Posts com a Tag ‘Antíteses (An)’
O legado de Marte. olhares múltiplos sobre a Guerra do Paraguai | Marcello José Gomes Loureiro
Marcello José Gomes Loureiro | Imagem: Mondes Americains
Guerras são episódios traumáticos que marcam de maneira indelével países e populações. Por tratar-se do último grande conflito bélico platino e por sua extensão, dramaticidade e sanguinolência, a Guerra do Paraguai marcou a história das Américas. Dela quase todas as quatro nações envolvidas saíram prejudicadas, sobretudo o Paraguai, todas passaram por mudanças, tanto nas relações entre si, quanto nas suas vidas políticas e institucionais internas, e suas populações tiveram as vidas alteradas.
O Brasil não estava preparado para uma guerra de tamanha envergadura como a campanha contra o Paraguai, e teve que mobilizar às pressas a população para constituir um exército, transformando civis em combatentes. Além disto, o governo imperial teve que enfrentar uma série de desafios, militares, diplomáticos e de política interna. Os seis anos do conflito desviaram a atenção do governo das reformas internas; levou a enormes gastos com a luta, gerando um déficit público que persistiu até 1889; explicitou as contradições de uma sociedade que tinha a escravidão como principal instituição; colocou à prova elementos definidores das relações sociais e da cidadania e transformou o exército em importante agente político. Além disto, os historiadores são praticamente unânimes em considerar que a guerra marcou o princípio de erosão do sistema monárquico. Leia Mais
Utopias latino-americanas: política, sociedade, cultura | Maria Ligia Coelho Prado
Maria Ligia Coelho Prado | Imagem: Revista Pesquisa
O livro Utopias latino-americanas: política, sociedade, cultura, publicado pela editora Contexto em 2021, constitui-se não apenas em uma valiosa contribuição aos estudos acadêmicos especializados, mas também em uma obra acessível a um público leitor mais amplo, interessado pela história da nossa região. É organizado pela historiadora Maria Ligia Coelho Prado, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.2 Prado, que iniciou a docência em História da América em 1975, é também uma das responsáveis por estruturar a área no Brasil, por meio da orientação de gerações de historiadores – hoje professores em diferentes instituições pelo país – e de sua participação na fundação e organização da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), a qual presidiu entre 1998 e 2000.3 Foi coordenadora do Projeto Temático/Fapesp Cultura e Política nas Américas: Circulação de Ideias e Configuração de Identidades (séculos XIX e XX), cujas atividades se estenderam entre 2007 e 2011, e primeira coordenadora do Laboratório de Estudos de História das Américas (LEHA) do Departamento de História da USP, entre 2009 e 2012.4 É autora e coautora de diversos trabalhos, que se tornaram referência dentro da produção historiográfica brasileira acerca das Américas, aos quais se soma esta nova contribuição, idealizada para comemorar seu aniversário de 80 anos.
Percorrendo o sumário do livro, dois aspectos nos surpreendem. Em primeiro lugar, o grande número de pesquisadores que Maria Ligia Prado conseguiu reunir, espalhados por universidades brasileiras e estrangeiras. Em segundo lugar, a variedade de “utopias latino-americanas” contempladas na obra, distribuídas em cinco diferentes seções e em 22 capítulos, que fazem jus ao título escrito no plural. A preocupação com os projetos utópicos que tiveram lugar na América Latina articula os capítulos do livro, dando-lhe um fio condutor que percorre as suas páginas. As múltiplas utopias exploradas nas cinco seções colocam em cena numerosos personagens, conectando espaços e temporalidades, desde o século XIX até o nosso tempo presente. O Brasil aparece em diversos capítulos, seja em perspectiva comparada com outros países, seja dentro das reflexões a respeito dos projetos de integração da região. Leia Mais
Guerras de papel: comunicação escrita, política e comércio na monarquia ultramarina portuguesa | Romulo Valle Salvino
O livro de Romulo Valle Salvino, adaptação de sua tese de doutorado (SALVINO, 2018), se propõe a analisar a história de um projeto fracassado: a tentativa de atuação de representantes do Correio-mor na América portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. As guerras de papel, aludidas no título, se referem aos dissensos e disputas, políticas e judiciais, travadas em diferentes instâncias da monarquia portuguesa pelos grupos e indivíduos envolvidos nesse processo que se estendeu entre meados de 1650 até, aproximadamente, 1750.
A abordagem se estrutura ao redor de três eixos principais, com envergaduras cronológicas distintas e naturezas específicas. Primeiro, o deslocamento de uma concepção jurisdicionalista do poder e da administração da economia para uma economia política. Em segundo lugar, o ofício de Correio-mor é tomado como um indício da lógica patrimonial de gestão administrativa da monarquia que passa a receber profundas críticas. Por fim, o terceiro eixo consiste nas estratégias específicas das coletividades e agentes engajados na instalação, ou oposição, do Correio-mor nos domínios portugueses na América completando, assim, a unidade de análise esboçada pelo autor. Leia Mais
Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599): Regime Escolar e Plano de Estudos
“Tem valor a publicação de um texto educativo do século XVI quando, em pleno século XXI nos encontramos com diversos aportes pedagógicos mais variados e entrelaçados com as ciências humanas”? Esta é a pergunta que Luiz Fernando Klein faz ao prefaciar a obra Ratio Studiorum da Companhia de Jesus: Regime Escolar e Planos de Estudos, publicada recentemente em Portugal, pela professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Margarida Miranda. A esta questão, o próprio Klein responde que o lugar da Ratio Studiorum é insubstituível na história da pedagogia, pois foi a primeira sistematização de estudos que se fez no mundo moderno e possui lugar assegurado nos currículos dos cursos de formação em educação na maioria das instituições educativas de nível superior.
A única publicação da Ratio Studiorum em língua portuguesa era a do padre Leonel Franca, em 1952, por meio da Editora Agir, no Rio de Janeiro, sob o título de O método pedagógico dos jesuítas, porém, há muito tempo esgotada. Depois dessa publicação, somente em 2019 a Editora Kírion fez uma nova republicação dessa mesma tradução. De modo que, a publicação realizada pela professora Margarida, em 2018, veio atender a uma necessidade da comunidade acadêmica de língua portuguesa. Leia Mais
Patrañas que me contó mi profe. En qué se equivocan los libros de historia de los Estados Unidos | James Loewen
En todos los sistemas educativos contemporáneos, incluso en las democracias occidentales, existe una tendencia a construir una narrativa histórica moldeada por múltiples formulaciones ideológicas e identidades culturales. Esa narrativa cristaliza en los libros de texto de la educación secundaria de muy diferentes formas; toma relevancia a través de unos arquetipos temáticos elementales. Las adecuaciones del relato histórico son connaturales al sistema de creencias y a la simbología nacional del país. Mediante la sucesión de varias generaciones de docentes y gestores educativos, se han producido desconexiones entre las tendencias historiográficas generales y el proceso de consolidación de la interpretación histórica en los libros de texto.
En el caso concreto de los Estados Unidos, las narrativas históricas, reproducidas en los libros de texto, no vienen impuestas de forma programada a través de la legislación educativa, sino que se basan en una especie de acervo colectivo. Dicho acervo dimana de una especie de experiencia acumulativa de todo el sistema. De forma progresiva y algunas veces improvisada, los hechos históricos son presentados al alumnado de manera “legendarizada”, por la implementación de un mecanismo pedagógico de transmisión de valores y principios en el temario. En otros casos, son presentados de manera parcialmente distorsionada, por la síntesis selectiva que se aplica para registrar elementos en dicho temario. Leia Mais
Que emoção! Que emoção? Georges Didi-Huberman
A obra “Que emoção! Que emoção?”, traduzida para o português por Cecília Ciscato, é um ensaio-conferência de Georges Didi-Huberman, lançado pela primeira vez em 2016, com reedição em 2018. No breve texto, que aborda autores ocidentais como Darwin, Nietzsche, Hegel e Sartre, o filósofo e historiador de arte pretende pensar as emoções de maneira introdutória e a partir do ato emocionado de chorar.
O choro, essa emoção manifestada em lágrimas, é o ponto de partida da narrativa que propõe, também, a observação de antigos retratos de crianças e desenhos que ilustram expressões faciais de animais e seres humanos, além de fotografias de eventos como velórios, obras de artes e cenas de filmes. São imagens que nos ajudam a perceber semelhanças históricas sobre o jeito de emocionar-se. Com isso, Didi-Huberman chama atenção para a capacidade que temos de não somente expressar, da mesma forma, as mesmas emoções, mas de também aprender, pela passagem do tempo, códigos sociais e modos culturais comuns e legíveis à nossa comunidade. Leia Mais
Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944) – ROSENBERG (A)
ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p. Resenha de: BERTONHA, João Fabio. Resenha de: Antíteses, Londrina, v.12, n. 24, p. 677-685, jul-dez. 2019.
Alfred Rosenberg (1893-1945) foi um nazista proeminente, mas é uma figura relativamente desconhecida para o grande público atualmente, ao contrário de outros, como Goebbels, Himmler ou Göring. Rosenberg, afinal, não comandou diretamente as operações de extermínio que marcaram o Terceiro Reich, não liderou Exércitos e nem conduziu ações espetaculares de propaganda. Ele teve, contudo, muita influência – ainda que ela tenha declinado com o tempo – no regime nazista. Hitler o nomeou para inúmeras posições de poder e seus escritos o levaram a condição de ideólogo chefe do nazismo. Ele era o grande doutrinador a quem todos prestavam atenção, mesmo quando não entendiam o que ele propunha ou consideravam, no íntimo, que suas ideias eram sem sentido.
Dois livros recentes, publicados em português, nos permitem ter uma primeira aproximação ao pensamento e às ações políticas desse homem. O primeiro, de Robert Wittman e David Kinney é, em essência, uma grande reportagem sobre o destino dos papéis de Rosenberg desde 1945 até a sua recuperação e disponibilização ao público, em 2013. Os autores combinam, no decorrer dessa reportagem em forma de livro, as trajetórias pessoais de Rosenberg e de Robert Kempner, o advogado que recuperou os diários (e outros papéis) na Alemanha e os trouxe para os Estados Unidos. O vai e vem dos papéis dentro dos Estados Unidos e os vários personagens que os possuíram ou tiveram interesse neles formam uma narrativa que prende o leitor, especialmente do historiador que está sempre a caça de fontes e documentos inéditos.
O segundo é mais denso e informativo, pois se trata justamente desses diários. Publicados com uma excelente análise crítica escrita pelos historiadores Juergen Matthaus e Frank Bajohr, eles nos trazem, em centenas de páginas, a possibilidade de olhar para dentro da mente e dos pensamentos de Alfred Rosenberg.
Obviamente, diários, como qualquer outra fonte, devem ser vistos com os cuidados metodológicos devidos. Nem sempre eles são confiáveis para datas e acontecimentos específicos e seu caráter de “monumento pessoal” os fazem documentos a serem lidos com especial cuidado. Ali, afinal, está o coração pulsando da memória de uma pessoa, aquilo que ela queria deixar registrado, com maior ou menor sinceridade, para o futuro. Todas as discussões teóricas sobre a “escrita de si”, sobre as diferenças entre memória e história e correlatas são especialmente necessárias aqui.
Aliás, como bem indicado pelos organizadores na introdução, o problema da redação de diários adquire um significado próprio quando se trata do Terceiro Reich. Normalmente, as pessoas escrevem diários para permitir uma reflexão sobre a própria vida, para facilitar a tomada de decisões ou a elaboração de ideias ou, ainda, para deixar um registro próprio dos acontecimentos vividos.
Na Alemanha nazista, contudo, a própria ideologia do movimento tornava esse exercício diarista inútil e até perigoso. Perigoso, pois deixar provas materiais de pensamento autônomo ou de divergência frente ao regime podia significar simplesmente a produção de provas que seriam usadas pelos inimigos.
E inútil, pois os nazistas se orgulhavam de serem homens de ação, sem tempo ou necessidade de reflexão crítica, adeptos do irracionalismo, numa perspectiva anti-intelectual. Obedecer aos líderes e agir era muito mais valorizado do que pensar e refletir, pelo que escrever num caderno todos os dias não servia para nada.
Além disso, os nazistas eram, em geral, pessoas de convicções ideológicas sólidas. Não no sentido de terem ponderado cuidadosamente sobre o que defendiam e se convencido da sua realidade, mas no de terem alguns eixos de pensamento muito claros, os quais davam sentido à vida e aos atos do dia a dia.
Sem dúvida sobre quais caminhos tomar, a autorreflexão realmente se tornava inútil. Por esse motivo, os principais líderes nazistas não deixaram diários. Hitler não o fez – sendo falsos os seus famosos diários descobertos em 1983 – e muito menos Himmler, Göring ou Heydrich. O que temos, no máximo, são agendas de trabalho ou coleções de cartas enviadas ou recebidas, a maioria burocráticas ou sem maior valor. Os únicos que o fizeram foram justamente os intelectuais do nazismo, ou seja, Goebbels e Rosenberg.
Em parte, o fizeram justamente por isso. Fazia parte das tarefas de ambos dar uma roupagem analítica e descritiva para o que acontecia no Estado nazista, seja formulando princípios e justificativas ideológicas seja elaborando diretrizes de propaganda para o dia a dia. Isso os obrigava a ter uma atividade intelectual mais densa – como será melhor desenvolvido abaixo – o que pode os ter estimulado a ser diaristas. O que eles produziram, contudo, foram essencialmente páginas de ataques aos inimigos, de autocomiseração com os fracassos e de registro de supostos feitos e realizações para futura referência. Como um todo, o nazismo não é bem apreendido na leitura dessas anotações e muito menos em termos ideológicos.
Na verdade, como parece ser a praxe para a maior parte dos intelectuais orgânicos da direita – e, especialmente, da extrema-direita – Rosenberg não era especialmente brilhante, compensando a pouca densidade da sua obra com um empenho contínuo, numa produção quase diária de textos, especialmente palestras. artigos de jornal, memorandos e relatórios. Sua obra prima, O Mito do Século XX, publicado em 1930, teria sido, aparentemente, ridicularizado até pela própria liderança nazista, que ou não o entendia ou o considerava um amontoado de bobagens. Hitler e o NSDAP souberam reconhecer, contudo, que ele servia perfeitamente como manual doutrinário e sua leitura se tornou obrigatória no Terceiro Reich, atrás apenas do Mein Kampf de Hitler como “livro sagrado” do nazismo.
Dessa forma, o papel central de Rosenberg foi o de tomar emprestado escritos de pensadores do passado, como Gobineau e Chamberlain, para formar uma ideologia simples e facilmente compreensível, centrada numa visão conspiratória da História, na superioridade racial e no antissemitismo. Sua importância, na verdade, reside justamente nas suas falhas como pensador. Como bem indicado tanto tempo atrás por Marilena Chauí para o caso do integralismo, a simplicidade e pobreza teórica e empírica, longe de serem um problema, faziam dele um ideólogo perfeito, chamando para a ação e não para a reflexão. Escrevendo sem parar em jornais, revistas e também publicando livros, ele era mais o divulgador e o mobilizador do que um pensador e um cientista, apesar de se considerar um.
Em 1934, Hitler oficializou essa sua posição, nomeando-o como o ideólogo oficial do regime. Mesmo levando-se em conta os limites de Rosenberg e dos seus papéis e a própria fragilidade teórica do nazismo, muita informação útil pode ser retirada dos seus diários; vários aspectos da política e da ideologia do III Reich se tornam evidentes nos mesmos, sendo passíveis de rediscussão a partir de um novo olhar. Mesmo quando seu conhecimento ou entendimento do que acontecia era limitado ou quando sua própria posição o impedia de ver o todo, o que emerge dos diários pode ser útil para repensar a ideologia e a política da Alemanha na época de Hitler.
Rosenberg foi importante, por exemplo, na elaboração da ideia de que havia uma conspiração judaica mundial por trás da revolução comunista na União Soviética. Nessa perspectiva, os eslavos eram uma raça inferior, a ser escravizada pelos alemães, e a URSS era um projeto judeu para liderá-los contra a raça superior. Isso justificou a guerra devastadora dos nazistas contra os soviéticos a partir de 1941 e Rosenberg, até por isso, recebeu cargos importantes no sistema de ocupação no Báltico, na Rússia Branca e na Ucrânia.
É difícil acreditar que Rosenberg tenha sido o criador dessa ideia, bastante comum nos círculos antissemitas e de extrema-direita nos anos 1920. E não apenas na Alemanha. Em Buenos Aires, por exemplo, já em 1917 essa proposta era ventilada e jornais da elite argentina escreviam que os operários em protesto estavam sendo instigados pelos judeus e que os bolcheviques eram conspiradores judeus disfarçados. É razoável admitir, contudo, que Rosenberg colaborou para implantar essa ideia nos ouvidos certos, da pessoa que, no futuro, tomaria as decisões do Holocausto: Adolf Hitler.
Ele também teve um papel importante na questão religiosa, sendo conhecida a sua postura anticristã. Ele considerava as práticas e símbolos cristãos como puro charlatanismo e a doutrina cristã como incompatível com a verdadeira alma alemã. No seu livro O Mito do século XX, isso é evidente. Segundo Rosenberg, os judeus, através de Paulo, haviam corrompido a mensagem original de Jesus e divulgado uma falsa doutrina de submissão, amor e igualdade. Tal doutrina seria incompatível com a superioridade racial alemã e o nazismo devia criar uma nova religião, adequada aos novos valores.
Essa postura o isolou frente a outros representantes da extrema-direita europeia – muitos dos quais tinham raízes no reacionarismo católico, por exemplo – e também dentro do nazismo. Afinal, havia nazistas que consideravam perfeitamente possível conciliar a mensagem cristã com a nazista e outros, provavelmente em maior número, que não acreditavam ser uma boa ideia se indispor com a tradição cristã da população alemã, preferindo o compromisso e a acomodação.
Em Rosenberg, e nos seus escritos, também fica evidente um dos aspectos mais cruciais no funcionamento do Estado nazista, ou seja, os conflitos entre Partido e Estado e entre as várias instituições e grupos dentro do regime. Suas críticas contínuas a Goebbels, a Himmler e a outros são representativas da selva competitiva que era a Alemanha nazista.
Nesses conflitos, ele ganhou e perdeu, conforme as circunstâncias e os equilíbrios do poder. No comando da Einsatzstab Rosenberg, ele saqueou bibliotecas, arquivos e coleções privadas em toda a Europa, especialmente judias. Nesse processo, estava em competição com a SS, que também roubava livros para sua biblioteca sobre os inimigos do Reich. Ele foi muito bem-sucedido e, no seu Instituto de Pesquisa sobre a Questão Judaica, fundado em Frankfurt, ele acumulou um imenso acervo sobre o judaísmo na Europa. Também saqueou arte de propriedade dos judeus por toda a Europa, em competição com Göring, com Goebbels e outros. Mais adiante, ficou responsável até mesmo pelo saque de mobiliário dos judeus. Nessa atividade, foi mais vencedor do que perdedor.
Já na administração do Leste ocupado, a competição com outras agências e grupos se tornou ainda mais brutal e, nesse caso, Rosenberg perdeu. Ele recebeu o encargo de organizar o novo território ocupado, mas sua influência se diluiu, especialmente frente à SS. Ele imaginava o espaço entre Berlim e Moscou como um de dominação, no qual, após o extermínio dos judeus e dos comunistas, haveria alguma negociação com os nacionalismos ucraniano, báltico e outros para a criação de uma frente anti-russa. Já Hitler, Göring e a SS queriam uma dominação mais completa e absoluta, de escravidão e, posteriormente, de substituição demográfica.
Também nas relações exteriores Rosenberg, que tinha sido um ator importante na formatação da política externa do NSDAP, perdeu influência no decorrer do tempo, especialmente para Ribbentrop. Ele também disputou com Goebbels o controle da arte e da literatura alemãs e, nesse caso, houve quase um empate, pois, mesmo perdendo poder, ele continuou um ator importante, comandando vários escritórios e agências culturais dentro da Alemanha.
Todas essas idas e vindas são identificáveis nos diários, especialmente nas suas contínuas críticas aos que o superavam, como Goebbels e Göring. Ao mesmo tempo, ele buscava e registrava cada possível aprovação de Hitler às suas ações, o que refletia tanto a sua submissão psicológica a ele como o reconhecimento que, na luta pelo poder na Alemanha nazista, o favor de Hitler era o elemento chave.
Nos seus papéis, ele vencia as batalhas que estava a perder na realidade e tinha esperanças de reverter a situação. Em linhas gerais, contudo, fica evidente como, com o passar do tempo, ele estava numa posição cada vez mais fraca na estrutura de poder nazista.
Talvez tenha sido um problema, no caso de Rosenberg, o fato de ele ser, apesar de medíocre, um intelectual. A liderança nazista preferia a ação, a política e desprezava a cultura, a não ser aquela dirigida à propaganda e à formação de consensos. Mesmo sendo um intelectual orgânico, no sentido de um homem ligado ao partido e ao Estado nazistas, o ser intelectual demandava um mínimo de refinamento teórico e a liderança nazista normalmente desprezava isso frente ao imperativo da ação, como já indicado acima.
Em qualquer projeto ideológico, na verdade, a escala de convencimento ideológico dos que aderem vai do totalmente pragmático (aquele que não leva a sério aquele conjunto de ideias, mas que as defende por interesses outros, materiais ou emocionais) até o totalmente idealista, ou seja, que acredita piamente em tudo o manifestado. Quase sempre, esses dois extremos não existem e a combinação entre ambos é o padrão geral, com contínuas oscilações conforme o tempo, o espaço, os grupos sociais, a individualidade etc.
No caso dos intelectuais orgânicos, o mesmo acontece, mas a sua própria função – estabelecer, refinar e proclamar uma ideologia que sustenta um dado modelo político ou econômico – demanda que seu pragmatismo seja controlado. Afinal, se o que sustenta a sua posição é o fato de ele ser o defensor de um conjunto de ideais, ele não pode simplesmente ignorar o que é dito e escrito, especialmente por si próprio. Assim, nem Himmler ou o próprio Hitler podiam simplesmente ignorar o que a ideologia nazista proclamava abertamente, mas sua margem de manobra era maior do que a de pessoas como Rosenberg.
A sensação que fica na leitura dos diários, na verdade, é que Rosenberg efetivamente acreditava na ideologia nazista. Como já indicado acima, como acontecia com a maioria dos nazistas, seus conceitos políticos não eram fixos e havia muito oportunismo e negociação na sua prática, como não podia deixar de ser frente a uma conjuntura sempre em mutação e o fato de ele ser um político além de um ideólogo. Mesmo assim, a sensação que fica da leitura dos diários é que seus princípios ideológicos eram mais sólidos do que em outros líderes nazistas.
Em resumo, Rosenberg compartilhou da flexibilidade entre teoria e prática (ou oportunismo) que o regime nazista sempre manifestou. No seu caso, contudo, essa flexibilidade era menor ou demandava, no mínimo, mais articulação teórica, até interna, pois ele parecia realmente acreditar naquilo que dizia e escrevia.
Ele era muito mais inflexível frente a seus princípios ideológicos básicos do que outros líderes nazistas, tanto que seus diários indicam seus malabarismos internos para lidar com a aproximação do Terceiro Reich com a Igreja Católica ou com a União Soviética. Isso, provavelmente, enfraqueceu a sua posição na luta pelo poder na Alemanha nazista, ao mesmo tempo em que delimitava e reforçava o seu espaço e as suas prerrogativas, já que ele era o guardião dos ideais.
Outro ponto interessante que a biografia e os diários de Rosenberg ressaltam é a problemática de ele ser um indivíduo no limite do aceitável para a ideologia nazista. Ele era etnicamente alemão, mas havia dúvidas e questionamentos a respeito da pureza das suas origens germânicas, até porque ele tinha uma sobrenome comumente associado aos judeus e tinha nascido no Báltico. Para piorar, ele, fluente em russo, falava alemão com um sotaque carregado, o que também dava margem a questionamentos e dúvidas: um pertencente ao “nós”, mas na fronteira entre o “nós” e “eles”.
Ao observarmos a história do nazismo, nota-se que, entre os maiores defensores da doutrina, estavam muitos que não se enquadravam perfeitamente no modelo ariano por suas características físicas. Himmler era franzino, Goebbels era muito moreno e manco, Göring era viciado em drogas, Heydrich era considerado, apesar de não ser verdade, meio judeu e o próprio Hitler não era um nórdico puro. A justificativa era que, apesar dessas características, eles ainda estavam dentro do padrão ariano aceitável, mas o fato óbvio era que o poder determinava, em boa medida, como a ideologia era aplicada nos casos reais. Ou alguém teria a coragem de afirmar que Hitler não deveria liderar por não ser um nórdico no modelo viking? Mesmo assim, essa falta de conexão com a doutrina era visível e isso poderia, conforme a conjuntura mudasse, ser utilizado contra os inimigos.
Do mesmo modo, é impressionante a presença de não-alemães no comando nazista. O próprio Hitler era austríaco, Rudolf Hess havia nascido no Egito e Rosenberg e vários outros eram refugiados do Báltico. Mesmo sendo aceitos como alemães, o fato é que eles estavam no limite: não haviam crescido na Alemanha, muitos falavam alemão com sotaque e suas origens, muitas vezes, podiam ser questionadas. Para os nesse meio-termo, a fidelidade ao regime e à ideologia podia ser ainda mais fundamental, até como forma de compensar uma origem questionável. A maciça presença, em termos proporcionais, de austríacos na máquina nazista talvez seja um reflexo não apenas da força da extrema direita na Áustria e no sul da Alemanha nos anos 1920 e 1930, como também um esforço deles para serem aceitos como plenamente alemães depois do Anschluss.
Essa problemática dos “na fronteira”, evidentemente, vai além do nazismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, alguns italianos emigrados do Mezzogiorno se tornaram profundamente racistas para afirmarem uma identidade branca que era questionada por muitos anglo-saxões. Isso para não mencionar, evidentemente, o tradicional papel das classes médias no capitalismo, sempre sob o risco de proletarização e, até por isso, seus cães de guarda mais fiéis. Talvez a biografia de Rosenberg pudesse ser útil como foco para estudos desse tipo de perfil, cuja utilidade para o regime nazista ainda não foi explorada a contento.
Em resumo, os diários de Rosenberg são, dentro dos seus limites, uma fonte útil para o entendimento não apenas dele e de sua personalidade, mas também do regime em si. Isso não apenas no tocante à ideologia – o antissemitismo, o racismo, a perspectiva anticristã, o anticomunismo e as articulações entre esses elementos – como também na prática, na conversão desses princípios ideológicos em políticas e ações. Ideias, afinal, não existem fora do mundo real e mesmo as registradas em papeis privados estão conectadas ao mundo material, de interesses, disputas, negociações e acomodações. Rosenberg pode ter suas especificidades enquanto intelectual, mas ele pertencia a um grupo, a uma sociedade e a um regime e é estudando essa relação que sua vida, e seus diários, adquirem significado histórico.
Referências
ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p.
WITTMAN, Robert; KINNEY, David. O diário do diabo: os segredos de Alfred Rosenberg, o maior intelectual do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2017, 460 p.
João Fabio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá JAMES, Cyril. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution, New York: Vintage Books, 1989.
História, memória e violência de Estado: tempo e justiça | Berber Bevernage
“Por que é tão difícil entender o passado assombroso e irrevogável na perspectiva da historiografia acadêmica e do pensamento histórico moderno ocidental em geral?” A pergunta que guia História, Memória e Violência de Estado: tempo e justiça, de Berber Bevernage (2018), pressupõe a angústia da incompletude e do inacabamento (MBEMBE, 2014), da indeterminação e instabilidade do objeto “tempo presente” (DELACROIX, 2018). O autor nos oferece um mergulho na história da crítica à noção de tempo construída pela modernidade para mostrar toda a sua potência e enraizamento enquanto engenhosa forma de “não ver” certos mundos, grandemente incorporada pela disciplina histórica. Por entre as brechas desse olhar pretensamente universal, América Latina e África emergem como que alçadas à categoria de experiências (i)morais – porque marcadas pela violência e injustiça –, da luta política que marca o século XXI periférico: o direito ao tempo.
Entre as referências mais conhecidas pelo universo acadêmico brasileiro dedicado à História do Tempo Presente e que constituem a base da argumentação de Tempo e Justiça estão o crítico literário alemão Hans Gumbrecht e o historiador francês François Hartog. Por caminhos diferentes, ambos chamam atenção para o crescimento ao longo do século XX de uma nova sensibilidade temporal marcada por uma assimétrica concentração na esfera de um presente repleto de simultaneidades (GUMBRECHT, 2014), demarcando a emergência de um novo “regime de historicidade” chamado presentista (HARTOG, 2013). No interior dessa discussão, o livro apresenta os anos de 1980 como período de evidência dos embates entre formas distintas de experienciar o tempo (com suas diferentes articulações entre passado, presente e futuro), expressas pelo desaparecimento da linguagem do esquecimento e da anistia do vocabulário político global. Leia Mais
Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) – NICODEMO et. al (A)
NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 238p. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Leal de. História da historiografia brasileira: uma apresentação do percurso historiográfico. Antíteses, Londrina, v.12, n. 23, p. 850-857, jan-jul. 2019.
A História da Historiografia é um campo de discussão que se preocupa com a profusão dos discursos historiográficos, que visam compreender as relações que se estabelecem entre os historiadores, as instituições e a História. Buscando compreender as tensões entre o passado e as representações construídas na historiografia, os historiadores que se dedicam a essa perspectiva visam refletir sobre a emergência dos discursos, preocupações, critérios de validação e confiabilidade da historiografia.
O livro Uma introdução à história da historiografia (2018) foi construído a partir dos debates travados nos encontros do Seminário Brasileiro de História da Historiografia, bem como no Núcleo de História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Em conjunto, Nicodemo, Santos e Pereira são historiadores que se têm dedicado à História da Historiografia, participando da organização dos encontros na UFOP, bem como na problematização da História da Historiografia enquanto campo de produção. Thiago Lima Nicodemo é professor de Teoria da História da Unicamp, com pesquisas desenvolvidas em torno da produção historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda. Pedro Afonso Cristovão dos Santos é professor de Teoria da História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com pesquisas sobre intelectuais do século XIX, com destaque a Capistrano de Abreu.
Mateus Henrique de Faria Pereira é professor associado de História do Brasil da Universidade Federal de Ouro Preto, com estudos em Historiografia no Tempo Presente, Intelectuais e Teoria da História.
O recorte temporal do livro visa contemplar discussões a partir da emergência da História da Historiografia no Brasil, desde o surgimento do moderno conceito de História no século XIX, além das apropriações e ressignificações das matrizes europeias no Brasil. Buscando compreender o percurso da História da Historiografia até a institucionalização da História nas Universidades e ao refletir sobre a elaboração da Cultura História brasileira e dos estudos desenvolvidos acerca desse tema, visa instaurar um lugar para as produções brasileiras na História da Historiografia. A maior parte do livro se centra no contexto após a institucionalização das Universidades.
No que se refere à História, a partir da estruturação dos cursos nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, partir de 1930 (FERREIRA, 2013). O mérito do texto está em apresentar um fio condutor na emergência do historiador de ofício: a partir da preocupação dos historiadores em situar-se em relação às produções anteriores, problematizando a organização da Historiografia brasileira a partir de suas próprias tensões e especificidades, rompem, assim, com a perspectiva da relação centro-periferia, discutindo a produção dos autores na organização de conceitos e de critérios para a Historiografia no Brasil.
No primeiro capítulo, os autores constroem o percurso da Historiografia enquanto campo, ou seja, relacionando problemas, aportes teóricosmetodológicos, nos quais diversos autores buscaram compreender o passado brasileiro. Utilizando um recurso do Google, o Ngram Viewer2, buscaram localizar a palavra Historiografia e seus correlatos em outros idiomas, com destaque para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão, ressaltando, assim, a ascensão no uso da palavra Historiografia a partir do século XX, enquanto fenômeno transnacional. O crescimento, segundo os autores, se deve à estruturação dos primeiros cursos de História nas Universidades, o que ampliou consideravelmente a produção em História (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23 – 25).
Nos capítulos seguintes, segundo e terceiro, destacam os primeiros esforços de se pensar a Historiografia Brasileira, como os livros de José Honório Rodrigues, desde a Teoria da História do Brasil, de 1949, até História da História do Brasil e a Historiografia colonial de 1979. José Honório Rodrigues é um dos autores basilares para se compreender o processo organização do ofício do historiador, do caráter amador-ensaísta ao historiador acadêmico (IGLÉSIAS, 1988).
Desde o gênero ensaístico, que misturava História e Política, os autores apresentam a emergência de novas formas de apreensão do tempo. A divisão da Historiografia no Brasil deveria considerar a produção desde o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1838, até a organização das Universidades, momento em que a História iniciou o processo de organização disciplinar, definindo seus limites, enquanto uma tradição especializada.
A partir do processo de consolidação da disciplina e da emergência do historiador profissional, os autores discutem sobre a transição entre o intelectual polígrafo e o historiador acadêmico. Nesse sentido, referenciam a produção de Capistrano de Abreu, no Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, publicado em 1878.
Nesse texto, se discutiu sobre o caminho da História Nacional, apresentando um protótipo de historiador: Transparecem as qualidades que comporiam o historiador ideal: a erudição, o conhecimento em primeira mão das fontes, aliados a uma capacidade de fazer reviver, pela escrita, os eventos estudados e de ter empatia com o objeto (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23-25).
Varnhagen, aos olhos de Capistrano, ao apresentar preocupações com as fontes e metodologias, próprias do métier do historiador, foi destacado pelos autores como precursor da Historiografia, compondo um estilo e uma escrita.
Desse modo, a História foi tecendo uma legitimidade enquanto produção de conhecimento. Em vista disso, a produção do século XIX se deu através da acumulação de informação e de fontes, além da crítica documental (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 64).
Ao retratar Varnhagen, Capistrano apresenta uma visão mais refinada do processo metodológico, enviesado pela perspectiva de verdade em História. Os autores esclarecem que, devido à essa produção, a partir do acúmulo exaustivo das fontes, marcada pelo viés cronológico, possui uma natureza diferenciada que visava articular presente, passado e futuro.
Outro texto fundamental, destacado pelos autores, publicado em 1951 por Sérgio Buarque de Holanda, foi O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos. Para Holanda, Capistrano seria o ponto de partida para a Historiografia, enquanto processo de definição dos estudos históricos. A contribuição desse texto é de incidir sobre os anos 20 e 30, momento em que vigorou a produção ensaística.
Sérgio Buarque de Holanda produziu ensaios interpretativos, enquanto uma preocupação desse período, contemporâneo aos estudos de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, que analisaram as heranças coloniais, esses escritos visavam transformar a realidade brasileira. O gênero ensaísta-síntese visava articular instrumentos teóricos, influenciados por matrizes diferentes: americana, alemã e francesa, momento em que o meio de inserção dos intelectuais se dava através da crítica literária ou do serviço público. Os autores dão destaque a Sérgio Buarque de Holanda como um intelectual de transição, entre o intelectual polígrafo e o historiador universitário (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 74 – 75).
No terceiro capítulo, a organização das primeiras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, com destaque à criação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, criada em 1934 a partir da missão francesa, e da Faculdade Nacional de Filosofia de 1939, marca o início da organização da produção acadêmica.
Porém, a consolidação dessa produção só começaria a aparecer a partir de 1950, momento em que a pesquisa em História adquire um novo sentido orientada por problemas mais delimitados e mais aprofundados (FERREIRA, 2013).
Ainda nesse capítulo, os autores aprofundam as proximidades da produção acadêmica com a produção dos ensaístas. Nas Universidades, o processo de reflexão sobre o que fora produzido desde o século XIX apresentava rupturas e continuidades.
Holanda foi um dos intelectuais que defendeu a institucionalização universitária e a valorização do trabalho acadêmico. A partir da sua produção, de Raízes do Brasil de 1934, Monções, de 1945, até Caminhos e Fronteiras, de 1957, é possível compreender a preocupação do autor com as condições sociais da produção, bem como o refinamento de uma erudição em história. A produção de Holanda refletiu sobre a mudança na concepção de métodos e dos instrumentos teórico-metodológico, para além das generalidades, e visou afirmar uma cultura acadêmica a partir do discurso do historiador profissional, atento aos dilemas do presente.
A partir da institucionalização das Universidades, no quarto capítulo, os autores buscaram compreender a repercussão da produção acadêmica, com o aumento substancial da produção em História, tanto a partir da estruturação de instituições de fomento às pesquisas, quanto com a criação de cursos universitários e de um mercado editorial que permitiu a circulação dessas produções, como a criação de revistas acadêmicas, com destaque à Revista de História da Universidade de São Paulo. Dentro dessa dinâmica, vale ressaltar que a organização das Universidades estava alinhada à preocupação com a formação de professores e não de pesquisadores, por isso o cuidado estava centrado no ensino de História e na Didática da História.
No quinto capítulo, os autores aprofundam as discussões centrais do livro, sobre a organização da História da Historiografia como campo, no I Seminário Internacional de Estudos Brasileiros de 1971. Nesse seminário, Francisco Iglésias apresenta uma das primeiras concepções de História da Historiografia, enquanto exame exaustivo dos livros sobre História do Brasil e de um roteiro de textos importantes, reafirmando o papel de Capistrano de Abreu, como marco desse tipo de reflexão.
Segundo os autores, a História da Historiografia já havia sido mobilizada em 1961, a partir da publicação da Iniciação aos estudos históricos, de Jean Glenisson, com a colaboração de Pedro Moacyr Campos e Emília Viotti da Costa, ao referirse aos desafios da relação entre Teoria da História e História da Historiografia.
História geral da civilização brasileira, lançado em 1960, é outro livro central para História da Historiografia e foi organizado por Pedro Moacyr Campos e Sérgio Buarque de Holanda, com ênfase aos estudos sobre o Brasil imperial.
A partir da afirmação da Universidade como centro de produção em História, o quinto capítulo visou compreender o reconhecimento do trabalho do historiador, bem como as preocupações dos primeiros professores universitários. Desde a organização do primeiro simpósio da Associação Nacional de Professores Universitários, que aconteceu em Marília em 1961, bem como na produção das coletâneas de José Honório Rodrigues e das produções de José Amaral Lapa, até a inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, os autores discutem sobre as implicações políticas e teórico-metodológicas desse processo nas produções acadêmicas a partir de 1960, a partir da inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, que conciliava tanto a análise da produção dos historiadores quanto a História da História, esta como sinônimo de História da Historiografia.
Foi a partir de 1970 que se deram os embates em torno da inclusão da História da Historiografia enquanto disciplina separada da Teoria da História, presente nas produções de José Roberto do Amaral Lapa. Para este, a História da Historiografia deveria analisar criticamente a produção dos historiadores e a transformação do pensamento histórico, o que significava afirmar que a História da Historiografia possuía um objeto próprio, teorias e metodologias. A reafirmação desse campo rejeitava uma análise centro-periferia, pois buscava construir marcos a partir da própria produção historiográfica, não mais marcos políticos, como a fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ou das Universidades. Além do mais, propunha uma investigação sobre métodos, pressupostos teóricos e formas de se escrever a Historiografia brasileira.
Isto posto, os autores buscaram compreender a organização do campo da História da Historiografia, embates e dilemas, expressos desde os primeiros textos reflexivos como em Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, a organização das coletâneas como as de José Honório Rodrigues, até a institucionalização da disciplina nos currículos universitários. Enfim, o processo de composição de uma cultura histórica que aos poucos se tornou universitária, a partir do adensamento de projetos políticos, compreendendo sua dimensão prática e política. Como destacado pelos autores: Os tempos são de disputas intensas pelo passado e a dimensão ético-política da escrita da história volta a ser central. Também é hora de pensar nas práticas dos historiadores do passado, incluindo nossos mestres, como práticas arqueologicamente investigáveis. Também é hora de pensar se não é momento da história da historiografia e da teoria da história irem além (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 186).
Tal permite-nos compreender o processo de transformação da escrita em História no Brasil, bem como a organização de métodos e conceitos que consolidam a História da Historiografia.
A História da Historiografia, nesse sentido, permite compreender os balanços do fazer histórico, a partir da investigação sistemática acerca dos discursos produzidos sobre o passado, refletindo sobre as memórias construídas pelos autores em suas obras, suas posições teórico-metodológicas, tensões em torno da escrita da História, que, sob uma perspectiva presentista após os anos 70, visam compreender as novas experiências de apreensão do tempo.
O livro traz uma importante contribuição à historiografia, desde o recorte temporal realizado pelos autores, de 1870 a 1970, que permite compreender o percurso da História da Historiografia no Brasil. Por tratar-se de um balanço do tema, possibilita aos pesquisadores principiantes se inteirar dos debates, conhecer autores referenciais, enfim, compreender a especificidade da escrita da História no Brasil, além de vislumbrar um campo de pesquisa em plena expansão, como muitas fontes inéditas, novos problemas de pesquisa, à luz de novas perspectivas teórico-metodológicas.
Referências FERREIRA, Marieta de M. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 55 – 78, 1988.
NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 232 p.
Notas
2 O Google Ngram Viewer é um recurso do Google que mapeia a frequência da palavra pesquisada a partir de fontes de 1500 a 2008.
Letícia Leal de Almeida – Professora na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutoranda no Programa de Pósgraduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina. Email: leticialeal.historia@gmail.com.
A Profetisa e o Historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet – TEIXEIRA (A)
TEIXEIRA, Maria Juliana Gambogi. A Profetisa e o Historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017. 312p. Resenha de: PEREIRA, Renato Fagundes. Por uma nova leitura de Michelet no Brasil. Antítese, v. 11, n. 22, 2018.
No século XIX, algumas obras de Jules Michelet foram trazidas ao Brasil, isso se deve, em partes, ao sucesso de L’Oiseau (1857) em Paris, (onde estimava-se a venda de trinta e três mil unidades), embora a recepção de suas ideias tenha ocorrido principalmente na segunda metade do século XX, com as primeiras traduções das obras historiográficas e teóricas do movimento dos Annales (Lucien Febvre nunca negou o legado micheletiano em suas análises). A partir da década de 1970, as ideias de Michelet chegam ou por aqueles que discutiam a história e a metodologia dos Annales ou por aqueles que começavam a refletir sobre a crise dos paradigmas na historiografia -A presença de Jules Michelet é marcante nos livros de Peter Burke e Dosse sobre os Annales, por exemplo, e nos argumentos de Paul Veyne, Michel de Certeau, Jacques Rancierè e Hayden White sobre as ficcionalidades da história.
Muitos estudos foram publicados no Brasil, os quais assinalam a importância de Jules Michelet como precursor dos Annales, da história das mulheres, do povo e da cultura, mas, raros são aqueles que se esforçaram em compreender o historiador no movimento do seu próprio pensamento, no élan-criador do conhecimento histórico e na historicidade do próprio autor. Nesse sentido, não são exageros as palavras Jean-Michel Rey sobre a modéstia do subtítulo, A feiticeira de Jules Michelet, no recém-lançado livro A profetisa e o historiador de Maria Juliana Gambogi Teixeira.
A professora da UFMG retoma sua tese doze anos depois de sua defesa, são quase três décadas dedicadas a finco à pesquisa das ideias micheletianas, e nos proporciona uma leitura singular, inaudita, principalmente, entre nós, brasileiros, acostumados com a recepção do autor da L’Histoire de France, pelos herdeiros dos Annales. Essa distinção se assenta pelo vínculo de Gambogi Teixeira com o grupo formado por Paul Viallaneix e Paule Petitier. Esses dois especialistas na obra micheletiana realizaram nas últimas décadas um trabalho árduo de muita riqueza, descobrindo e publicando textos inéditos de Michelet, organizando coletâneas, bibliotecas e seminários – podemos destacar o seminário Michelet hors fronteires e a bibliothèque Jacques Seebacher, ambos com a coordenação da professora da Universidade Diderot, Paule Petitier.
O livro é dividido em três partes com dois capítulos cada um. A parte um, O Tenebroso Mar de La Sorcière é preciosa para compreender a trama que atravessa todo o livro: A Feiticeira, obra publicada por Michelet, em 1862. Enganar-se-ia quem imaginasse encontrar nessas páginas apenas a história de um livro. Trata-se de um esforço mais profundo, na tentativa de constituir no interior da obra monumental de Jules Michelet o caminho da feitiçaria como objeto, suas inflexões e seus delineamentos, durante mais de meio século de produção do historiador. A análise do próprio texto, A Feiticeira, se apresenta, principalmente, no capítulo dois, no entanto, ela não acontece fora de um solo, como gostava de afirmar o próprio Michelet, e sim dentro de um plano de imanência micheletiano, que só é possível por uma conhecedora dos arquivos e das ideias do século XIX.
A parte dois do livro, História ao Pé da Letra, representa uma contribuição das mais notáveis: a história da historiografia e a teoria da história. Gostaríamos de insistir na novidade dessa análise no Brasil e em textos em língua portuguesa. A autora retoma o vínculo entre Michelet e Vico, explorado desde o século XIX, para romper com ele e demonstrar no contexto das ideias o débito viconiano, enfatizando as rupturas e as criações micheletianas. A questão da lenda e da cultura popular, familiar ao romantismo, emerge no capítulo final dessa parte. Particularmente, os dois capítulos que fazem parte desse recorte são os quais a pesquisadora mais me surpreende pelo gênio de articulação e uma consistência de domínio teórico, cuja finalidade é estabelecer a relação entre o lendário, a história e o ficcional em Jules Michelet.
Na última parte do livro, Verso e Avesso da Narrativa, Gambogi conduz sua reflexão da obra micheletiana no movimento de mão-dupla: da constituição do seu pensamento, no esforço intelectual de escrever história, concentra-se na Feiticeira e no fenômeno da feitiçaria e no interior das questões pessoais, políticas e sociais enfrentadas pelo autor. Não por acaso, a tese da autora sobre La Sorcière passa pela associação de Jules Michelet com a Revolução de 1848, na França: Projetando tal hipótese sobre o cenário aberto por 1848, parece-nos possível pensar que, menos do que um interesse circunscrito em catalogar e diagnosticar o destino pontual dos movimentos revoltosos, o pensamento de Michelet tenha se voltado para, em La Sorcière para o que sempre fora seu centro: a condição de inteligibilidade da história moderna. Já há muito, o historiador fincara essa condição num campo de entendimento em que se conflitam dois princípios diversos, porém imbricados em seu destino: o princípio da Revolução e o princípio do cristianismo (p.203).
Renato Fagundes Pereira – Professor do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás – UEG. -E-mail: renatofagundesp@gmail.com.
História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; aguiar
RODRIGUES, André Figueiredo; AGUIAR, José Otávio (orgs). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2017. Resenha de: SÀ, Charles Nascimento de; OLIVEIRA, Cintia Gonçalves Gomes. Nos caminhos da fé: história, religião e religiosidade da Antiguidade ao mundo contemporâneo Antítese, v. 11, n. 21, 2018.
Composto por uma coleção de artigos de diferentes autores, o livro História, Religiões e Religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, tem como organizadores: André Figueiredo Rodrigues, professor da UNESP/Assis, e José Otávio Aguiar professor da UFCG. Sua proposta é de abordar o debate sobre a religiosidade nos diferentes contextos da História, desde a Antiguidade Clássica até a atualidade, perpassando diferentes culturas, práticas, cultos, dogmas, levando o leitor a pensar não somente nas diferenças existentes entre as religiões, mas também no quanto tais particularidades são importantes para a composição das sociedades e da própria História. Por se tratar de uma obra coletiva o livro, tem a capacidade de contemplar múltiplas falas e uma diversidade de olhares sobre seu objeto de estudo. Este elemento representa um ganho ao conjunto da obra, mas, como todo trabalho coletivo fica a dever sempre que um assunto interessa mais ao leitor, e este não tem a possibilidade de maiores páginas para aprofundar o estudo.
Os textos reunidos em História, Religiões e Religiosidade foram organizados em quatro partes: Identidade, religiosidades e Antiguidade Clássica; Religiões, recepções e impérios Ultramarinos; Universo católico e problemas de História Contemporânea e Protestantismo, espiritismo e religiões Orientais no presente. Todos eles se apresentam de forma clara e os organizadores tiveram o cuidado de sistematizá-los no livro de modo a ficarem conectados, como se um texto conduzisse ao outro. Assim, a primeira parte do livro, composta por quatro ensaios e com o título “Identidade, religiosidades e Antiguidade Clássica”, tem como foco estudos sobre a Antiguidade Clássica e seus reflexos e receptibilidade na sociedade contemporânea e se inicia com o ensaio de Aila Luzia Pinheiro de Andrade, no qual a autora reflete sobre a crise de identidade cristã, bem como os desafios da atualidade ligados a tal identidade, como a questão da fé em Jesus ou mesmo o conceito de messias, tanto para o judaísmo quanto para os primeiros grupos que seguiam os ensinamentos de Jesus.
Em seguida, Nelson de Paiva Bondioli e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, propõem ao leitor analisar as ações dos Principes Julio-Claudianos, considerando o imaginário que os circundavam e a sua inter-relação com os ideais de tradição e transgressão religiosa, bem como compreender as consequências de tais condutas para seus governos e mesmo para a construção da identidade dos povos romanos do período.
A questão das identidades judaicas é retomada com Fernando Mattiolli Vieira, que chama a atenção para o debate sobre a importância da busca e do reconhecimento da identidade do grupo detentor dos manuscritos de Qumran, uma grande incógnita para os historiadores do assunto, mas que se faz fundamental, pois, todas as análises dos manuscritos são pautadas na organização social e religiosa do grupo, em suas bases culturais e identitárias.
Fechando esta parte inicial do livro, Haroldo Dutra Dias examina os estudos históricos sobre Jesus, que possuem como fonte documentos dos primeiros séculos do cristianismo, dando destaque a suas cronologias e como tais estudos são apropriados e dialogam com informações e dados da doutrina espírita no Brasil, numa relação de complementação de informações e na busca pela solução de questões ainda não respondidas.
A segunda parte do livro, “Religiões, Recepções e Império Ultramarinos”, volta-se para a questão da religiosidade e suas diferentes perspectivas e particularidades nas possessões portuguesas e inglesas. Abrindo esta parte, André Figueiredo Rodrigues analisa a sociedade mineira dos setecentos, mostrado o convívio entre os indivíduos, principalmente entre os religiosos e clérigos e o restante da população que vivia nos entornos das minas e nas cidades, além da relação entre a Igreja local e a Coroa, com suas disputas, reclamações e abuso de poder. Ainda sobre Minas Gerais no século XVIII, Jeaneth Xavier de Araújo Dias investiga a história das festas religiosas de Minas, sua importância para a população do período, a preocupação do povo com a organização e a beleza das mesmas, utilizando para tanto a chamada arte efêmera, com seus ornatos, cenários e decorações. Neste ambiente, a autora mostra que em vários momentos ocorreu a combinação das festas religiosas cristãs com datas e comemorações da Antiguidade grega e romana.
Deixando um pouco o continente americano, o foco volta-se para as possessões inglesas na África, com o texto de Lúcia Helena Oliveira Silva, o qual nos mostra o surgimento e atuação da Church Missionaire Society – CMS e os relatos de indivíduos africanos convertidos, os artifícios utilizados por bagandas e missionários anglicanos tanto para a conversão religiosa quanto para as negociações, além de salientar os paradoxos ligados a tais eventos e suas consequências para os grupos envolvidos.
De volta a América, Joaci Pereira Furtado analisa a poesia árcade em Portugal e em sua possessão americana, procurando explicar, de modo detalhado, os motivos que levaram à referência e mesmo a presença de elementos da cultura clássica, principalmente, o paganismo nestes escritos. Para tanto, volta-se para o contexto da segunda metade do século XVIII e início do século XIX, mostrando os jogos e as disputas de poder num momento no qual o movimento ilustrado tinha influência não somente no Reino, mas também em seus domínios. A questão da literatura igualmente se faz presente nas ponderações de Gustavo Henrique Tuna, o qual estuda a presença de escritos religiosos na livraria de Silva Alvarenga, tida como uma das mais relevantes do período colonial. Além de revelar as transformações na constituição das livrarias da América portuguesa, seu trabalho também evidencia as mudanças de pensamento em relação à religião e sua posição na sociedade.
No artigo seguinte, Renato da Silva Dias realiza uma investigação das argumentações presentes no discurso do padre Manoel Ribeiro da Rocha em defesa em defesa do tráfico e posse de escravos africanos no Brasil, além de ressaltar a utilização por parte do religioso não somente de fundamentos religiosos, mas também de pressupostos jurídicos, empregados com o intuito de embasarem a legalidade de seu ponto de vista. Nesta mesma linha de análise, Rubens Leonardo Penagassi problematiza, tendo por base o contexto e os pensamentos do início da Época Moderna, os relatos e descrições alimentares feitos pelos jesuítas das populações nativas da América Portuguesa, evidenciando como tais escritos acabam por delimitar e caracterizar as identidades dos grupos envolvidos.
O último artigo desta segunda parte do livro, de Paula Ferreira Vermeersch versa sobre o patrimônio artístico e cultural brasileiro, tomando como exemplo a análise a Igreja Matriz de Sant’Ana, composta por a arquitetura de taipa, sistema de construção colonial típica dos setecentos no Brasil colonial. Para desenvolver suas investigações, a autora mostra o quão importante é conhecer e realizar um exame cuidadoso não somente da história e da documentação que envolve o patrimônio a ser estudado, mas também analisar criteriosamente do próprio prédio. Isso porque, pequenos traços ou modificações realizadas no decorrer do tempo auxiliam no desenvolvimento do trabalho e até mesmo gera a possibilidade de reconstruir ou preencher lacunas e perguntas ainda em aberto.
A metade final dedica-se a temas contemporâneos brasileiros. Se até aqui o mundo antigo e partes das conquistas europeias na Idade Moderna foram abordados nos textos iniciais, as duas últimas partes do livro dedicam-se ao Brasil contemporâneo e sua religiosidade. Nesse sentido uma maior pluralidade de elementos são aí discutidos: Igreja católica e sua importância no sociedade; espiritismo, protestantismo e suas concepções, e dois artigos sobre religiosidade hindu ou de matiz indiana.
A terceira parte dessa trama dedica-se ao estudo do mundo católico brasileiro no período republicano. Os trabalhos presentes passeiam pelas mudanças vivenciadas pela Igreja Católica. O primeiro artigo, da pesquisadora Patrícia Teixeira Santos, estuda a proposta sobre a civilização do amor do Papa Paulo VI e sua influência sobre os países do Terceiro Mundo, de modo particular no Brasil e em Moçambique. Em seguida, Milton Carlos Costa, versa sobre a militância do intelectual católico Jonathas Serrano nas primeiras décadas do século XX no Brasil.
Jorge Miklos e Adriano Gonçalves Laranjeira analisam a imprensa católica em São Paulo no período da Ditadura Civil-Militar com a importante atuação do cardeal D. Paulo Evaristo Arns e sua defesa dos direitos humanos e as contendas envolvendo este pastor e outros líderes da Igreja. Nesse texto abordam-se as variantes de concepções que nortearam o pensamento católico e sua relação com a sociedade e a política nacional.
A seguir tem-se um interessante texto sobre a demonização das igrejas protestantes no universo da literatura de cordel. Elemento fundamental para a cultura sertaneja no Nordeste brasileiro, o cordel e o repente são instrumentos com os quais os artistas populares representam, em sua simbologia, aspectos da vida cotidiana dos moradores do sertão. Neste texto é analisado como a expansão do protestantismo na primeira metade do século XX foi vista por esses artistas. A abordagem aqui fica a cargo de Francisco Cláudio Alves Marques e Esequiel Gomes da Silva. Tem-se ainda um texto sobre a importância da religiosidade católica e seu uso no desenvolvimento turístico, tema sempre recorrente em estudos que abordam essa área, sendo analisado aqui o Círio de Nazaré em Belém em trabalho de Elder P. Maia Alves e Greciene Lopes dos Santos. Encerrando esse terceiro momento do livro há um estudo sobre a coleção Reconquista do Brasil, lançada na segunda metade do século XX e sua abordagem sobre a religião católica e o patrimônio cultural nacional feita por Gisella de Amorim Serrano.
A última parte a compor o livro destaca estudos sobre protestantismo, espiritismo e religiosidade com matiz indiana. São seis textos, dois abordando cada tema. No primeiro texto Iranilson Buriti de Oliveira e Roseane Alves Brito fazem interessante trabalho sobre a correlação entre palavras e expressões médicas, tais como cura, remédio, limpeza e o discurso dos pastores nas igrejas neopentecostais. A outra abordagem a trabalhar o protestantismo fica a cargo do professor João Marcos Leitão Santos. Instigante texto sobre a questão conceitual e teórica na historiografia que aborda o protestantismo. Apesar de fazer um interessante debate teórico conceitual sobre o entendimento do protestantismo e sua história, o texto peca ao não apontar um caminho, do mesmo modo que utiliza referências que o guiam a um só entendimento em detrimento de um maior debate envolvendo esse assunto.
Os estudos sobre espiritismo ficam a cargo de Alexandre Caroli Rocha e José Otávio Aguiar. Nesses dois textos aspectos salutares do movimento espírita no Brasil são abordados, seja ao ser estudado um dos maiores representantes do gênero: Humberto de Campos; sejam ao ser analisado características do movimento espírita e sua inserção na mídia.
Por fim, encerrando o livro têm-se duas abordagens sobre a religiosidade de matiz indiana em sua influência na religiosidade contemporânea brasileira. No texto de Maria Lucia Abaurre Gnerre e Gustavo Cesar Ojeda Baez estuda-se o uso da religiosidade indiana no desenvolvimento do Yoga por Mircea Eliade. Já o estudo de Deyve Redyson aborda aspectos sobre meditação e desenvolvimento espiritual nas leituras do Sutra do coração. Nos dois casos nota-se um maior enquadramento dos autores com seu objeto de pesquisa, item também presente no estudo de João Marcos Leitão Santos. Talvez esse seja o componente principal a ser destacado, afinal, ao denotarem sua afinidade ao tema pesquisado, os textos abordados ganham uma vivacidade e um envolvimento que outros, de modo particular alguns constantes no estudo sobre a Igreja Católica no Brasil contemporâneo não possuem. Se a neutralidade é algo que se deve perseguir em um estudo científico, isso não significa que a paixão e o prazer que determinado objeto traz ao seu pesquisador não possa ser evidenciado. Há, porém, que se definir limites, para que a abordagem e o que se conclui no estudo, não venham a ser afetados.
O livro História, religiões e religiosidade traz importante contribuição para o estudo e entendimento de assunto tão presente na sociedade brasileira. Tendo sempre sido destacado a importância e o impacto da religião na formação e construção de nossa identidade e cultural nacional e local, faltam, porém abordagens que trabalhem este assunto. Carecem também, estudos que possam abordar o máximo possível da multiplicidade de assuntos que compõem o universo religioso do país ou que fujam dos chavões e temas que são sempre abordados, como a religião católica ou as africanas.
Ao caminhar para abordagens que privilegiam o mundo antigo, o universo colonial e a diversidade religiosa no mundo contemporâneo brasileiro a obra organizada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar contribuem para ampliar e enriquecer o debate sobre o assunto, mostrando preocupação com a intolerância religiosa, tão presente nos últimos tempos. O livro representa também, o sempre bem vindo diálogo envolvendo duas Instituições distintas. O colóquio foi sempre, ponto fulcral para que a Ciência pudesse ampliar seus horizontes e desenvolver novos olhares e outras abordagens sobre temas e problemas que a sociedade e a História nos impõem. Boa leitura.
Charles Nascimento de Sá – Professor na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XVIII. Doutorando na UNESP/Assis. Bolsista UNEB PAC-DT. E-mail: charles.sa75@gmail.com.
Cintia Gonçalves Gomes – Doutoranda em História e Sociedade na UNESP/Assis. E-mail: c_cintiagoncalves@hotmail.com.
A grande estrangeira: sobre literatura – FOUCAULT (A)
FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. Resenha de: LIMA,Wallas Jefferson de. Antítese, v. 10, n. 20, p. 1115-1119, jul./dez., 2017.
Além da multiplicidade de releituras, acredita-se que o mais impressionante na obra de Michel Foucault é sua pluralidade de interesses, temas e objetos de estudos, a aplicação que ele fez de sua habilidade de escrita e pensamento a tantos campos de pesquisa, indo da Filosofia e da História a ensaios acerca do poder, da loucura, da sexualidade, da penalidade, da linguagem e da estética, sem esquecer os registros de suas aulas, as entrevistas concedidas e sua atuação direta nos acontecimentos da França de 1968. Teria sido tudo isso um acaso? Alguns afirmam que essa variedade simbiótica entre teoria e prática foucaultiana deve ser aclamada como riqueza axiomática do filósofo. Outros problematizam que tal escrita, apesar de abastada, tem sido pouco compreendida em sua profundidade. Como é possível que um homem tenha conseguido escrever acerca de tantas temáticas a partir de diferentes aportes teóricos (às vezes contraditórios e discordantes entre si) e sob óticas tão heterogêneas? Qual é o segredo da escrita de Foucault? Tais questões, aparentemente irrelevantes, são suficientes para explicar os motivos da paralisia crítica presente atualmente nas Ciências Sociais em relação ao autor de História da Loucura. Ocorre que se tem esbarrado, quase sempre, na espantosa complexidade dessa escrita polivalente, ainda hoje não assimilada em sua totalidade. E poderia ser diferente? Entretanto, dentre tantos livros já escritos acerca de Foucault, talvez pouco tenha sido dito em relação ao complexo vínculo estabelecido entre ele e a Literatura. O que um tem a dizer a respeito do outro? Em A grande estrangeira, tais questões são problematizadas e demonstram que até mesmo os labirintos da escrita se tornaram um problema para esse filósofo. Essa inquietação com o literário, é verdade, não é algo novo em Foucault. Mas, constata-se que nessa obra ela ganhou novas perspectivas analíticas: o que está em jogo é uma investigação que toma como problema filosófico a polivalência das formas, as estratégias, os usos, as modalidades, as enunciações, os procedimentos e a construção das narrativas dentro do campo literário.
Formulada assim, é possível asseverar que o elo entre Foucault e a Literatura abarca múltiplos desdobramentos. A presente edição sustenta-se referencialmente em transcrições datilografadas de pronunciamentos públicos feitos pelo próprio Michel Foucault – seja em programas radiofônicos ou em conferências. É o caso do primeiro capítulo, A linguagem da loucura, em que o filósofo analisa as diferentes formas de linguagens patológicas por meio de duas transmissões radiofônicas no programa L’Usage de la Parole, veiculados pela RTF France III National e dirigido por Jean Doat. Foucault analisa a figura do louco a partir de releituras de Cervantes, Shakespeare, Corneille, Gérard de Nerval, Raymond Roussel, Mario Ruspoli, Michel Leiris, Jean-Pierre Brisset e Henri Michaux. Lendo citações de textos literários, o pensador francês explica como a cultura ocidental silenciou a loucura e, paralelamente a esse fenômeno, criou a ideia de que os loucos possuem uma linguagem peculiar caracterizada pela sobrecarga, por signos e por “delírios epistemológicos” (FOUCAULT, 2016, p. 63). Se analisada mais de perto, é possível afirmar que a Literatura ora buscou afastar a loucura de sua visão, ora lançou-lhe um olhar distante, tomando-a pelo seu lado cômico, irônico e melancólico. É o que pode ser percebido por exemplo, na figura de Dom Quixote. O estudo da Literatura, sob o ângulo dessa tensão entre loucura e linguagem, ainda está por ser feito, mas isso não significa, reconhece Foucault, que “toda linguagem de loucura tenha uma significação literária” (FOUCAULT, 2016, p.70). Há, naturalmente, problemas epistemológicos intricados a serem resolvidos, o que torna o discurso do louco um problema a ser examinado pela estética literária.
O capítulo dois, Linguagem e Literatura, é a transcrição de uma conferência realizada em 1964, na Facultés Universitaires Saint-Louis, em Bruxelas. Foucault inicia sua fala questionando o que é a Literatura, considerada como um objeto estranho. Para ele, antes de responder a essa pergunta, é necessário distinguir três coisas: a linguagem, as obras e, por fim, a Literatura. Chamada de “vértice de um triângulo”, a Literatura pode ser entendida como um “texto feito de palavras (…) escolhidas e arranjadas” (FOUCAULT, 2016, p. 81) que constrói em seu interior duas figuras importantes: a figura da transgressão e a figura da morte. A complexidade implicada pelo estudo dessas duas figuras demonstra o quanto a escrita do Marquês de Sade simboliza essa palavra transgressiva, interdita, profana e de morte.
Analisando escritos de Dostoiévski, Proust, Diderot e Joyce, Michel Foucault explica que a Literatura é uma espécie de jogo que coloca em seu meio o simulacro, o irreal, o fantasioso em que o tempo é encerrado, longínquo e irrecuperável. Nessa perspectiva, não é um acaso que Proust tenha intitulado sua obra mais famosa de Em busca do tempo perdido. O tempo da escrita literária é, para Foucault, fragmentado, despedaçado e disperso. Essa preocupação com o tempo não é, aliás, característica apenas da escrita proustiana; ela também é encontrada em Ulisses, de James Joyce. Nessa obra, o tempo e o espaço constituem configuração essencialmente circular: todo o livro passa-se em um único dia, em uma única cidade; o círculo temporal vai da manhã à noite e o personagem dá voltas, passeia, caminha por esse espaço virtual, vivenciando as ruas, as multidões e os ambientes diversos.
É no interior dessa relação entre tempo e espaço que Foucault estuda, ainda, a linguagem literária. Esta experiência representa uma espécie de releitura acerca dessa linguagem, caracterizada por seus redobramentos, suas reduplicações e repetições. Em síntese: a literatura é uma linguagem ao infinito. O filósofo francês dedica-se a estudar as noções de metalinguagem e esoterismo estrutural a partir de releituras do linguista russo Roman Jakobson. A ideia central é analisar as formas da linguagem, seus códigos e suas formas para compreender como a Palavra literária (com P maiúsculo) faz-se presente de forma soberana ao leitor. Trata-se de uma espécie de decodificação do discurso que objetiva compreender como a palavra literária – um simples texto de palavras – se metamorfoseia e transforma-se em palavra deificada, glorificada, sublimada, enaltecida. Por que ela é respeitada? Por que a palavra do literário extasia, fascina, deslumbra? Como se dá essa mudança? A partir de que meios isso acontece e sob que condições? Essas são, ao que tudo indica, as preocupações principais de Foucault. Do ponto de vista da literatura, ele levanta e deixa em suspenso problemas interessantes: como se pode analisar essa linguagem? Como esboçar uma teoria que leve em consideração a estrutura de repetição dessa linguagem? Para responder a tais questões, seria preciso, segundo Foucault, levar adiante uma análise semiológica que estabelecesse qual é o “sistema de signos” (FOUCAULT, 2016, p. 118) que funciona no interior de uma obra literária. Isso é importante, uma vez que a Literatura não se realiza com beleza e sentimentos, mas com ideias e linguagem. Foucault faz o leitor pensar o literário a partir de uma combinação de signos verbais à maneira de Saussure. Que signos seriam esses? São, antes de tudo, signos de escrita aqui entendidos como “certas palavras ditas nobres” (FOUCAULT, 2016, p. 119), constituindo-se, também, em espécies de estruturas linguísticas caracterizadas por certa configuração e por uma narrativa literária que lhe são próprias. São esses signos e estruturas significantes que ajudam o crítico literário a diferenciar Proust de Balzac, por exemplo. Em outras palavras, os signos dão uma identidade à obra literária. Capitalizam as mobilidades léxicas. Restauram heranças verbais. Exprimem um pensamento individual. A Literatura nasce, enfim, dessas misturas heterogêneas e complexas.
O terceiro capítulo, Conferência sobre Sade, contém duas sessões de uma palestra proferida por Foucault na Universidade do Estado de Nova Iorque, em Buffalo. A primeira sessão examina a relação entre desejo e verdade na obra do Marquês de Sade. Tendo como mote La Nouvelle Justine, Foucault envereda-se pela escrita labiríntica sadiana e, percorrendo-a, explica que ela se situa do início ao fim sob o “signo da verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 141). A verdade, na Literatura francesa do século XVIII, era uma tradição usada como procedimento de autenticação da história narrada. Mas, que tipo de verdade é essa? Essa verdade, segundo o filósofo, “não pode absolutamente ser tomada ao pé da letra” (FOUCAULT, 2016, p. 144). A realidade ontológica da escrita sadiana está posta no centro do debate. Difícil saber o quanto Foucault terá tentado seguir o conselho de Georges Bataille, pensador da transgressão e do erotismo1. O fato, entretanto, é que para discutir a função da verdade sadiana, noção repleta de problemas epistemológicos, foi-lhe necessário não apenas mergulhar no pensamento de Bataille, a quem admirava2, mas também atravessar sua análise com referências implícitas ao autor de Histoire de l’oeil. Para Foucault, a função da ‘verdade” em Sade é sobrecarregar o texto, redobrá-lo e exasperá-lo ou, em outras palavras, “fazer aparecer no exercício da dominação, da selvageria e do assassinato alguma coisa que seja uma verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 145). Entretanto, pelo caráter essencial que preside essa verdade, a escrita de Sade está, desde já, destinada a auxiliar o erotismo, a sexualidade e a fantasmagoria individual. Ocorre, dentro desse contexto, uma espécie de junção entre imaginação e escrita que confere aos personagens seu caráter de degradação. Ora, onde reside essa verdade? Na técnica de escrita do libertino que Foucault passa a analisar. Como esquema geral, pode-se afirmar que essa escrita atua como “elemento intermediário entre o imaginário e o real” (FOUCAULT, 2016, p. 153). Somente quando posta no papel é que a imaginação ganha ares de realidade. Tal escrita é, portanto, um procedimento que conduz ao real, na medida em que repele a imaginação do escritor. Ela comporta regras específicas. Faz sua historicidade específica. Produz sua unidade a partir do pensamento. Essa situação se redobra em uma outra, que dela é indissociável para o leitor: que papel desempenha essa escrita? Para Foucault, a escrita sadiana possui quatro funções: afastar a porosa fronteira entre realidade e imaginação; apagar os limites do tempo no intuito de liberar a repetição; permitir à imaginação superar seus limites; e, por fim, colocar o escritor em uma espécie de singularidade na qual as fantasias, os limites, o tempo, as normas e os costumes não mais exercerão influência em seu corpo.
A segunda sessão analisa o significado da alternância entre discursos teóricos e cenas eróticas presentes na obra de Sade. Essa alternância é uma verdadeira obsessão ou, para ser mais exato, uma espécie de “regularidade mecânica” (FOUCAULT, 2016, p. 163) na qual cada cena de sexo é precedida de um discurso teórico. Que conclusão tirar daí? Seguindo a pista dada por Foucault, isso seria consequência de um desejo de representar teatralmente e justificar o que será encenado. Esse discurso não objetiva, como muitos tendem a acreditar, explicar o que é a sexualidade. Na verdade, para Foucault, os discursos de Sade “não falam da sexualidade” (FOUCAULT, 2016, p. 164); discorrem acerca de Deus, do contrato social, do conceito de crime, da natureza humana, da transgressão. A segunda consequência que se pode tirar é que o discurso serve para “construir o teatro onde a cena se desenrolará” (FOUCAULT, 2016, p. 165). Inteiramente ligado à trama, o discurso teórico de Sade possui uma ligação com a excitação sexual. Ele estreita as ligações entre os parceiros sexuais, atua frequentemente como elemento estimulante e, por essa via, ajuda no desenvolvimento da encenação. As palavras são, portanto, o motor do desejo, seu princípio, sua mecânica e seu eixo. É uma espécie de escrita que altera o corpo ao mesmo tempo em que edifica o discurso. Os termos dessa equação se equivalem e, portanto, se reiteram. Por isso, discurso e desejo se encadeiam um no outro.
Comparado a um poliedro de quatro faces, o discurso sadiano possui em sua base quatro teses de inexistência: primeiro, constata-se que Deus não existe, uma vez que ele é contraditório, impotente e mau; segundo, afirma-se que a alma não existe porque, estando submetida ao corpo, é material, sendo, portanto, perecível; terceiro, depreende-se que onde “não há lei, não há crime” (FOUCAULT, 2016, p. 168), uma vez que se uma lei não proíbe algo esse “algo” não existe enquanto ato criminoso; por fim, nota-se que a natureza não existe ou, se existe, é apenas sob o signo da destruição, o que significa afirmar que é a natureza que destrói a si mesma. Que tipo de indivíduo assimila esse tipo de discurso? O libertino, sujeito que não está ligado a nenhuma eternidade, que não reconhece nenhuma soberania acima dele (Deus, alma, lei, natureza, etc.), que não reconhece nenhuma norma e que possui existência irregular.
Foucault se questiona para que servem esses discursos. Que função exercem no texto? Afirma o filósofo que, em primeiro lugar, elas objetivam aniquilar todos os limites que o desejo talvez possa encontrar, posto que o homem nunca pode renunciar a seus desejos, ainda que, para isso, tenha que sacrificar o desejo do outro. Esse discurso tende a opor-se ao discurso religioso e teológico que é, em relação à escrita sadiana, um “discurso castrador” (FOUCAULT, 2016, p. 170), que visa à renúncia, à negação e à ordem. A segunda função é servir de brasão, ou seja, de signo de reconhecimento, uma vez que a escrita de Sade busca, em sua essência, distinguir os libertinos e as vítimas, duas categorias de indivíduos completamente opostas. Os primeiros encontram-se no interior do discurso e são eles que aceitam as quatro teses da inexistência, tomando seus corpos enquanto objetos usados para o prazer. Os segundos encontram-se no exterior do discurso e são eles que morrem, são torturados, estuprados e violados ao longo da trama. A terceira função refere-se ao que Foucault chama de “função de destinação” (FOUCAULT, 2016, p. 180). Caracterizada pela ideia de que Deus não existe, Sade constantemente afirma em seus escritos que a alma, a natureza e o Divino são quimeras e, portanto, “a inexistência de Deus se consuma a cada instante no discurso e no desejo” (FOUCAULT, 2016, p. 188). A quarta função refere-se à rivalidade: a escrita faz surgir uma pluralidade de sistemas que versa acerca das relações entre os homens, das obrigações, das sanções e do contrato social. Destacam-se, portanto, as noções de desigualdade e violência além do caráter destrutivo da natureza. A escrita sadiana deseja acima de tudo destacar a irregularidade dos indivíduos dentro desse sistema que favorece apenas os libertinos. A última função: “expor o libertino à morte” (FOUCAULT, 2016, p. 193). Todavia, esta morte é algo maravilhoso, uma vez que, para o libertino, a alma não é imortal, Deus não existe e não há crime verdadeiro. Assim, por que o libertino teria medo da morte? Foucault consegue compreender a base da escrita de Sade. São essas funções que, vistas de forma panorâmica, conseguem explicar o edifício completo das obras sadianas.
Dessa forma, literatura, loucura e desejo formam o tripé de A grande estrangeira. Para Foucault, era importante dedicar-se aos volteios da linguagem que – insistente e sutil – tece considerações de ordem existencial, exerce sua influência no cotidiano, produz heróis, relativiza a morte, fornece modelos, cria sistemas e projeta ideais. A literatura é, para Foucault, essa “estrangeira”, esse enigma que precisa de decifração. Seguindo evoluções definidas por novas configurações, a escrita foucaultiana é atravessada por alusões aos sistemas, aos códigos, aos esquemas perceptivos e às técnicas da literatura. Trata-se de um aprofundamento das ideias defendidas em As palavras e as coisas. O estudo dessa tensão entre escrita e vontade, entre palavra e desejo vai habitar toda a extensão dessa obra que se preocupa, quase sempre, em apoderar-se da literatura enquanto estratégia de análise. O leitor, seduzido por esse emaranhado de releituras, se vê perplexo diante dessas problemáticas. Acompanhar a complexidade teórica de Foucault, pleitear sua leitura e avaliar suas análises são procedimentos que, ainda hoje, se continua a fazer. E, ao que tudo indica, essas dificuldades analíticas ainda vão perdurar por muito tempo.
Referências
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
FOUCAULT, Michel. Presentation. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1970.
_____. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
Notas 1 Bataille afirmava que nada seria mais vão que ler a obra de Sade “ao pé da letra” (BATAILLE, 2015. p. 105).
2 Michel Foucault descreveu Bataille como “um dos mais importantes escritores do nosso século”, uma vez que “a ele devemos em grande parte o momento onde estamos”. (FOUCAULT, 1970. p. 5).
Wallas Jefferson de Lima – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, vinculado a linha de Pesquisa “Espaço e Sociabilidades“.
La palabra y el puño: perfiles de la retórica nazista en el Mein Kampf de Adolfo Hitler – RAMÍREZ VIDAL (B-RED)
RAMÍREZ VIDAL, Gerardo. La palabra y el puño: perfiles de la retórica nazista en el Mein Kampf de Adolfo Hitler [A palavra e o punho: perfis da retórica nazista no Mein Kampf de Adolfo Hitler]. México D.F.: Instituto de Investigaciones Filológicas, Universidad Nacional Autónoma de México, 2013. 152 p. [Colección de Bolsillo; 40]. Resenha de: VITALE, Maria Alejandra. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.2 São Paulo May/Aug. 2015.
“Palabra y puño” [Palavra e punho] são dois signos que, no título da obra resenhada, funcionam como equivalentes e remetem, por isso, à concepção retórica da palavra como uma arma na vida político-social1, ao mesmo tempo em que sintetizam o vínculo indissolúvel que o discurso e a violência estabeleceram na retórica nazista. A dedicatória do livro é outro paratexto chave, permitindo compreender o interesse do autor em relação ao tema estudado e a sua pertinência para os leitores mexicanos, particularmente, e latino-americanos, em geral: “Àqueles que com coragem e perseverança têm lutado contra a ditadura priista”2. Gerardo Ramírez Vidal, doutor em Línguas Clássicas pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e pesquisador do Centro de Estudos Clássicos do Instituto de Pesquisas Filológicas da mencionada Universidade, não compara, claro, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) com o regime nazista. A finalidade da dedicatória é orientar a leitura do seu livro para que os destinatários vinculem determinadas características daquilo que o autor denomina “retórica autoritária”, analisada em Mein Kampf, com a retórica do PRI, concebido, como é feito pelas organizações civis de esquerda do seu país, como uma ditadura. Esse compromisso de Ramírez Vidal com a realidade sociopolítica do seu tempo e com a atualidade da Retórica tem-se plasmado também em seu constante trabalho para constituir e consolidar associações de Retórica que reúnem acadêmicos da América Latina e da Ibero América. De fato, Ramírez Vidal assumiu o cargo de primeiro presidente da Associação Latino-america de Retórica e da Associação Mexicana de Retórica e atualmente preside a Organização Ibero-americana de Retórica.
Ramírez Vidal aborda Mein Kampf a partir de uma ideia muito atrativa: considera-a “un ars rhetorica sui generis“, i.e., um “manual” ou “tratado” prático de retórica “que poderia oferecer aos eventuais divulgadores do nazismo, e não só aos dirigentes da organização partidária, uma série de elementos técnicos que lhes permitiriam difundir, de modo eficaz, a ideologia do autor” (p.14)3. Fiel seguidor de Aristóteles, para quem a Retórica é amoral, servindo tanto para o bem quanto para o mal, nosso autor parte da questão sobre a eficiência do texto de Adolf Hitler e não de suposições axiológicas ou normativas.
O livro realiza uma rigorosa análise retórica de Mein Kampf, chamando a atenção os profundos conhecimentos que Ramírez Vidal possui sobre a Retórica. O autor explica as noções retóricas que usa, porém evita as citações eruditas, o que agiliza a leitura e constitui um indício de que o texto não se dirige apenas a especialistas na área. La palabra y el puño possui, de fato, uma função didática que se sustenta na proposta de que a Retórica possui um valor essencial na formação dos cidadãos e na vida cívica própria da democracia.
La palabra y el puño se compõe de uma Introdução, dois capítulos com subseções e as conclusões. A Introdução inclui o estado da arte, e nela Ramírez Vidal sintetiza os principais estudos prévios sobre as habilidades oratórias de Hitler e sobre Mein Kampf, expõe o eixo de sua leitura – o texto funcionou como um “manual prático” de retórica – e resume o conteúdo dos capítulos.
O capítulo 1, intitulado Mein Kampf, concentra-se, em sua primeira seção, nos aspectos de caráter macrorretórico (termo retirado de Livio Rossetti)4, isto é, a finalidade da obra, os destinatários e as circunstâncias do tempo e do espaço em que foi elaborada, aspectos a que Hitler se adequou de forma exitosa. A partir de abundante bibliografia clássica e atual, Ramírez Vidal refere-se, assim, às condições econômicas desfavoráveis da Alemanha após o Tratado de Versalhes, o Putsch de Münich dos dias 8 e 9 de novembro de 1923, à posterior prisão de Hitler – que implicou sua “conversão” ao “haver-se transformado no verdadeiro enviado que haveria de salvar a Alemanha” (p.28)5, à ascensão do Partido Nazista e à própria história de Mein Kampf. Texto em dois volumes, o primeiro foi escrito no presídio de Landsberg, em 1924; foi posteriormente corrigido e reescrito por diversas pessoas e publicado em 1925. O segundo volume foi escrito já fora da prisão e publicado em 1926; em 1930, publicou-se a obra pela primeira vez em um volume só.
Ramírez Vidal retoma o termo kairós, momento oportuno que propicia ou determina uma ação. Em relação a Mein Kampf, o primeiro momento oportuno foi o prestígio conquistado por Hitler devido ao seu encarceramento e à publicação desta obra e o segundo, a falência alemã devida à grande depressão de 1930 e 1933, que fez de Hilter “um dirigente nacional e um mito da direita alemã” (p.34)6.
A segunda parte do capítulo 1 expõe o acesso à obra (accessus ad operam), extremamente fundamental para demarcar a finalidade (telos, finis). A finalidade de Mein Kampf é oferecer aos seguidores do movimento nacional-socialista uma série de princípios fundamentais que deveriam adotar em seu trabalho propagandístico. Para atingir essa meta, Hitler recorre ao procedimento denominado paradigma, porque os seguidores entenderiam, pelo exemplo de sua própria vida, os objetivos do movimento e o seu desenvolvimento para poder realizar uma difusão adequada. No que se refere à natureza da obra (quid), Ramírez Vidal considera-a um “tratado”, no sentido mais amplo do conceito, mesmo que esteja marcado por subjetividade, o que não é próprio desse gênero. É um “tratado retórico” porque “expõe, de maneira mais ou menos sistemática, completa e com fins didáticos, uma série de ensinamentos sobre a forma como se deve construir um texto oral ou escrito de natureza política para a propagação eficaz da ideologia nacional-socialista” (p.42-43)7.
O capítulo 2, Elementos de retórica nazista, é o mais extenso e possui quatro subseções. A primeira trata da figura do orador com base na ideia principal de que uma retórica autoritária, seja de direita ou de esquerda, se funda no ditador, aquele que articula o discurso. Ramírez Vidal considera, aplicadas a Hitler, as habilidades que se deve ter para ser um excelente orador e que são mencionadas em Mein Kampf: naturais, práticas e técnicas ou teóricas. Sobre as primeiras, destaca, como traço positivo, a sua voz, “uma voz de barítono, que sabia modular desde o piano ao fortissimo“8 e suas mãos, “bem formadas e expressivas” (p.51)9, apesar de seu físico e baixa estatura constituírem deficiências naturais. Em relação a fatores práticos, Hitler apreciou a retórica do prefeito de Viena, Karl Lueger – antissemita declarado -, tomou como modelo outro conhecido antissemita, o pensador austríaco Georg von Schoenerer (1842-1921) e exercitou-se com o grupo de propagandistas do segundo regimento de infantaria do Reichswehr (nome das Forças Armadas Alemãs). No que tange às competências teóricas, como agente antibolchevique Hitler fez cursos de oratória organizados pelo Departamento de Informação e, em 1919, participou de cursos de formação na Universidade de Münich. Ramírez Vidal comenta a bibliografia dos livros que Hitler leu, tema sobre o qual não há consenso, mas aponta para o fato de que a sua eloquência parece refletir os 38 estratagemas da dialética erística contida na obra Dialektik, de A. Schopenhauer, em especial o último estratagema, que se refere à forma de denegrir o adversário. Ao concluir a subseção, Ramírez Vidal reflete sobre a relação entre técnicas erísticas e a violência física. Entre outras características da retórica de Hitler, inclui a defesa de ponto de vista próprio sem atentar aos argumentos do adversário; a busca de que sua vontade se paralise; a simbiose unidirecional do orador para com o seu auditório, de quem não admite réplicas, e o ataque como melhor meio de defesa. Com exemplos concretos, Ramírez Vidal, explica muitos dos sucessos de Hitler com base na aliança entre “palabra” e “puño”. De fato, a sentença de Mein Kampf “A coação só se rompe mediante a coação e o terror com o terror” (p.72-73)10 vincula-se com o ataque aos adversários em lutas de rua, a sabotagem e as técnicas de interrupção nas assembleias e a promoção de enfrentamentos para converter o Partido Nacional-Socialista Operário Alemão em notícia.
A segunda seção do capítulo 2 é dedicada a Inventio. Nela, Ramírez Vidal inclui três pontos principais. Um deles se refere aos locais de onde são retirados os argumentos, classificando-os, a partir disso, em lógicos (relativos ao assunto), éticos (relativos ao orador) e emocionais (relativos ao destinatário). Nesse sentido, nosso autor destaca que na retórica democrática a ordem de importância dos argumentos é lógicos-éticos-patéticos enquanto na retórica autoritária a ordem é éticos-patéticos-lógicos11. Outro ponto se constitui na classe e na estrutura dos argumentos, isto é, os entimemas e os paradigmas. Em Mein Kampf, Hitler mesmo se apresenta como o paradigma por excelência do orador nacional-socialista; em relação aos entimemas, Ramirez Vidal, fundamentando-se em TheUses of Argument, de S. Toulmin, destaca que a grande falácia da argumentação nazista é a ausência de garantias para sustentar as leis de passagem. O último ponto é a distinção entre lugares comuns e lugares próprios, que correspondem àquilo que Hitler denomina “ideias básicas” ou “amplos pontos de vista”. Estes são formulados nos seis primeiros capítulos de Mein Kampf e constituem os dogmas da argumentação totalitária, como a superioridade ariana, o ódio contra o judeu, a necessidade da intolerância, o treino físico como meio de preservação da raça, o antiparlamentarismo, entre outros.
Ramírez Vidal concentra-se no primeiro desses pontos. Dessa forma, descreve alguns argumentos lógicos usados em Mein Kampf, como o fim e os meios. Entretanto, dado que a retórica autoritária não pondera sobre esse tipo de argumento, a análise se detém nos argumentos éticos e patéticos, adequados para Hitler diante de uma massa que é percebida, de modo explícito, como incapaz de compreensão e de memória. Toda a primeira parte de Mein Kampf procura construir uma imagem eficaz de Hiltler, um êthos do homem superior, apelando a tópicos do gênero epidítico que sustentam um autoelogio, como a raça, a cultura ou a história pessoal. Ramírez Vidal recupera a bibliografia mencionada nas leituras que Hitler fez sobre a psicologia das massas e identifica estratégias que tendem a gerar emoções no auditório (em especial ódio, temor, angústia, asco e seus contrários), como a dramatização da história universal ou o emprego de certas expressões que designam uma conspiração internacional ou o enriquecimento dos judeus.
A terceira seção do capítulo 2 aborda a Elocução. Ramírez Vidal atribui a Hiltler o estilo humilde ou baixo e faz questão de recomendar o emprego de palavras comuns e correntes, apresentando modelos de uso para que seus seguidores imitem e ensinem aos outros. Em relação às virtudes elocutivas (correção, clareza, adequação e ornato), Hitler privilegia a clareza e a adequação, sem preocupar-se com a correção. Ramírez Vidal destaca, no ornato, o uso de personificações e alegorias; prioriza, principalmente, a análise das figuras retóricas do símile, a metáfora, a hipérbole, a antítese e o uso de provérbios ou expressões proverbiais. Esses recursos não provam nada no sentido de argumentos lógicos, porém geram emoção e se articulam com estereótipos ou mitos, o que lhes dá grande força persuasiva. A força desses elementos microrretóricos dependeu do modo como Hitler adequou e aproveitou os elementos macrorretóricos, particularmente o contexto em que escreveu Mein Kampf e no qual ele foi recebido.
A última seção do capítulo 2 é dedicada a Actio, aludido por Hitler em Mein Kampf, quando menciona os mecanismos verbais que seguia. Além disso, Hitler estabelece com clareza a diferencia entre o discurso oral e o escrito, valorizando o primeiro sobre o segundo por ter esse alto poder de produzir, por razões psicológicas, mudanças realmente significativas. Ademais, considera que o discurso oral permite uma ampla adequação aos ânimos do público, atingindo grande parte das massas, sendo o texto propagandístico escrito, em geral, somente lido pelos simpatizantes do partido.
As conclusões de La palabra y el puño explicitam a finalidade que Ramírez Vidal atribui a seu livro: “o conhecimento dos processos discursivos a que recorrem os líderes dos regimes autoritários tem o fim prático de encontrar antídotos que façam frente aos mecanismos da ditadura” (p.141)12. Recapitula, dessa forma, as características da retórica autoritária: aproveita condições sociais e econômicas desfavoráveis, complementa-se com a violência física, parte de dogmas incontestáveis estabelecidos por um indivíduo que se diz iluminado, prioriza argumentos emocionais que apoiam o culto à pessoa e tendem a gerar medo ou pânico, usa uma linguagem de caráter polar, sentencioso e hiperbólico, que cria estereótipos desmerecendo o adversário, e recorre a uma Actio com gesticulações, tom patético e atitude inflamada, chamejante embravecida. Como contrapartida, é caracterizada a retórica democrática.
Ramírez Vidal faz questão de enfatizar que a formação retórica do cidadão é essencial na vida democrática; somente sua educação cívica e o respeito às leis podem evitar que a retórica autoritária se expanda. De alguma forma promove aquilo que Ph-J. Salazar13 denomina “alfabetização retórica”, que ajuda a evitar que a democracia se transforme em uma manipulação de opiniões.
Frente a Mein Kampf, protótipo da retórica usada para o mal, o livro de Ramírez Vidal é uma maravilhosa aposta na retórica empregada para o bem; se a obra de Hitler se constituiu um manual para que seus seguidores difundissem o nacional-socialismo, La palabra y el puño sobressai como um valioso manual de análise retórico, modelo para trabalhos futuros, que aspira a contribuir com a democracia e a justiça no México, desejo que se prolonga para toda a América Latina.
Tradução para o português por Gabriel Jiménez Aguilar – aguilar.jgabriel@gmail.com
1Sobre esse assunto, veja LÓPEZ EIRE, A. La naturaleza retórica del lenguaje, Logo. Revista de Retórica y Teoría de la Comunicación 8/9, 2005, p.5-254.
2Texto no original: “A quienes con valentía y perseverancia han luchado en contra de la dictadura priista”. Priista: pertencente ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), partido político do México que manteve o poder político de maneira hegemônica entre 1929 e 1989.
3Texto no original: “que podría ofrecer a los eventuales divulgadores del nazismo, y no solo a los dirigentes de la organización partidista, una serie de elementos técnicos que les permitiría a ellos mismos difundir de manera eficaz la ideología del autor”.
4Neste sentido, pode-se vincular a noção de aspectos macrorretóricos com a noção de Intellectio (CHICO RICO, F. La Intellectio. Notas sobre una sexta operación retórica. Estudios de Literatura 14, 1989, p.47-55). A Intellectio é considerada – junto com a Inventio, Dispositio, Elocutio, Actio e Memoria – a sexta operação retórica, que consiste no conhecimento panorâmico e orientador da causa; implica a consideração inter-relacionada dos componentes do processo comunicativo constituídos pelo texto, seu produtor, seu receptor e o contexto comunicativo geral em que ambos se encontram situados. Sobre a macrorretórica, ver ROSSETTI, L. Estrategias macro-retóricas: el “formateo” del acontecimiento comunicativo. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2009.
5Texto no original: “se había transformado en el verdadero enviado que habría de salvar a Alemania”.
6Texto no original: “un dirigente nacional y en un mito de la derecha alemana”.
7Texto no original: “expone de manera más o menos sistemática, completa y con fines didácticos una serie de enseñanzas de cómo debe construirse un texto oral o escrito de naturaleza política para la propagación eficaz de la ideología nacionalsocialista”.
8Texto no original: “una voz de barítono, que sabía modular desde el piano al fortissimo“.
9Texto no original: “bien formadas y expresivas”.
10Texto no original: “La coacción sólo se rompe mediante la coacción y el terror con el terror”.
11No marco da análise do discurso sustentado sobre dados descritivos da linguística textual, Adam e Herman (ADAM, J-M. y HERMAN, Th., Reformulation, répétition et style périodique dans l’appel du 18 juin 1940, Semen, 12, Répétition, altération, reformulation dans les textes et discours, 2000 [en línea], puesto en línea el 4 de mayo de 2007. URL: http://semen.revues.org/document1862.html) advertiram a respeito de algo semelhante, nesse caso contrastando o “Llamamiento del 18 de junio” [Chamamento de 18 de junho] do general De Gaulle com o discurso feito pelo Marechal Pétain um dia antes, o 17 de junho de 1940. Esses autores diferenciam a argumentação, que está baseada no êthos, o pathos e o logos como três polos complementares, da manipulação, que abandona o polo do logos e se concentra no êthos e no pathos. De Gaulle argumenta; Pétain, como Hitler, manipula.
12Texto no original: “El conocimiento de los procesos discursivos a los que recurren los líderes de los regímenes autoritarios tiene el fin práctico de encontrar antídotos que contrarrestren los mecanismos de la dictadura”.
13Tomar el poder por la palabra. Elementos de fabricación de la retórica electoral, Rétor 2 (2), 2012, p.260-263.
María Alejandra Vitale – Universidade de Buenos Aires, UBA, Buenos Aires, Argentina; vitaleale@fibertel.com.ar.
Gramsci no seu tempo – AGGIO et. al (A)
AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe (Orgs.). Gramsci no seu tempo. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Brasília: Fundação Astrogildo Pereira. Co-edição, Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; GOMES, Jarbas Mauricio. Texto e contexto: Gramsci e a história. Antíteses, v. 8, n. 15, p. 542 – 546, jan./jun. 2015.
Hegemonia, intelectuais, Estado ampliado, sociedade civil e sociedade política são alguns dos conceitos presentes nas obras de Antonio Gramsci (1891-1937) e que são encontrados em um número significativo de pesquisas na área das Ciências Sociais e Humanas. Os escritos de Antonio Gramsci tem se consagrado como um referencial teórico e metodológico nas pesquisas brasileiras, servindo ora de objeto de estudo, ora de fundamentação teórica. Na última década, o uso de seu pensamento como referencial de pesquisa foi retomado sob a influência da publicação da nova edição brasileira de sua obra que, ocorrida entre os anos de 1999 e 2002, teve o mérito de apresentar uma visão geral de seus escritos ao tornar acessíveis textos até então inéditos no Brasil.
O uso das ideias de Gramsci como referencial teórico passou a ser complementado com o aumento do número de pesquisas cujo objeto de estudo era o seu pensamento e a sua obra. A produção de conhecimentos sobre Gramsci nos diferentes campos das Ciências Sociais e Humanas reafirmou a tradição dos estudos gramscianos e valorizou a perspectiva de que é necessário investigar com profundidade a relação entre seus escritos e o contexto histórico a partir do qual foram elaborados para, então, mediante a compreensão historicamente contextualizada, promover a aplicação de suas análises e categorias conceituais à realidade brasileira.
O desenvolvimento das pesquisas sobre Gramsci e seu pensamento pode ser dividido em duas fases que se confundem, entrelaçam e se complementam. A primeira fase esteve voltada ao estudo filológico de seus escritos, em especial dos Cadernos do Cárcere, para reconstruir a estrutura do pensamento gramsciano e estabelecer o caminho teórico percorrido por ele na construção de seus argumentos. Na segunda fase, os estudos estão voltados para a contextualização das ideias de Gramsci pelo movimento histórico em que os escritos foram produzidos.
Gramsci no seu tempo é uma publicação da Fundação Astrojildo Pereira em parceria com a Editora Contraponto e apresenta uma contribuição significativa para os avanços dos estudos gramscianos no Brasil e, em especial, para aqueles que se propõem a utilizar Gramsci como referencial teórico de pesquisa. Organizado por Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques e Giuseppe Vacca, Gramsci no seu tempo está inscrito em uma proposta de estudos do pensamento de Gramsci que considera os limites históricos no qual foi produzido. Os 13 ensaios que compõem a obra ocupam 414 páginas e foram elaborados por estudiosos ligados ao Instituto Gramsci cujas perspectivas de leitura apontam elementos interessantes para a interpretação do pensamento de Gramsci. Um desses elementos, talvez o central deste conjunto de textos, é a valorização do conceito de revolução passiva como uma chave interpretativa do pensamento gramsciano. O deslocamento do eixo de leitura que tal proposta promove se contrapõe à leitura mais praticada, no caso do Brasil especificamente, na qual a chave de leitura mais utilizada foi, e talvez ainda seja, a concepção de hegemonia.
Gramsci no seu tempo foi organizado inicialmente por Francesco de Giasi e publicado na Itália pela Editora Carocci no ano de 2008, sob o título de Gramsci nel suo tempo. Originalmente a obra foi composta por dois volumes que apresentaram as contribuições teóricas de um Congresso de nome homônimo, realizado em Dezembro de 2007 na Itália. O congresso faz parte de uma tradição de estudos sob a coordenação da Fundação Instituto Gramsci que, em parceria com outros Institutos, Fundações e Universidades, a cada decênio da morte de Gramsci promove seminários e congressos para atualizar os estudos sobre a sua obra.
A edição brasileira de Gramsci no seu tempo foi traduzida do italiano para o português por Luiz Sérgio Henriques e não é uma reprodução integral da edição italiana. Os organizadores promoveram uma seleção dos textos originais com o intuito de apresentar aos leitores brasileiros os resultados de pesquisas avançadas no campo dos estudos gramscianos. Em função da realidade dos estudos gramscianos no Brasil, foram incluídos dois textos inéditos: Maquiavel como filósofo da práxis, de Francesca Izzo e Togliatti e Gramsci, de Giuseppe Vacca.
Guiseppe Vacca é também, o autor do prefácio da edição italiana, texto que apresenta o percurso dos seminários italianos de estudos nacionais e internacionais sobre o pensamento de Gramsci. Nele, discute a ação de aproximação e distanciamento entre o Instituto Gramsci e o Partido Comunista Italiano na organização dos seminários e no direcionamento das pesquisas sobre o pensamento de Gramsci. Fundamentado na leitura de Valentino Gerratana, Giuseppe Vacca destaca a ideia de que Gramsci é um pensador clássico do século XX que merece ser lido, relido e interpretado à luz de novos problemas, iniciativa contemplada pelo seminário de 1997, dedicado aos estudos sobre ‘Gramsci e o século XX’. As pesquisas apresentadas, decorrentes de temas levantados nos seminários anteriores, enfatizavam a utilização dos conceitos de revolução passiva e crise orgânica, relançando o método histórico como chave interpretativa do pensamento de Gramsci.
O prefácio à edição brasileira, escrito por Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques, foi intitulado de Gramsci no seu tempo – e no nosso. O texto reforça a ideia de que Gramsci é um clássico e de que o conceito de revolução passiva deve ser explorado como chave interpretativa do pensamento de Gramsci. Fundamentados no Caderno 15, os autores atualizam a leitura do pensamento de Gramsci, valorizam a dialética e a contextualização histórica como métodos interpretativos de seu pensamento, mas alertam para o fato de que não se pode sacralizá-lo, partindo do pressuposto de que não existe nada mais a ser estudado ou apreendido e advertem sobre as leituras apressadas que descolam o pensamento de Gramsci da matriz em que suas ideias foram produzidas.
A II Grande guerra, o pós-guerra, a renovação do socialismo e a filosofia da práxis são alguns dos temas que permeiam os textos que compõem a coletânea. A categoria hegemonia se entrecruza com outros conceitos do pensamento de Gramsci e constitui uma das chaves de leitura, ao lado do conceito de revolução passiva. Claudio Natoli e Andrea Panaccione utilizam o período do pós-guerra para analisar a renovação do socialismo, enquanto Francesco Auletta, Silvio Pons e Giuseppe Vacca discutem as relações de Gramsci com dirigentes do Partido Comunista Italiano, em especial com Palmiro Togliatti e Piero Sraffa.
A Filosofia da práxis é o conceito mediador que fundamenta os textos de Roberto Gualtieri, Fabio Frosini, Giuseppe Cospito, Giancarlo Schirru e Francesca Izzo. A economia e o americanismo mediam as análises de Terenzio Maccabelli e Alessio Gagliardi, que se direcionam à estrutura e ao corporativismo do regime político do fascismo na Itália. Por fim, destaca-se o texto de Anna Di Biagio, que explora a concepção de hegemonia nas propostas teóricas de Gramsci e Lênin.
O texto de Francesco Auletta, Piero Sraffa e Antonio Gramsci: l’Ordine Nuovo e as lutas operárias na Inglaterra e na América (1921), apresenta elementos significativos para a análise do cenário histórico das lutas operárias ocorridas no início da década de 1920. O texto explora a concordância de Sraffa com as teses de Gramsci, a partir das impressões que este tinha sobre os movimentos operários na Inglaterra e na América do Norte. Silvio Pons explora a divergência entre Gramsci e Togliatti no texto o Grupo dirigente do PCI e a ‘questão russa’ (1924-1926) e discute como as perspectivas ideológicas individuais influenciavam a percepção destes intelectuais sobre os desdobramentos da revolução proletária na Rússia.
Em Hegemonia leninista, hegemonia gramsciana, Anna Di Biagio discute a relação entre a concepção de hegemonia cunhada por Gramsci e aquela atribuída à Lênin. Di Biagio destaca que, na experiência revolucionária russa, há uma estranheza entre as ideias de hegemonia e de democracia. Outro aspecto evidenciado é a perspectiva de que o conceito de hegemonia não faz parte do léxico habitual dos textos de Lênin, embora sua concepção de hegemonia já apresentasse as noções de direção política e direcionamento intelectual e moral. Di Biagio mostra que na ocasião do VIII Congresso do Partido Bolchevique, em 1919, não houve menção ao conceito de hegemonia nos escritos de Lênin ou no programa de partido, mas que, no período, pode ser constatado que Lênin se mostrava mais interessado em discutir e determinar a definição de ditadura do proletariado.
Fabio Frosini discute no texto O neoidealismo italiano e a elaboração da filosofia da práxis, a influência do idealismo no pensamento de Gramsci e a sua transição teórica para o marxismo. As teorias dos liberais Benedetto Croce e Giovanni Gentille estão na gênese do pensamento do jovem Gramsci que dialogava com esses intelectuais, mas dos quais se distanciou gradualmente na medida em que, ao redigir os Cadernos do Cárcere, aprofundou suas análises sobre o fenômeno da religiosidade, da filosofia e do senso comum e se encaminhou para a fundamentação da Filosofia da Práxis.
Sob a influência do neoidealismo, Gramsci elaborou uma concepção de ideologia que pouco se distingue de sua concepção de filosofia. No Caderno 10, filosofia e ideologia foram apresentadas como uma mesma categoria histórica, distintas em função de seu grau. Enquanto a filosofia é uma concepção de mundo que representa a vida intelectual e moral de um grupo social, a ideologia é a concepção de mundo particular, pertencente aos grupos internos de cada classe que se propõem a solucionar os problemas sociais mais imediatos e restritos.
O texto de Francesca Izzo é o penúltimo da coletânea e explora a leitura de Gramsci sobre os escritos de Maquiavel e destaca que, ao redigir os Cadernos do Cárcere, Gramsci estava consciente de que a Europa não dominava mais o cenário mundial e que, os Estados Unidos e a URSS disputavam a primazia do controle hegemônico sobre os modelos políticos e econômicos. Izzo conclui que Gramsci entendia que no contexto histórico do século XX, o partido político assumiu o papel do príncipe e, na condição de líder coletivo, tinha a tarefa de criar uma nova organização ética e moral. Outra conclusão apontada por Izzo destaca que Gramsci defendia que os meios empregados na constituição do comunismo deveriam ser distintos daqueles empregados no nascimento do Estado Moderno, uma vez que em função da historicização da natureza humana, os fins e meios deveriam estar adequados à transformação dos homens e das relações sociais.
A contribuição de Giuseppe Vacca encerra a coletânea e termina reforçando a ideia inicial do texto: Gramsci é um autor clássico. Para apresentar tal afirmação de forma incisiva, Giuseppe Vacca discute a disputa intelectual entre Gramsci e Palmiro Togliatti, e apresenta aos leitores brasileiros o panorama histórico em que esta relação conturbada se desenvolveu. Com uma análise crítica fundamentada no panorama histórico, Giuseppe Vacca expõe a origem das divergências entre os dois teóricos do socialismo italiano. O texto é uma preciosa contribuição para a compreensão da relação entre Gramsci e Togliatti e da polêmica envolvendo a elaboração e publicação da primeira edição italiana dos cadernos de Gramsci. Giuseppe Vacca indica elementos preciosos para as investigações sobre o pensamento de Gramsci, destacando o conceito de revolução passiva como instrumento interpretativo de épocas históricas inteiras e indica que, na leitura de Togliatti, talvez intencionalmente, esse conceito não foi explorado.
Por fim, Giuseppe Vacca reconhece o mérito das ações de Togliatti que promoveram a imagem de um Gramsci ocidental e não apenas um pensador circunscrito à realidade italiana, e encerra o texto, a obra, indicando que o percurso percorrido por Togliatti, ainda que tortuoso, tinha como objetivo final reconhecer Gramsci como um clássico do século XX.
Gramsci no seu tempo é uma obra de grande interesse para pesquisadores da área das Ciências Humanas interessados no desenvolvimento do pensamento de Gramsci e nos desdobramentos do pensamento marxista no século XX. Se Gramsci teve o mérito de atualizar a leitura materialista da história e aperfeiçoar conceitos-chave para a análise dos fenômenos de ordem política, econômica e cultural, a presente obra promove uma apresentação contextualizada do pensamento de Gramsci e atualiza os leitores brasileiros a respeito do atual patamar das pesquisas sobre o pensamento gramsciano.
Com um bom projeto editorial, impresso em papel reciclado de ótima qualidade, a edição é valorizada ao apresentar as iniciativas de leitura do pensamento de Gramsci desenvolvidas na Europa. Ao empregar categorias analíticas até então pouco exploradas pelos pesquisadores brasileiros, Gramsci no seu tempo se consolida como uma referência de leitura àqueles que desejam avançar no universo da pesquisa sobre pensamento de Gramsci. A análise historicamente contextualizada apresentada nas páginas da coletânea serve de guia e fornece elementos históricos e conceituais para a leitura dos escritos de Gramsci e para a investigação sobre os principais fenômenos históricos da Itália na primeira metade do século XX.
Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Doutor em Educação pela UNICAMP (1996). Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (PR).
Jarbas Mauricio Gomes – Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2012). Especialista em Pesquisa Educacional (UEM – 2009), graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2004). Professor de Filosofia para a Educação Básica.
A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740) – FARIA (A)
FARIA, Patricia Souza de. A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: PANEGASSIL, Rubens Leonardo. Missionários franciscanos em Goa. Antítese, v. 7, n. 14, p. 521-525, jul. – dez. 2014.
Patricia Souza de Faria é uma jovem historiadora que tem se dedicado ao estudo da presença de missionários católicos nas conquistas portuguesas do Oriente. Patricia é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (2008), tendo realizado estágio de pesquisa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Portugal. Com mais de uma dezena de artigos publicados, pode-se dizer que a autora é uma referência importante a todos os investigadores que pretendem se dedicar às questões relativas ao Oriente Português na Época Moderna.
Tradicionalmente, o tema da presença portuguesa no Oriente ao longo da Época Moderna apresenta-se associado a grandes nomes da historiografia, tais como Charles R. Boxer, Luís Filipe F. R. Thomaz e Sanjay Subrahmanyam. Entretanto, vale notar que o vigor e a capacidade de renovação desse campo é notável, sobretudo na produção historiográfica de nomes que tem alcançado visibilidade, tais como Ana Paula M. Avelar e Ines G. Zupanov. Por sua vez, no Brasil, o assunto ganhou aderência como objeto de estudo, evidente nos trabalhos de pesquisadoras como Célia Cristina da Silva Tavares e Andréa Carla Doré. Com efeito, Patricia Souza traz efetiva contribuição à consolidação deste campo entre os investigadores brasileiros, além de sanar uma grande lacuna no âmbito dos estudos sobre o tema das missões na primeira modernidade, tendo em vista que a autora se debruça sobre o papel dos franciscanos neste processo, uma ordem ainda pouco estudada, a despeito dos esforços de Alan Strathern e Ângela B. Xavier.
Apresentado originalmente como tese de doutorado, o livro traz substanciais modificações em relação ao trabalho original, visíveis no acréscimo de todo um capítulo, bem como na relevância dada aos franciscanos em sua relação com o Arcebispado de Goa. Além, evidentemente, da dilação do recorte temporal do estudo, notável nas modificações adicionadas ao segundo capítulo, que enfocam o início do século XVIII, ao passo que a pesquisa documental mais sistemática, objeto da tese, contemplava os séculos XVI e XVII. De todo modo, vale notar que tais modificações se mostram fundamentais para a contextualização da pesquisa nos quadros do Império Português e da História da Igreja.
Parte dos acréscimos feitos pela autora é o resultado natural dos avanços de sua investigação após o término de sua tese, mas também, de seu esforço em proporcionar um texto de leitura mais fluida, cujo intuito é atingir um público leitor mais amplo, para além dos especialistas acadêmicos. Ambição louvável, sobretudo por colocar à disposição dos leitores o resultado de sólida pesquisa documental, visto que Patricia lança mão de amplo material; sejam impressos, pesquisados em bibliotecas do Brasil e de Portugal; sejam manuscritos, pesquisados fundamentalmente em arquivos portugueses. Além, vale observar, da ampla bibliografia arrolada pela autora, que pode servir de guia a novos investigadores, mas também a todos os interessados no assunto.
O intuito do livro de Patricia Souza de Faria é inquirir sobre o papel dos franciscanos na cristianização de Goa e, certamente, é esta sua maior contribuição historiográfica. Com efeito, para alcançar seu intento, a autora parte da premissa de que foram as articulações existentes entre o poder temporal e as instituições religiosas que definiram as circunstâncias mais propícias para a difusão do catolicismo em Goa. De modo que a conversão dos nativos goenses atende ao interesse da Cora portuguesa em garantir a fidelidade política desses novos súditos, compulsoriamente integrados ao reino católico. Sem dúvida, são estas articulações e os procedimentos adotados em face da necessidade da inclusão destes súditos, naturalmente diversos em termos religiosos, que estruturam os cinco capítulos de seu livro.
É possível traçar um percurso geral do livro, tendo em vista que ele nos remete à gênese da presença lusa na Índia, bem como ao papel desempenhado por Goa nesse amplo espaço, marcadamente heterogêneo. A partir disso, podemos acompanhar a estruturação dos poderes na região e a decorrente centralidade de Goa, onde a presença franciscana é mapeada pela autora em sua especificidade, tendo em vista as profundas divergências internas da Ordem. Por fim, o livro encerra-se com uma reflexão muito original e relevante a respeito dos sentidos atribuídos pelos frades franciscanos às suas missões. Proposição inovadora, uma vez que dissona das intepretações mais clássicas a respeito do papel histórico da Ordem na Época Moderna.
Assim, o que Patricia nos apresenta, é um eficiente histórico da consolidação da presença portuguesa em Goa, a primeira conquista lusa no Oriente. Com efeito, atenta para o caráter predominantemente mercantil que caracterizou o império asiático de Portugal, bem como a imprecisão dos limites do Estado da Índia até o momento em que a cidade passou a ser sede do poder civil e eclesiástico. Em suma, a autora evidencia o fato de que foi ali, primeiramente, o lugar onde a soberania lusa se firmou no Oriente. Tendo sido sede do vice-reinado e do arcebispado, Goa foi o centro do poder civil e eclesiástico, lugar onde funcionou o único tribunal inquisitorial em espaço ultramarino.
É nesta perspectiva que ao longo de todo o primeiro capítulo Patricia Faria sustenta ter a conquista espiritual amparado a expansão do Império Português, enquanto o poder secular favorecia a difusão do Evangelho. Daí que a presença de ordens religiosas como a Companhia de Jesus, a Ordem de São Domingos, a Ordem de Santo Agostinho e a Ordem de São Francisco sejam compreendidas como importante complemento da arquitetura dos poderes civil e eclesiástico estabelecidos na região. Enfim, é esse o contexto apresentado pela autora em sua exposição sobre as estratégias dos grupos sociais locais na manutenção de suas identidades de casta entre os convertidos, bem como a continuidade de crenças e relações sociais preexistentes.
Definido o pano de fundo de seu trabalho, o livro se detém nas ações adotadas pelo Arcebispado de Goa em face da necessidade de cristianizar as populações locais. Com efeito, tais procedimentos variam de acordo com o contexto. Ou seja, se num primeiro momento, ainda sob o cetro de D. Manuel, houve maior tolerância religiosa por parte do pequeno número de frades e clérigos que acompanhavam as embarcações que aportavam na cidade, a política religiosa tornou-se mais pragmática ao longo do reinado de D. João III, sobretudo a partir de 1540, quando tem inicio a destruição perpetrada por Miguel Vaz e Diogo da Borba aos pagodes brâmanes. Em suma, na perspectiva de Patricia Faria, paralelamente à tentativa de promoção sistemática do catolicismo em Goa, o que se verificou foi a intolerância e o afastamento progressivo dos nativos das altas esferas de poder no Estado da Índia, bem como dos cargos eclesiásticos de maior dignidade.
Nesse ponto, o livro estende sua análise e atravessa o período da União Ibérica. Com isso Patricia Souza de Faria não perde a oportunidade de nos apresentar o impacto da Monarquia Dual sobre a gestão dos assuntos eclesiásticos nas possessões portuguesas, período que foi marcado pela condução das populações cristianizadas à obediência da Igreja Romana. Todavia, com a União Ibérica, e principalmente após a ascensão de D. João IV, a Coroa portuguesa perderia espaço na região, notavelmente a partir da revisão das tradicionais concessões papais do Padroado levadas a efeito pela Propaganda Fide, o que definiu um novo contexto missionário na região.
Com efeito, estes diferentes contextos ganham contornos bem definidos quando Patricia Souza de Faria se atém especificamente ao papel dos franciscanos na conversão dos indianos ao catolicismo, notavelmente a partir da estabilização de uma rede paroquial nas Velhas Conquistas. Em suma, é rico o trabalho despendido pela autora na recuperação do rigoroso espírito de renuncia que tradicionalmente caracteriza os franciscanos, bem como seu impacto no interior da própria Ordem de São Francisco, com a estruturação de movimentos como o da Observância e seu êmulo da mais Estreita Observância. Por sua vez, tais movimentos, que traduzem divergências internas sobre o que seria o “verdadeiro franciscanismo”, encontraram reverberação na Índia, onde se associam a outras controvérsias, como a luta pela condução institucional das custódias e províncias, ou a situação de conflito que se desenhou entre os franciscanos e os moradores de Goa, que acusavam os primeiros de infringirem lhes castigos corporais e prisões.
Definitivamente, é sua percepção do significado atribuído pelos próprios franciscanos à missão na Índia a maior contribuição do livro de Patricia Souza. A autora não apenas se debruça sobre uma ordem ainda pouco estudada, mas também procura superar algumas interpretações estereotipadas, que definem as missões franciscanas no Oriente como herdeiras de uma cosmovisão medieval, que impunha limites à compreensão de tradições e crenças locais, e teria comprometido o êxito missionário da Ordem. O esforço de superação desses estereótipos conduz Patricia à percepção do horizonte de expectativa dos próprios franciscanos, em que noções como “êxito” e “fracasso” perdem sentido em face de suas concepções no que tange aos métodos de adaptação missionária, que é o elemento estruturante do sentido de missão partilhado pelos frades.
Com efeito, para alcançar este horizonte e acessar o sentido contextual destas missões, Faria se atém à escrita de sua história. Ou melhor, à quase total ausência deste gênero entre os frades franciscanos. De fato, a autora reconhece que, muito embora a Ordem de São Francisco tenha legado aos historiadores e pesquisadores uma profusão de escritos de cunho apologético e hagiográfico, elaborados principalmente ao longo da Idade Média, a ação da Ordem na Índia não ganhou espaço na produção historiográfica dos frades em um primeiro momento. A primeira crônica franciscana, de autoria de frei Francisco Negrão, foi escrita quase cem anos após a fixação da Ordem na Índia, contudo, esta obra se perdeu. Por sua vez, esta escassez de escritos torna-se mais marcante quando comparada à abundância da produção jesuíta, bem como as reconhecidas implicações de seu uso na confecção da propaganda inaciana. Na perspectiva da autora, esta característica circunscreve a especificidade do apostolado franciscano, que privilegiava as formas orais para o testemunho de seu ministério. Um ministério cujo sentido apoiava-se na graça e no fervor religioso, mas que, todavia, estava destinado à obsolescência, tal como sugere a autora.
De todo modo, o livro enfrenta a questão da construção da memória franciscana e nos apresenta um rico debate a respeito deste assunto. Para isso, Patricia Souza de Faria recupera os escritos de três autores que se detiveram sobre a Ordem: frei Paulo da Trindade, que exalta os feitos dos frades da Regular Observância; frei Jacinto de Deus, que registra a história dos franciscanos da mais Estreita Observância; e frei Miguel da Purificação, que por sua vez reclama o direito dos religiosos filhos de portugueses nascidos na Índia ocuparem cargos eclesiásticos. A despeito da especificidade de cada um dos autores, todos estes frades procuram reabilitar e exaltar os feitos dos franciscanos, sobretudo a partir da ratificação do pioneirismo e da vocação missionária da Ordem. Com efeito, na perspectiva de Patricia, a existência desta literatura, produzida a partir da primeira metade do século XVII, é um indício seguro da necessidade de se evidenciar a capacidade de atuação da Ordem de São Francisco Índia.
Entretanto, para além das narrativas, Patricia Faria atenta para as diferentes trajetórias de vida de seus autores, tendo em vista questões relevantes, referentes aos sentidos da pureza de sangue e distinção social, que se desdobram dos embates polêmicos a respeito da origem dos clérigos, apresentados nas obras de autoria dos franciscanos, notavelmente na de Miguel da Purificação. Em suma, vale lembrar que todos estes religiosos são luso-descendentes e apresentam uma perspectiva depreciativa do Oriente, sendo que Trindade concebia a si mesmo tão português quanto qualquer outro nascido no reino, ao passo que Jacinto de Deus e Miguel da Purificação enfrentaram com maior vigor o fato de terem nascido na Ásia, e por isso compartilhavam a preocupação de reforçar sua distinção em relação aos demais grupos de nativos.
Em conclusão, o que se nota é a lenta estruturação de uma duradoura marginalização do clero nativo, uma vez que somente em 1927 um goense viria ocupar o arcebispado. Por fim, é imprescindível assinalar que Patricia Souza de Faria nos apresenta uma obra de fôlego, resultante de inquietações epistemológicas originais, bem como da leitura, análise e confrontação de fontes. Daí que o livro nos chega em bom momento.
Rubens Leonardo Panegassil – É graduado em História pela Universidade de São Paulo (2004) e graduado em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado (1999). É mestre (2008) e doutor (2013) em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa.
Los muchachos peronistas. Orígenes olvidados de la Juventud Peronista (1945-1955) – ACHA (A)
ACHA, Omar. Los muchachos peronistas. Orígenes olvidados de la Juventud Peronista (1945-1955). Buenos Aires: Planeta, 2011. Resenha de: SILVA, Maria Luz. Peronismo y Juventud. Volviendo a los orígenes. Antítese, v. 7, n. 14, p. 516- 520, jul. – dez. 2014.
El peronismo es un tema siempre presente en Argentina. Por lo mismo ha sido abordado desde múltiples perspectivas políticas e ideológicas y desde innumerables registros y disciplinas, las cuales comprenden desde el arte y el psicoanálisis hasta la historiografía, la antropología o la ciencia política. En ese inmenso campo de estudios, la Juventud Peronista ha sido enmarcada haciendo foco en los las décadas de 1960 y 1970, asimilándola al transcurso político vivido por las juventudes en proceso de radicalización del cono sur y el mundo. Dentro de este contexto de ideas, el libro de Omar Acha, joven historiador y docente argentino que ya detenta una prolífica producción en lo concerniente al peronismo, representa un aporte fundamental en dos sentidos. Por un lado, constituye una investigación histórica sobre un fragmento muy poco analizado sistemáticamente de la historia del peronismo: el desarrollo de la Juventud Peronista durante los años de la primer y segunda presidencia de Perón (período 1946-1955). En segundo lugar, y profundamente imbricado con el primer punto, se plantea reflexionar sobre núcleos significativos de carácter político-culturales, que dan cuenta de las peculiaridades del devenir histórico del peronismo. Para esto, busca cuestionar y explicar lo que conceptualiza como la construcción de un relato mítico. “La Juventud Peronista es un mito argentino” enuncia inicialmente, como una bofetada al lector desprevenido. Mito asociado al “compromiso político” y, como él mismo destaca, “a la añorada o temida Argentina del ‘setentismo’. Mito que evoca imágenes de conflictos nacionales, ya que no se recuerda aquella Juventud Peronista sin recordar la polémica. Mito que también registra el surgimiento de la Juventud Peronista en el año 1957, como respuesta organizativa generacional al golpe cívico-militar que derrocó al presidente constitucional Juan Domingo Perón en el año 1955. Mediante un riguroso relevamiento documental el autor espera dar cuenta de la existencia de una Juventud previa, olvidada y/o negada por los militantes peronistas de las décadas posteriores. Entre los numerosos méritos adjudicables al texto resaltamos el carácter federal en la indagación de fuentes documentales. Como abordaje metodológico de la problemática, fortalece sus hipótesis y dan cuenta de la diversidad de los desarrollos locales y regionales, a la par que supone romper con una tradición de estudios de este período anclados en la provincia de Buenos Aires.
Es dable señalar también que por momentos el texto trasciende las barreras de la historiografía en sentido estricto y se interna en controversias políticas vigentes en la actualidad en Argentina. Relativizando los planteos que reafirman “la vuelta de la juventud a la política” a partir del proceso abierto por los gobiernos peronistas de Néstor Kirchner y Cristina Fernández, Acha asevera que luego de ser devastada por la dictadura militar y hasta la actualidad, la juventud del peronismo no ha podido reconstituirse como una fuerza política fuerte, con capacidad de acción estratégica y proyecto político propio.
Indagando y revalorizando lo que denomina como un proceso de crecimiento molecular y contradictorio que vivió la Juventud Peronista a partir de 1951, Acha se plantea un objetivo tan afanoso como contemporáneo en la Argentina. El mismo reside en poner en jaque la perspectiva que asevera que la Juventud Peronista durante los años de gobierno de Perón fue solamente una herramienta institucional creada “desde arriba”. Y se arriesga aún más. Alega que esta mirada responde a una mirada del peronismo y del Partido como monolítico y vertical, dando lugar a un proceso más complejo en el que también tienen injerencia las pujas internas dentro del propio movimiento.
Para el autor, el olvido de la primera Juventud Peronista da cuenta de rasgos perdurables en la cultura política peronista en particular, y en la cultura política argentina en general, respecto de la juventud en el marco de partidos políticos. Ahonda en las peculiaridades de la definición política de la juventud en el ideario “peroniano”, sobrevolando el complejo vínculo entre juventud y política. Por esto, el texto aunque según indica su título se ancla en una década específica, se desliza reflexivamente, yendo y viniendo por el siglo XX argentino.
Tal como afirma, existen dificultades para el estudio de una originaria Juventud Peronista. Las mismas responden a varios factores entre los que subraya: la imagen del niño peronista, construida durante el gobierno de Perón que negaba a los jóvenes del momento su potencial político relegándolos para “el futuro”; la imagen negativa construida en torno de la Unión de Estudiantes Secundarios (UES) y, tal como adelantara, la construcción de un relato mítico que la omite. Acha concluye que efectivamente hubo una Juventud Peronista previa a la que surgió en los albores del golpe militar que derrocara a Perón, de tiempo breve pero no por eso menos importante. Surgida en los meses que rodearon la reelección de Perón en noviembre de 1951, durante la campaña del Almirante Teisaire para llegar a la vicepresidencia, tuvo su fin junto al gobierno peronista.
Un factor importante de su negación fue la traba interna en el propio peronismo que dificultaría el surgimiento de la Juventud Peronista como actor político, aunque ya en occidente se estuviera dando la estructuración de la juventud como sujeto social diferenciado en tanto etapa específica de la vida. Se establece allí una segunda hipótesis: es en el seno del peronismo en el poder donde se niega el carácter de sujeto político a la juventud, subsumiéndola a las actividades deportivas y asociativas. Cuando el escenario político cambia a mediados de la década del cincuenta, y la caída del peronismo era inminente, ya era tarde para ello. Probar esta idea mediante el relevamiento de fuentes periodísticas, de los órganos de funcionamiento del Partido y de los discursos de Perón, estructura gran parte del desarrollo siguiente del texto.
Apela además aquí a un breve recorrido del siglo para afirmar que la noción de juventud política precede al tiempo peronista retrotrayéndose prácticamente a principios de siglo. Para las décadas de 1930 contaban ya las juventudes ligadas al socialismo, el anarquismo, el radicalismo, el comunismo, a sectores de la derecha y el catolicismo, con un desarrollo dispar pero considerable y con una presencia real en las calles en los momentos de surgimientos del peronismo. A esta altura, la juventud ya era percibida como problema social y en Argentina comenzaría a ser catalogada en términos de clase y cultura. Distinción particularmente aplicada a los jóvenes de las clases populares que se integrarían al peronismo desde las jornadas de 1945, mientras que los jóvenes universitarios serían abiertamente antiperonistas. En este punto Acha nos entrega una piedra de Rossetta del siglo XX argentino: con la salida de los jóvenes a las calles durante el primer peronismo, comienza a imponerse una distinción en la juventud, que traccionará hacia el peronismo la descalificación de lo juvenil de corte popular: ya no serán considerados “jóvenes” sino “muchachones”. Constituye ésta una clave interpretativa que el autor anuncia y que invita a ser profundizada aún más, no sólo para entender un período histórico específico, sino porque nos otorga indicios de un modo de comprender la compleja trama social tejida a partir del derrotero peronista, muchas veces teñido de preconceptos y prejuicios académicos y políticos.
En lo que refiere a la puesta en práctica del ideario de Perón en torno a la juventud, Acha afirma que Perón y sus equipos técnicos tuvieron como proyecto la creación de una nueva infancia y juventud a través de modificaciones en el ámbito educativo, que trasladaría inmediatamente a la juventud como actor del futuro, no de aquel presente. Con ese marco, el proyecto peronista de integración social esperaba integrar a los jóvenes a partir de un triple enfoque de: incorporación al mercado laboral, educación moral y actividad deportiva. Como el peronismo se asumía a sí mismo como el fundador de un nuevo orden social futuro, superador de partidos políticos, a la infancia y la juventud le depararían la organización corporativa o asociativista, claramente no política.
Aquí el texto pone luz de alerta en ciertos sentidos comunes académicos sobre el peronismo. Para el autor, el asociacionismo favorecido por el peronismo no respondió a un uso meramente manipulatorio o totalitario, sino que responde a la lógica principal del poder peronista por el cual Perón esperaba obtener una estructura piramidal que permitiera la conciliación del conjunto de la sociedad a los fines de la armonía social. Este era el espíritu de su “comunidad organizada” en la que la juventud tendría su lugar predestinado como “nueva generación” renovadora de la Argentina. Con este cuadro de situación, durante los años de Perón en el gobierno, la Juventud Peronista navegaría entre lo político y lo apolítico. Proceso organizativo en el que el autor identifica dos fases sucesivas.
1951 sería el año de su conformación pero aún como un proceso débil y múltiple. Como viéramos, en su argumentación Acha destaca ciertas dificultades políticas, históricas y culturales que presenta la Juventud Peronista para traducirse en una matriz de organización política clara. En este sentido, afirma que los procesos electorales de ese año funcionaron como factor fundamental para el nucleamiento y expansión de la organización de los jóvenes, con la creación del Movimiento Juvenil Peronista (MJP) con ambiciones de alcance nacional. Allí tiene lugar la primera fase de la Juventud, que no era considerada aún una organización política propiamente dicha, con capacidad estratégica propia dentro del movimiento, sino subsumida a los actores políticos mayores. Para 1952 surge el nombre alternativo de Movimiento de la Juventud Peronista, que marca con su redefinición conceptual, lo que el autor denomina “la fundación subjetiva” de una Juventud políticamente relevante, dando pie al comienzo del proceso organizativo, que contó con las resistencias de propios y ajenos. Como tal no estaba integrada al esquema del Partido Peronista. Para 1954, dado el alcance nacional que había alcanzado, ya era evidente la necesidad de autonomización y acumulación política. Siendo esto contrario al ideario “peroniano” y a los hábitos del Partido es desarticulada. A partir de allí tuvo lugar la segunda fase, en un momento en que crecía la conflictividad entre el peronismo y sus opositores. Estos últimos meses de peronismo en el poder estarían marcados por el crecimiento y visibilidad de un nuevo activismo juvenil necesario para atemperar las circunstancias políticas en defensa de un gobierno cada vez más violentado. Surgirían allí los gérmenes del uso de la violencia en la acción directa dentro del peronismo y la presencia en los espacios públicos, que luego se multiplicarían en los años de la resistencia peronista a la dictadura militar. Siendo estos aportes originales de la Juventud, comenzaba a ser vista por algunos sectores como potencial rama del movimiento lo que generaría fricciones internas.
El advenimiento del golpe militar en septiembre de 1955 dio por tierra con estas fricciones y el reconocimiento debería esperar quince años para efectivizarse. A partir de allí comenzaría un tiempo político muy diferente. Frente a la dictadura militar y el exilio del líder, surge una nueva Juventud revolucionaria e insurreccional. Ésta comenzaría a plantearse como protagonista, partiendo de diferenciarse de su predecesora e instalándose como fundadora de un nuevo tiempo y de una nueva política peronista, pero esta vez con verdaderas y visibles pretensiones de autonomía. Con el tiempo sería asociada a un relevamiento generacional, lo que sería llamado por el propio líder el “trasvasamiento generacional”. Tanto la historia académica como aquella constituida por las memorias de los militantes ligados a esta nueva Juventud confinarían así al olvido, la negación o la invisibilización de la primigenia Juventud.
Vuelve Acha nuevamente aquí a una de sus argumentaciones iniciales. Fue fundante para los nuevos militantes erigirse como actores autónomos tanto política como simbólicamente, desconociendo o repudiando los procesos de organización previos de la otra Juventud. También, por qué no, cuestionando subrepticiamente o explícitamente la autoridad de Perón. Se instituirían así como nueva “generación política” y darían cuerpo a lo que con el tiempo sería el mito masivamente aceptado sobre la historia del peronismo. Este relato mítico fue eficaz y funcionó como herramienta de legitimación política dentro del propio peronismo, transmitido como memoria de una generación y devenido relato de orígenes. Para Acha el mito, en tanto narrativa, supone una operación política y por ende, un instrumento de disputa en un campo de fuerzas en competencia. Acha sintetiza el mito desde su carácter instrumental, y he aquí un argumento de su obra que podría ser revisado. Como diversas disciplinas han propuesto ya, los mitos no sólo refieren a la legitimación de una posición en una disputa, en este caso política, aunque este pueda ser sin dudas un núcleo constitutivo de los mismos. También se entrelazan con aspectos valorativos, afectivos, cognitivos, de cualquier colectivo social, que son especialmente sobresalientes en el peronismo, al que sus propios militantes consideran más que una identidad política una identidad cultural. Para el autor, a través del mito sobresalen los rasgos de la nueva Juventud: nacimiento en el “desierto”, inocencia revolucionaria y mística antiinstitucional. Diferenciándose sobre todo moralmente de la experiencia juvenil anterior considerada traidora y burocrátizada, establece una matriz de refundación del peronismo. Esta nueva juventud formaría parte de la emergencia de pequeños y diferentes grupos, lento proceso de convergencia de diferentes núcleos juveniles que conformó en 1959 una Mesa Ejecutiva de la Juventud Peronista y que lograría finalmente plasmarse generacionalmente dada una aspiración de acumular poder propio. La negación de la precedente juventud jugó a favor de este proyecto generacional dando forma al relato identitario que suprimía una historia originaria propia del período 1945-1955. Como cierre es importante señalar que, tal como esperamos dar cuenta aquí, el texto no sólo indaga en la caracterización política de la inicial Juventud Peronista, sino que también aporta argumentaciones en clave histórico-cultural sobre su confinación al olvido como indicios para pensar procesos históricos y conflictos nacionales más amplios.
Maria Luz Silva – Antropóloga. Profesora de la Universidad Autónoma de Entre Ríos. Doctoranda en Humanidades y Artes con mención en Antropología de la Universidad Nacional de Rosario. Becaria CONICET.
Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios – NUCCI (A)
NUCCI, Priscila. Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: RAMOS, Alexandre Pinheiro. Antíteses, v.5, n.9, p.475-479, jan./jul. 2012.
A palavra japonesa hedatari significa “distância”, mas ela também expressa a forma como as relações interpessoais são construídas e afetadas pela distância física entre os indivíduos bem como as subjetividades encerradas em tais relações. Para os japoneses, a distância interpessoal exprime tanto o eventual reconhecimento dos diferentes níveis sociais dos quais os interlocutores fazem parte como uma atitude de reserva ou estranhamento diante de um desconhecido ou pessoa com a qual não se possui muita intimidade. A distância espacial entre os agentes é, assim, variável, pois está relacionada às circunstâncias subjetivas dos encontros – os japoneses alteram “as distância interpessoais conforme avaliações momentâneas de intimidade, reserva, superioridade ou inferioridade, e assim por diante” (Tada, 2009, p. 54). Situação distinta, por exemplo, do comportamento brasileiro, onde a eliminação ou diminuição da distância física – através de apertos de mão, abraços ou beijos no rosto – é, muitas das vezes, o primeiro passo para o engajamento dos indivíduos em uma relação social. Ora, se for possível, a partir daí, fazer uma analogia com a maneira como os pesquisadores relacionam-se com possíveis objetos de estudo, então não soará estranho dizer que, no tocante ao tema do racismo antinipônico no Brasil, nossos intelectuais apresentaram uma “postura japonesa”: o princípio da hedatari, da manutenção da distância diante do desconhecido, passou a informar, após a década de 1940, o modo como aqueles lidaram com a questão do antiniponismo – é o que se pode depreender, dentre outras questões, da leitura do livro de Priscila Nucci. O livro trata da questão do racismo contra os japoneses no Brasil, tomando como objeto privilegiado de análise os intelectuais que, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, envolveram-se em debates acerca da presença daqueles no país. Antes, porém, de proceder ao tratamento mais pormenorizado do conteúdo da obra, acredito ser importante ressaltar não só a iniciativa da autora em trazer à discussão um tema que, como apontado em vários momentos ao longo do texto, ficou por vários anos sob um ângulo morto – em silêncio, para retomar o propício subtítulo do trabalho –, mas também pelo fato deste ser um daqueles livros cujo mérito encontra-se relacionado, também, ao fato de não se deixar limitar pelas divisões entre os campos disciplinares: no prefácio, Elide Rugai Bastos aponta como a temática do livro é “objeto de reflexão nos campos da teoria política, sociologia, antropologia, filosofia do direito, para citar alguns” (Bastos, 2010, p. 16), com o que estou de acordo e prossigo: Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil pode ser lido como um estudo de história intelectual ou de pensamento social; é um trabalho que trata do tema do racismo em determinado momento histórico e da história das ciências sociais no Brasil. Isto pode ser verificado pela forma como a autora constrói seu texto e utiliza as fontes selecionadas, articulando-as com a devida contextualização do tempo e do espaço, ou seja, suas análises acerca dos debates intelectuais travados, por exemplo, durante a Constituinte de 1933-1934 e em periódicos (jornais e revistas especializadas) mostram a relação entre as ideias expressas e o contexto histórico bem como os lugares de onde tais ideias partiram e a maneira como eles transformaram-se em elementos de importância crucial nos processos de legitimação, crítica ou desqualificação daquilo que era debatido. Além disto, ao debruçar-se sobre a produção de Emilio Willems, intelectual privilegiado em seu trabalho, Priscila Nucci analisa ideias e conceitos caros à produção sociológica deste autor (aculturação, assimilação), enriquecendo a compreensão das obras de uma das principais figuras do processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil. O livro possui três capítulos através dos quais a autora busca explorar os textos referentes à presença dos imigrantes japoneses no Brasil e os silêncios acerca do racismo contra os mesmos – enquanto os textos (artigos e livros) estendem-se por toda a pesquisa, fornecendo o material (ideias, argumentos) sobre o qual incidem as análises, os silêncios surgem a partir de determinado momento como uma névoa a encobrir aquilo que era, até então, visível, e conferem substância a uma ausência que se torna palpável em vista do tipo de reflexão empreendida pela autora, prospectiva ao invés de retrospectiva. O primeiro capítulo, “Mapeamento de um Tema”, apresenta a questão do racismo antinipônico, expresso de modo mais enfático em uma série de artigos e livros publicados entre nas décadas de 1930 e 1940, e a constatação da lacuna existente sobre tal assunto – por meio do levantamento crítico da bibliografia que abordou direta ou tangencialmente a questão – entre a década de 1940 e a década de 1980, quando surgiram trabalhos sobre o período Vargas que abordavam, dentre outros temas, o antiniponismo. Sublinha, aqui, a autora o fato de que, neste ínterim, os estudos sobre os japoneses no país centraram-se em aspectos internos deste grupo (relações interna, cultura) e sua inserção na sociedade brasileira (os “casamentos interétnicos”, ascensão sócio-econômica), estando de acordo com um tipo sociologia e antropologia praticada no Brasil cujas origens estavam na Universidade de São Paulo e na Escola Livre de Sociologia e Política. Ainda assim, Priscila Nucci não se furta a criticar tal postura, pois “sem se levar em consideração o racismo sofrido por eles, significa ignorar a própria dimensão histórica da vivência dos japoneses e seus descendentes no Brasil, silenciando um tema crucial para a compreensão dos modos de inserção do grupo no país” (p. 37).
O segundo capítulo, “O antiniponismo brasileiro”, busca reconstruir o debate relativo à imigração japonesa, localizando-se aí os dois lados conflitantes: de um lado, os intelectuais antinipônicos, e do outro, os pró-nipônicos. Em um primeiro momento, a autora aborda, prospectivamente, os embates ocorridos entre os representantes destas posições no período da Constituinte de 1933-1934, utilizando os discursos parlamentares do advogado pró-nipônico Morais Andrade e seus principais antagonistas, os médicos Xavier de Oliveira e Miguel Couto e o sanitarista Arthur Neiva. A ênfase da análise recai nos discursos destes, onde a autora demonstra a posição racista destes personagens, ainda que buscassem, constantemente, negá-la, localizando o racismo fora do Brasil, ou seja, racismo era aquilo que acontecia, por exemplo, na Alemanha nazista. Em suas falas, o conhecimento científico da época (psiquiátrico, médico, eugênico) representado por autores estrangeiros e nacionais – aqui, Oliveira Vianna torna-se uma referência fundamental – era utilizado como argumento de autoridade para afirmar que os japoneses eram “inassimiláveis do ponto de vista antropológico, e principalmente do ponto de vista psíquico” (p. 79), e assim dar um aval pretensamente objetivo às restrições e ações contra a imigração japonesa – a presença e aceitação destas ideias, sem dúvida tributárias do prestígio de seus produtores e dos locais de produção, pode ser verificada na criação do Conselho de Imigração e Colonização (CIC), em 1938, a qual contou com uma publicação oficial, a Revista de Imigração e Colonização. Algumas ideias foram utilizadas, posteriormente, por Vivaldo Coaracy, que escreveu uma série de artigos no Jornal do Comércio publicados na forma de livro, em 1942, com o título O Perigo Japonês. Ao debruçar-se sobre este material, a autora mostra, por um lado, como o discurso racista achava-se rotinizado nos meios intelectuais brasileiros, e por outro, como o racismo antinipônico tornou-se mais virulento diante da participação do Japão na II Guerra Mundial, pois, naquele momento, os japoneses foram tratados como uma ameaça ainda maior à nação brasileira: de elemento “inassimilável”, foi transformado em inimigo do país, da “civilização” da qual este fazia parte e, finalmente, da humanidade, devendo, por isto, ser exterminado. O lado pró-nipônico é representado, no livro, pela atuação do advogado Morais Andrade no período de Constituinte e pelo médico Bruno Álvares da Silva Lobo, que publica, em 1935, o livro Esquecendo os antepassados, combatendo os estrangeiros como resposta aos antinipônicos da Constituinte, denunciando o racismo subjacente em suas falas e ideias a despeito dos esforços daqueles em mostrarem o contrário. A participação de ambos em um debate que extrapolou o período de 1933-1934 deu-se, como mostra a autora, através da refutação dos argumentos contrários à imigração japonesa e, em seguida, da defesa desta e dos benefícios que trariam para o país, também por meio do recurso ao argumento de autoridade fornecido pela ciência, aqui representado pelas referências aos estudos de Roquette-Pinto e Gilberto Freyre. O terceiro capítulo, “Novos paradigmas…”, ocupa-se com o estudo dos textos (da década de 1940) de Emilio Willems, Hiroshi Saito, Donald Pierson e Egon Schaden, mas a ênfase recai, principalmente, sobre a produção intelectual do primeiro. Ao lançar mão de livros e artigos publicados nas revistas Sociologia, Revista de Antropologia e Revista de Imigração e Colonização e no jornal O Estado de São Paulo, Priscila Nucci oferece uma análise multifacetada a qual se beneficia do espaço intermediário onde seu objeto é construído: os textos sobre a imigração japonesa estão articulados à institucionalização das ciências sociais e ao consequente abandono, em tese, da mistura entre política e ciência além de oferecerem o ponto de partida para a análise de algumas questões centrais da sociologia de Willems, tais como os conceitos de assimilação e aculturação e sua preocupação na elaboração de estudos com alto rigor científico e sem pretensões legisladoras. Mas, sem dúvida, um dos grandes benefícios desta posição fronteiriça do objeto, somada à perspectiva de estudo adotada pela autora, é a maneira como a década de 1940 apresenta-se como um período de transição para os trabalhos relativos à imigração japonesa, pois é o momento no qual, com possibilidades crescentes de estudo do racismo antinipônico no Brasil (agora baseados em nova metodologia científica e em pesquisa empírica), este tema vai perdendo força e sendo substituído por outras preocupações advindas desta mesma transformação sofrida pelos estudos sociológicos e antropológicos. Embora alguns trabalhos de Emilio Willems já apontassem indícios de discriminação racial contra os japoneses, e seus artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo e na Revista de Imigração e Colonização – principal ambiente do racismo antinipônico – deixassem explícito seu posicionamento contra o racismo científico praticado pelos intelectuais brasileiros, isto não foi o suficiente para que os cientistas sociais se voltassem para este tema – com exceção, talvez, de Egon Schaden, que em artigo publicado na revista Sociologia, chamou a atenção, através dos estudos de Willems, para o antiniponismo. Contudo, como demonstra a autora, quando não era aceita a ideia de que no Brasil não havia preconceito racial, e sim de classe – como defendido por Donald Pierson, colaborador fixo da Sociologia – a questão do preconceito não abarcava aos grupos de estrangeiros no país, limitandose, sobretudo, à população negra; além disto, o abandono (benéfico) do conceito de raça, bem como sua desqualificação, sendo, assim, substituído pelo de cultura, acabou por contribuir para a perda do foco sobre o racismo contra os estrangeiros imigrados. A denúncia do racismo, em sua forma “científica” ou não, foi enfraquecida, curiosamente, por aquilo mesmo que poderia fortalecê-la, e os intelectuais brasileiros distanciaram-se do problema do antiniponismo. Para finalizar, gostaria de fazer uma última consideração relacionada a alguns aspectos da reconstrução do debate sobre a imigração japonesa e seus envolvidos. Através da análise do material selecionado, a autora conseguiu localizar a atuação e o embate entre duas “comunidades argumentativas” (Pocock, 2003) envolvidas com a discussão de um tema em comum, mostrando, assim, não só a forma como construíam e lançavam no meio intelectual suas ideias, mas também as estratégias adotadas pelos participantes ao responder e refutar os argumentos contrários, valendo-se, para isto, de seu prestígio e posições nos lugares de saber, o que lhes fornecia tanto proeminência nos debates – a atenção que recebiam por parte do público que os acompanhava – como a legitimidade de suas posições. As disputas simbólicas empreendidas pelos intelectuais antinipônicos e pró-nipônicos, por um lado, revelam a dinâmica e os elementos (os discursos parlamentares, livros, artigos em jornais e revistas, as próprias revistas) constitutivos do ambiente intelectual e político em determinado período da história republicana brasileira, mostrando como há uma relação bastante estreita entre ambos ao ponto de sua influência recíproca refletir-se, de algum modo, na organização social – não há como não pensar, aqui, na dupla hermenêutica de Anthony Giddens (2003) diante da apropriação, por parte da sociedade, daquilo produzido pelos intelectuais e que acaba por reentrar na vida social, pois os significados e interpretações produzidos por eles incorporam-se nas relações entre as pessoas e nas instituições. Por outro lado, elas apontam para as formas como transformações no contexto intelectual tomam corpo através, neste caso, da relação direta entre ideias e seu espaço de produção, ou seja, a mudança na percepção do racismo antinipônico achava-se diretamente ligado ao processo de institucionalização das ciências sociais. A localização deste turning point, que esclarece e justifica o vazio bibliográfico entre 1940-1980, indica, assim, os rumos tomados pela discussão da imigração japonesa a qual não se manteve igual e sofreu com os efeitos do contexto nacional e internacional, e os efeitos, ainda que não intencionais, da busca pela separação entre ciência e política. Neste sentido, o que gostaria de sublinhar é a possibilidade de, por meio do estudo de um objeto em particular (o racismo antinipônico) e bem localizado (no campo intelectual brasileiro nas décadas de 1930 e 1940), verificar: os modos como os intelectuais – em grupo ou não – atuavam e se expressavam, em determinado momento, construindo um determinado vocabulário, cujos elementos são apropriados ou mudam de sentido, que permite a identificação dos participantes entre si – e ao pesquisador, a identificação dos grupos envolvidos – e as mudanças que informam ou são provocadas pela atuação intelectual. Ao localizar o debate intelectual e seus participantes, torna-se possível rastrear, a partir deles e dos conteúdos de seus textos, sejam as relações destes com as instituições das quais fazem parte ou com outros intelectuais ou grupos.
Alexandre Pinheiro Ramos – Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Núcleo de Pesquisas em Sociologia da Cultura (NUCS/IFCS/UFRJ). Bolsista CAPES.
A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX – MORGENTHAU (A)
MORGENTHAU, Henry. A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 314 p. Resenha de: SILVA, Rogério Fernandes. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.
Demorou 92 anos para que a obra do embaixador dos Estados Unidos Henry Morgenthau fosse traduzida e editada em língua portuguesa. O livro cujo título em nossa língua é extremamente longo: “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX (Tradução de Marcello Lino)” diferente do título original em inglês “Ambassador Morgenthaus Story” bem mais simples. A obra é um dos documentos mais importantes do século passado, pois relata o início do extermínio étnico e cultural contra os cristãos armênios (1915-1923), inaugurando uma prática que, com o passar dos anos, seria conhecida através da palavra genocídio. A expressão surgida em 1944 gerou um termo que visava dar um estatuto jurídico específico aos crimes de guerra contra minorias étnicas, religiosas ou culturais na Segunda Guerra Mundial. O livro é dedicado ao presidente americano Woodrow Wilson (1912-1921), idealizador da Liga das Nações. A obra é dividida em 29 capítulos curtos, sendo os últimos um pouco mais longos, todos eles ricos historicamente. As 324 páginas passam rapidamente, pois o texto é elegante e de fácil compreensão. Pode-se dividir em apresentação em língua portuguesa dos tradutores, um pequeno prefácio do autor e o corpo do livro em duas partes principais. A primeira seria sobre a convivência de Henry Morgenthau com os políticos turcos. A segunda parte começa a partir do capítulo vinte e dois que está relacionada com o genocídio do povo armênio. Na segunda parte, estão muitos dos relatos dos massacres que foram feitos por missionários norte-americanos, pois ao chegarem à capital do império procuravam o embaixador para comunicar as atrocidades.
Diante das informações dessas fontes e de outras um quadro terrível de atrocidades começa a ficar nítido. Demorou um pouco até que a história das atrocidades armênias chegar à embaixada americana com todos os detalhes horríveis. Em janeiro e fevereiro, relatórios fragmentados começaram a surgir aos poucos, mas a tendência, no início, era considerá-los meras manifestações das desordens que haviam prevalecido nas províncias armênias por muitos anos. Quando chegaram de Urumia, tanto Enver quanto Talaat os descartaram como exageros descabidos […]. Naquele momento não estava claro, agora vejo que o governo turco estava determinado a esconderas notíciais do mundo exterior enquanto fosse possível (MORGENTHAU, 2010, p. 255).
Os dois principais grupos envolvidos nos massacres têm origens distintas. Primeiramente é preciso uma breve introdução eles. A nação Armênia fazia parte do Império Otomano. Uma nação de tradição milenar, com língua própria e cultura. São descendentes das tribos hurritas que vieram da Índia a partir do século XVIII a.C. Os armênios são, portanto, do ramo linguístico indo-europeu. Eles chegaram à Ásia Menor e lá se estabeleceram. No primeiro século de nossa era, segundo a tradição, a região foi evangelizada por Bartolomeu e Judas Tadeu, apóstolos de Cristo. Os dois foram martirizados na região, mas implantaram o cristianismo nas áreas montanhosas da Armênia. A nação teve uma história de numerosos martírios um forte indício da implantação a fé cristã na região. No ano de 301, a Armênia tornou-se o primeiro país do mundo a proclamar essa doutrina religiosa como religião de Estado.
Na formação do antigo Império Otomano e, consequentmente, da atual Turquia, o grupo étnico dos turcos seljúcida, ramo dos turcos oguzes, vieram da região onde hoje é o Turquestão, eram um povo guerreiro que aderiu a fé islâmica. A partir do século XI eles invadiram a Ásia Menor e converteram-se ao Islã, através da força, a maior de todos os habitantes desta região. Dominaram os povos de outras etnias, entre estes, os armênios. Em 1071, invadiram a região da Armênia e em 1300 chegaram à Anatólia, tomou todo o leste do Império Bizantino, Constantinopla no oeste caiu, no meado século XV, junto do que restava de tal Império.
Voltando à narrativa de Henry Morgenthau, norte-americano de origem judia, foi embaixador na Turquia no período da Primeira Guerra Mundial e presenciou uma das primeiras atrocidades promovida por um Estado-nação. A Alemanha, no início do século XX, levou a Bulgária, a Romênia e a Turquia a Primeira Guerra como aliadas, Morgenthau era na época embaixador norte-americano em Constantinopla. A obra em questão é um depoimento pessoal de quem conviveu com os políticos turcos, estes diretamente responsáveis pelo mais longo massacre do século XX. Cerca de um milhão e meio de cristãos armênios foram mortos a mando dos fundadores da Turquia moderna, um grupo que ficou conhecido como os Jovens Turcos.
O grupo dos Jovens Turcos pretendia modernizar a sua região de maneira autoritária: Essa afirmação representava o ideal dos Jovens Turcos para o novo Estado, mas era ideal que evidentemente estava além da capacidade de realização do grupo. As raças que foram maltratadas e massacradas durante séculos pelos trucos não podiam se transformar da noite para o dia em irmãs, e os ódios, ciúmes e preconceitos religiosos do passado ainda subdividiam a Turquia em uma miscelânea de clãs em guerra.
Acima de tudo, as devastadoras guerras e a perda de grandes partes do Império Turco haviam destruído o prestígio da nova democracia. Houve muitos outros motivos para o fracasso, mas não é necessário discuti-los neste momento (MORGENTHAU, 2010, p. 22). Os Jovens Turcos formaram um grupo político heterogêneo que pretendia reverter às perdas territoriais e esfacelamento do Império Otomano. Além de promover reformas constitucionais, muitas de caráter secular e pró-ocidente, e assim acabaram impondo suas idéias através de muito derramamento de sangue. Os principais articuladores, para Henry Morgenthau, foram Talaat Paxá, ministro do interior, o germanófilo Enver Paxá, ministro da guerra. Como Morgenthau os descreve? Apesar do ideal inicial dos Jovens Turcos, este acabar sendo deixado de lado por causa das prerrogativas do poder político. Eles não eram mais uma força política regeneradora, pois haviam abandonado qualquer expectativa de reforma. Talaat, Enver e Djermal (outro Paxá) tinham por detrás deles uma comissão de quarenta homens. Morgenthau chega a comparar os Jovens Turcos com gangues americanas, isto por causa do recurso do assassinato e “homicídio oficial” o governo turco não era bem visto pelas autoridades americanas da época.
O embaixador americano conviveu com os administradores do Império Otomano que usurparam o poder com um golpe. Esses homens pretendiam modernizar a nação que acreditavam estar em frangalhos depois de sucessivas derrotas militares.
Para tanto, o embaixador notou que a aproximação da Turquia com a Alemanha levaria o país, contando com capital alemão, a uma reestruturação. Os Jovens Turcos acreditavam na possibilidade de tornar-se uma potência regional graças à aliança com as nações da Europa central. Alguns vislumbravam o Império retornar a sua glória antiga e estender seu poder pelo mundo. Os dirigentes turcos estavam interessados na ajuda modernizadora dos germânicos e esses últimos na posição estratégica da Turquia, que poderia ser utilizada para ameaçar o Império Russo, em caso de guerra.
Como bom americano, o embaixador fala sobre a Doutrina Monroe de forma positiva, para ele foi ela que salvou o México da interferência francesa e faltou igual à Turquia, pois esta acabou nas mãos alemãs sem que nenhuma potência ocidental interviesse (Idem, p.33).
No caso do México, a ingerência desastrada do Imperados francês Napoleão III, na tentativa de estender a influência na América, implantou uma monarquia fantoche no México (1864–67). Com ajuda dos americanos esse governo foi derrubado e o imperador estrangeiro Maximiliano, arquiduque austríaco executado. A Doutrina Monroe podia ser resumida como “América para os americanos” que visava à interferência dos norte-americanos em caso de haver novas ações dos países europeus sobre as Américas. Essa ideologia possibilitou a reserva de mercado para os americanos e intervenções militares em vários países da América Latina.
Vale ressaltar que o primeiro capítulo do livro é dedicado a influência alemã sobre o Império Otomano e ao representante máximo desse poder: o embaixador barão Von Wangenheim, escolhido pessoalmente pelo Kaiser, representante perfeito dos preconceitos teutônicos, raciais e militaristas, em moda no império alemão. Von Wangenheim foi um dos maiores incentivadores da aliança turca com a Alemanha e ficou indiferente diante dos massacres. Para o embaixador americano, a atitude alemã e de seu embaixador no Império Otomano foram responsáveis pelo genocídio durante os anos da Primeira guerra Mundial. Ao descrevê-lo, Henry Morgenthau ressalta: “Ao escrever sobre Wangenheim, ainda me sinto afetado pela força de sua personalidade; […], ele era fundamentalmente impiedoso, despudorado e cruel.” (MORGENTHAU, 2010, p. 19). Consequentemente, Morgenthau via o embaixador alemão como seu antagonista perante a defesa de sentimentos humanitários, segundo ele, em uma terra governada por bárbaros.
A luta para assegurar a integridade dos estrangeiros pelo embaixador, junto às autoridades turcas foi titânica, pois os alemães as instigavam e manipulavam. No princípio dos combates o governo do Império Otomano já estava nas mãos da Alemanha. Os argumentos da oposição civilização versus barbárie foram usados diversas vezes por Morgenthau. A polidez do embaixador não permitia expressar sua opinião publicamente seus preconceitos sobre a cultura turca, que apesar de compreendê-la um pouco, via-os como “selvagens com sede de sangue” (MORGENTHAU, 2010, p. 200).
A época está relacionada à consolidação do Imperialismo, a disputa por mercados lucrativos levam as nações mais industrializadas a ocuparem regiões diversas pelo mundo. Os países europeus acabaram criando Uma das justificativas era que as colônias seriam tuteladas pelas nações mais adiantadas, por isso mais civilizadas.
Seriam como crianças bárbaras aprendendo a crescer como civilizações e o modelo seria a própria Europa Ocidental. No período que exerceu como embaixador em Constantinopla eclodiu a Primeira Guerra Mundial. As nações europeias já estavam há muito tempo em disputa pelas colônias mais lucrativas começam a combater umas as outras, o embate era ansiosamente esperado. O Antagonismo Inglaterra e Alemanha cresceu tanto que leva diversos países ao combate levando outros países com eles.
Porém, existia um medo de que elementos cristãos dentro do Império Otomano se aliar aos russos. A intenção de eliminar os armênios foi premeditadamente planejada com afinco pelos governantes turcos. Quando ocorre a Primeira Guerra Mundial os turcos aproveitam a chance: Para que aquele plano de assassinar uma raça fosse bem-sucedido, dois passos preliminares teriam de ser dados: seria necessário neutralizar o poder de todos os soldados armênios e privar de armas os armênios em todas as cidades e vilarejos. Antes que a Armênia pudesse ser massacrada, era necessário torná-la indefesa (MORGENTHAU, 2010, p. 237).
O governo turco resolveu deportar os armênios sobreviventes dos massacres iniciais, em sua maioria idosos mulheres e crianças e os forçaram a sair de suas casas e marcharem para o deserto, muitos só com as roupas do corpo. Forçados a voltar para sua terra ancestral foram expulsos das cidades e vilarejos, pois estavam espalhados por todo Império. Numerosos morreram no caminho de fome e exaustão; nessas marchas da morte as pessoas eram atacadas e mortas ou feitas prisioneiras para servirem de escravas.
Em vez de simplesmente massacrar a raça armênia, eles decidiram deportá-la. Nas seções sul e sudeste do Império Otomano fica o deserto sírio e o vale da Mesopotâmia […], e hoje uma terra estéril triste e desolada sem cidades, aldeias nem vida de qualquer espécie, povoada apenas por algumas tribos beduínas selvagens e fanáticas (MORGENTHAU, 2010, p. 242).
O autor conta detalhes quase íntimos da diplomacia envolvida e os planos dos embaixadores europeus em Constantinopla. Tramas políticas, movimentos militares, características culturais, físicas e psicológicas dos personagens, nada fica de fora da percepção de Morgenthau. Sua estadia propiciou um relacionamento muito próximo como os protagonistas políticos da região. E essa intimidade fora determinante para seu afastamento voluntario de Constantinopla e retorno aos EUA, não aguentava mais a companhia dos homens responsáveis por tantas mortes. Muitos desses políticos locais queriam que ele permanecesse como embaixador, mas: Meu fracasso em deter a destruição dos armênios transformou a Turquia em um lugar terrível para mim e considerava intolerável a minha associação diária com homens que, por mais gentis, […], ainda exalavam o cheiro do sangue de quase um milhão de seres humanos (MORGENTHAU, 2010, p. 296).
A impressão que fica é a de um Henry Morgenthau que se tornou em Constantinopla uma figura quase quixotesca lutando pelos seus ideais humanitários, porém, amargurado pela sua impotência. Os políticos turcos demonstravam afabilidade para com sua pessoa, mas dissimulavam que iriam resolver em favor dos armênios e continuaram com as mortes. O que o desanimou foi uma estrutura de poder antiga alicerçada na subjugação violenta, no ódio e na intolerância. Portanto, a leitura desse livro é de suma importância, pois nos ajuda a compreender o surgimento do genocídio no século XX, e a sua relação com o Estado-nação moderno. Esse tipo de eliminação em massa persistiu durante todo o século passado, mas ainda ameaça persistir e continuar a desenvolver-se nos tempos atuais.
Rogério Fernandes da Silva – Professor de rede pública da cidade de Maricá e Estadual do Rio de Janeiro, especialista em História do Brasil. E-mail: prof_rfernandes@yahoo.com.br.
Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva – GRANDIN (A)
GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.
Lançado em português em 2010 “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva” do historiador norte-americano Greg Grandin pode ser considerada uma obra de fôlego. O autor utiliza a coleção de documentos dos Arquivos da Ford e uma bibliografia de apoio, num livro que conta com 23 capítulos e epilogo em pouco mais de 360 páginas. O empreendimento de Ford na Amazônia, trazendo a cultura e a tecnologia dos Estados Unidos para a floresta é retratado em vários ângulos e temas, desde aspectos sociais e políticos, até detalhes da vida cotidiana dos trabalhadores da cidade e uma extensa biografia de Henry Ford, que, aliás, toma conta de grande parte do livro. Em 1928, a Ford Motor Company inicia os trabalhos de construção da plantação de seringueiras no Brasil, marcando o começo de enormes desafios e de uma relação ambígua entre os brasileiros, a floresta e seus novos “conquistadores”: a tecnologia e os homens de Ford. O percurso de quase duas décadas girou em torno de corrupção, ignorância, desmatamentos, enganos, queimadas, lazer, trabalho, revoltas, padronização, recomeços, fungos e insetos, militares, política, e acima de tudo, quase nenhuma borracha produzida. Com o intuito de garantir a autossuficiência de borracha para os carros que produzia e se livrar das imposições de um premente cartel liderado pelos ingleses do produto, Ford deu inicio a uma plantação de seringueiras, e o local escolhido foi o berço destas árvores e décadas antes o maior produtor do mundo de látex, a Amazônia brasileira. Mais do que isto, devido a experiência de Ford nos EUA em reconstruir ou mesmo construir cidades no estilo tradicional norte-americano, o industrial pretendia trazer o progresso ao recriar a “América” na Amazônia. A crença na tecnologia, desde que útil para o ser humano, levou Ford a compreender a Amazônia como um espaço para colocar em prática sua missão civilizadora, tornando aquilo que enxergava como uma terra miserável e de gente bárbara, na origem de uma nova cultura na floresta. Ou melhor, de sua cultura, a “América” tradicional. Ao longo do livro Ford é mostrado por Grandin como um homem que não poderia ser descrito como um simples industrial. Dono de uma opinião política e social, por vezes antissemita, adepto do conservadorismo, ao mesmo tempo em que promovia a modernização do mundo, Ford era uma pessoa contraditória nos ideais, girando em torno de noções superficiais do mundo, mesmo assim movendo em sua órbita uma multidão e comandando os rumos da companhia com mão de ferro. Avesso a qualquer tipo de controle sobre as indústrias, seja de cunho governamental ou dos pares capitalistas, Ford não abriu a empresa ao capital financeiro, mantendo-a longe de Wall Street, e também não fazia parcerias com outras indústrias, não procurava o monopólio sobre determinado produto, apesar de controlar a produção de matérias-primas e peças de forma exclusiva para seus carros. Os trabalhadores das fábricas eram mantidos na linha, não somente de montagem, mas pela regularização e vigilância da vida cotidiana, como os hábitos alimentares e de higiene. Proibiu o quanto pode a formação de sindicatos, até mesmo com o uso de violência, e mesmo assim pagava os maiores salários dos EUA, o famoso “Dia de Cinco Dólares”. Manipulava gerentes e administradores, controlando as decisões e lhes dando prêmios pelo bom trabalho executado. O Fordismo significou não apenas um sistema industrial, fechado no modo de produção, mas todo um conjunto de regras de conduta e uma forma de vida, que incutia nos funcionários e que tentava transformar o mundo. Mas a Amazônia era outro mundo. Segundo a posição adotada por Greg Grandin, a Fordlândia foi o fruto de uma “conspiração” com vários atores incluídos, principalmente, Jorge Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont, que sabendo do interesse de Ford em montar um plantação de seringueira, tratou de organizar um esquema de corrupção, fraude e estelionato, com a intenção de vender terras, gratuitas por lei, para a companhia de Ford. O esquema de Villares envolvia políticos, diplomatas e funcionários do alto escalão da fábrica. Todos fisgaram Ford não pela lucratividade do empreendimento, mas sim por sua filosofia de levar a modernização para todo o planeta, convencendo-o que poderia mudar o quadro social e econômico da Amazônia devastada pelo fim da hegemonia como maior produtora de borracha. Ford procurava aquilo que Grandin definiu como “um novo espaço de liberdade”, onde poderia recomeçar seus sonhos e utopias. No ano de 1927 os reveses políticos e sociais no cenário norte-americano (mesmo que sua fábrica liderasse as vendas de carros e houvesse a estabilidade dos preços da borracha no mercado mundial) deu força a “conspiração” amazônica e o projeto foi autorizado, colocando toda a reputação de Ford em jogo. Villares e seus parceiros vendem as terras, com a ajuda do governo do Pará e a Companhia de Ford obtêm a concessão para a exploração total dos recursos naturais, além da borracha, e também isenção dos impostos. Um fato que viria a tona anos depois e provocaria um escândalo nacional e internacional, manchando a reputação de Ford no Brasil.
Deste momento em diante, Ford e a Fordlândia se viram em meio a diversos tipos de desafios e dificuldades, obtendo pouco sucesso e grande fracasso. Dois tipos de problemas se sobressaem na análise de Grandin, o caráter social e o natural da empreitada amazônica do industrial norte-americano. O autor expõe a origem destes problemas da seguinte maneira: a narrativa não está restrita à Amazônia, mas constantemente direciona o leitor até Michigan, na fábrica de Ford, ou nas vilas que construiu em locais estratégicos para a obtenção de matérias-primas. A relação é constante ao longo do livro, com comparações entre o ambiente amazônico e o da região de Ford, seja no aspecto natural ou então urbano. Revelando desta forma a experiência dos homens que trabalhavam para a fábrica e as expectativas daquilo que iriam encontrar no Brasil, o que se mostrou diverso e até mesmo incompreensível para eles. O maquinário, para a devastação da floresta e preparo da cidade e plantação, foi levado dos EUA para o Brasil por navios da Companhia, junto com os homens de confiança selecionados para a administração da cidade. Assim, um misto de trabalhadores brasileiros e gerentes norte-americanos formou a força de trabalho da Fordlândia. Um processo de adaptação que marcou toda a trajetória da cidade-plantação, revelando o conjunto de fragilidades. Por um lado, os norte-americanos procurava instituir entre os funcionários nativos a filosofia do fordismo, com a adequação das normas de higiene e saúde, alimentação e vestuário que agradavam a Ford. De outro lado, o caráter sazonal do trabalho na Amazônia, levava os nativos a permanecerem pouco tempo na Fordlândia, mesmo com os altos salários (em relação ao restante da Amazônia, mas longe dos cinco dólares diários pagos aos trabalhadores nos EUA), que logo voltavam para as famílias, sem contar o problema com a bebida e a prostituição que logo rondaram a cidade de Ford. Quando depois de alguns anos os gerentes conseguiram manter os trabalhadores regularmente na cidade, instruí-los quanto à dinâmica do trabalho fabril se tornou outro desafio, que gerou uma revolta em 1930, destruindo toda a cidade e expulsando momentaneamente os norte-americanos de suas casas. Ações trabalhistas e formação de sindicatos também deram a tônica das relações entre os nativos e os norte-americanos na plantação. A natureza tampouco ajudava. Promotor de uma junção entre indústria e agricultura, Ford acreditava que poderia demonstrar o uso racional da natureza e a pratica industrial na Amazônia. Porém, o desconhecimento dos norte-americanos do ambiente que os circundavam e a inexperiência em plantar seringueiras as tornou alvo das pragas e insetos, os mesmos que acabaram com a economia da borracha na região décadas antes. A ajuda de um especialista, James R. Weir, acabou por se tornar desastrosa, pois por sua sugestão abandonaram a Fordlândia, fundando outra cidade, Belterra, dando continuidade as práticas de plantação que favoreciam a disseminação dos fungos e insetos nas seringueiras. O resultado foi a baixa produtividade das árvores e até mesmo a devastação de muitos hectares. A técnica de enxerto foi utilizada e até aperfeiçoada para o fortalecimento das seringueiras, mas a forma da plantação, colocando as árvores próximas, continuava tornando o combate às pragas uma luta constante e dispendiosa. A plantação se tornou inviável, acumulando prejuízos desde sua fundação em 1928. Sendo vendida ao governo brasileiro em 1945, pelo valor das indenizações a serem pagas aos trabalhadores nativos. A missão civilizadora de Ford foi encerrada pelas mãos de seu neto Henry Ford II, que assumira a empresa, e também pela própria filosofia do industrial que cada vez mais se enterrava num passado bucólico do meio rural norte-americano. O livro de Greg Grandin tem seus méritos. Soube costurar uma trama trazendo para o leitor diversos aspectos da vida de Ford e seu ideário. O retrato do industrial no livro é de um homem marcado pelas contradições, traçando um Ford por vezes inocente e influenciável por sua própria fama. Mostrou também um fato, a possibilidade de se escrever a História do Brasil com uma bibliografia predominantemente estrangeira, utilizando poucos referenciais da historiografia brasileira. O autor coloca a Amazônia na rota do capitalismo do inicio do século XX e revela todo o jogo político e os interesses brasileiros na permanência de Ford no país. A narrativa de Grandin, porém, comete alguns excessos. O autor apresenta uma extensa biografia de Henry Ford, esquecendo-se por vezes da Fordlândia ou mesmo a tornando um objeto de segundo plano. Apesar das fontes primárias serem vastas, provenientes dos arquivos da Ford, o autor carece do olhar crítico para entender os documentos, compreendendo como verdades as informações contidas em cartas, correspondências internas e os diários dos norte-americanos, além das entrevistas com os sobreviventes em que leva ao pé da letra as palavras dos entrevistados. Em vários trechos podemos encontrar a descrição de sentimentos, sensações, beirando a ficção literária, inteiramente baseada nos diários e em obras de escritores que passaram pela região da Fordlândia, isso quando algumas passagens ficam sem referências, ou seja, deixando a dúvida se seriam frutos da imaginação de Grandin. Além disso, temos descrições de fatos e acontecimentos históricos que fogem inteiramente da proposta do livro, mas que ocupam páginas e páginas, desviando o leitor da temática. O autor apresenta algumas informações erradas, como a do escritor José Maria Ferreira de Castro, que indica ser brasileiro e, na verdade, é português, e também o nome de H. Kahn que não é Herbert, mas Hermann. Isto sem contar as repetições da mesma descrição sobre um determinado ator, como Henry Wickham que toda a vez que citado, Grandin escreve que ele roubou as sementes de seringueira do Brasil, ou Santos Dumont, que aparece algumas vezes para ser taxado em todas como o “homem que os brasileiros acreditam ser o inventor do avião”. Ford nunca veio ao Brasil conhecer as terras, apesar do apelo incessante dos brasileiros e convites de governantes. Mas ele não precisava vir para a Amazônia, sua marca e presença poderiam ser encontradas em qualquer lugar do país, nas ruas, nos carros, nos jornais ou na caixa d’agua da cidade que construiu.
Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Orientado pela Profa. Dra. Maria Amelia Mascarenhas Dantes. Bolsista FAPESP.
Web History – BRÜGGER (A)
BRÜGGER, Niels (Ed.). Web History. Nueva York: Peter Lang, 2010. Resenha de: QUIROGA, Nicolás. Antíteses, v. 3, n. 6, jul./dez. 2010.
Hace unos años la debilidad que muchos entreveían en las herramientas satánico-tecnológicas contra el libro era la incómoda actividad de leer en un monitor parpadeante; en la actualidad la crítica que uno de esos críticos tiene para hacerle al Ipad es que aún no logra emular el contraste del papel y la tinta. Mientras tanto, Amazon ya vende más ebooks para su Kindle que hardcovers.
Un día, sin que sepamos bien cómo, nos acostumbraremos a otros soportes para la lectura, y vendrá otro Agustín a contarnos sobre los que leen con implantes visuales o con pantallas que dejan caer unos grafos a velocidad constante, como en cualquiera de las Matrix (el ejemplo destaca la absoluta dependencia de los dispositivos tecnológicos con el libro, al menos como metáfora).1 Los cambios ligados a las llamadas nuevas tecnologías de la comunicación no obedecen sólo al avance tecnológico y a la creación de consumidores. A veces, las tecnologías se incorporan a la vida cotidiana de tal modo que, en poco tiempo, nadie las culpa de los males del mundo.
En lo que respecta al campo historiográfico debido al fortalecimiento de áreas de investigación histórica ligadas a historia reciente, algunos materiales audiovisuales ganaron legitimidad. El aura de lo viejo se hizo menos conmovedora, el dominio del saber historiador se hizo más amplio. ¿Qué pasará cuando haya que usar a Google como nuestro bibliotecario? ¿Será realmente necesario incorporar la información de la web al archivo del historiador o historiadora? Y si es así, ¿es necesario historizar los documentos digitales?, ¿dónde fueron a parar las páginas web que hoy ya no están online?, ¿Cómo recuperar las versiones de las páginas que sí están hoy en funcionamiento pero que ya no están estructuradas como hace dos, tres, diez años? , ¿Podremos concebir una serie estable de balizas en torno a la documentación digital tal como ha sido concebido el control académico sobre, por ejemplo, los documentos inquisitoriales? Preguntas de esa naturaleza impulsan la escritura de Web History, un libro que antes fue congreso (“Web_Site Histories: Theories, Methods, Analysis”, Dinamarca, octubre de 2008).2 Se trata de uno de esos libros que debe perdonar a sus lectores.
Debe disculpar a quienes, intrigados por las preguntas, buscan en él un manual o una introducción a la web. En efecto, de un libro que hizo de la web su foco de investigación, y esto significa que no va más atrás de los años noventa (el protocolo http funciona desde 1991; el web browser Mosaic surgió unos años después, en 1993), y significa que si bien no aborda otros dominios de internet, debe “tocar” algunas cuestiones ligadas a ese objeto, internet, ya demasiado general. Pero en sus páginas no hay definiciones básicas, referencias introductorias. El libro considera una vasta literatura preexistente y filia sus escritos en torno a cinco estratos analíticos –revisitados en la introducción firmada por el editor–: la historia de la web como un todo (análisis de nivel infraestructural: redes, protocolos, instituciones, etc.); la historia de la web sphere (redes y comunidades alrededor de un evento o práctica específicos); la historia de un website en particular; la historia de una página y, finalmente, la historia de elementos específicos como la publicidad o el uso de las imágenes.
Pese al énfasis analítico y al impulso clasificador que sobrevuela muchos artículos, a lo largo del libro esos cincos estratos se harán borrosos y convendría concebirlos más bien como “ventanas” o focos. El libro debió desentenderse de la multiplicidad de áreas que recurren a ese campo naciente denominado “digital history” o “digital humanities”. Sin duda, como ocurrió con otras tecnologías como la fotografía o la televisión, los acentos demasiado cargados sobre su condición de práctica o bien sobre su condición de documento o bien sobre su historia como tecnología propiamente dicha ensombrecen los abordajes liminales como los de Web History. La estrategia para aliviar las lecturas demasiado ancladas en áreas vinculadas pero con sus propios cuestionarios ha sido la de estructurar el volumen en cuatro partes.
La primera de ellas es una “teórica”, en la que dos artículos presentan dos enfoques no antagónicos sobre los modos de abordar el objeto de estudio. En esa sección reina una clave “textual” para el análisis de web, que sin duda se discute y se discutirá aún más. Acaso demasiado formales, los textos de Niels Brügger (“Website History: An Analytical Grid”) y de Kirsten Foot y Steven Schneider (“Object-Oriented Web Historiography”) intentan reconducir los esfuerzos de las investigaciones hacia zonas más estables y capaces de incluir las diversas energías que se concentran en la construcción y lecturas de un sitio web. Brügger las concibe como “fuerzas motrices” y Foot y Schneider intentan contenerlas en la doble grilla de análisis sobre su objeto (como “motivo” y como “artefacto”), a través del ejemplo de su propio trabajo en el proyecto de webArchivist.org (http://webarchivist.org), september11.archive.org (http://september11.archive.org). Resulta evidente que de todas ellas los autores se inclinaron por indagar sobre las que refieren a la producción de contenidos.
La segunda sección del libro trata sobre web cultures. La palabra “cultura” allí, sin embargo, sólo conserva su vaga referencia a una totalidad dada, a una red de sentido. No se desarrolla, en ese apartado, líneas de análisis fecundas como las que se ensayaron desde la media ethnography (un abordaje que tendencialmente se desmediatiza, que considera los usos de los nuevos medios de comunicación como parte de la vida cotidiana de las personas –vida esta que se piensa no como “contexto”, sino como el “texto” mismo). Hay que desplazarse hasta investigaciones como las de Tufte, Miler y Slater o Pearce y Artemesia para indagar sobre esas formas de tratamiento de las “culturas” o las “subculturas” o más apropiadamente con la cita inevitable de Janice Radway, de las “comunidades” online.3 Los cuatros trabajos de la segunda sección de Web 3 TUFTE, Thomas. Gauchos Going Global. A Critical Assessment of Cultural Globalization. In: KIVIKURU, Ullamaija (ed.). Contesting the Frontiers. Media and dimensions of Identity.
Suecia: Nordicom, 2001; MILLER, Daniel y SLATER, Don. The Internet. An Ethnographic History arrojan luz sobre ciertas comunidades a través de un análisis histórico, aunque en algunos casos esa perspectiva es más bien una arqueológica que alimenta abordajes que remiten al Goffman de Presentación del yo en la vida cotidiana… Dos de esos trabajos (los de Ken Hillis y Dominika Szope) revisitan comunidades con webcams. Esos textos hacen referencia a dos telepresencias míticas como son, por un lado, la webcam que apuntaba a la máquina de café – la primera cámara, que les permitió a los miembros de la red chequear la existencia de café antes de iniciar una caminata inútil (http://en.wikipedia.org/wiki/Trojan_Room_coffee_pot)–; y por el otro, la de Jennifer Ringley, una flaca que decidió vivir con la cámara encendida, dando origen a lo que se hoy se conoce como lifecasting. En el caso de Hillis, la comunidad de referencia es un grupo de queer/gays angloparlantes que hacia fines de los noventa comenzaron a usar la cámara web para comunicarse. La construcción de las identidades, la performatividad de la práctica del lifecasting y la fetichización de una tecnología ya fetichizada remiten a una serie de debates que en los estudios sobre género encontraron tempranamente en el campo de lo virtual y sus inextricables vínculos con el cuerpo y el self un espacio de reflexión animado y creativo. Por otro lado, Dominika Szope, con el examen de la experiencia de GreenTeaGirlie y la comparación con el mencionado de Jennifer Ringley, reflexiona sobre el autorretrato online. Pesadas categorías como “mirada”, “voyeurismo”, “exhibicionismo” se mezclan en su artículo con el débil pero sutil sintagma “ventana”, para pensar la producción de sentidos sobre nuestras máscaras y cotidianidad. Luego de leer esos capítulos, las webcams y el software social devienen parte de la “cosa política”, como bien apunta Szope.
Los otros dos capítulos de la sección analizan sobre los modos en los que la web afecta a comunidades que desde el sentido común no nos inclinaríamos a pensar que pudieran ser atravesadas por la comunicación virtual. Así, Alexander Halavais indaga sobre las redes del nacionalismo blanco norteamericano, entre 1996 y 2006, y Albrecht Hofheinz lo hace sobre allah.com, un website en la urdimbre global, y diversa de las interpretaciones de textos sagrados del Islam.
En ambos casos, Internet no puede retener el término “red” en su definición puesto que los “terroristas”, por un lado, y los lectores y promotores de textos islámicos, por el otro, ya están densamente enredados en la vida “real”. Aparecen en estos textos problemas reconocidos en la investigación histórica.
Halavais hace hincapié en las prácticas terroristas del racismo antes que en el racismo y, al hacerlo, modifica las redes que analizará: aleja a los racistas norteamericanos de las redes racistas europeas y los pone cerca de los sitios web de los partidarios del EZLN (según su percepción del terrorismo). Hofheinz, quien se propone ensayar una “descripción densa” de un sitio web, finaliza su artículo argumentando que “la historia del sitio no comienza en la web”. Sin embargo, entre la etnografía geertziana frente a otros mundos de significación y el conocimiento exhaustivo de Hofheinz sobre los conflictos de poder en el interior del mundo islámico, existe la misma y consistente distancia que entre el extrañamiento y la verificación. Pese a ello, el texto sobre allah.com es uno de los más importantes de la compilación por su combinación de conocimientos históricos y su integración con nuevos documentos y nuevas preguntas.
La tercera sección, “Web Industries and Media Institutions”, está integrada por cuatro textos que tratan sobre empresas y desarrollos online. El análisis de las estrategias institucionales –negocios y comunicación– pone a esta sección más cerca de algunas líneas de investigación que provienen de la “historia de la empresa”. Un artículo que intenta una periodización del auge y caída del período dot.com; otro que evalúa diversas estrategias de empresas finlandesas ligadas a la comunicación, frente a la convergencia entre los nuevos medios y los tradicionales; un tercero sobre la evolución de un área de la BBC (BBC Online News, http://www.bbc.co.uk/news/); y un último sobre la “mediamorfosis” en los diarios de Dinamarca. Es sin dudas la sección más experimental de Web History y a eso se debe, tal vez, sus por momentos rígidas relaciones entre conceptos y casos. Sin embargo, al construir cuestionarios que periodicen de distinta manera lo que suele ser una cadena de tecnologías cada vez más rápidas, baratas y calientes, el estudio sobre los modos de enfrentar cambios tecnológicos y prácticas culturales, desde el punto de vista de la producción de contenidos, se hace fuerte y nos provee de otra ventana a la historia de la web.
La cuarta sección se denomina “Preserving and Presenting” y con cuatro artículos aspira a discutir aspectos relacionados con la preservación de materiales de la web y con la presentación online de esos materiales. También Nicolás Quiroga en esta sección dos artículos son estudios de caso (el que trata acerca del sitio sobre la masacre de Virginia Tech, http://april16archive.org/, y el que se ocupa de un “museo” de la web dinamarqués: webmuseum.dk, http://webmuseum.dk/). Los otros dos textos son transversales: uno reflexiona sobre la historia de las publicidades online y el otro trata sobre la construcción de un mejor sistema vivo para la web y su pasado, a partir de una revisión de los trabajos de Paul Otlet en las primeras décadas del siglo XX. Este capítulo es importante porque la pregunta sobre las fuentes puede rastrearse en todas las secciones del libro. Pero el tema ha sido sólo en parte atacado: un capítulo específico sobre el sitio archive.org y la WayBack Machine (http://archive.org) se revela necesario luego de revisar los cuatro textos de la última sección y de leer el epílogo de Brügger (“The future of Web History”) que aspira a trazar las primeras líneas de un futuro programa de investigación sobre la web. En ese último trabajo, el compilador de Web History hace hincapié en tres problemáticas y precisamente una de ellas es sobre el archivo de la web (las otras dos hacen referencia a la cuestión de la infraestructura y los límites nacionales que padecen los proyectos en este campo). Archive.org es el lugar donde se guardan parte de los sitios webs tomadas en distintos momentos de la existencia de esos sitios. Una suerte de álbum del pasado de la web. Un estudio histórico a nivel de sitios web necesariamente comenzará con preguntas para y sobre archive.org.
Finalmente el libro debe disculpar a su propio prologuista (Charles Ess) quien le reclama una perspectiva más inclusiva, es decir, la incorporación de aproximaciones a otras realidades nacionales. En verdad eso sería muy interesante en los casos en los que investigadores e investigadoras de regiones “no desarrolladas” tramiten del mismo modo problemáticas generales que este libro aborda. Pero si se trata de compilar las líneas hegemónicas entre los emprendimientos culturales que conciben a la web como una opción secundaria para el trabajo en papel, entonces no, no es tan interesante: para una visión tradicional del hacer histórico y el uso instrumental de la web mejor hacer otro libro, un libro de sentido común (del que también puede existir una versión “global”).
Web History es uno de los libros de “Digital Formations”, la colección de la editorial Peter Lang que se ocupa de la investigación en internet (aún si el sintagma “digital research” todavía es ambiguo). El libro es heterogéneo, toca tema no centrales de la investigación histórica y algunas de sus entradas son aún demasiado parecidas a las ponencias que le dieron origen; sin embargo es un libro que desde sus secciones presenta muy bien las problemáticas que en algunos centros de producción del conocimiento comienzan a estabilizarse como áreas. Para aquellos investigadores e investigadoras que empiezan a intuir que, desde un tiempo a esta parte, la web está ocupando un poco más de tiempo en su trabajo, este es un libro que vale la pena hojear.
Notas
1 Sobre estos temas puede leerse la producción de Jakob Nielsen, uno de los más grandes expertos en usabilidad. Disponible en: <http://www.useit.com/alertbox/>. Acceso en: 13/08/2010.
2 El programa del evento puede consultarse en: <http://cfi.au.dk/en/events/conferences/wsh08/program/>. Acceso en: 13/08/2010.
Approach, Reino Unido, 2001; PEARCE, Celia y ARTEMESIA. Communities of Play. Emergent Cultures in Multiplayer Games and Virtual Worlds. EEUU, MIT, 2009.
Nicolás Quiroga – Doutor em História e Professor da Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMP) e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Teconológicas (CONICET) / Argentina.
A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário – LINEBAUGH; REDIKER (A)
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Resenha de: GONZÁLEZ, Martín P. Antítese, v. 3, n. 6, jul./dez. 2010.
Si bien tanto Peter Linebaugh como Markus Rediker realizaron otras publicaciones antes y después de La Hidra de la Revolución, 1 nunca lograron alcanzar el reconocimiento que les valió este libro. En la presente reseña crítica nos proponemos, entonces, recuperar las diversas dimensiones que hacen del presente trabajo una innovación dentro de un escenario historiográfico un tanto hostil a los nuevos abordajes y las propuestas analíticas novedosas. Para facilitar la lectura, estructuraremos nuestro análisis en seis apartados diferenciados, para así dar cuenta de la riqueza y los matices que posee el libro. El primero estará centrado en analizar los debates historiográficos, metodológicos y teóricos en los cuales La Hidra se posiciona, buscando así establecer vínculos y relaciones con otros autores. Los siguientes cuatro apartados se centrarán en comentar el libro a partir de su propia estructura, buscando ir más allá de una mera enumeración de capítulos, indagando en las aristas problemáticas que pueda presentar el abordaje de los autores. Finalmente, el último apartado presentará una conclusión crítica. Existe también una publicación en español La Hidra de la Revolución. Marineros, esclavos y campesinos en la historia oculta del Atlántico, publicada por Crítica en Barcelona durante 2005.
Galardonado con el “International Labor History Association Book Prize”, el presente trabajo de Linebaugh y Rediker generó grandes controversias en los círculos académicos, a partir no sólo de su novedosa interpretación de la historia atlántica entre los siglos XVII y XIX, sino también de la forma en que utilizan ciertas categorías de la tradición analítica propia de la historiografía marxista inglesa, estableciendo diálogos con la teoría antropológica y sociológica. Así, si bien el libro está claramente orientado hacia problemáticas analizadas por historiadores de la talla de Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson o Christopher Hill2 –como por ejemplo las resistencias campesinas y esclavas, las ideologías radicales de las multitudes sin voz, los conflictos y resistencias en el proceso de trabajo, o la constitución de clases sociales a partir de la experiencia de los sujetos–, podemos notar en el análisis de Linebaugh y Rediker la intención de trascender los límites nacionales –específicamente ingleses– de esos procesos. En este sentido, La Hidra retoma algunas de las hipótesis que guiaron los trabajos tempranos de George Rudé y Eric Hobsbawm,3 quienes buscaron traspasar las barreras de la historia inglesa, analizando ideologías y movimientos populares más allá de los límites geográficos de los Estados nacionales. Nos encontramos entonces con una propuesta temática y un recorte espacial, cronológico y temático más amplio: el espacio del Atlántico, cuyas corrientes y mareas determinaron una serie de experiencias comunes a un proletariado atlántico compuesto de marineros, labradores, criminales, mujeres, radicales religiosos y esclavos africanos, desde el comienzo de la expansión colonial inglesa en el siglo XVII hasta la industrialización metropolitana de inicios del XIX. En este sentido, “los gobernadores recurrieron al mito de Hércules y la hidra para simbolizar la dificultad de imponer orden en unos sistemas laborales cada vez más globales” (p. 16): es precisamente sobre el origen, características, accionar y devenir de las múltiples cabezas de esa hidra, que está centrado el análisis de Linebaugh y Rediker. Entonces, en lugar de centrarse en analizar la constitución de una clase obrera industrial, las características de los piratas, el tráfico esclavista o las ideologías religiosas radicales como elementos independientes, los autores buscan rescatar –a partir de una mirada “desde abajo”- esta multiplicidad de experiencias de opresión, violencia y dominación en función de un abordaje holístico que recupere las conexiones existentes entre estos fenómenos aparentemente dispersos. Así, si bien estos conflictos tendrán diversos escenarios (principalmente los terrenos comunales, la plantación, el barco y la fábrica), el eje de análisis pasa por las relaciones, los quiebres, y las continuidades entre esta diversidad de espacios. Como los procedimientos de análisis de los autores presentan variaciones de capítulo en capítulo, consideramos oportuno abordar a continuación una descripción de los mismos, en función del recorte temático-temporal que realizan, estructurado en cuatro momentos en el desarrollo de este conflicto entre la globalización capitalista hercúlea y las resistencias planteadas por esa compleja hidra policéfala. Los dos primeros capítulos del libro se ocupan de la primera fase de este proceso de dominación hercúleo, que ocurre en los años de 1600 a 1640, signado por el crecimiento y desarrollo del capitalismo comercial inglés y la colonización del espacio atlántico. Estos años de expropiación serían fundamentales, entonces, para la conformación de una estructura económica de exclusión y transformación de las relaciones sociales existentes hasta el momento. El primer capítulo, “El naufragio del Sea-Venture”, sienta las bases de la metodología analítica de los autores. La misma parte de reconstruir casos concretos –como en este caso, el del naufragio de un barco inglés– para indagar en cuestiones estructurales de la época. Así, a partir de este suceso, se abordan cuestiones esenciales del naciente capitalismo atlántico de principios del siglo XVII: la expropiación –mediante la reconstrucción del contexto de competencia imperialista y desarrollo capitalista del cuál la Virginia Company fue uno de sus motores esenciales, a partir de las estrategias de colonización de tierras americanas trasladando poblaciones campesinas–, la lucha por crear modos de vida alternativos a esa expropiación –retomando así la tradición de uso de terrenos comunales, que llegó al territorio americano de la mano de los marineros–, las formas de cooperación y resistencia –fundamentalmente entre los mismos marineros, que, ante los peligros de altamar, iban más allá de sus condiciones de artesanos, proscriptos, campesinos pauperizados, o peones, uniéndose en pos de lograr objetivos comunes– y la imposición de una disciplina clasista –a partir de la respuesta que los funcionarios de la Virginia Company tuvieron frente a esas resistencias, imponiendo el terror de la horca y una disciplina laboral estricta. Este primer capítulo es también representativo en términos de los procedimientos de análisis que los autores realizan de los documentos. En este punto podemos observar un claro interés por hacer dialogar la teoría marxista – especialmente La ideología alemana y el capítulo veinticuatro (sobre la acumulación originaria) de El Capital de Marx–, con la historiografía inglesa – si bien el interlocutor privilegiado lo constituye el marxismo británico de Hill y Thompson, también se cuestionan otras interpretaciones, como podría ser la Hugh Trevor Ropper– y un extenso y detallado corpus documental del período, compuesto principalmente por relatos de viajes, documentos administrativos de la Virginia Company y obras literarias como La Tempestad de Shakespeare. Así, en el segundo capítulo, “Leñadores y aguadores”, los autores retoman los argumentos de algunos de los principales intelectuales de la primer parte del siglo XVII inglés, como Francis Bacon o Walter Raleigh, y cómo caracterizaban a los enemigos de ese Hércules explorador, colonizador y comerciante, a partir de la monstruosidad de esas multitudes variopintas. Centrándose entonces en los leñadores y aguadores, que desempeñaron funciones esenciales para el avance de este proceso globalizante –a saber, realizaron las tareas de expropiación mediante la tala de bosques y destrucción del hábitat de los terrenos comunales, construían los puertos y barcos, y desarrollaban las actividades domésticas cotidianas–, los autores reconstruyen el proceso de constitución de la “infraestructura” necesaria para la expansión del capitalismo comercial, así como la consolidación de un aparato represivo orientado a controlar estas poblaciones: el terror, la prisión, los correccionales, la horca, las campañas militares y los trabajos forzados en ultramar. Sin embargo, a partir de los vínculos de solidaridad y resistencia, estos grupos de “leñadores y aguadores” comenzaron a formar iglesias, regimientos politizados al interior del ejército y comunas rurales y urbanas. “La hidra, formada por marineros, obreros, aguadores, aprendices, es decir, las clases humildes y más bajas –o, por decirlo de otra manera, el proletariado urbano revolucionario– estaba emprendiendo acciones de un modo independiente” (p. 87). Estas cuestiones constituyen el transfondo de la segunda fase de este proceso. Los siguientes dos capítulos están centrados en la segunda fase de este proceso, que iría de 1640 a 1680, y que estaría signada por los levantamientos de esas múltiples cabezas de la hidra, mediante la revolución en la metrópolis y los levantamientos en las colonias. El interlocutor privilegiado de estos capítulos es Christopher Hill, ya que el contenido de los mismos está orientado hacia los mismos problemas y tópicos teóricos tratados por él, aunque con ciertas variaciones que enriquecen el análisis. El tercer capítulo, “Una ‘morita negra’ llamada Francis” constituye acaso la forma más acabada de aplicación de la metodología de estos autores. Como decíamos más arriba, Linebaugh y Rediker parten de casos concretos para reflexionar sobre la totalidad de un proceso, explotando los documentos al máximo e indagando en las condiciones estructurales a partir de coyunturas específicas. Pues bien, en este caso los autores analizan un único documento, un informe de Edward Terrill, dirigente eclesiástico de la Iglesia de Broadmead, en Bristol, sobre “una criada morita y negra llamada Francis”. Lo interesante es cómo, a partir de esta somera descripción de una carilla, los autores analizan la confluencia entre dinámicas sociales como la raza, la clase y el género en el contexto de la revolución puritana inglesa. Así, la reconstrucción de la posible trayectoria de Francis, lejos de centrarse en un abordaje biográfico, da cuenta de las diversas problemáticas del período. “La bifurcación de los debates de Putney”, el cuarto capítulo, está centrado específicamente en las ramificaciones que dichas polémicas tuvieron. Durante el otoño de 1647 tuvieron lugar, en el pequeño pueblo de Putney, una serie de debates de radical importancia para el futuro de Inglaterra –y del capitalismo.
Notas
1 Entre los numerosos trabajos realizados pos los autores, vale la pena resaltar: Marcus Rediker. Between the devil and the deep blue sea: merchant seamen, pirates, and the AngloAmerican maritime world, 1670-1750. Cambridge: Cambridge University Press, 1993; Peter Linebaugh. The London Hanged: Crime and Civil Society in the Eighteenth-Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; y Douglas Hay, Peter Linebaugh, John G. Rule, Edward P. Thompson y Cal (eds.) Albion’s Fatal Tree. Crime and Society in Eighteenth-Century England. London: Penguin Books, 1988. Martín P. González Peter Linebaugh e Marcus Rediker.
2 Entre la numerosísima bibliografía de estos autores, resaltamos: Christopher Hill. Antichrist in Seventeenth-century England. Londres: Verso, 1990; El mundo trastornado. El ideario popular extremista en la Revolución inglesa del siglo XVII. Madrid: Siglo XXI España, 1983; y Los orígenes intelectuales de la revolución inglesa, Crítica, Madrid, 1996; de Edgard P. Thompson. Costumbres en común. Barcelona: Crítica, 1984 y Tradición, revuelta y consciencia de clase. Estudios de la crisis de la sociedad industrial. Barcelona: Crítica, 1984; y Rodney Hilton. (ed.) La transición del feudalismo al capitalismo. Barcelona: Crítica, 1982; y Hilton, Rodney. Siervos liberados. Madrid: Siglo XXI, 1978.
3 Hacemos referencia, principalmente, a trabajos como: George Rudé. La multitud en la historia. Madrid: Siglo XXI, 1971; y Eric Hobsbawm. Revolución industrial y revuelta agraria. El capitán Swing. Madrid: Siglo XXI, 1978; y Rebeldes primitivos. Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIX y XX. Madrid: Crítica, 2001.
Martín P. González – Professor da Universidad de Buenos Aires (UBA) / Argentina.
Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo CASTRO; LEIRNER (A)
CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero. Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009. Resenha de: ARIAS NETO, José Miguel. Nos caminhos da fé: história, religião e religiosidade da Antiguidade ao mundo contemporâneo. Antítese, v. 2, n. 4, p. 1137-1144, jul./dez. 2009.
Há uma “Antropologia dos Militares”? O livro organizado por Celso Castro e Pierre Leirner procura responder positivamente à questão. A obra divide-se em apresentação e onze capítulos, alguns mais teóricos, outros apresentando estudos de caso. Há estudos sobre as cadetes pioneiras da Academia da Força Aérea (AFA) por Emilia Takahashi, o serviço de comunicação do Exército por Lauriani Porto Albertini, mulheres de militares por Fernanda Chinelli, o mundo do quartel, por Cristina Rodrigues da Silva, rituais militares por Juliana Cavilha, formação de praças do Exército por Aline Prado Atassio. Ao lado destes, alguns textos que desenvolvem reflexões mais teóricas como os de Celso Castro, Piero Leirner, Alexandre Colli de Souza e Máximo Badaró. O único texto de um historiador é a bela reflexão que faz Adriana Barreto de Souza sobre a pesquisa em Arquivos Militares.
Outra característica que de imediato chama a atenção é o fato de que as mulheres são maioria neste grupo de pesquisadores que estuda predominantemente o Exército, com a exceção dos textos sobre as Cadetes Pioneiras da AFA e em parte o que explora o “mundo do quartel”, no qual Cristina Rodrigues da Silva relata a pesquisa que realizou também na AFA. Não há um texto sobre a Marinha do Brasil. É fato que este silêncio é significativo e deve-se refletir sobre ele, contudo, este não é o espaço pertinente. Também esta marcante presença feminina no campo dos estudos militares é alvissareira para a academia.
O livro, como qualquer obra coletiva, apresenta textos de diferentes níveis. Alguns, fruto de acurada reflexão teórica, apontam problemáticas bastante relevantes para os estudos militares na área de antropologia, ou melhor dizendo, para a constituição do que seria uma antropologia dos militares, ou seja, relativa aos militares como bem destaca Leirner à página 31. Outros se debruçam mais sobre a experiência realizada, apoiando-se nas reflexões desenvolvidas pelos pesquisadores seniores.
O subtítulo reflexões sobre pesquisa de campo indica o fio condutor, ou seja, a problemática que articula todos os textos da obra, da qual, derivam as questões apresentadas pelos autores.
Em outras palavras, é o importante momento em que o pesquisador reflete sobre a trajetória da sua pesquisa e como esta influenciou decisivamente nos resultados obtidos e nas conclusões apresentadas. Neste sentido, é o pensamento que se volta sobre si e se desdobra na indagação que todos nós devemos fazer: O que é esta pesquisa que eu faço? Como a faço? E de que maneira o modo como a faço influencia o que estou enunciando ao mundo sobre meu objeto. É, na linguagem dos historiadores, a busca do posicionamento do pesquisador, do lugar social da pesquisa: De onde falo? Para quem falo?, questões de há muito postas por vários pensadores, dentre os quais Claude Lefort no importante livro As formas da História e Michel de Certeau no belo A Escrita da História.
Assim, o movimento dos autores em seu exercício de reflexão sobre o processo de produção do conhecimento é aquele que descreve a formulação da problemática, a pesquisa, no caso em questão, a já tradicional observação antropológica participante e os resultados, mediados pelo contato com o “objeto” ou, como este grupo de pesquisadores se referem aos militares, “com seus nativos”. Estas experiências, embora, marcadas pelo traço comum do estudo de militares, são diferentes em cada caso e, por isto mesmo, narradas em diferentes registros do sensível, isto é, alguns com mais esperança e otimismo, outros nem tanto.
Este registro do sensível é importante, pois, ele revela um aspecto fundamental da pesquisa do etnólogo: o envolvimento direto e pessoal com o seu “objeto”. E causa ao historiador certa surpresa a perplexidade que estes antropólogos revelam quando diante de “seus nativos”.
E que perplexidade é esta? E por que ela causa surpresa? Para iniciar retomo as formulações, por demais conhecidas, de Bacon sobre as relações entre saber e poder, retomadas contemporaneamente por Foucault.
Estas formulações enunciam que não só o conhecimento, mas principalmente sua produção é sempre fruto de relações de poder. Disto também já sabiam, no século XVI, nossos primeiros etnólogos, como Bernardino de Sahagún que ao longo de quarenta anos escreveu junto com os caciques astecas a Historia General de las cosas de Nueva España. Buscava ele, inicialmente, conhecer a cultura asteca para extirpar o pecado da idolatria. Isto porque logo os espanhóis perceberam que os nativos adoravam seus “falsos deuses” no interior dos rituais e dos templos cristãos.
Assim, para esses missionários-etnólogos o conhecimento adquirido, a partir da sua posição de conquistadores, permitiria uma real cristianização dos nativos. Sabemos que o resultado, como bem destacou Tzvetan Todorov em A conquista da América, a questão do outro, não foi o esperado pelos próprios missionários, que passaram, especialmente no caso de Bernardino a admirar e amar a cultura de “seus nativos”, numa espécie de reverso da conquista que constitui um dos mais ricos processos de mestiçagem cultural no período.
No caso do livro organizado por Celso Castro, esta questão é quase que enunciada como uma novidade. Em seu texto, no qual narra sua experiência na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), relata que a pesquisa foi vista como “inusitada” por oficiais e cadetes da escola. Um diálogo particularmente interessante ocorre quando chegando à Academia pela primeira vez, o major que chefiava o serviço de relações públicas, lendo sua carta de apresentação exclamou: “Já sei! Já entendi o que você quer! Agora entendi tudo! Você quer fazer uma coisa tipo aquele trabalho do Gertz sobre a briga de galos em Bali!”.
Ao que Celso Castro observa: Inusitado por inusitado, não sei o que era mais: se minha pesquisa, o se me ver diante de um “nativo” que fazia esta afirmação. Pior que isso, ele passou a perguntar qual a minha “tendência”: se era a do Lévi-Strauss, a do Gertz, a do Malinowski… Confesso que, do alto dos meus 23 anos de idade e apenas um semestre de curso de mestrado, fiquei aterrorizado com a perspectiva de ter que discutir teoria antropológica com meus nativos, desde o primeiro dia da pesquisa de campo. (p. 23-24).
Esse tipo de “leitura do real” remete à questão de como o pesquisador “pensa” o seu sujeito, no caso em questão, como Celso e seu grupo pensam “seus nativos”, os militares. E aqui é importante demonstrar as características específicas do grupo a ser estudado.
Celso Castro começa a estudar militares, ele mesmo vindo de família de militares, no ano de 1987, isto é, no momento de democratização do país após quase vinte anos de regime militar. Assim, as instituições militares e os militares, eram amaldiçoados pela tradição de “esquerda” bastante forte nas faculdades de Filosofia, onde se encontravam os cursos de Ciências Sociais e História. Por outro lado, a visão do mundo universitário que tinham os militares também não era, por assim dizer, muito alvissareira. Querer estudar militares neste período e mesmo em períodos posteriores –como bem mostra o livro– era e, em certo sentido, ainda é um desafio. Pode-se dizer que atualmente a situação é bastante diferente quer de um lado, como de outro. Mas as mudanças na situação política não alteraram a natureza de instituições como as Militares ou como a Universidade, dotadas de suas hierarquias ritualizadas, processos disciplinares e procedimentos próprios.
Assim, o pesquisador que se debruça sobre temas militares vai se deparar com instituições totalizantes, cujos eixos centrais são a hierarquia e a disciplina.
E é esta realidade que vai marcar o andamento e desdobramentos de seu trabalho. Assim, antes de começar uma pesquisa ele pode, atualmente, através do livro organizado por Castro e Leirner ter uma idéia da realidade com a qual vai se deparar, e neste sentido o livro é importantíssimo, pois inserir-se como observador em uma estrutura totalizante requer um conhecimento prévio de suas características básicas e de seu funcionamento.
E é este o fundamento da perplexidade do antropólogo. Como testemunha o próprio Celso Castro: A maior parte da antropologia foi e até hoje continua sendo feita com grupos de alguma forma socialmente subalternos em relação ao antropólogo, ou que não dominam a linguagem acadêmica. A pesquisa com camadas médias ou elite pode, todavia inverter o sentido desta relação de dominação/subordinação. Em muitos momentos da pesquisa , ficou evidente que alguns de meus nativos sentiam-se numa posição intelectual, social ou moral superior à minha (p.24).
A fonte deste sentimento prossegue Celso Castro, é coletiva, não individual. Ela repousa nas características dos militares, que de acordo com ele e os demais autores, tem uma visão de mundo fundada em jogos de oposições: mundo civil/mundo militar, amigo/inimigo. É a partir, portanto, destas categorias, que o pesquisador que adentra uma instituição militar vai ser analisado e julgado e deste julgamento depende o sucesso ou fracasso de seu trabalho ou, pelo menos, da impossibilidade de realização deste como observador participante na instituição.
Assim, no momento em que estão desbravando e inaugurando um novo campo de abordagem da antropologia, os pesquisadores depararam-se com duas contingências estruturantes de seus trabalhos e de sua visão sobre os mesmos: o histórico –a democratização brasileira e o sociológico– a natureza de uma instituição militar. E ficam perplexos diante da recusa de seu “objeto”, ou de “seus nativos” em serem elementos apenas “observáveis” – como se isto fosse possível e algum dia tivesse realmente acontecido– e daí o sentimento de horror quando um militar, não apenas quer discutir antropologia, mas quando a instituição militar controla e limita as condições em que o trabalho etnográfico ocorre, pois, não apenas no contexto da democratização, os militares querem garantir a transmissão ao mundo de determinada memória do passado (remoto e próximo), mas também fixar uma imagem no presente e projetá-la no futuro como continuidade, no caso em questão, de um grupo que se sacrifica em benefício da pátria, isto é, de todos nós.
Esta operação de construção e transmissão de uma imagem do passadopresente e futuro como uma continuidade, isto é o controle da memória e da representação do grupo no universo público, é de fato uma característica específica das Instituições Militares, ou é comum aos vários grupos sociais contemporâneos? Faço a questão pensando, por exemplo, em trabalhos como o de Michael Pollak que demonstra o controle da memória exercido pelos alsacianos, cujo território foi ocupado e dominado sucessivamente ora por franceses, ora por alemães. O que o livro Antropologia dos Militares demonstra é que há, dadas as características dos militares, modos específicos de controle da memória na engenharia do poder que se instaura no interior das instituições e que tem por objetivo não apenas reificar a visão “oficial”, por assim dizer, para “os de dentro”, mas também conquistar ou, numa linguagem mais política, cooptar “os de fora” fazendo com que todos compartilhem da mesma visão, sobre si mesmos e sobre suas instituições. Por isto, o antropólogo sempre deve estar em campo, como bem ressalta Castro, isto é, sempre atento para não ser apanhado nesta rede.
Uma segunda questão, diz respeito ao discurso mais ou menos homogêneo do grupo de antropólogos e da historiadora que participam do livro acerca da “epopéia” para conseguir realizar uma pesquisa em uma Instituição Militar. Este discurso funciona como uma espécie de “narrativa fundadora” do próprio grupo de pesquisadores de modo a valorizar o empreendimento realizado. E este valor é sempre correlacionado às dificuldades existentes, isto é, quanto maiores forem os obstáculos vencidos, maior é o valor do que se realiza. Esta é uma operação fundadora bastante comum, por exemplo, em grupos migrantes em áreas novas de colonização, mas também, por exemplo, para nos situarmos na academia, da História Oral. Fundada por Heródoto, desvalorizada e repudiada pelos “positivistas”, a Historia Oral contemporânea ganha força, vitalidade e legitimidade como campo novo no âmbito da História. Mas para isto, que dificuldades enormes tiveram os historiadores orais que vencer!, que tradições assentadas no texto escrito tiveram que questionar e superar até provarem o seu valor! Este tipo de narrativa fundadora é uma operação fundamental na constituição da legitimidade do campo, e seu público, no caso dos antropólogos é duplo: a academia e o quartel. O discurso dirigido para a acadêmica visa demonstrar que é possível, apesar das dificuldades, trabalhar com os militares sem passar a amá-los, isto é, sem ser “cooptado”. Já para o quartel, a mensagem é: somos capazes de estudá-los e compreendê-los objetivamente, sem aceitar esta categorização amigo/inimigo na qual vocês procuram nos enquadrar. Nosso trabalho transcende esta categorização e conseqüentemente ultrapassa os limites do mundo pensado por vocês como divisão entre civis e militares.
O que me remete à minha última questão. O tratamento dado aos militares como “meus nativos”. Este tratamento, usado sistematicamente por todos os autores do livro, parece ser uma espécie de reação à perplexidade que o antropólogo sente diante do seu “objeto participante”. Na medida em que se descobre em uma relação de poder na qual se encontra em “desvantagem”, ou em uma posição “subordinada” à autoridade, poder e rito das Instituições Militares o pesquisador acaba por usar uma “categoria nativa” dos antropólogos para “enquadrar” os militares dentro de sua própria visão de mundo de modo a inverter esta relação de desvantagem em que se encontra. A contrapartida, portanto, à designação de “paisano” ou “civil” dada pelos militares é tratar a estes como “seus nativos”.
Confesso que esta categorização, como modo de operar um distanciamento em relação ao “objeto” de estudo me causa surpresa. Isto porque, em parte, o termo “nativo” contraria a idéia do livro de que o militar é um constructo histórico-cultural, como tudo o mais que existe neste mundo criado pela humanidade. Em segundo lugar, os cientistas sociais são treinados para identificar as estratégias narrativas que o induzem ao comprometimento com a visão de seu interlocutor, esteja ele morto ou vivo, especialmente no caso dos Historiadores.
Por exemplo, o ambiente familiar criado por Joaquim Nabuco no seu magnífico livro O Estadista do Império, visa, entre outras questões, glorificar a monarquia e os liberais monarquistas. A leitura do livro de Nabuco introduz o leitor em uma experiência de familiaridade. É como se o leitor participasse do diálogo que Joaquim trava com Thomaz e com os políticos imperiais. Esta sensação de “familiaridade” criada por Nabuco tem por objetivo criar uma empatia do leitor com a sua visão e mobilizá-lo para sua causa. Esta é a operação historiográfica que fazem os historicistas como bem observou Walter Benjamin: trata-se de criar uma empatia com os vencedores e perpetuá-los como tais. Por outro lado, dado à sua enorme erudição e profundo conhecimento das fontes, Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Do Império à República cria também um ambiente familiar ao fazer com que o leitor participe da conversa que estabelece com a elite política imperial. O mecanismo operacional e o estilo são opostos aos de Nabuco. Também oposta é a finalidade desta operação, pois Sérgio Buarque, que não tem nenhuma simpatia, quer pela monarquia, quer pelo imperador, visa com esta familiaridade destruir por dentro a representação da monarquia criada pelos monarquistas pós-queda do regime e perpetuada por intelectuais, como Oliveira Viana. Não é possível estabelecer uma empatia com o regime monárquico após a leitura do livro de Sérgio Buarque.
No caso do livro Antropologia dos Militares o termo “nativo” com o qual os militares são tratados denota a vontade de criar um afastamento, por todas as razões já aqui apresentadas, como forma de evitar a construção ou a demonstração de uma empatia. A terminologia, entretanto, soa bastante artificial, quando se verifica que os pesquisadores possuem uma familiaridade com seus temas e um conhecimento de sua pesquisa realizada por meio de uma intensa “observação participante” através da qual estabelece relações e vínculos bastante fortes e significativos com os militares. Esta familiaridade não resulta de modo algum em empatia, ou em outras palavras, como já observou Tzvetan Todorov no seu livro Em face do Extremo, compreender não é justificar. Ele se refere no caso, à compreensão dos regimes totalitários. Diria, portanto, que a familiaridade é fundamental para o trabalho do cientista social, mas o desenvolvimento de uma empatia com seu objeto ou não, é uma questão política de primeira grandeza, pois se refere a uma opção que deve ser assumida publicamente.
Assim, a experiência da leitura de Antropologia dos Militares é fundamental para os iniciantes no campo dos estudos militares perceberem a intensa relação de poder que se estabelece no processo de construção da compreensão de determinado fenômeno e como esta relação caracteriza o conhecimento que temos dos “outros” e de “nós” mesmos.
BRÜGGER, Niels (ed.). Web History, Nueva York, Peter Lang, 2010, 362 p.
José Miguel Arias Neto – Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Associado da Universidade Estadual de Londrina (UEL) / Brasil.
Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar – José Maria de Brito
BRITO, José Maria de. Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar. Curitiba-PR: Travessa dos Editores, 2005. Resenha de: SBARDELOTTO, Kloeckner. Revista de História Regional, v.14, n.2, p.206-211, Inverno, 2009.
Uma obra inédita e rica em detalhes, a “Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar”, foi escrita por José Maria de Brito no ano de 1938, quando, já no fi nal de sua vida, se incumbiu de deixar registrado aquilo que presenciou como membro da Expedição Militar designada pela Comissão Fundadora da Colônia Militar do Iguassu, instalada onde hoje se situa a cidade de Foz do Iguaçu, considerada o centro urbano “pioneiro”2 do Oeste do estado do Paraná. Publicada pela primeira vez em 1938, em tiragem muito pequena – encontramos um exemplar original apenas no Arquivo Público do Paraná –, esta obra é rara e retrata na forma de testemunho parte da história do estado do Paraná e principalmente de sua região Oeste. Foi reorganizada e reeditada no ano de 2005, pela Travessa dos Editores, sob apresentação do jornalista e escritor Beto Maciel e do editor Fábio Campana. Nesta segunda edição foi acrescentado um anexo: a transcrição de um manuscrito de audiências particulares com colonos da Colônia Militar do Iguassu, datado de 1907, encontrado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e pertencente aos relatórios do Ministério do Exército.
A história a que se dedica o piauiense José Maria de Brito se confunde com sua própria história de vida. Ele fez parte do Destacamento da Expedição Militar, chefiado pelo 2º tenente José Joaquim Firmino, e acompanhou todo o penoso percurso da viagem e a fundação da Colônia Militar do Iguassu. Depois da fundação, Brito voltou à cidade de Guarapuava onde foi incumbido de aldear e catequizar índios Guaranis, encontrados durante a Expedição e reunidos em Catanduvas e Formigas. Posteriormente, regressou à Foz do Iguaçu onde exerceu a função de sargento Almoxarife da Colônia Militar do Iguassu e Agente da Companhia de Vapores – La Platense. A seguir, exerceu outros cargos públicos, até mesmo de professor da zona rural do município de Foz do Iguaçu. Nos seus últimos anos de vida José Maria de Brito adoeceu e passou por sérias dificuldades financeiras – em 11 de outubro de 1939, através do Decreto Municipal n.º 4, Brito passou a receber uma pensão anual, por ser na época o único membro ainda vivo da Expedição que fundou a Colônia Militar do Iguassu. Em Foz do Iguaçu, conheceu uma índia, casou-se, constituiu família, fi xou raízes e ali faleceu em 1942. É importante observar que a obra de Brito não se caracteriza como um relato de viagem. Ele só se empenhou neste registro muitos anos depois dos fatos vivenciados – há quem diga que a pobreza e o abandono foram os elementos que o impulsionaram a esta tarefa. Como resignado militar que era, Brito o fez também obedecendo ao sentimento de “prestar mais um serviço ao meu país”.
No primeiro capítulo, “A fronteira no fim do Império”, o autor contextualiza o cenário histórico-político-social dos anos finais do regime Imperial e início do regime Republicano. Explica que a ideia de “descobrir” a foz do Iguaçu, ocupar a região estratégica da tríplice fronteira fundando uma Colônia Militar e construir um forte e uma flotilha3 da Marinha Nacional já eram assuntos muito discutidos durante os anos finais do Império, mas, por razões políticas, permaneceram por muito tempo no esquecimento.
Três questões foram responsáveis pelo atraso da “descoberta” da foz do Iguaçu: a “Questão Militar”, a luta abolicionista e os ideais propagandistas civis-republicanos. Brito afirma que, quando o Exército uniu-se aos abolicionistas e aos civis-republicanos, estes ideais se tornaram mais fortes.
Em 1888, quando a “Questão Militar” foi resolvida e João Alfredo Corrêa de Oliveira assumiu o Ministério da Guerra, a classe militar passou a ser vista com bons olhos pelo governo e, com esta harmonia, o estado do Paraná se tornou um terreno mais confortável para as ações do Exército.
No segundo capítulo, “A Expedição”, Brito apresenta em riqueza de detalhes a fauna, a fl ora e os principais acontecimentos durante a longa viagem à foz do Iguaçu. Em 1888, um dos primeiros atos do novo Ministro de Guerra foi a criação de uma Comissão Militar sob o comando do capitão Bellarmino Augusto de Mendonça Lobo. A Comissão tinha uma grande lista de encargos, dentre eles “descobrir a foz do Iguaçu; fundar uma Colônia Militar na mesma foz.” Esta Comissão foi oficializada no Rio de Janeiro e enviada à Guarapuava, escolhida para ser a cede por ser o centro urbano mais próximo da região em que os trabalhos seriam realizados. A Comissão compôs uma Expedição Militar, sob o comando do 2º tenente José Joaquim Firmino e começou seus trabalhos no Km 16 da estrada que ligava Guarapuava à Colônia Militar do Chopim.
É interessante como o autor associa a aventura da Expedição e o papel de Firmino aos grandes feitos da história dos bravos e grandes homens que, tais como Napoleão, Colombo e César, enfrentavam seus medos e todas as adversidades em prol de uma causa nobre. Apesar de a história para ele ser apenas a história dos vencedores, de fato, as adversidades do trajeto foram reais: dias de constantes chuvas, caudalosos e intransponíveis rios, barracas muito pequenas, roupas mofadas, desenvolvimento de bronquites e outras moléstias, terrenos acidentados, ataques de tigres e falta de alimentos.
Brito não relata a resistência indígena, mas apenas a colaboração às necessidades da Expedição e se refere a eles como “selvagens”, “filhos das selvas”, “irmãos das selvas” – sob forte influência católica, o que demonstra a união da Igreja ao poder do Exército. Sua concepção era ainda aos moldes jesuíticos: de catequizá-los, civilizá-los e pacificá-los, para que fossem chamados “ao centro da civilização”. A obra apresenta apenas vantagens do “grande feito” do Exército ao “descobrir” a foz do Iguaçu – aumento da população, domínio de um ponto estratégico, fonte de rendas, estreitamento de laços de amizade com o Paraguai e a Argentina –, porém não considera os prejuízos que a ocupação brasileira causou aos povos indígenas que ali já habitavam.
No terceiro capítulo, “A Fundação da Colônia Militar”, o autor retoma detalhes sobre a longa viagem da Expedição e relata as providências tomadas logo após a “descoberta” da foz do Iguaçu. Recém chegados, após 69 dias de viagem, Firmino tornou público que já havia autoridade na foz do Iguaçu e que esta assumiria a competência de conceder lotes aos colonos interessados – embora esses títulos nunca chegassem às mãos dos colonos. Além disso, Firmino tratou de tomar “providências com o fi m de coibir abusos no território descoberto” e avisar que “daquela data por diante não seria mais permitido explorações nas matas brasileiras sem prévia autorização do Governo.” Quanto a estes abusos, Brito se referia aos estrangeiros, principalmente argentinos e paraguaios, que durante anos devastaram o Oeste do Paraná com a extração de erva-mate e de madeira. Portanto, a “descoberta” da foz do Iguaçu foi uma iniciativa de salvaguardar a região geograficamente estratégica da tríplice fronteira e tomar a posse efetiva de um território que pertencia legalmente ao Brasil.
Brito se propõe a corrigir erros cometidos por algumas publicações de sua época, em português e espanhol e que, segundo ele, não exprimiam a verdade sobre certos fatos.
Cita a questão da data de fundação da Colônia Militar que, segundo ele, alguns autores equivocaram-se afirmando ter ocorrido no ano de 1888. Além disso, explica que a Colônia foi instalada em um local diferente do que previam as Instruções devido ao fato de que, diante da seca daqueles meses e a falta de água, os Diretores da Colônia resolveram deslocá-la “provisoriamente” – que acabou sendo definitivo – para um local mais perto da barra do arroio. Os equívocos em relação ao ano de chegada e o local da cidade foram esclarecidos por Brito, entretanto sua narração cai em outras contradições.
No segundo capítulo, o autor afirma que a turma exploradora teria chegado ao seu objetivo, à foz do Iguaçu, no dia 15 de julho de 1889 e, no terceiro capítulo, afirma que a Expedição chegou ao Iguaçu em 22 de novembro de 1889! Outro ponto contraditório é em relação à partida da Expedição: no primeiro capítulo Brito afirma que ela teria começado seus trabalhos em 25 de Novembro de 1888 e que os trabalhos anteriores à partida ocorreram em 7 meses e 20 dias. Mas, se foram 7 meses e 20 dias, como Brito pode afirmar, no terceiro capítulo, que a Expedição partiu de Guarapuava em 16 de Setembro de 1889? Além destas contradições, o livro mostra a versão dos fatos de um ângulo decididamente militar e elitista. Com demasiado saudosismo, a obra enaltece o papel do Exército, cuja presença para o autor era a única garantia de “ordem e progresso”. Ao término do terceiro capítulo, Brito apresenta os últimos avanços de Foz do Iguaçu e associa-os às ações do Governo Federal. O faz com um ufanismo característico da década de 1930, típico de um membro militar que vê no retorno do Exército ao poder – a chamada “Revolução de 30” – a possibilidade de renovar suas esperanças patrióticas e de marchar rumo ao progresso.
O manuscrito de audiências particulares do Ministério de Guerra é ainda mais revelador. Mostra os conflitos existentes na Colônia, quem mandava e quem obedecia. Revela que os “negociantes” e extratores de erva-mate e de madeira mais abastados – dentre eles o Coronel Jorge Schimmelpfeng – eram aqueles que decidiam quem permaneceria com lote, quem receberia ajuda ou permaneceria na Colônia. E mais. Os “poderosos” economicamente desrespeitavam as leis da Colônia, apossavam-se ou exploravam lotes alheios e não recebiam punição alguma da Diretoria da Colônia.
Apesar das contradições, o livro de José Maria de Brito tem implicações indiretas significativas para pesquisa e para educação na região de Foz do Iguaçu e de todo o Oeste do Paraná.
Os materiais bibliográficos desenvolvidos sobre a educação nesta região ainda são escassos, tanto quanto o são os materiais de fontes primárias, documentais e fotográficos.
Portanto, as pesquisas no âmbito da Pós-Graduação em história, história da educação e outras diversas áreas, podem encontrar no trabalho de José Maria de Brito uma importante fonte explicativa da gênese da sociedade iguaçuense, que não deixa de exercer inf uência em todo o território do Oeste do Paraná. Os professores e estudantes de graduação também encontrarão nesta obra uma significativa fonte de pesquisa sobre esta região. Além disso, o texto de José Maria de Brito pode ser explorado em especial nos cursos de licenciatura, nos quais existem orientações no sentido de se conhecer a história do Paraná, para posteriormente ensiná-la nas escolas. Portanto, o ensino da história local nas escolas, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental de Foz do Iguaçu, só tem a ser enriquecido considerando os importantes dados registrados por José Maria de Brito.
Trata-se de um único registro existente de um membro fundador da Colônia Militar do Iguassu. É um livro pequeno no tamanho, mas apresenta uma riqueza de detalhes e uma fonte riquíssima para historiadores, pesquisadores, professores e alunos, na medida em que contextualiza – mesmo que de um ângulo tendencioso, militarista e elitista, pois isso não deixa de ser um elemento histórico a ser considerado – o início da história do Município de Foz do Iguaçu e a história do Oeste do estado do Paraná.
2 Os termos “pioneiro (a)”, “descobrir” e “descoberta” serão utilizados entre aspas, indicando que nos referimos à ocupação brasileira do século XIX e XX e que não nos valemos de concepções eurocêntricas. Não desconsideramos a legitimidade das ocupações ocorridas em períodos históricos anteriores, incluindo a ocupação indígena do Oeste do Paraná pelos povos Guarani e Caingangue.
3 Forma de velejar em grupo com outros barcos.
Denise Kloeckner Sbardelotto – Especialista em História da Educação Brasileira pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e Professora Colaboradora nesta mesma Universidade. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Estado, Educação e Trabalho – GEEPET e do Grupo de Pesquisa em História, Sociedade e Educação no Brasil – GT da Região Oeste do Paraná/HISTEDOPR/UNIOESTE. Áreas de interesse: Fundamentos da Educação; História e História da Educação Regional; História da Educação do Paraná e do Oeste do Paraná.
Antíteses | UEL | 2008
A revista Antíteses (Londrina, 2008-) é um periódico semestral eletrônico on-line em Open Access, no sistema ahead of print e volume fechado, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. Publica, após processo de avaliação entre pares, contribuições multidisciplinares inéditas a partir da perspectiva histórica, nos idiomas português, espanhol e inglês.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 1984-3356
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