Kinikinau. Convidam-se, então, os leitores a também “ouvirem” essas vozes, ainda não inscritas nos cânones oficias, porém repletas de significados e simbologias. Boa leitura!
Giovani José da Silva – Organizador
SILVA, Giovani José da. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.2., maio / agosto, 2011. Acessar publicação original [DR]
Antropologia e Arquivos / Estudos Históricos / 2005
Quando o campo é o arquivo
Este número de Estudos Históricos reúne uma seleção de trabalhos apresentados no seminário “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias guardadas”, realizado em 2S e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS / UFRJ, com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia [1].
O objetivo do seminário foi refletir sobre o uso de fontes arquivisticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como sobre a constituição e organização de arquivos de antropólogos, de instituições de antropologia ou que apresentassem grande interesse para a disciplina.
Nossa motivação, tanto para o seminário quanto para esta publicação, advém da percepção de que, cada vez com mais intensidade, antropólogos têm realizado um tipo de trabalho de pesquisa-nos arquivos e sobre arquivos- tradicionalmente associado a historiadores ou arquivistas. Além de utilizar arquivos como fonte de conhecimento para a produção de suas análises, desde, pelo menos, os anos 1980, os antropólogos têm refletido sobre a natureza de registros documentais transformados em fontes e, em alguns casos, têm produzido e / ou organizado arquivos e coleções a partir de uma perspectiva antropológica. Ainda assim, persiste, entre o público em geral e no mundo acadêmico (mesmo entre os próprios antropólogos), a idéia de uma associação privilegiada da antropologia com um modelo de pesquisa de campo consagrado desde a clássica introdução de Malinowski a Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922.
Apesar de vários antropólogos importantes terem feito pouca ou nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowskiano – Mauss e Lévi-Strauss são dois exemplos eloqüentes -, o trabalho de campo permanece como uma marca distintiva da disciplina aos olhos dos não-antropólogos, bem como uma espécie de ritual de passagem identitário para os próprios antropólogos, como se quem não fizesse pesquisa de campo não fosse “realmente” antropólogo.
Nos 80 anos decorridos desde a publicação de Argonautas, os “primitivos” deixaram de ser tão “primitivos” – deixaram de ser povos sem documentos, característica que então os diferenciava dos ocidentais. Antropólogos já não têm mais o objetivo de acumular!!m arquivos e coleções específicas os registros de seus “feitos”, conquistas e contatos com nativos e “exóticos”. Arquivos criados desde o século XIX com tais finalidades vêm sendo objeto de contenda, recusa, crítica e novos usos por parte de povos etnológicos e / ou populações tradicionalmente transformadas em objeto da pesquisa antropológica. Além disso, a antropologia deixou de se interessar apenas pelos “primitivos” e passou a se interessar também pelo povos “ocidentais”, com seus arquivos e patrimônios documentais já constituídos. Alguns desses investimentos resultaram numa espécie de inversão dos modelos de objetificação tradicionalmente adotados, uma vez que antropólogos e, por conseguinte, procedimentos metodológicos e relações estabelecidas no campo transformaram-se em fontes de novas leituras, poderes e disputas. Os territórios dos arquivos têm sido ocupados por novos sujeitos. Ainda que novos usos dos arquivos por parte dessas populações venham sendo observados e, por vezes, partilhados pelos antropólogos, as implicações políticas e discursivas dessas formas de intervenção nos permitem imaginar o arquivo como campo povoado por sujeitos, práticas e relações suscetíveis à análise e à experimentação antropológica.
Ao pensar esse seminário, nossa intenção não era, de forma alguma, negar o papel fundamental que a pesquisa de campo “tradicional” teve e ainda tem para a constituição da antropologia como disciplina e como recurso de método poderoso para a produção de etnografias. Nosso objetivo envolvia, no entanto, uma ampliação e diversificação da forma como se pode pensar a prática antropológica, que não a deixasse restrita à pesquisa de campo.
Há ainda muito pouca reflexão no campo da antropologia, em particular da brasileira, sobre esse tema. Imaginamos que uma forma útil de contribuir para essa discussão era partir da experiência concreta de antropólogos lidando com arquivos. Com isso, não estávamos desprezando a reflexão “teórica” sobre o tema, e sim enfatizando nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e princípios metodológicos abstratos. Esperamos que o resultado dessa experiência, aqui reproduzido, ajude a estimular novas discussões sobre o tema.
Nota
1. A homepage do seminário, que inclui a programação, os resumos e o texto completo de algumas comunicações que não foram incluídas neste número da revista) é: http: / / www.cpdoc.fgv.br / campo-arquivo /
CASTRO, Celso; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.36, jul. / dez. 2005. Acessar publicação original [DR]