A ideia de História na Antiguidade Tardia | Margarida Maria Carvalho, José Glaydson Silva e Maria Aparecida Oliveira Silva

A ideia de historia na Antiguidade tardia Detalhe de capa
A ideia de história na Antiguidade tardia (Detalhe de capa)

Por ser tributária do presente e estar sujeita às características de seu próprio tempo, a História carrega consigo anseios e projetos sociais de futuro (Fontana, 1982). Como destacou Reinhart Koselleck (2006, p.306), as narrativas históricas estão situadas entre os espaços de experiências do passado e o horizonte de expectativas sobre o futuro. A produção histórica da Antiguidade Tardia, de certa forma, torna patente essas proposições, uma vez que resulta do contato entre a antiga tradição clássica com o novo horizonte social, político e religioso aberto pelo cristianismo. Como corolário, pode-se reconhecer, neste período, a coexistência (e eventual amálgama) de perspectivas cristãs e profanas sobre o tempo e a História, bem como as origens e projetos de futuro para os reinos formados sobre o território imperial romano. Oferecer uma leitura abrangente sobre a produção histórica da Antiguidade Tardia, portanto, constitui uma tarefa desafiadora e que não pode prescindir da colaboração de diversos/as estudiosos/as.

Organizado por Margarida Maria de Carvalho, Glaydson José da Silva e Maria Aparecida de Oliveira Silva, o livro A ideia de História na Antiguidade Tardia (2021) congrega dezoito capítulos lavrados por pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior, e oferece uma aproximação atual e qualificada sobre a produção histórica no período tardo-antigo. Oportuna e pioneira, a referida coletânea se une às já conhecidas publicações brasileiras sobre historiografia antiga (BRANDÃO, 2001; JOLY, 2007; RAMALHO, 2013; SILVA & SILVA, 2017; FUNARI & GARRAFONI, 2016, entre outros) de modo a oferecer um volume abrangente e dedicado, em específico, às várias formas de História produzidas na Antiguidade Tardia. Leia Mais

Religiões e religiosidades na Antiguidade Tardia – CARVALHO et al (FH)

CARVALHO, Margarida Maria de… [et al.] (Orgs). Religiões e religiosidades na Antiguidade Tardia. 1.ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, João Paulo da. Discussões acerca da antiguidade tardia: religiões e religiosidades. Faces da História, Assis, v.5, n.2, p.329-332, jul./dez., 2018.

A Antiguidade Tardia fora um período de profundas mudanças no que tange a questão da religião e religiosidade. Essa época de transição, balizada entre meados do século III d.C. e início do século VII d.C., possui características peculiares em relação à simbologia e à subjetividade dos acontecimentos. O conceito de Antiguidade Tardia sofreu alterações relevantes dentro da historiografia moderna, visto os lançamentos de diversas obras no início da década de 1970, como por exemplo, O Fim do Mundo Antigo: de Marco Aurélio a Maomé, de Peter Brown, de 1972, e a obra de Henri Iriné Marrou, intitulada Decadence ou Antiquité Tardive?, de 1977, que focalizava uma continuidade cultural fortalecida pelo cristianismo até os dias atuais. O conceito se fortalecera, deixando em evidência as divergências e diversidades do período, estabelecendo, ao mesmo tempo, problemáticas diversas a saber: político-econômicas, religiosas e culturais, as quais devem ser analisadas em seu próprio conjunto, reverberando determinados movimentos, a exemplo da crise do século III d.C., ou mesmo a cristianização do Império Romano.

A obra, Religiões e Religiosidades na Antiguidade Tardia, aqui resenhada, desenvolve análises específicas com temas diversos que compõe o amplo cenário religioso e suas manifestações no período tardo antigo. Organizada pelos professores Claudio Umpierre Carlan (Professor Associado I de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas) , Helena Amália Papa (Professora de História Antiga do Departamento de História e Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros), Margarida Maria de Carvalho ( Professora Dra Assistente de História Antiga do Departamento de História e Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca) e Pedro Paulo Abreu Funari (Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas. (Livre-docente pela UNICAMP), conta com quatorze capítulos no formato de ensaios, com textos não somente dos organizadores, como também de outros pesquisadores convidados. De leitura fluente, não é necessária uma ordem sequencial nos capítulos, tendo em vista a especificidade das temáticas abordadas em cada um deles. Essa obra, do ano de 2017, busca desenvolver análises de casos específicos relevantes ao período tardo antigo, imbricando, além da religião e da própria religiosidade, a cultura, o imaginário e a política na Antiguidade Tardia.

Em linhas gerais, as propostas dos ensaios trazem em seu âmago sempre uma tensão, seja ela religiosa, política ou social. Tais propostas variam de acordo com sua especificidade temática. O capítulo 1 – Religião e Rivalidade no século IV: algumas considerações – aponta para um Império Romano que passa por diversas transformações religiosas, com o surgimento de novas formas de culto e, na figura de Constantino, uma proposta de transformar a igreja num organismo oficial, de extrema importância para o funcionamento do estado. No capítulo 2 – Nomen christianum: práticas Cristãs em Melânia, a Jovem – Renata Lopes Biazotto Venturini, oferece uma discussão acerca das práticas cristãs, analisando a vida de Melânia, a Jovem, destacando o cristianismo como uma nova experiência, como resposta às circunstâncias dos problemas dos homens. O capítulo 3 – Cultura Literária e polêmica anticristã no, de Juliano, o Apóstata. – aponta para a figura singular do Imperador Juliano, o Apostata, com seu pensamento religioso e sua motivação e objetivos de sua política de restauração dos cultos tradicionais, ressaltando as contradições das histórias do velho testamento e a personalidade vingativa do deus hebreu, bem como o caráter particularista de sua revelação e também a inferioridade cultural dos cristãos. No Capítulo 4 – A construção de um arquétipo: o caso de Vetio Agorio Pretextato – Viviana Boch discute a religiosidade com cerne na personalidade de Vetio Agorio Pretextato, deixando em evidência práticas religiosas e a política romana do século IV d.C. No capítulo 5 – Os mártires como protetores espirituais da polis: João Crisóstomo e a cristianização da Antioquia (séc. IV d.C.) – aparecem os mártires e a devoção aos mesmos para o efeito de cristianização da cidade antiga do século IV, análise esta balizada na figura de João Crisóstomo.

O capítulo 6 – Imperator et bouleutes na Antiguidade Tardia: os Conflitos entre César Galo, Juliano, Teodósio e a elite municipal antioquena (Séc IV d.C.) – trata dos conflitos de interesses dentro do Império Romano, revelando que em diversas ocasiões, as instâncias administrativas se opunham e conflitavam, evidenciando, em determinados momentos, tensões de força nas relações de poder. O sétimo ensaio – Gêneros literários, temporalidades e construção biográfica: um estudo da “Vida de Santa Macrina” de Gregório de Nissa (Séc. IV d.C.) –, é dedicado à análise da vida de Santa Macrina, por Gregório de Nissa, com cerne numa maior liberdade de escrita, diferente das formas retóricas da antiguidade. A Arqueologia se fez presente no oitavo capítulo – O fim dos templos: um problema arqueológico, com um estudo apresentado pelo professor Bryan Ward-Perkins, da Universidade de Oxford, elucidando questões relacionadas à arqueologia na literatura, que considera cada vez mais sofisticada, e o fim do paganismo romano. No capítulo 9 – Sociedade, religião e literatura no Egito da Antiguidade Tardia: o caso de Nono de Panópolis – o Prof. David Hernandes de La Fuente promove um panorama no que se refere à situação histórica do Egito, a qual passava por um momento de profundas mudanças sociais e também espirituais, momento esse em que se dá na transição do mundo antigo para o medieval. Em outra proposta de análise com viés literário, Graciela Gomez Aso apresenta no capítulo 10 – Epistola 123 como exemplo da retórica discursiva de Jerônimo de Estridão no ambiente de mulheres aristocráticas de Roma. Barbárie e castidade como tópicos da Antiguidade tardia – uma retórica discursiva, utilizada por Jerônimo de Estridão com a intenção de difundir o testemunho político-religioso deste último, no que diz respeito ao avanço dos bárbaros dentro do território Ocidental do Império Romano, entre os séculos IV e V.

Apresentando uma discussão acerca da construção de paradigmas na Antiguidade Tardia, o capítulo 11 – Clarissimae feminae: de matronas a santas cristãs: a construção do modelo de santidade feminina na Antiguidade Tardia – propõe uma análise voltada para a questão do modelo de santidade feminina e a inserção de diferentes agentes sociais nesse panorama. Há ainda no capítulo 12 – Deus pode ser invejoso ou ciumento? Um debate sobre os atributos divinos entre o Imperador Juliano e Cirilo de Alexandria – uma tensão religiosa no debate entre o Imperador Juliano e Cirilo de Alexandria acerca da figura divina, com cerne no sistema de crenças do mudo antigo.

Através da “Controvérsia Nestoriana”, Daniel de Figueiredo explana no capítulo 13 – Uma análise de emergência da “controvérsia nestoriana” nas cartas de Cirilo de Alexandria (séc. V d.C.) – problemas políticos administrativos na composição da hierarquia eclesiástica ortodoxa, buscando uma explanação, pela historiografia, além de seu teor teológico, comumente trabalhado.

Para finalizar, uma temática pertinente ao período apresentado na obra, A religiosidade como meio e fim, explanada pelo professor Renan Frighetto no capítulo 14 – A religiosidade como meio e fim. A unidade religiosa como proposta à unidade política na Antiguidade Tardia hispano-visigoda: o exemplo da unção e coração de Wamba (672) – uma discussão das múltiplas formas de religiosidade, formas estas que aparecem durante o processo histórico, em particular no período que se define como Antiguidade Tardia. Pontos de destaque para a argumentação do autor encontram-se na cerimônia da unção do soberano, legitimando sua ascensão, sendo reconhecido como portador do signo de Deus devendo essa simbologia favorecer tanto a unidade religiosa representada pelo soberano, como também a unidade política.

No que diz respeito ao mundo tardo antigo, alguns pontos são relevantes para a compreensão do período. Necessariamente, trata-se de um período de transição do mundo antigo para o mundo medieval, extrapolando a visão política normalmente apresentada em outras obras e manuais. Pois bem, não é somete isso que buscamos no entendimento do contexto de compreensão de uma época. Mas as tensões existentes até os dias de hoje. Obviamente não como entre os séculos III e V, mas citando como exemplo a flexibilidade do cristianismo em relação a trazer para si elementos de uma cultura religiosa tida como pagã. Outro ponto relevante é a relação entre a política e a religião, as formas como uma está perpetrada na outra em relação a interesses particulares e relações de força e de poder.

A obra em questão traz contribuições de pesquisadores brasileiros e estrangeiros para uma explanação desse período da história da humanidade, período esse riquíssimo no que tange à religião, as práticas religiosas dos diversos atores sociais e a cultura da época.

João Paulo da Silva – Mestrando em História e Sociedade pela UNESP-Assis. Pós-graduado em História, Cultura e Sociedade pela UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná), Pós-Graduado em Docência no Ensino Superior pela UNIVALE, Universidade Vale do Ivaí, graduado em História pela UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná). E-mail: historiadorjoao@hotmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII) | Renan Frighetto

Publicado no ano de 2012, o livro A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII), escrito por Renan Frighetto [2], é o resultado de 25 anos de estudo e especialização do autor, que realizou um mestrado na área de História Antiga e Medieval (UFRJ, 1990) e um doutorado em História Antiga (Universidad de Salamanca, 1996). Frighetto, quando do lançamento do livro, já fora autor de dois livros e mais de 40 publicações de artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior. Especialista em Antiguidade Tardia, Frighetto atua como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação da UFPR, professor associado de graduação da UFPR e também na linha de pesquisa Cultura e Poder desde 1998. É participante do NEMED, Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR, onde desenvolve suas pesquisas.

Renan Frighetto, em sua obra, se junta ao coro de notáveis historiadores que muito contribuíram para o desenvolvimento e defesa do conceito de antiguidade tardia, como Peter Brown, Henri Irineé Marrou, Jean-Michel Carrié, dentre outros. Tal conceito não é universalmente aceito pela academia, uma vez que parte de uma perspectiva diferente na abordagem do período em questão (séculos II – VIII). Por isso, Frighetto, em introdução ao livro, descreve o conceito de Antiguidade Tardia, com um breve histórico de seu desenvolvimento e seus principais temas e abordagens.

Na introdução do livro, A Definição de Antiguidade Tardia: Espaço e Tempo, Frighetto situa seu trabalho numa obra maior, e explica sucintamente diversos aspectos que caracterizam a Antiguidade Tardia como um período singular. Para isso, o autor aborda questões de caráter principalmente político, institucional e ideológicos. O período trabalhado no livro é, de acordo com o autor, não um período de crise e decadência sócio-política, mas sim uma época de intensas transformações nos âmbitos já citados; trata-se, portanto, de um período marcado pela “Reformulação, readequação e interação: três conceitos que fazem da Antiguidade Tardia um período histórico único, autônomo e dotado de identidade própria” (FRIGHETTO, 2009, p. 121).

A Antiguidade Tardia, segundo o autor, é também um período de intensas interações entre romanos e outros povos bárbaros. Tal interação foi marcada não somente por guerras e sobreposições culturais e militares, mas muito mais por um intercâmbio constante de pessoas, políticas, culturas, entre outros. Deste modo, não se observa, durante a Antiguidade Tardia, uma decadência cultural e social do Império Romano necessariamente, mas muito mais a formação paulatina de uma nova civilização romano-bárbara.

No âmbito religioso, Frighetto aponta para a crescente importância da religião – pagã, e depois também cristã – como base ideológica para a legitimação dos poderes imperiais e régios, principalmente depois dos éditos de liberdade religiosa no início do Século IV.

Apesar de a crise do Império Romano tradicionalmente ser relacionada ao terceiro século, é já no século II d.C. que se pode notar, de um ponto de vista político-institucional, o início de uma estrutura de longa duração histórica que permaneceria até o século VIII e caracterizaria toda a Antiguidade Tardia: a constante divisão da autoridade imperial através de diferentes maneiras: burocratização, reformulação ideológica, da formação de diarquias, tetrarquias, divisão entre impérios ocidental e oriental, ou até mesmo pela concessão de autoridade a reis e chefes militares bárbaros.

O Capítulo I, intitulado Os Antecedentes: O Principado e os primeiros sinais de crise político-institucional no mundo romano, aborda o “Período de Ouro” do Império Romano (98-198), relatando sobre os antecedentes da Crise mencionada, a Crise em si e suas conseqüências. Nesse capítulo, Frighetto aponta para várias medidas que foram sendo tomadas durante o período em questão que deram início aos grandes problemas a serem resolvidos no século III: O crescente número de incursões bárbaras que obrigaram as legiões a se tornarem fixas e começarem a praticar o recrutamento local, permitindo, desse modo, a inserção de bárbaros nas legiões romanas; o crescimento do poder das províncias, que passariam a reivindicar maiores poderes e participar do Senado, causando certa instabilidade política; e crescimento da burocratização para um maior controle de todo o território, o que inevitavelmente acarretou em um aumento de impostos e do número de cargos administrativos, ao mesmo tempo em que os príncipes procuravam concentrar mais poderes em suas mãos, reduzindo a importância do Senado de modo sutil. Além do mais, o príncipe passava a exercer cada vez mais um poder de cunho militar, e com o tempo a eficiência de um príncipe começou a ser medida não somente por sua capacidade administrativa, mas também pela sua capacidade militar em conter os avanços bárbaros. Trajano quebrou com a sucessão imperial por meio da hereditariedade, o que deu início a um efeito cascata de instabilidades na sucessão, que culminariam na chamada “Anarquia Militar”, abordada no capítulo seguinte.

O Capítulo II, A Crise do Sistema Polis/Civitas, a regionalização e a fragmentação do poder político imperial no século III, inicia tratando da Dinastia dos Severos (193-235 d.C.) e depois da Anarquia Militar (235-284 d.C.). A Dinastia dos Severos foi marcada por um grande aumento na importância da aceitação do príncipe por parte das legiões, tanto que muitos benefícios – aumento de soldo, oportunidades de ingresso no Senado a partir do exército, recrutamento de bárbaros, dentre outros – foram concedidos aos exércitos durante esse período. Também durante o principado dos Severos se deram as primeiras divisões do poder imperial pela nomeação de mais de um Augusto – sendo um sênior e os outros juniores – numa tentativa de se manter uma presença imperial ativa em um território tão vasto. Também foi realizada uma extensão da cidadania romana, que passou a contemplar todos os homens e mulheres livres, para aumentar a arrecadação de impostos, necessária para a manutenção dos exércitos.

No entanto, insatisfações legionárias acabaram culminando na “Anarquia Militar”, período em que houve uma grande quantidade de usurpações, assassinatos de príncipes, aclamações por parte das legiões e instabilidade política no Império Romano: o príncipe que apresentasse debilidades militares era rapidamente eliminado e substituído. Dentre os muitos assassinatos e reposições de príncipes, os setores políticos e ideológicos seguiram se readequando, sendo que paulatinamente se observa uma sacralização definitiva da figura do príncipe, seguida de editos que obrigavam o culto imperial e a perseguição e confisco de bens dos que se recusavam a realizar tal culto. De um ponto de vista político, observa-se finalmente a tolerância da existência de usurpadores por parte do Augusto romano, diante de sua incapacidade de reconquistar territórios perdidos: atitude que depois culminaria na partilha definitiva e igualitária dos poderes entre mais de um Augusto, configurando a renovação imperial que viria para acabar com a “anarquia”.

No capítulo III, A Renouatio Imperii: Diarquia, Tetrarquia e a nova configuração do Império Romano Tardio, Frighetto explica que a “renovação”, num ponto de vista político e ideológico, se baseava sempre em tradições antigas, já que “(…) cada uma delas [as renovações] tinha a intenção de recuperar a grandeza do passado imperial romano, travestindo-o com o manto de “novas” interpretações políticas e ideológicas” (FRIGHETTO, 2012, p. 93). Num primeiro momento (entre 286 e 293), observa-se a divisão do poder imperial em dois (diarquia), sendo os dois imperadores escolhidos de acordo com sua capacidade militar, exercendo lideranças regionais. Num segundo momento (após 293), um imperador secundário (César) é escolhido por cada imperador principal, formando a tetrarquia. Com a formação da tetrarquia, a divisão entre Ocidente e Oriente romano ocorre de modo irreversível, e o Império Romano adota uma atitude conservadora, e não mais conquistadora, em relação aos seus territórios. O cristianismo, em 313, com a promulgação do Édito de Milão, passa a ganhar nova projeção e se torna uma ferramenta política unificadora: no ano de 380 foi promulgado o Édito de Tessalônica, que definia o cristianismo católico como verdadeiro e a obrigatoriedade de submissão de todas as igrejas a tal, e depois em 392, outro Édito de Milão foi promulgado, que proibia cultos pagãos.

No Capítulo IV, intitulado Da Barbárie à Civilização: os bárbaros e a sua integração no mundo imperial romano (séculos IV-VIII), Frighetto aborda a tomada dos territórios ocidentais pelos reinos bárbaros, e explica sucintamente os eventos que juntos resultaram na configuração política que caracterizaria o início da Idade Média. Tais reinos, já desde fins do século IV, apresentavam maior organização política, militar e diplomática, e a partir do século V passarão a interagir com o Império Romano de modo muito mais colaborativo, em oposição ao antagonismo intenso de séculos anteriores. Alguns reinos passarão, no período abordado no capítulo, a adquirir autonomia em relação à autoridade imperial, como os Visigodos, estabelecendo-se em Tolosa (atual Toulouse, França).

A reformulação religiosa passou a legitimar o agora Príncipe Cristão Sacratíssimo, e tal legitimação foi depois estendida aos reis bárbaros que viriam a aparecer e adotar o cristianismo como porta de entrada para as boas relações com a autoridade Imperial. O Papa, principal bispo católico de Roma, já surge como uma autoridade; não ainda com todo o prestígio que viria a ter em séculos futuros, mas já importante do ponto de vista político e ideológico: um bom exemplo disso foi a participação do Papa Leão I nas negociações de paz com Átila, o Huno, em 452.

Os Ostrogodos se instalaram na Itália após a desaparição da figura imperial o ocidente, em 476. Depois, foram derrotados com dificuldade pelo Oriente Romano, que se encontrou, após a vitória, em uma frágil situação econômica, uma vez que sua vitória, veio a custo de muitas mortes e recursos, abrindo espaço para que os Lombardos, que haviam lutado ao lado do Oriente Romano, se instalasse na Itália e fundasse uma série de ducados regionais.

Os Francos, antes fragmentados em várias tribos, elegeram um rei em 481, que procuraria unificar seu povo e se converteria ao catolicismo. Visto como um concorrente dos Visigodos pelo Império Romano Oriental, os Francos rapidamente fizeram aliança com o Oriente Romano, e participaram de diversas campanhas ao lado do Oriente, como na derrota dos Lombardos, em 756. Nos séculos VII e VIII os Francos obtiveram grande projeção e deram início a um processo de restauração da autoridade imperial do Ocidente, só que desta vez, cristão.

Como algumas considerações finais sobre o livro de Frighetto, pode-se dizer que o mesmo é sem dúvida um ótimo ponto de partida para o estudo da Antiguidade Tardia: contém mapas políticos dos principais momentos históricos, um índice onomástico e glossário, para que o leitor esteja ciente dos conceitos principais. O fim do livro conta também com uma tábua cronológica, para que o leitor se situe com mais facilidade, a partir dos principais eventos, num período complexo e muitas vezes confuso que é a Antiguidade Tardia. O livro também possui um anexo de extratos de fontes manuscritas, que permitem ao leitor ter uma noção dos tipos de documentos que eram escritos, a partir dos quais os estudos sobre a Antiguidade Tardia são feitos.

Vale relembrar que a Antiguidade Tardia é um período extremamente complexo, amplo, e aborda uma territorialidade imensa, e que o livro de Frighetto tem seu foco em questões políticas, institucionais e ideológicas; é de se esperar, portanto, que muitas questões de cunho social não estejam presentes no livro. No entanto, Frighetto deixa uma boa lista de referências que podem ser consultadas para o leitor interessado em expandir seu conhecimento para tais questões. Ademais, levando em conta as dificuldades do tema abordado, seria impossível que um livro só contivesse tanta informação. Tal complexidade presente na Antiguidade Tardia, no entanto, é o que cativa alguns historiadores, que, como Frighetto, percebem neste período único oportunidades de pesquisa intrigantes e virtualmente infinitas.

Notas

2. Mais informações sobre o autor disponíveis em seu currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/4817986767304134 .

Josip Horus Giunta Osipi – Estudante de História – Licenciatura e Bacharelado na UFPR.


FRIGHETTO, Renan. A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII). Curitiba: Juruá, 2012. Resenha de: OSIPI, Josip Horus Giunta. Cadernos de Clio. Curitiba, v.5, p.327-334, 2014. Acessar publicação original [DR]

Poder e religião na Antiguidade Tardia / Dimensões / 2010

Ao longo das duas últimas décadas, tem-se observado, nos meios acadêmicos brasileiros, um notável aumento do interesse pelos estudos de Antiguidade e Idade Média, como se pode constatar por intermédio da quantidade crescente de artigos, teses e dissertações dedicados à reflexão científica de objetos atinentes às sociedades antigas e medievais, com destaque para as civilizações grega e latina, embora o foco já esteja se deslocando para outras realidades menos estudadas entre nós, como é o caso da egípcia, mesopotâmica, celta, judaica e bizantina. Dentre as razões desse “despertar”, uma das mais importantes é a atuação aguerrida de um conjunto de pesquisadores oriundos de diversas áreas, a exemplo da História, Arqueologia, Letras, Filosofia e Pedagogia, que tem levado a cabo – e com sucesso, poderíamos acrescentar – a tarefa de formar profissionais especializados em uma modalidade de História que, se não espelha a história nacional, posto que a terra brasilis nunca fez parte do Império Romano ou se organizou em termos feudais, como sugeriram, no passado, alguns autores, nem por isso deixa de ser relevante ou significativa pelo simples fato de nos permitir ter acesso a experiências milenares que, embora constituam matrizes quase arquetípicas da História do Ocidente, com a qual muitas vezes gostamos de ser identificados, são diferentes o bastante dos usos e costumes contemporâneos para nos afrontar, confrontar e desinstalar, obrigando-nos a reconhecer que, conforme propôs certa feita Paul Veyne com a sua habitual perspicácia, o estudo da História não implica, a princípio, uma operação de reconhecimento do Eu, pois se assim o fosse bastaria escrevermos a nossa própria biografia para nos apoderarmos do código que rege o presente, o passado e o futuro. Pelo contrário, a História é antes a busca por aquilo que não somos, pela diferença que torna tão interessante as investigações que tem ao mesmo tempo os homens como os seus agentes e pacientes. Leia Mais