Antropologia e Arquivos / Estudos Históricos / 2005

Quando o campo é o arquivo

Este número de Estudos Históricos reúne uma seleção de trabalhos apresentados no seminário “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias guardadas”, realizado em 2S e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS / UFRJ, com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia [1].

O objetivo do seminário foi refletir sobre o uso de fontes arquivisticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como sobre a constituição e organização de arquivos de antropólogos, de instituições de antropologia ou que apresentassem grande interesse para a disciplina.

Nossa motivação, tanto para o seminário quanto para esta publicação, advém da percepção de que, cada vez com mais intensidade, antropólogos têm realizado um tipo de trabalho de pesquisa-nos arquivos e sobre arquivos- tradicionalmente associado a historiadores ou arquivistas. Além de utilizar arquivos como fonte de conhecimento para a produção de suas análises, desde, pelo menos, os anos 1980, os antropólogos têm refletido sobre a natureza de registros documentais transformados em fontes e, em alguns casos, têm produzido e / ou organizado arquivos e coleções a partir de uma perspectiva antropológica. Ainda assim, persiste, entre o público em geral e no mundo acadêmico (mesmo entre os próprios antropólogos), a idéia de uma associação privilegiada da antropologia com um modelo de pesquisa de campo consagrado desde a clássica introdução de Malinowski a Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922.

Apesar de vários antropólogos importantes terem feito pouca ou nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowskiano – Mauss e Lévi-Strauss são dois exemplos eloqüentes -, o trabalho de campo permanece como uma marca distintiva da disciplina aos olhos dos não-antropólogos, bem como uma espécie de ritual de passagem identitário para os próprios antropólogos, como se quem não fizesse pesquisa de campo não fosse “realmente” antropólogo.

Nos 80 anos decorridos desde a publicação de Argonautas, os “primitivos” deixaram de ser tão “primitivos” – deixaram de ser povos sem documentos, característica que então os diferenciava dos ocidentais. Antropólogos já não têm mais o objetivo de acumular!!m arquivos e coleções específicas os registros de seus “feitos”, conquistas e contatos com nativos e “exóticos”. Arquivos criados desde o século XIX com tais finalidades vêm sendo objeto de contenda, recusa, crítica e novos usos por parte de povos etnológicos e / ou populações tradicionalmente transformadas em objeto da pesquisa antropológica. Além disso, a antropologia deixou de se interessar apenas pelos “primitivos” e passou a se interessar também pelo povos “ocidentais”, com seus arquivos e patrimônios documentais já constituídos. Alguns desses investimentos resultaram numa espécie de inversão dos modelos de objetificação tradicionalmente adotados, uma vez que antropólogos e, por conseguinte, procedimentos metodológicos e relações estabelecidas no campo transformaram-se em fontes de novas leituras, poderes e disputas. Os territórios dos arquivos têm sido ocupados por novos sujeitos. Ainda que novos usos dos arquivos por parte dessas populações venham sendo observados e, por vezes, partilhados pelos antropólogos, as implicações políticas e discursivas dessas formas de intervenção nos permitem imaginar o arquivo como campo povoado por sujeitos, práticas e relações suscetíveis à análise e à experimentação antropológica.

Ao pensar esse seminário, nossa intenção não era, de forma alguma, negar o papel fundamental que a pesquisa de campo “tradicional” teve e ainda tem para a constituição da antropologia como disciplina e como recurso de método poderoso para a produção de etnografias. Nosso objetivo envolvia, no entanto, uma ampliação e diversificação da forma como se pode pensar a prática antropológica, que não a deixasse restrita à pesquisa de campo.

Há ainda muito pouca reflexão no campo da antropologia, em particular da brasileira, sobre esse tema. Imaginamos que uma forma útil de contribuir para essa discussão era partir da experiência concreta de antropólogos lidando com arquivos. Com isso, não estávamos desprezando a reflexão “teórica” sobre o tema, e sim enfatizando nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e princípios metodológicos abstratos. Esperamos que o resultado dessa experiência, aqui reproduzido, ajude a estimular novas discussões sobre o tema.

Nota

1. A homepage do seminário, que inclui a programação, os resumos e o texto completo de algumas comunicações que não foram incluídas neste número da revista) é: http: / / www.cpdoc.fgv.br / campo-arquivo /


CASTRO, Celso; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.36, jul. / dez. 2005. Acessar publicação original [DR]

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