A Igreja Católica e o Estado Novo salazarista | Duncan Simpson

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira intensificou as relações com a historiografia portuguesa no âmbito da contemporaneidade do século XX. Inúmeros intercâmbios foram estabelecidos, e investigadores passaram com frequência a cruzar o Atlântico. No Brasil, nomes como António Costa Pinto, Fernando Rosas, Álvaro Garrido, Maria Inácia Rezola e Fernando Catroga começaram a fazer parte da discussão acadêmica e intelectual. Redes de pesquisa, como a rede Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em Português3, foram criadas com o propósito de apresentar, com maior dinamismo, resultados de pesquisas que buscam reflexões acerca do mundo lusófono.

Entre esses pesquisadores, destaco Duncan Simpson como um historiador necessário para o Brasil. Com uma vasta pesquisa sobre a história política e religiosa do Estado Novo salazarista, possui um sólido conhecimento e é um dos grandes nomes da historiografia, não apenas portuguesa, visto que está inserido em uma perspectiva transnacional. Leia Mais

Salazar e Franco. La alianza del fascismo Ibérico contra la España republicana: diplomacia, prensa y progaganda | Alberto Pena Rdríguez

No sentido político, as coleções históricas contemporâneas produzidas em Espanha e Portugal mantiveram-se isoladas. As questões relacionadas a Portugal são muito subdesenvolvidas na historiografia española, assim como os estudos sobre as relações bilaterais entre os dois países. Felizmente, esta tendência está sendo revertida em decorrência da geração de estruturas comuns de pesquisa, de novas relações acadêmicas e do surgimento de múltiplas publicações históricas. O livro do Dr. Alberto Pena Rodríguez é, neste contexto, uma contribuição fundamental à abordagem dos desenvolvimentos político-econômicos e das interações socioculturais entre Espanha e Portugal nas décadas centrais do século XX. O livro Salazar e Franco. A aliança do fascismo ibérico contra a Espanha republicana: diplomacia, imprensa e propaganda é composto por dez capítulos, distribuídos em três blocos temáticos, e abriga uma extensa seção de fontes documentais.

O livro destaca a importância das ações políticas de Salazar no sentido de solapar o projeto político da Segunda República Espanhola (1931-1939), ações que podem explicar a similaridade de direitos nos países ibéricos durante os duros anos de isolamento espanhol, sob a ditadura de Franco. A investigação aponta para a existência de desenvolvimentos semelhantes e paralelos entre Espanha e Portugal e, ao mesmo tempo, chama a atenção para os elementos de rejeição e para as principais diferenças culturais e funcionais entre os dois países. Leia Mais

Salazar: uma biografia política – MENESES (Tempo)

MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar: uma biografia política. 3. ed. Lisboa: D. Quixote, 2010. Resenha de: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A monografia de um tempo português. Tempo v.17 no.31 Niterói  2011.

Em 2007, a RTP (Rádio e Televisão de Portugal) promoveu um concurso intitulado “Os Grandes Portugueses”, a fim de escolher o nome mais representativo de sua história. Concorrendo com personagens da grandeza de Camões, Vasco da Gama e Fernando Pessoa, entre outros, o ditador do Estado Novo Oliveira Salazar saiu vencedor com pouco mais de 40% dos votos.12

A despeito de sua “representatividade”, Salazar ainda não havia sido objeto de um trabalho acadêmico rigoroso. A lacuna foi, entretanto, preenchida com a chegada do estudo de Filipe Ribeiro de Meneses.

Publicada originalmente para um público não português, a obra consiste em um aprofundado estudo que integra as vidas pessoal e pública de um professor de Economia, católico e solteirão que incorporou para si a tarefa de fazer os portugueses viverem habitualmente, conforme disse ao pensador católico francês Henri Massis. O viver projetado por Salazar consistia em uma ditadura alheia às aventuras revolucionárias dos fascismos clássicos alemão e italiano ou mesmo do militarismo de pendor cesarista de seu vizinho espanhol. Filipe de Meneses consegue perceber os importantes traços de continuidade entre o filho de Santa Comba Dão, o ex-seminarista que, quando ingressou como professor da Universidade de Coimbra, apresentou uma tese defensora da pequena propriedade agrícola, e o chefe de governo que nunca deixou de afirmar a superioridade do campo sobre a cidade, esta lugar dos “vícios dissolventes” da tradição portuguesa.

Filho caçula de uma família pobre, com quatro irmãs, Salazar estudou no seminário de Viseu. Destacado aluno, ingressou na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1911. Dessa época o livro aponta para relações de amizade que permaneceram ao longo de toda a vida do futuro ditador, como Mário de Figueiredo e Manuel Gonçalves Cerejeira, o futuro patriarca da Igreja Católica em Portugal.

Militante na Universidade do Centro Católico, Salazar foi sempre fiel aos valores legados de um pensamento social católico que tem na Encíclica Rerum Novarum a sua principal referência. Foi, por isso, um forte opositor tanto do liberalismo e da democracia parlamentar quanto do comunismo e dos movimentos socialistas. Seu projeto político-ideológico sempre foi a constituição, em Portugal, de um regime centralizado e fiel às tradições que, a seu ver, marcam a formação portuguesa: um catolicismo marcado por uma forte vocação messiânica, cruzadista e expansionista.

O livro é rico em exemplos que demonstram a capacidade de Salazar em mediar com interesses conflitantes no seio do regime autoritário. Como ministro das Finanças, arquitetou a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil e corporativa sob o seu controle. Mantendo sempre um militar na presidência, não deixou de acalentar as esperanças dos monarquistas ávidos pela mudança do regime. Na montagem do governo, incorporou à sua máquina republicanos conservadores, católicos e até mesmo militantes do integralismo lusitano, a versão portuguesa do fascismo. Nesse caso, sobretudo, trouxe para a esfera da administração jovens universitários que, em breve tempo, teriam espaço e importância crescente no regime, como Pedro Teotónio Pereira e Marcello Caetano. Ciente do complexo leque de alianças que o apoiava, Salazar dissolveu o Centro Católico e criou um partido único, um “não partido”, de acordo com suas palavras, a União Nacional. A constituição aprovada em 1933, corporativa e autoritária, manteve, entretanto, um verniz liberal quer na permanência de uma Câmara, aliás duas, se contarmos a Câmara Corporativa, quer na eleição, por sufrágio universal, do presidente da República.

Apesar da preocupação em analisar a vida privada de Salazar, o livro cresce nos momentos em que relata as crises vividas pelo Estado Novo português e as medidas tomadas por Salazar. Como durante a Segunda Guerra Mundial, quando a incerteza a respeito da continuidade do Estado Novo era motivo de euforia para seus opositores e preocupação para seus adeptos. Naquela conjuntura, Salazar adotou uma política de neutralidade, ao mesmo tempo em que envidava todos os esforços para impedir que a vizinha Espanha aderisse ao conflito. Neutralidade que, entretanto, não impediu a cessão para os Aliados da Base Militar dos Açores. A estratégia do ditador garantiu a entrada imediata de Portugal na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a continuidade do regime no pós-guerra. No final da década de 1950, novo período de instabilidade, com a campanha à presidência da República de Humberto Delgado. Uma campanha de massas, “à americana”, estranha e incômoda ao regime. Também na década de 1950, Salazar se viu obrigado a mediar as disputas entre setores “conservadores”, sob a liderança de Santos Costa, e “modernos”, capitaneados por Marcello Caetano.

Mas foi na década de 1960 que o “caldo” começou de fato a entornar. Os estudantes saíam às ruas e misturavam reivindicações tanto acadêmicas como políticas. Nas relações diplomáticas, a Europa tornava-se um parceiro cada vez mais constante, relativizando a natureza atlântica, tão cara aos adeptos do Estado Novo. Mas, sobretudo na África, os movimentos de libertação começavam, em 1961, a defender a ruptura com a antiga metrópole. Apesar de tentativas de mediação por parte das diplomacias americana, brasileira, espanhola ou mesmo do Vaticano, Salazar recusava-se a ceder ou mesmo negociar. “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”, foi o que disse em resposta às insistentes pressões internacionais. Em 1968, ano em que sofre o acidente caseiro que o impossibilita de continuar a governar, a guerra colonial já não tinha retorno. Com ela, o país vê seus braços partirem. Para o ultramar alguns. Para a França ou para o Brasil outros. Que se a participar de um conflito que não compreendiam e não aceitavam, pelo menos não a ponto de se alistarem na tropa. Um paradoxo: o ditador recusava-se a mover qualquer palha em um país que já não vivia mais “habitualmente”. Essa última década de vida política de Salazar foi também a que sofreu mais questionamentos, inclusive internos. A recusa de ceder no caso africano reproduzia-se também na relação com o poder. Cedê-lo pressupunha a possibilidade de ser criticado por sucessores. Nesse caso, a aparência franciscana podia também ser confundida com arrogância e alhea-mento para com os outros.

Disse Gramsci que a trajetória de um homem pode ser a monografia de seu tempo. O livro de Filipe Ribeiro de Meneses, sólido, erudito, bem-documentado, é uma referência obrigatória para o entendimento da recente história portuguesa.

Francisco Carlos Palomanes Martinho – Professor do Departamento de História da USP e pesquisador do CNPq.

 

 

 

MENDONÇA, Sonia Regina de. O Patronato Rural no Brasil Recente (1964-1993). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010. Resenha de: MOTTA, Márcia. Uma zona de sombra: o rural de nossos dias. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

Uma zona de sombra da historiografia. É com estas palavras que a historiadora Sonia Mendonça apresenta o tema de sua trajetória acadêmica, mais uma vez registrada em livro. Ao perseguir as relações intraclasse dominante agrária, Mendonça discute em “O Patronato Rural“, como se estabelecem as relações e os fortes interesses dos grandes proprietários rurais no interior das agências estatais, entre os anos de 1964 a 1993.

O objeto de pesquisa por si só não é dos melhores, se entendemos uma obra a partir do registro de um passado festivo, cheio de glórias e comemorações.

O tema é feio e seus efeitos são ainda piores, mas eles fazem parte do lado obscuro de nossa história, ainda tão presente e tão pouco estudado. Como fantasmas, seus efeitos perseguem alguns poucos historiadores, suficientemente preparados para desvendá-los por detrás dos véus.

Na contracorrente de uma história bonita, Mendonça dilacera nossas visões mais otimistas e demonstra que estamos ainda longe de um país mais generoso para com os seus. Ao perseguir e esquadrinhar os sentidos das “modernizações”, a autora nos revela as estratégias utilizadas pelos terratenentes para chamar de nossos os seus interesses.

O livro exige leitura atenta, cuidadosa, já que a rigor o leitor mais desavisado, há de ter alguma dificuldade para acompanhar as principais ilações ali registradas. Para os mais interessados, asseguro: o esforço vale a pena. O próprio estilo da autora expressa uma resistência, contra as leituras prazerosas e superficiais de nossos dias. O leitor não estará lendo um resumo dos argumentos da imprensa diária, sempre pronta a falar sobre o que não sabe e a construir juízos de valor acerca de grupos sociais que desconhece. Também não há de encontrar ali um estilo poético, pois não há nada de poesia nos mecanismos de dominação/convencimento empregados pelos “nossos fazendeiros”.

O capitulo primeiro é uma aula, dessas que – como dizíamos quando jovens – só mesmo a Sônia Mendonça para ministrar. Ao deslindar as propostas presentes no Estatuto da Terra do governo Castelo Branco, a autora nos oferece uma oportunidade ímpar de conhecer a fundo quais eram os distintos projetos políticos da Sociedade Nacional de Agricultura e da Sociedade Rural Brasileira – entidades patronais – na “luta travada entre elas pela condição de porta-vozes autorizados e legítimos das facções agrárias da classe dominante agrária”. Mas se havia divisão, havia também união, cumplicidade; principalmente em relação aos projetos de reforma agrária dos setores de esquerda, na conjuntura que culminou com o Golpe de 64. É em oposição à mobilização camponesa e sua proposta de reforma que irão se insurgir as agremiações patronais, contra aquilo que consideram o mais grave dos crimes: o ataque à grande propriedade e ao direito de ser proprietário.

Não é preciso repetir aqui o que todos sabem e naturalizam. A partir do Golpe de 64, a grande propriedade rural é absolvida e consagra-se a ideia de que ela não deve ser discutida, questionada, mas estimulada. A concentração territorial não é mais um pecado; é, quanto muito, a expressão de nossa especificidade, num país que orgulhosamente chamamos de continental.

Não á toa, os anos de abertura política reinauguraram as tensões entre as entidades patronais, sempre dispostas a defender a política de modernização da agricultura com subsídios fiscais. Mas a abertura também implicou a renovação da esperança, a expectativa de um acerto de contas com o passado, expresso – por exemplo – na promulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Sarney, cuja proposta, a princípio, visava atender às demandas sociais mais urgentes no campo, principalmente em relação aos conflitos fundiários. O fracasso da proposta expressou, mais uma vez, que a despeito das diferenças, as entidades patronais não estiveram dispostas a construir um consenso político a favor das mudanças.

O papel específico da Sociedade Nacional da Agricultura é o tema do capítulo dois. Nele, Mendonça analisa a revista A Lavouracorpus documental raras vezes utilizado pelos historiadores. Enquanto entidade de classe, a SNA defendeu suas propostas a partir de cinco eixos: a modernização da agricultura, a difusão do cooperativismo como instrumento de desenvolvimento agrícola, a necessidade de se empreender algum tipo de reforma agrária, a implementação de uma justiça agrária e o combate ao tabelamento de preços. Para além da excepcionalidade da entidade na defesa de algum tipo de reforma agrária e de justiça social (questões ausentes da pauta de outras entidades patronais) destaca-se também o apelo nos últimos anos em favor da causa ecológica, no esforço de consagrar-se como a legítima e histórica entidade preocupada com as questões ambientais.

O terceiro capítulo é dedicado à Sociedade Rural Brasileira, cujas visões de classe são expressas em outra revista A Rural, também pouquíssimo explorada por historiadores. Coerente com suas bases sociais, a entidade procuraria defender os interesses dos grandes cafeicultores, agropecuaristas e empresas agroindustriais. Em nome deste grupo, a SRB se poria radicalmente contra qualquer alteração da estrutura fundiária no país, na defesa de uma posição assentada na intocabilidade da propriedade territorial. Mas a entidade também criou uma dada concepção de reforma agrária que se consubstanciou na defesa de uma política agrícola e na construção de uma nova imagem do “moderno” produtor rural, “de cujos atributos a entidade ressaltava o uso da tecnologia/pesquisa de ponta”.

Mas se a história do campo brasileiro tem a marca da complexidade, parece-nos óbvio que suas demandas e perspectivas não se resumem apenas a duas entidades de classe. Para além do dualismo e das disputas entre a SNA e a SRB, o quarto capítulo é dedicado ao estudo da Organização das Cooperativas Brasileiras, umas das mais jovens agremiações patronais que, após a abertura política, tornar-se-ia a grande força dirigente do patronato “agrário” nacional. Na OCB, o foco é o apelo ao cooperativismo, enquanto expressão maior da democracia e do igualitarismo. Entende-se assim que a reforma agrária defendida pela entidade está assentada na ideia do cooperativismo. Seus dirigentes se veem como os porta-vozes do que há de mais moderno: o agronegócio, modernizando a agricultura brasileira em bases empresariais e internacionalizadas. A atuação da entidade é ainda o exemplo emblemático das estratégias de construção de hegemonia e de representação política no interior do Estado Brasileiro.

O coroamento desta hegemonia – expressa na consolidação do papel e importância do agronegócio – é exemplificado pela criação da Associação Brasileira de Agribusiness, objeto do último capítulo. Em nome do novo – o agronegócio – e da necessidade de encontrar novos canais de representação política, a ABAG, como é comumente chamada, constitui-se na face mais obscura do poder dos empresários rurais, não apenas como uma entidade patronal de defesa de seus interesses de classe, mas como uma agremiação de empresas. A “responsabilidade social dos empresários do agronegócio com a sustentação alimentar de uma comunidade internacional altamente ‘globalizada’ seria o grande argumento de sua legitimação e da produção do consenso em âmbito nacional”. Na construção deste discurso e na falácia do consenso, a sociedade brasileira condena – sem ao menos se dar a conhecer – a pequena produção familiar que, mais uma vez, é refém de valores sociais que lhe são impostos de fora: atrasada, antiprodutiva, sem função.

Há, em suma, um novo projeto para a agricultura brasileira, vendido em prosas e versos nas campanhas publicitárias, nas propostas do governo, nas telenovelas, nos jornais. Tal projeto – o agribusiness – dificulta o nosso olhar sobre os problemas e mazelas do campo brasileiro e deslegitima e condena ao esquecimento a trajetória e luta dos pequenos agricultores deste país, responsáveis – eles sim – por parte ainda importante da produção de alimentos do Brasil. Eu conto nos dedos quantos historiadores estão cientes desta elementar informação…

Márcia Motta – Doutora em Historia e Professora da Universidade Federal Fluminense.

Esportare il fascismo. Collaborazione di polizia e diplomazia culturale tra Italia fascista e Portogallo di Salazar (1928-1945) – IVANI (LH)

IVANI, Mario. Esportare il fascismo. Collaborazione di polizia e diplomazia culturale tra Italia fascista e Portogallo di Salazar (1928-1945). Bolonha: CLUEB, 2008. Resenha de: NUNES, João Arsénio. Ler História, n.57, p. 162-166, 2009.

1 Com este livro Mario Ivani prolonga o trabalho de comparação entre o fascismo italiano e o regime salazarista, acerca da qual já em 2005 publicara o que se pode considerar, até hoje, a síntese mais conseguida1. Objecto de análise é agora não tanto o confronto entre os dois regimes como o estudo da relação entre eles, tomando como ângulo de observação a tentativa italiana de alargar a sua influência política e cultural em Portugal.

2 O capítulo 1 descreve o nascimento do Estado Novo salazarista, partindo da análise das diversas componentes da ditadura militar instaurada em 1926 e da posição que Salazar nela ocupou. Ivani situa em 1936, com a eclosão da guerra civil de Espanha, a viragem decisiva que «reduziu em muito as distâncias entre o Estado Novo e o modelo político fascista». É a partir do segundo capítulo que a problemática das ideias e organizações fascistas portuguesas é abordada com autonomia. Regista-se pertinentemente que, desde início, «o advento do fascismo suscitou em Portugal uma grande atenção nos meios nacionalistas e reaccionários» e que a influência dos movimentos portugueses de derivação fascista tem sido em geral subvalorizada. Ivani deixa claro como tais movimentos, do Nacionalismo Lusitano ao Nacional-sindicalismo e à Liga Nacional 28 de Maio, se relacionaram directamente com a implantação e os primeiros anos de existência da ditadura, bem como o papel que personalidades a eles ligadas, como António Ferro, vieram a ter no regime salazarista, qualificado pelo mesmo Ferro como «fascismo em acto».

3 A tentativa italiana de «exportação» do modelo fascista constitui o objecto central da obra. Numa primeira fase, tal tentativa assume uma forma essencialmente propagandística, sendo contemporânea de outras iniciativas internacionais do regime mussoliniano, como o Congresso internacional fascista de Montreux (1934). Consistiu ela na criação dos «comités de acção pela universalidade de Roma» (CAUR) e de uma «Liga de acção universal corporativa» que, embora tendo chegado a atrair a adesão de um certo número de figuras de relevo intelectual, não lograram alcançar implantação significativa. Para o autor, o aspecto importante da acção do fascismo italiano no sentido de influenciar o Estado Novo salazarista não se situa tanto nestas tentativas de carácter directamente propagandístico como num processo de penetração orgânica mais difusa e prolongada. Numa perspectiva em que é visível a lição de Gramsci, o autor sublinha a necessidade de encarar «o conúbio entre repressão e máquina do consenso» na consolidação das ditaduras europeias e as implicações do quadro internacional em que ela decorre: «com o advento do nazismo, o antifascismo tinha superado a fase essencialmente italiana para assumir uma consumada dimensão internacional, em resposta à qual as ditaduras de direita intensificaram a colaboração de polícia.»

4 Antes de entrar propriamente na análise da colaboração orgânica entre as organizações policiais italiana e portuguesa, o livro dedica um capítulo à atitude das autoridades portuguesas perante o afluxo dos refugiados. Mostra-se como abundam os juízos racistas em relatórios da PVDE, e sobretudo como foram adoptadas medidas bastante amplas tendentes a obstaculizar a entrada de judeus ou a promover a sua expulsão: medidas que decorriam logicamente do juízo expresso pelo chefe da polícia política, segundo o qual «o hebreu estrangeiro é, por norma, moral e politicamente indesejável». Foram perseguidas, tanto em Portugal como no estrangeiro, através da colaboração com outras polícias, as redes que tentavam organizar a passagem de refugiados para Portugal. O italiano Virgilio Bartolini, acusado de implicação numa destas redes, passou três anos nas prisões e no campo de concentração do Tarrafal, sem nunca ter sido julgado. Também os judeus portugueses, nomeadamente os envolvidos na actividade de difusão religiosa da Obra do Resgate, foram objecto de discriminações, vindo o principal animador desta, o capitão Barros Basto, a ser expulso do Exército.

5 Um dos capítulos de maior interesse do livro é o que respeita às relações entre as polícias italiana e portuguesa, nomeadamente a minuciosa e inovadora análise da actividade dos membros da missão de Polícia italiana enviada a Portugal em 1937, dois dos quais permaneceram no país por quase três anos. O envio da missão nasceu de uma iniciativa do próprio Salazar perante o impasse da investigação acerca do atentado de 4 de Julho de 1937, que por pouco o não vitimou. Com efeito, a polícia política portuguesa partiu do pressuposto da responsabilidade comunista no atentado e rapidamente conseguiu, com os seus métodos habituais, a confissão dos acusados. Viria a verificar-se que eram todos inocentes mas, no curso da detenção, dois deles perderam a vida. O livro deixa claro o alcance que esta missão tinha para os agentes italianos – «alargar os espaços de manobra no interior dos aparelhos portugueses significava também estender por essa via a influência do fascismo entre as elites locais, contribuindo num esforço conjunto com os órgãos de propaganda para a tentativa de exportar o modelo fascista para Portugal» –, e bem assim as fortíssimas resistências que suscitou na direcção da polícia política portuguesa. A missão italiana recusou o caminho de estabelecer relações privilegiadas com instituições, como a Legião Portuguesa, que as procuravam, preferindo manter-se no quadro das relações estáveis com as autoridades designadas pelo governo português. O resultado cifrou-se sobretudo na conclusão de um acordo técnico entre as duas polícias (semelhante a análogo acordo italo-alemão). Com base neste acordo se deu nos anos seguintes uma reforma dos métodos da polícia política portuguesa, tendo como efeito uma muito maior penetração e sistematicidade da recolha de informações entre a população, no sentido do controle e infiltração dos meios oposicionistas.

6 Quase metade da obra é dedicada à «exportação da ideia: diplomacia cultural e propaganda fascista em Portugal» (capítulo 4). Partindo dos modestos inícios da fundação do Instituto em 1928, é analisada com detalhe a acção, que se intensifica a partir de 1933, tendente a «constituir entre os intelectuais portugueses uma espécie de partido filo-italiano». Uma série de conferências, realizadas neste ano por nomes destacados da cultura literária e científica portuguesa, lançou aquilo que na imprensa de Lisboa era descrito como «um movimento de aproximação intelectual com a Itália». Tal acção não se encerrou nas paredes do Instituto Italiano. O director do Instituto de Ciências Económicas e Financeiras, Moses Amzalak, tomou a iniciativa da criação na sua Faculdade de uma «sala italiana», inaugurada em princípios de 1935, onde chegaram a iniciar-se os trabalhos de uma «escola sindical italiana». Não menos interessante é o teor das declarações produzidas nas conferências, tendentes a reclamar os pergaminhos portugueses na história do fascismo europeu: segundo um dos conferencistas, Mussolini, Salazar e Hitler encarnavam o ideal preconizado no princípio do século XX pelo rei português D. Carlos, «figura eminente na origem da actual concepção da suprema política de guiar os povos» e continuado por João Franco e Sidónio Pais.

7 O movimento de difusão cultural fascista sofre uma breve quebra, em 1935, em relação com a agressão italiana à Etiópia e a adesão do governo português à política de sanções económicas contra a Itália, adoptada pela Sociedade das Nações. Tal adesão deveu-se em larga medida à orientação anglófila do ministro dos Negócios Estrangeiros, Armindo Monteiro, no ano seguinte demitido por Salazar2. Este contexto diz muito sobre as realidades portuguesas da época, ao mesmo tempo que explica a observação do ministro italiano em Lisboa, citada no livro, acerca da imprensa portuguesa: «hoje a parte que nos é mais favorável é a mais próxima do governo que entretanto, o paradoxo é só aparente, segue uma política decididamente inglesa».

8 Um aspecto com uma presença marginal, mas não irrelevante, na obra de Mario Ivani, são as acções de agitação anti-fascista que, apesar da perseguição policial, persistem na sociedade portuguesa e encontram ainda forma de expressão pública. Assim por exemplo, a contestação de que são objecto os leitorados de italiano nas três universidades do país, chegando-se em Lisboa, no fim de uma lição inaugural, a «gritos de ‘viva a Abissínia’ e ‘viva o comunismo’ no meio de uma algazarra geral», como é referido num relatório diplomático. Mais tarde, em 1939, uma exposição do livro italiano na «sala do Império» da Universidade de Coimbra será alvo de uma acção clandestina de sabotagem que leva à anulação da cerimónia e a um protesto oficial do governo italiano.

9 A vitória militar italiana na Etiópia relança as manifestações de solidariedade política luso-italiana. Mas sobretudo a guerra civil de Espanha, a partir de Julho de 1936, vai presenciar a unidade dos regimes italiano, alemão e português no apoio à rebelião franquista e abrir novas oportunidades à acção do Instituto de cultura, que «obtém crescentes consensos no interior da camada política e intelectual salazarista.» São relançadas as conferências de personalidades italianas e portuguesas sobre as afinidades das instituições dos dois países nos mais diversos campos. Figuras de destaque da política italiana, como Federzoni, presidente da Academia de Itália e anteriormente do Senado, visitam Portugal. Em 1937, as comemorações do centenário da Universidade de Coimbra, a que Salazar assiste, «transformaram-se num explícito tributo às delegações italiana, espanhola e alemã» e manifestação da unidade dos fascismos. São italianos a receber então o maior número de doutoramentos honoris causa.

10 O autor dedica ainda espaço a uma outra questão acerca da qual não havia investigação anterior, a da influência dos estudos eugénicos, analisando o Congresso de Ciências da População, realizado no Porto em 1940, e a criação em 1936 da Obra das Mães para a Educação Nacional, inspirada na italiana Opera Nazionale per la Maternità e l’Infanzia.

11 A parte dedicada à «acção sobre a imprensa portuguesa» é uma das mais interessantes, no aspecto da revelação do grau de identificação de importantes sectores da sociedade e da política portuguesa com as orientações do fascismo italiano, no período que precede a II Guerra mundial. O adido de imprensa da representação diplomática italiana desenvolve um trabalho sistemático de distribuição de propaganda a figuras influentes vistas como simpatizantes e cuida, além disso, do acompanhamento da imprensa portuguesa. Consegue não só fazer publicar em jornais portugueses, sob pseudónimo, os seus artigos, mas também que textos enviados pelo Ministério da Cultura Popular italiano fossem publicados no Século como artigos do seu «correspondente em Roma». Esta parte da investigação é ainda importante pelo que mostra da orientação governamental, através da União Nacional e do seu órgão de imprensa: «No decurso de 1939, o Diário da Manhã radicalizou a sua orientação a favor do modelo político italiano», correspondendo à visão de Salazar, no princípio da II Guerra mundial, da Itália como garante de uma «zona de paz». Esta italofilia não foi afectada pela publicação das leis raciais em Itália, pelo contrário: «no decurso de 1939 a aproximação do Diário da Manhã às posições do fascismo incluiu uma mais explícita exposição em sentido anti-semita».

12 O autor não restringe a análise aos jornais da capital. Também a imprensa da província é sujeita a escrutínio, constatando-se, na segunda metade dos anos 30, «o florescer de uma série de publicações periódicas de orientação limpidamente fascista, difundidas mesmo nos pequenos centros urbanos». São analisados em detalhe os instrumentos de influência italianos sobre esta imprensa, que tinham de se defrontar com os recursos financeiros superiores da concorrência, não só francesa e inglesa, mas também dos aliados alemães.

13 A partir da entrada da Itália na Guerra, as exigências decorrentes da manutenção da neutralidade portuguesa impunham limites mais estreitos à propaganda italiana. No entanto, são-nos dadas a conhecer em pormenor as actividades, legais e «clandestinas», então desenvolvidas, a distribuição de propaganda a simpatizantes (e quem eram), a recolha de informações sobre os inimigos, as formas de apoio à imprensa legal, nomeadamente de carácter local, que permanece «fiel». Não cessou nesta época a actividade político-cultural do Instituto, através de concertos, sessões de poesia e também de conferências não isentas de alcance político, nas quais continuaram a participar altas personalidades do regime salazarista. Sobretudo, é a partir de então que se verifica uma concentração de esforços na difusão da língua nas escolas portuguesas: na primavera de 1943, havia no país 57 institutos de nível médio e superior com cursos de italiano, contando com mais de 3500 inscritos, número considerável nas condições da escolaridade portuguesa da época.

14 Também a análise do período que medeia entre o 25 de Julho de 1943, data da demissão de Mussolini, e o derrube definitivo do fascismo italiano em 25 de Abril de 1945, não é deixada de lado: destinos diversos e contraditórios do pessoal diplomático e educativo italiano em Portugal, consoante aderiu ao novo governo de Badoglio ou à república de Salò, continuação da actividade fascista a coberto da direcção do Instituto no Porto, relações com os representantes dos Aliados, recusa da polícia portuguesa a impedir a actividade dos partidários de Salò em Portugal, são alguns dos elementos referidos.

15 Um último capítulo, sobre «a comunidade italiana como instrumento de propaganda», em que são sucessivamente passados em revista os «fasci all’estero» (cujo aparecimento em Portugal é anterior a 1926), a Igreja italiana e a actividade das escolas italianas em Portugal, conclui a obra.

Notas

1 «Il Portogallo di Salazar e l’Italia fascista: una comparazione», Studi storici, aprile-giugno 2005 (…)

2 Valentim Alexandre, O Roubo das Almas, D. Quixote, Lisboa, 2006, nomeadamente pp. 110-114.

 

João Arsénio Nunes – Dep. História – CEHCP – ISCTE-IUL

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