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El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen | Margarita Torremocha Hernández e Alberto Corada Alonso
O desenvolvimento do campo de estudos de história das mulheres desde pelo menos a década de 1970, inserido em um contexto de herança política de movimentos feministas (Tilly, 1994), é já bastante conhecido. Ao longo das décadas foram empreendidos esforços para compreender a complexidade histórica no que tange às personagens femininas afastando-se de conceitos que apenas as descrevam enquanto objeto de análise, aderindo a categorias que auxiliam a posição destas enquanto voz principal da apreciação científica (Scott, 1990). Neste sentido, desenvolveram-se, coligados à história das mulheres, os estudos sobre a história das relações de gênero, mantendo ênfase no caráter social e cultural das distinções baseadas no sexo.
No interior desse cenário, há alguns anos os historiadores, de ambos os sexos, têm cada vez mais direcionado interesses em desvendar questões e problemáticas que englobam mulheres, gênero e justiça em várias temporalidades e espacialidades. Os esforços têm resultado em importantes pesquisas que demonstram a decisiva presença feminina, bem como suas vicissitudes, em espaços que, frente ao silêncio historiográfico e de algumas fontes (Perrot, 2008), estariam destinados a atuação masculina.
O grupo de pesquisadores reunido por Margarita Torremocha Hernández1 tem prestado grandes contribuições para a área, sempre com pesquisas de excelência que trazem em seu bojo significativas descobertas. Configura-se em um centro irradiador de importantes trabalhos, nomeadamente sobre o Antigo Regime na Península Ibérica, colaborando com temas de história social, história da cultura jurídica e história do direito.2 A presente obra resenhada, El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen, configura-se em um dos resultados do projeto de investigação no qual a equipe trabalhou: Justicia, Sociedad y Mujer en la Edad Moderna a la Contemporaneidad: Castilla, Portugal y Italia. O livro reúne nove investigações de grande envergadura que discutem temáticas acerca do delito de estupro nos espaços correspondentes à Espanha e Portugal ao longo do Período Moderno (compreendendo, também, importantes reflexões acerca do medievo) e à Itália na contemporaneidade.
As pesquisas abarcam fontes documentais variadas para análise do delito e das personagens nos casos envolvidas, como legislação, informes e doutrina jurídicos, biografias, registros notariais, literatura, cinema, teatro, procedimentos judiciais advindos de jurisdição eclesiástica, régia e privada.3 Apresentam uma série de importantes análises acerca do pensamento jurídico; das mudanças legislativas; das cotidianidades; da cultura; das relações comunitárias; sociais; familiares; políticas e institucionais a respeito não somente do delito de estupro, mas também da complexidade englobada pela lógica do matrimônio -tanto pela perspectiva religiosa (configurando-se em uma tônica em várias das relações analisadas em determinadas pesquisas) quanto pelo manejo das questões morais e de honra.
Neste sentido, na apresentação da obra, Margarita Torremocha expõe, especificamente em referência aos processos judiciais, a dimensão que podem oferecer para a visualização dessa complexidade: são eles que deixam entrever em que medida a religião, a honra e a linhagem interferem na ponderação de um magistrado ao mesmo tempo que carregam elementos que discorrem sobre os feitos, os sentimentos, as relações sociais e as cotidianidades.
Ainda em sede destas fontes, explica a autora que o estupro usualmente fora tratado em conjunto (ou confusão) com violação, mancebia, tratos ilícitos e rapto. Assim, clarifica que o delito, segundo a concepção jurídica do Antigo Regime, era delimitado por duas características principais: o engano e a condição de honrada ou de “donzela honesta” da mulher. Ou seja, para a configuração do estupro perante as instituições não era suficiente a violação contra a mulher, mas sim contra a sua virgindade ou a sua honra. Pode-se afirmar, inclusive, que antes de configurar-se um crime contra a integridade física era, principalmente, um crime contra a honestidade. Consequentemente, a discussão processual tocava nomeadamente à perda da virgindade, ao descumprimento à castidade e ao ferimento da honra, situação que disseminava a mácula à família da vítima e até mesmo à comunidade em que vivia.
Exposta esta definição, essencial à compreensão das investigações, passa-se à apresentação dos artigos presentes na obra. O primeiro trabalho4 traz à tona um panorama mais geral, no sentido diacrônico, acerca da tratativa do crime em comparação às pesquisas que seguem na obra. O autor Félix Martínez Llorente possui como enfoque o processo de conceitualização jurídica do delito através da análise legislativa de impacto na tradição europeia. Por meiode uma perspectiva de longa duração, abrange as permanências e as rupturas nas compreensões do delito perpassando pelas disposições do direito romano clássico, do direito visigodo, do direito canônico, da tradição do iuscommune, do direito castelhano do período moderno até os fins do século XVIII.
A conclusão consta expressa já nas primeiras linhas do artigo: o desenvolvimento da definição do estupro foi relativamente tardio sobretudo por ser uma prática que, na apreensão social, transita nas searas do pecado, da moral e do crime. A regulamentação legislativa fora iniciada no direito romano a partir da figura stuprum na lei contrária ao adultério em 18 a.C. no intento de proteção da mulher em razão das justas núpcias e o requisito do engano como diferenciador fora inserido no século III. Este permanecera – não sem diferentes nuances – até transformar-se no requisito principal no Antigo Regime, sobretudo nas experiências dos reinos espanhóis. Em fins do XVIII, salienta o autor, o ajuizamento de causas contra o estupro entrou em decadência, movimento este reforçado pela Real Cédula de 30 de outubro de 1796, que ordenou que não se prendessem mais os acusados. Esse estudo é uma apresentação ampla do panorama histórico a respeito do delito na seara legislativa e seu posicionamento em primeiro no interior da obra ora resenhada auxilia ao leitor na compreensão das investigações que estão na sequência.
A segunda pesquisa porta um cunho quantitativo, e igualmente informativo, como contexto dos trabalhos a seguir, através do qual os autores Alberto Corada Alonso e Diego Quijada Álamo realizam a abordagem do delito no Reino de Castela a partir dos processos mantidos no Arquivo da Real Chancillería de Valladolid. Intitulando-se El estupro en el Antiguo Régimen: una visión cuantitativa desde el Archivo de la Real Chancillería de Valladolid, o trabalho reúne mostra original e total de 2.035 casos ocorridos no espaço castelhano a partir de 1480 até os anos 1830 e a análise dos dados é realizada por intermédio de classificações distintas: através da temporalidade, da espacialidade, da competência jurisdicional, da separação entre momentos processuais, do delito (somente estupro e estupro com outra causa), da mulher estuprada (segundo seu estado civil e segundo seu ofício), do estuprador (segundo o grau de parentesco ou relação com a estuprada, dados sobre o ofício e sobre o estado civil) e dos demandantes do processo (se mantinham parentesco com relação à vítima, qual era a profissão do demandante e, por derradeiro, dados a respeito da duração do pleito. Tendo em vista a amplitude do estudo, as conclusões possíveis são, pois, várias. Contudo, demandam o relacionamento dos dados coligidos com pesquisas que adotem o viés qualitativo, ressalva esta que os autores expressam ao final do artigo.
Após esses dois trabalhos panorâmicos, Margarita Torremocha Hernández foca-se na compreensão do pensamento jurídico analisando a dimensão dos discursos como influenciadores do âmbito jurídico processual na definição da identidade do gênero feminino no terceiro capítulo da obra.5 A pesquisa objetivou conhecer a mentalidade de Meléndez Valdés a respeito do delito de estupro através de uma visão e um aporte concretos: um informe solicitado à Real Chancelaria de Valladolid em novembro de 1795, requerendo a uniformidade do tratamento processual da matéria, assumido pelo juiz Juan Meléndez Valdés enquanto membro do Tribunal em março de 1796. Após 11 tópicos de argumentações, o jurista concluiu que o foro não deveria dar conhecimento a esses casos, forçando as mulheres a cuidarem de si mesmas e a guardarem sua honestidade. Em seguida, foi publicada a Cédula Real de 30 de outubro de 1796 – que, segundo Llorente, fora uma das razões da decadência de denúncias de estupro no XVIII –, acatando dois dos argumentos de Valdés: a redução do aprisionamento e o estabelecimento do limite de idade de 25 anos da vítima como requisito de enquadramento no delito. Em que pese o informe não tenha impactado a ordem jurídica espanhola de fins do século XVIII a ponto de realizar amplas reformas imediatas, Torremocha salienta que representa um elemento chave por ter sido um dos juristas preocupados em delimitar o crime de estupro e estabelecer um marco legislativo novo. Assim, sua perspectiva, e consequentemente seu discurso, absorve muitas das visões circulantes no período, sendo representativa das mudanças que ocorrem na cultura jurídica de fins do Antigo Regime.
A título de exemplo, é importante citar a defesa de Valdés à limitação embasada na faixa etária da mulher estuprada. A discussão a respeito das idades dos envolvidos e seus desdobramentos encontrava-se em circulação na Península Ibérica e em Portugal havia sido introduzida uma limitação já em 1603 pelas Ordenações Filipinas (Livro V, tít. XXIII, §2). De acordo com essa compilação, no tocante à prescrição para ingresso de querela, a determinação era que o ajuizamento deveria ocorrer dentro do período de um ano contado a partir da data em que se deixava de ter afeição entre as pessoas envolvidas no delito, sendo que este prazo somente poderia ser elastecido caso a vítima fosse menor de 25 anos ou comprovasse impedimento de denunciação em período anterior.
Na sequência da obra ora resenhada, o trabalho de autoria de José Pablo Blanco Carrasco6 traz à tona uma perspectiva metodológica micro, realizando um estudo mais aproximado e qualitativo de casos selecionados. O foco centra-se na tratativa do delito por tribunais eclesiásticos, bem como a relação das personagens envolvidas no crime com a comunidade através do mercado matrimonial, a partir dos processos coletados no Arquivo Diocesano de Sigüenza e no Arquivo Diocesano de Ciudad Rodrigo.
Ambientado pelos cenários apresentados nos artigos precedentes, tanto no que tange à diacronia legislativa quanto na numeração quantitativa e na inserção da atmosfera mental apresentada, o autor verticaliza a análise no interior das práticas e compreensões do supracitado mercado apontando conclusões na seara da história social. Assim, afirma que a regra imperante nas dinâmicas estudadas era a semelhança ou igualdade entre as famílias envolvidas7 e a ocorrência de um caso de estupro era um fator demolidor da integridade da estima social da família. Ou seja, a prática era enfrentada como um delito político e, no interior dos casos trazidos à luz por Carrasco, a projeção comunitária acarretava a quebra das chances de casamento das mulheres pertencentes à mesma família. Um elemento que pode servir de meio para uma explicação à extensão da mácula era o fato de que, no âmbito das relações pré-nupciais, a ocorrência de um estupro dava ensejo ao debate acerca do consentimento não forçado de uma mulher, mesmo que houvesse violência moral.
Nesse ponto, as questões supracitadas nos trabalhos precedentes a respeito da conceitualização do delito, a partir da ocorrência do engano na experiência espanhola, adquire reproduções no social. Isso é, o engano poderia ser visto como violência moral, porém no seu interior ainda havia o consentimento da mulher estuprada na ocorrência do delito. A existência deste consentimento significava que a mulher teria o direito a utilizar livremente de sua vontade neste terreno, cedendo à sedução quando lhe aprouvesse. Em agindo uma mulher da família, desse modo, vinculavam-se a este os comportamentos das demais, gerando um amplo impacto social da ocorrência do delito nas dinâmicas comunitárias com relação à família.
Isabel Drumond Braga, autora da quinta investigação constante da obra8, traz ao estudo a contribuição acerca de Portugal moderno e salienta uma das características mais importantes acerca da justiça portuguesa do Antigo Regime: a dimensão da misericórdia, da clemência e do perdão. Para o vislumbre dessa nuance, as fontes principais da investigação são as cartas de perdão, redigidas por sujeitos condenados pelos magistrados (mas que receberam o perdão das suas vítimas) requerendo exclusão (ou comutação) da aplicação da pena e encaminhadas à apreciação régia. Com a finalidade de aporte contextual, a autora realiza análise de excertos literários e da legislação portuguesa da época sobre o delito (com menções a determinadas normas vindas do medievo) vislumbrando a tratativa formal, suas permanências e descontinuidades no tempo e no espaço.
Assim, conclui que também em Portugal moderno o estupro correspondia a um delito grave, do foro moral, cuja proteção era do pudor e a defesa era da virgindade. As diferentes tonalidades das aplicações dos procedimentos e da circulação de mentalidades, além da análise social, são ensejadas pelo estudo das cartas de perdão, considerando que possibilitam a reconstrução de vários cenários crimes de violação. Ao mesmo tempo em que trazem descrições de casos em que mulheres foram forçadas violentamente, há também alusão a seduções enganosas e falsas promessas de casamento – situações estas que podem vir a camuflar casos de violação. Processados os casos, diversas razões faziam com que, na prática, os ofensores restassem impunes: para além dos pedidos de perdão obtidos, a autora menciona a cominação de pena mais branda que a ordenada pela legislação (o que não significava a execução também dessa pena), a ausência de julgamento no caminhar processual e a própria disparidade entre o número de ocorrências e a institucionalização de denúncias e queixas. Nessa esteira, conclui que a violação era, em maior ou menor medida, efetivamente perseguida, porém o castigo não era uma prática eficaz.
Entre os pontos abordados, é possível relacionaras experiências apresentadas em diferentes espacialidades, mesmo que os trabalhos demonstrem uma diferença entre Espanha e Portugal no que tange à existência do engano. As fontes sugerem que nas ocorrências do delito nos espaços espanhóis a sedução era um requisito de certa forma mais taxativo que nas práticas portuguesas. Isso é, os elementos que o engano envolvia eram, certamente, tomados em conta no momento da decisão em sede das cartas de perdão, todavia não há a sugestão de que foram estritamente necessários no momento da condenação dos sujeitos pelo crime, situação diferente daquelas abordadas nas práticas castelhanas. Nestas experiências, o engano aparentemente adquiria vestes de instituto jurídico enquanto requisito necessário para a configuração do delito.
Enfocando os estudos na espacialidade aragonesa, na sexta investigação9 Encarna Jaque Martínez realiza um aporte geral focado nas práticas institucionais sobre a tratativa acerca do delito. A autora perpassa o estudo pelas legislações aragonesas medieval e moderna no intuito de contextualizar os casos de sua fonte principal: os processos por estupro mantidos no Arquivo Diocesano de Zaragoza e no Arquivo Histórico Provincial de Zaragoza. A análise desta documentação é realizada a partir da classificação entre estupros puros ou simples (em que há a violação de “donzela”), aqueles em que o tipo criminal se mescla com outros crimes (casos em que os argumentos jurídicos utilizados na prática dos foros contribuíam para a ausência de clarificação a respeito do estupro) e aqueles conseguidos através de palavra de casamento.
A autora expõe que aparentemente o tribunal secular apresentava maior tolerância à conduta masculina que à feminina, enquanto o tribunal eclesiástico mantinha procedimentos mais respeitosos e sensíveis à mulher, sendo mais favorável ao matrimônio. No primeiro, a responsabilização pela ocorrência do crime era majoritariamente depositada sobre a mulher e sua desonestidade, argumento básico que ensejava a exclusão de pena ao homem através da compreensão de que a negligência feminina não poderia ocasionar punição masculina. No segundo, havia atenção à frequente desigualdade social entre as partes, motivo pelo qual, segundo a autora, as sentenças findavam por ser mais abertas à possibilidade do matrimônio ou do dote.
Os apontamentos específicos acerca do ramo eclesiástico vão de encontro com os estudos de Daniel Baldellou Monclús e José Antonio Salar Auséns no sétimo capítulo10, em que enfocam especificamente os processos de tribunais eclesiásticos aragoneses. Ao longo do texto apresentam semelhanças e diferenças entre os tratamentos secular e eclesiástico, afirmando, sumariamente, que a visão eclesiástica era constituída a partir do matrimônio (por esta razão algumas vezes eram mesclados com casos de esponsais não cumpridos) enquanto que a tratativa civil mantinha maior atenção à honra e ao patrimônio (a maioria dos casos levados a estes tribunais estavam frequentemente relacionados a violações e agressões). Analisando as sentenças dos casos selecionados, os autores afirmam que a ponderação mantinha em consideração o relacionamento entre o homem e a mulher envolvidos – se havia contatos prolongados no tempo, se fora realizada uma promessa de casamento, se houve coação ou violação –, o que resultava na possibilidade de pagamento de dote compensatório. Às mulheres vitimadas, a ocorrência de um estupro era um fator de quebra de posição social, e receber a sentença eclesiástica favorável a si significava alguma recuperação no interior do tecido social. Assim, afirmam os autores, os interesses se cruzavam: de um lado o desejo de controle de uniões constituídas de modo alheio à ordem social e, de outro, o desejo de restauração da honra, após uma situação de violação e humilhação em que socialmente a culpabilização recaía sobre a mulher. Os tribunais eclesiásticos, concluem, representavam um importante recurso de resposta a estas mulheres.
A oitava investigação11, de autoria de Tomás A. Mantecón Movellán, é realizada a partir da análise de experiências e trajetórias particulares em sociedades católicas do Mediterrâneo, tendo os processos judiciais como documentação histórica principal. A classificação da investigação segue a divisão entre subcapítulos12, realizada a partir da conexão entre os casos encontrados nos procedimentos judiciais. A partir destas análises, o autor sublinha que os processos demonstram as tolerâncias sociais, institucionais e governativas, a assimetria dos gêneros nos impulsos sexuais e de poder e o impacto das diferentes culturas ao longo do espaço Mediterrâneo. Conclui, assim, com apontamentos para a seara social a partir das evidências da documentação sobre as capacidades dos sujeitos no interior de seus cenários sociais particulares, para negociação e renegociação de relações sexuais, conjugais e sociais. O estupro, sendo considerado em situações complexas, era um delito que se encontrava em amplo relacionamento com as redes de poder articuladas, e este apontamento conecta-se de modo direto com as citadas conclusões de José Pablo Blanco Carrasco acerca do mercado matrimonial na Idade Moderna. Isto é, a ocorrência do crime fazia parte de um grande manejo de situações sociais e comunitárias, englobando a noção de representar um delito político.
A última investigação constante desta obra altera o foco da Península Ibérica para a Itálica e ambienta-se na história contemporânea. Daniela Novargese, autora do artigoLa giustizia era altrettanto violenta degli stupratori. Donne e violenzasessuale in Italia, un lungo, tormentatopercorso normativo, conduz as análises a partir de casos, de manifestações culturais e de movimentos políticos ocorridos na Itália entre os anos 1965 e 1996 que detiveram ampla repercussão e que em maior ou menor medida geraram impacto na sociedade italiana a ponto de culminar nas alterações legislativas ocorridas no Código Penal Italiano em 1996. Inicia discorrendo sobre os casos de Franca Viola13, em 1965, e de Rosaria Lopez e Donatella Calosanti14, em 1975, pela atenção nacional que detiveram. Em razão do impacto provocado, assumiram contornos paradigmáticos e simbólicos no imaginário coletivo social, abriram espaços de discussão acerca do crime de estupro bem como ensejaram o início de proposições de reforma legislativa em 1977 pela deputada Angela Maria Bottari. Estas proposições, acrescidas de manifestações culturais e políticas de mulheres nas décadas de 70, 80 e 90, foram importantes para que em 1996 fossem realizadas algumas reformas no texto legislativo, incluída a alteração de título do crime de estupro: de Delitos contra a moralidade pública e o bom costume para Dos delitos contra a pessoa. Embora não completamente satisfatória, a alteração foi politicamente necessária no sentido do alcance do consenso. A inserção do crime em outro título, conclui a autora, representou muito mais do que simplesmente alteração de título no interior do código penal. Foi a alteração do próprio bem jurídico tutelado: antes era a moral, a partir de 1996 passou a ser a pessoa ofendida, fazendo com que a liberdade sexual constituísse um corolário insuprimível da pessoa individual.
O título da presente obra, El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen, por amplo, abarca bem o conteúdo da maior parte dos artigos nela coligidos à exceção da derradeira investigação por não se aproximar absolutamente às questões de Antigo Regime. No tocante ao esforço das pesquisas em abordar as temáticas relacionadas ao “delito”, “mulher” e “sociedade”, acredita-se que logrem êxito tendo em vista que todas possuem um aporte muito rico de informações e análises destes três elementos a partir de diferentes perspectivas metodológicas. O equilíbrio aparenta pender mais ou menos para o delito em razão de abordagens exclusivamente legislativas em determinadas passagens de alguns estudos, porém em nada prejudica as conclusões e as conexões com o social. A respeito dos elementos “mulher” e “sociedade” é importante mencionar que a plenitude da abordagem desenvolvida pelos pesquisadores trabalha com a categoria de gênero, tendo em vista a consideração, a todo tempo, das relações entre homens e mulheres – ensejada até mesmo em decorrência da própria definição do delito nos períodos analisados.
Por fim, cabe salientar que a obra representa valiosa produção dos investigadores envolvidos, trazendo em seu bojo importantíssimas reflexões e construções do conhecimento à história das relações de gênero; à história das mulheres; à história social; à história cultural; à história da cultura jurídica e à história do direito. Demonstram as complexidades englobadas pelo delito de estupro aos níveis social, institucional e cultural, evidenciando as profundidades das questões de gênero e proporcionando ao leitor o conhecimento de uma documentação rica, variada e relevante.
Notas
1 Doutora em História pela Universidade de Valladolid (1989), professora vinculada ao Departamento de Historia Moderna, Contemporánea, América, Periodismo, Medios de Comunicación Audiovisual y Publicidad e investigadora das linhas de pesquisa em história das universidades hispânicas, história social, história social da delinquência, história da festa pública e história da mulher (Sítio eletrônico do Instituto Universitario de Historia SIMANCAS, Universidad de Valladolid [http://www3.uva.es/simancas/Master_Europeo/profesorado/torremocha_hernandez.htm– acesso em: abril 2019]).
2 Os trabalhos da equipe desenvolvem-se oficialmente desde 2008 (Hernández Torremocha & Braga, 2015: 7) em sede de projetos de pesquisa financiados pelo Ministerio de Economía y Competitividad, em razão do apoio do Proyectos de Investigación Fundamental, vinculado ao IV Programa Nacional de Investigación Científica, Desarrollo y Innovación Tecnológica. Os projetos de investigação desenvolvidos denominam-seJusticia y Mujer. Los Tribunales Penales en la definición de una identidad de género. Castilla y Portugal (1550-1800) – em atividade entre 2008 a 2011, 2013 a 2016 –e Justicia, Sociedad y Mujer en la Edad Moderna a la Contemporaneidad: Castilla, Portugal y Italia – em atividade de 2017 a 2020. Vinculados aos quais já existem duas publicações: em 2015, As mulheres perante os Tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica, sob coordenação de Margarita Torremocha e de Isabel Drumond Braga, e, em 2017, La mujer en la balanza de la justicia (Castilla y Portugal, siglos XVII y XVIII), sob coordenação de Margarita Torremocha e de Alberto Corada Alonso.
3 Insta salientar que seis das nove investigações possuem procedimentos judiciais enquanto documentação história principal.
4 Denomina-se Una notación histórica sobre el delito de estupro hasta la codificación penal.
5 Intitulado El estupro en el Informe jurídico de Meléndez Valdés. Una visión ilustrada de un delito contra el honor familiar (1796).
6 Intitulado “Adónde irán los secretos?” Reflexiones en torno al estupro y el mercado matrimonial en la Edad Moderna.
7 Para que isso pudesse ser auferido, eram observados a honra provada do grupo familiar (representando a honestidade da mulher que vai contrair o casamento), o peso público das famílias, medido normalmente pela participação em ofícios de república, o respeito à justiça, o pertencimento a grupos sociais de boa estima e, cada vez mais com maior peso mas não de modo conclusivo, a renda e as possessões materiais, que podem melhorar as deficiências da casa mas sem diluí-las completamente.
8 Denominada Punir a Violação, perdoar os Violadores: entre a justiça e a clemência no Portugal Moderno.
9 Denominada “Y sobre todo pido justicia”: el delito de estupro en Aragón (siglos XVI y XVII).
10 Intitulado Culpable hasta que se demuestre lo contrario: el estupro ante los tribunales eclesiásticos de Aragón en el siglo XVIII.
11 Denominada Estupro, sexualidad e identidad en sociedades católicas del Mediterráneo durante el Antiguo Régimen,
12 Quais sejam, o estupro e maus usos da promessa matrimonial, evidenciando as possibilidades de estabelecimento de algum tipo de relação entre os personagens envolvidos com ou sem um expresso pacto de ajuda mútua; o poder e a pressão social que permeiam muitos casos de estupro, sublinhando as negociações entre as partes em sede processual bem como o diálogo com as instituições judiciais, os familiares e os entornos sociais; por derradeiro, a mobilidade geográfica, os usos da sexualidade e do matrimônio como meios de empreender rupturas e novas relações em diferentes espacialidades.
13 Franca Viola foi raptada e estuprada pelo ex namorado em 1965, momento em que a existência de matrimônio excluía a possibilidade de o cônjuge ser enquadrado no crime de estupro e em que existiam muitos casos de rapto embasado em sedução, solucionado com núpcias reparadoras. Franca Viola negou os instrumentos legislativos vigentes colocados à disposição na busca de tutelar a honra feminina.
14 Rosaria Lopez e Donatella Calosanti foram sequestradas e estupradas por três homens. Rosaria Lopez perdeu a vida em decorrência da violência sofrida. Donatella Calosanti conseguiu livrar-se e acusou, com muita dificuldade, os violentadores através de um processo decorrido entre 30 de junho e 29 de julho de 1976.
Referências
PERROT, Michelle, Minha história das mulheres. São Paulo, Contexto, 2008.
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Livro V. 14ª ed. (Recompiladas por Candido Mendes de Almeida segundo a primeira de 1603 e a nona de Coimbra de 1821). Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, Faculdade de Educação da UFRGS, v. 16, n. 2, jul./dez. 1990, pp.5-22.
TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. cadernos pagu (3), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1994, pp.29-62.
TORREMOCHA HERNÁNDEZ, Margarita & ALONSO, Alberto Corada. La mujer en la balanza de la justicia (Castilla y Portugal, siglos XVII y XVIII). Valladolid, Castilla Ediciones, Colección Historia, 2017.
TORREMOCHA HERNÁNDEZ, Margarita & BRAGA, Isabel Drumond. As mulheres perante os Tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015.
Resenhista
Vanessa Caroline Massuchetto – Doutora em História do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.vanessa.massuchetto@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0390-7890
Referências desta Resenha
HERNÁNDEZ, Margarita Torremocha; ALONSO, Alberto Corada. El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen. Valladolid: Ediciones Universidad de Valladolid, 2018. Resenha de: MASSUCHETTO, Vanessa Caroline. História, delito e relações de gênero: um panorama sobre o delito de estupro na Europa. Cadernos Pagu. Campinas, n.61, 2021. Acessar publicação original [DR]
Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819) | Fernanda Pinheiro Domingos
Desde a década de 1980, o estudo das chamadas “ações de liberdade” se consolidou na historiografia da escravidão brasileira. Muitos foram os trabalhos publicados sobre a luta judicial pela liberdade e também foram recorrentes estudos sobre crime, família escrava, tráfico e outras questões que se valeram desses processos judiciais como fontes fundamentais para a análise do cotidiano e da agência de escravos, libertos e pessoas livres de cor. O livro de Fernanda Domingos Pinheiro, Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819), insere-se nesse campo já consolidado da história da escravidão, apresentando inúmeras informações que ainda não eram de amplo conhecimento dos pesquisadores do campo e levantando novas questões e perspectivas de análise sobre as relações entre direito, liberdade e escravidão. O livro apresenta uma pesquisa rigorosa e minuciosa sobre os significados e a precarização da liberdade no Império português, baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais ajuizados em Mariana e Lisboa. Nessa análise, a autora não deixa de lado nem os argumentos e formas jurídicas específicas que constituíram esses documentos, nem o debate acerca da vivência das pessoas de cor em sociedades escravistas em um sentido mais amplo. Leia Mais
El ámbito doméstico en el Antiguo Régimen: de puertas adentro | Gloria Franco Rubio
Gloria Rubio certamente não é unanimidade entre seus estudantes na Universidad Complutense de Madrid, onde leciona desde 1980 e a partir de 2011 tornou-se catedrática de História Moderna. Facilmente se encontra na web comentários pouco elogiosos a seu estilo inusitado de conduzir as aulas, exigindo silêncio absoluto, proibindo o uso de smartphones, tablets ou notebooks pelos alunos, demandando trabalhos manuscritos, sendo pouco receptiva a questionamentos e comentários ou mesmo fornecendo um cabedal gigantesco de detalhes difíceis de serem absorvidos a cada encontro semanal. No entanto, para quem já a assistiu apresentando suas pesquisas numa conferência, palestra ou mesa-redonda, o relato de tais idiossincrasias por seus ex-alunos parece só agregar certa peculiaridade a uma historiadora que prima pela análise aprofundada e arguta de seus temas de interesse, esmiuçando fontes e desvendando as relações subjacentes à superfície daquilo que, usualmente, se fazia mais perceptível no cotidiano ao longo da Idade Moderna europeia.
O presente livro é resultado de dois extensos projetos de pesquisa coordenados pela docente madrilena entre 2000 e 2008, ambos tratando da vida cotidiana na Espanha da Modernidade e financiados pela UCM e pelo governo espanhol1. Se em Cultura y mentalidad en la Edad Moderna, livro que publicou ainda em 1998, a pretensão de Rubio era construir um amplo panorama sobre a Europa ocidental entre os séculos XV e XVIII, a partir de enfoques da História Cultural e da análise da Cultura Material, a virada do século XX para o XXI levou-a a voltar o seu olhar cada vez mais para o ambiente doméstico e para o papel das mulheres neste espaço. Para aqueles que já conhecem os escritos da autora, fica fácil perceber essa trajetória em diversos de seus artigos e capítulos2 ou mesmo nos números temáticos (RUBIO, 2002; RUBIO, 2015) que organizou nos Anejos dos Cuadernos de Historia Moderna, periódico especializado que dirige há vários anos. Leia Mais
Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII – DARNTON (FH)
DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 228p. Resenha de: PAIVA, Thayenne Roberta Nascimento. Música e oralidade na queda do Antigo Regime. Faces da História, Assis, v.4, n.2, p.249-255, jun./dez., 2017.
Em 2014, a Companhia das Letras publicou o mais recente livro do historiador norte-americano Robert Darnton, intitulado Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII, que teve publicação original em inglês, pela Cambridge, nos EUA, em 2010. Em linhas gerais, o livro destina-se a percorrer circuitos difusos de comunicação e intrigas políticas, que culminaram em uma série de poemas e canções populares sediciosas, e, portanto, de protesto e de cunho difamatório, na Paris de meados do século XVIII.
Robert Darnton é formado pela Universidade de Harvard e com Doutorado pela Universidade de Oxford. Assumiu a chefia da Biblioteca de Harvard em 2007, sendo responsável pela autorização e disponibilização na Internet de considerável produção intelectual da Universidade. Especialista em História do Livro e sobre a França do século XVIII, produziu obras renomadas, tais como O Iluminismo como negócio (1996), Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998), A questão dos livros: passado, presente e futuro (2010), O beijo de Lamourette – Mídia, cultura e revolução (1990) e O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (1984) ̶ sendo sua obra mais difundida ̶ , Os dentes falsos de George Washington (2003) e O diabo na água benta, ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão (2012), dentre outras.
O livro é estruturado em introdução, quinze capítulos curtos, conclusão. Além disso, possui um apêndice, aonde estão presentes as letras, em francês, dos seis poemas sediciosos que foram produzidos, contendo, inclusive, as referências bibliográficas de sua localização (anexo intitulado As canções e os poemas distribuídos pelos Catorze); a respeito do poema “Qu’une bâtarde de catin” (que inclusive intitula o capítulo desta seção), expõe-se como o texto sofreu modificações ao longo de sua difusão; relatos sobre a circulação do poema sedicioso, que gerou a queda do ministro francês Maurepas e de que modo o poema foi apresentado em algumas referências bibliográficas; no capítulo seguinte, intitulado O rastro dos Catorze, adquirimos conhecimento de um resumo geral da investigação; acerca de A popularidade das melodias, tem-se uma noção estatística sobre as chansonniers mais populares na década de 1740; e, o último capítulo deste apêndice, sob o título Um cabaré eletrônico: canções de rua de Paris, 1748-50. Cantadas por Hélène Delavault, apresenta um site de Harvard2 disponibilizando as melodias mais comuns na Paris do século XVIII e sobre as quais foram usadas para introduzir os versos sediciosos produzidos. Neste capítulo, ainda temos as letras em francês, e sua tradução, dos poemas musicados e outras, sobre a queda de Maurepas, Luis XV, dentre outras.
A respeito do conteúdo propriamente dito da obra, Poesia e polícia parte da observação e investigação de uma complexa rede de comunicação, a partir do estudo de caso sobre o episódio conhecido como “O caso dos Catorze” (L’Affaire des Quatorze), iniciado com a prisão do estudante de medicina, François Bonis, em 1749. O motivo foi ter recitado um poema não autorizado contra Luís XV, já que “Difamar o rei num poema que circulava abertamente era uma questão de Estado, um crime de lèse-majesté” (DARNTON, 2014, p. 13). À sua prisão seguiram-se outras, relacionadas ao poema, contabilizando, ao final, catorze prisões de homens pertencentes “às camadas médias da provinciana sociedade parisiense” (Idem, 2014, p. 22).
O historiador igualmente averigua a criação de cinco outros poemas populares seguidos a este e, especialmente, a introdução destes em chansonnieres, canções populares que disseminavam a opinião pública sobre a corte de Luís XV. Esses dois mecanismos de disseminação do descontentamento popular expõem sob quais modos circulavam a informação na sociedade francesa setentecista. Assim, a meta de Darnton é descobrir porque tais poemas se revelaram do interesse das autoridades de Paris e de Versailles, além do interesse pela rede de comunicação existente sobre os poemas.
Para tanto, Robert Darnton recria, por meio de uma metodologia de policial investigativo, algo da cultura oral que geralmente é difícil de ser apreendida pelo historiador, dada a ausência de suportes textuais que garantam sua preservação. Em outras palavras, debruça-se sobre as trocas de informação por meio da oralidade. Este é o ponto central deste livro, resgatando-o em investigações policiais, nos dossiês da época. O objetivo é “(…) seguir a trilha de seis poemas por Paris em 1749, à medida que eram declamados, memorizados, retrabalhados, cantados e rabiscados em papel (…) durante um período de crise política” (Idem, 2014, p. 8). Dada a empreitada, discute a ilusão de se supor que as sociedades pretéritas não se preocupavam ou não possuíam uma rede de comunicação. É anacrônico pensar em uma “sociedade da informação” somente pelo avanço tecnológico − o que Darnton critica, chamando de espécie de “falsa consciência acerca do passado” (Idem, 2014, p. 7).
Embora a composição do grupo dos Catorze fosse principalmente de escrivães e abades, grupo social letrado, muitas vezes a transmissão dos poemas acontecia pela memorização. Como aponta o historiador, o Caso dos Catorze pode ser visto como manifestação da opinião pública, mas de uma maneira mais prática, no recurso mnemônico e na circulação dos poemas, tomando-a como força motora da história.
Destes poemas, dois foram transmitidos pela música, na forma de melodias populares, as chansonniers – que funcionavam como uma espécie de troca oral. A composição destas melodias se exprimia com letras novas em melodias antigas.
Outro aspecto salientado foi a gama de informações produzidas pelo inspetor geral de polícia, Joseph d’Hémery3, que era profícuo e meticuloso em seus detalhamentos sobre as prisões. Destarte, Darnton destaca que todas as prisões efetuadas produziam dossiês com informações abundantes sobre os comentários políticos que apareciam nestes circuitos de comunicação.
Não obstante, tais informações jamais apontaram o autor dos poemas. Para o historiador dificilmente possa ter existido um autor principal, dado os acréscimos e modificações que as estrofes sofriam, sustentando a ideia de uma autoria coletiva, a partir da memorização daqueles que faziam, considerando-os igualmente autores dos poemas. Além disso, ainda que os poemas pudessem ser percorridos, pois muitos deles foram encontrados rabiscados em pedaços de papel no bolso daqueles que foram presos, a transmissão deles era incerta. Estes poemas desapareciam de modo aleatório e ressurgiam já modificados.
Não apenas as linhas de transmissão, mas também os próprios versos das canções eram substituídos por outros – criando uma espécie de “interferência subjetiva” (Idem, 2014, p. 73). Isto expunha um fácil sistema de improvisação com fins de entretenimento, dada sua ocorrência em “tavernas, bulevares e desembarcadores”, o que implica em uma circulação muito maior do que se imaginaria, pois, qualquer pessoa, nobre ou plebeu, poderia modifica-los dada uma “versificação que era tão simples”. Percebe-se, assim, que as melodias funcionavam como recurso mnemônico e os poemas eram multivocais.
Portanto, se não possui autoria precisa, também não existia uma direção ideológica específica, afirma Robert Darnton. Nos dossiês analisados não se encontra movimentos iniciais de revolução, no máximo “Um sopro de Iluminismo, sim; uma suspeita de hostilidade ideológica, seguramente; mas nada parecido com uma ameaça ao Estado” (Idem, 2014, p. 31). Tanto que, na exposição do interrogatório de um dos presos, Alexis Düjast, o interesse residia pelos aspectos poéticos e políticos dos poemas, isto é, “(…) nada semelhante a uma conjuração política” (Idem, 2014, p. 25). Então, Darnton, em boa parte dos capítulos iniciais, levanta a questão: “(…) Por que a polícia reagiu de forma tão enérgica?” (Idem, 2014, p. 28).
O historiador Robert Darnton admite, momentaneamente, a impossibilidade de resposta ao interesse tão forte da polícia sobre este caso, mais ainda por dois pontos por ele sublinhados: esta rede não teceu comunicação nem com a alta burguesia e nem com o povo. Mas o que Darnton ressalta e, que talvez ajude a clarear sobre a autoria dos poemas é que eles circulavam também na Corte, ou mesmo que tenham sido criados, inicialmente, em Versailles. Qual fato justificaria isso, então? Quando ocorreu a mudança no equilíbrio de poder, com a destituição de Jean-Frédéric Phélypeaux, o conde de Maurepas4 do cargo de ministro de Luís XV, sendo exilado em 24 de abril de 1749.
A causa principal foi a coleção de poemas sediciosos, além de canções de mesma natureza, que ele colecionava. Continham os mexericos e intrigas acerca da vida na corte. O próprio Maurepas encomendava os poemas para difamar as amantes do rei (além do próprio rei), como foi com Jeanne-Antoinette Poisson, a Madame Pompadour5.
O intuito do ministro era enfraquecer a influência dela sobre o rei. Não obteve sorte, pois Mme Pompadour influenciou Luís XV para demitir Maurepas, assim sendo feito.
A quantidade de canções e poemas circulantes pós esse exílio revelam possivelmente uma tentativa desesperada de Maurepas e seus seguidores de retornar ao poder.
A influência de Pompadour era emblemática, ascendendo ao mesmo cargo o seu “braço direito” Marc-Pierre de Voyer de Paulmy, conde d’Argenson6. Este, em sua busca frenética pela autoria dos poemas desejava “consolidar sua posição na corte durante um período em que os ministros estavam sendo redistribuídos e o poder, repentinamente parecia instável”, podendo, desta forma, “controlar o novo governo” (Idem, 2014, p. 41).
Desse modo, Darnton expõe o coração pulsante no caso dos Catorze: por trás de meras declamações de poemas, representava, em seu interior, “uma luta pelo poder situada no coração de um sistema político” (Idem, 2014, p. 41). Em relação aos catorze envolvidos no caso tiveram suas vidas arruinadas, corroborado pelo exílio que sofreram. Significa afirmar, segundo o próprio historiador, que os catorze envolvidos não possuíam consciência de seus atos, ainda mais na qualidade de crime, como foram classificados.
Em termos metodológicos, Darnton se propõe a uma longa exposição descritiva do Caso dos Catorze, sob interpretação cultural, não direcionando uma linha teórica clara, apenas adotando a postura de um historiador investigativo, procurando pistas e fios condutores. A ausência de um condutor teórico em sua obra, embora com uma linguagem acessível e para um público tanto acadêmico quanto não-acadêmico, seja um dos aspectos negativos. Outro ponto negativo é que não há delimitações conceituais sobre o que ele considera opinião pública. Além disso, o historiador torna o texto confuso quando em alguns momentos afirma não poder dar respostas ao interesse tão forte da polícia sobre O Caso dos Catorze, o que é sempre desmontado no capítulo seguinte, o que talvez exponha a fraca habilidade de Darnton de tentar fazer deste livro um encadeamento paulatino de mistérios e possíveis soluções.
Entretanto, outrossim, possui aspectos positivos, tais como a circulação destes poemas, que embora tenham começado com um grupo de letrados, expandiu-se para as camadas mais populares da França do século XVIII, que se entretinham com a mudança de versos, para zombar ou difamar o rei Luís XV, suas amantes e a Corte. Para o historiador Robert Darnton, os poemas são apenas uma das formas de “literatura de protesto” (Idem, 2014, p. 125) contra o Antigo Regime e que mesmo descoberto alguns de seus atuantes, revela a participação crítica e de insatisfação de quase todas as camadas da sociedade parisiense.
Também válido foi a apresentação do projeto eletrônico da Universidade de Harvard, possibilitando as pessoas a se transporem para aquela época, com a musicalização destes poemas – como fontes de época −, no sítio eletrônico <www.
hup.harvard.edu/features/dapoe>, sob interpretação de Hélène Delavault. Igualmente acertado a mobilização de imagens que ilustram cantores itinerantes, os manuscritos dos poemas, as partituras de algumas das músicas originais que serviam como base para a troca dos versos e uma lista rabiscada em um papel com os nomes daqueles que foram presos.
Notas
2 O site www.hup.harvard.edu/features/darpoe é indicado pelo autor, como forma de os leitores tomarem conhecimento de como as letras e melodias foram produzidas durante o período de colapso do Antigo Regime. O endereço eletrônico é fornecido por Darnton e se encontra na p.177.
Para maiores informações a respeito dos procedimentos e estruturação dos dossiês gerados por d’Hémery em outros casos investigativos, ver, especialmente, DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
4 Para maiores informações sobre o conde de Maurepas, consultar: RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965, p. 365-377 e RULE, John C. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965, p. 103-107.
5 Sobre Madame Pompadour, ver, por exemplo: ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011 e MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.
6 Esclarecimentos sobre esta figura histórica podem ser obtidos em: COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.
Referências
ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011.
COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
________________. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.
RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965.
___________. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965.
Sítio eletrônico citado na obra www.hup.harvard.edu/features/darpoe. Acesso em: 21 de março de 2017.
Thayenne Roberta Nascimento Paiva – Graduada em Bacharelado e Licenciatura, respectivamente, pelo Instituto de História e a Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é mestranda em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: thayenne-intelectus@hotmail.com.
[IF]A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime – FRAGOSO et. al (VH)
FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2013. v.1. 184 p. CONCEIÇÃO, Helida Santos. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan. /Abr. 2015.
Nos últimos 20 anos a historiografia brasileira tem revisado o que se convencionou chamar de “modelos explicativos da economia colonial”, mais precisamente o sentido da colonização e a ideia de que a sociedade da América poderia ser traduzida em termos de latifúndio, monocultura e escravidão. O sentido teleológico contido nessa interpretação, formulada por Caio Prado Jr. na década de 1940, visava explicar a nossa dependência estrutural do capital externo, insistindo na ausência de uma economia interna e reduzindo a complexidade da sociedade que se formou no novo mundo às noções de exclusivismo colonial, pacto colonial e relação metropóle-colônia. Por essa perspectiva a sociedade colonial estava dividida basicamente entre senhores e escravos não havendo espaço para perceber historicamente outros agentes sociais.
O fato é que essa visão engessada do nosso passado colonial, não pode mais se sustentar em função dos novos direcionamentos da historiografia brasileira e da incontornável revisão teórica pela qual passou tais modelos explicativos. Por não sublinhar aspectos essenciais das sociedades que se formaram na América a partir de suas relações com as monarquias europeias, é que verificou- se a limitação desses modelos para analisar estas sociedades entre os séculos XVI e XVIII.
Atualmente diversos trabalhos desenvolvidos no âmbito das pós-graduações, vem estudando a América portuguesa nos termos de uma sociedade inserida no Antigo Regime. No entanto, faltava uma publicação que apresentasse essa discussão de modo direto, com uma linguagem factível e centrada não somente em novos aportes teóricos, mas chamando atenção para outras possibilidades de exploração de fontes documentais, tais como os assentos paroquiais e as fontes cartorárias, necessárias para uma apreensão mais complexa e relacional da dinâmica interna desta sociedade.
O livro A América Portuguesa e os sistemas atlânticos foi escrito por três historiadores ligados ao grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos, e cumpre um papel relevante para o desenvolvimento do conceito de monarquia pluricontinental, como uma hipótese de trabalho válida para estudar a monarquia católica portuguesa e a formação dos sistemas atlânticos. A obra está dividida em três capítulos, cada um dos quais articulados com a ideia da consolidação de um sistema atlântico em perspectiva comparada, com ênfase nas transformações socioeconômicas vividas pela América lusa entre os séculos XVI e XVIII. E, ao final, há um glossário, muito útil para os investigadores do tema, com os principais conceitos discutidos no texto.
O argumento principal é explorar como a produção e o excedente econômico estavam voltados para a reprodução interna da sociedade escravista com suas diferenças de status (sociedade estamental), atestados pela hierarquia social costumeira, através de um mercado regulado pela política. O conceito de monarquia pluricontinental, vale ressaltar, ainda em construção, tende a diferenciar-se do conceito de monarquia compósita formulado por J. Elliot para descrever a coroa Hispânica nos séculos XVI e XVII, muito embora ambas as monarquias ibéricas fossem católicas
Mesmo que apareçam similaridades, há que sublinhar que existiam diferenças consideráveis entre a monarquia compósita dos Austrias de Espanha e a pluricontinental lusa na gestão de suas possessões no novo mundo. Uma delas diz respeito a interação entre as elites reinóis e americanas nas formas de administração das populações nativas. A monarquia lusa vivia dos rendimentos auferidos nas conquistas, portanto possuia a centralidade na sua periferia, fatores que reiterariam a sua natureza sistêmica como uma monarquia pluricontinental. Para deixar ainda mais claro a formulação deste conceito, os autores analisam em perspectiva comparada as possessões ibéricas, com as colônias inglesas no Caribe, exploradas por uma racionalidade diferente, sob a influência das revoluções de 1640 e 1688, nas quais o lucro de proprietários absenteístas retornavam para suas praças europeias.
Dessa forma a monarquia portuguesa vista como Pluricontinental era também polissinodal e corporativa, orientada por uma disciplina social católica e modulada no interior da segunda escolástica. Baseados em estudos recentes, os autores atestam que nos territórios das conquistas, assegurou-se a autonomia das instituições com poderes concorrenciais, sobretudo no autogoverno dos municípios, orientados pelo princípio do bem comum e da economia das mercês. Tal situação inclusive havia se configurado em Angola, o que teria permitido a montagem do sistema atlântico luso do tráfico de escravos, uma vez que na monarquia pluricontinental as formas de governabilidade estavam alicerçadas em negociações e pactos políticos entre as elites locais e a administração do Império. A formação de vínculos de dependência/lealdade, gerou uma visão de mundo, ou seja um ethos, que configurou-se como ligação incontornável entre sua majestade e o controle dos territórios das conquistas.
Esse sentimento de pertencimento à monarquia traduzia-se numa obediência amorosa, portanto consentida e voluntária, difundida através da disciplina social católica. De acordo com os autores, essa seria uma relevante chave interpretativa para o entender o funcionamento da economia no Antigo Regime católico. Nessa sociedade parte da riqueza social era comandada pelo além-túmulo, ou seja, a cada geração, uma parcela da riqueza social era transferida para instituições religiosas, retornando sob a forma de crédito que poderiam ser dispostos no mercado, possibilitando assim a reprodução da hierarquia social. Nesta realidade havia uma constante sociabilidade entre os diversos agentes – nobreza da terra, escravos, forros e pardos – que interagiam através de variados vínculos (parentais, compadrio, amizade, proteção) e agências necessárias à administração da república e do mercado.
A mobilidade social e a mestiçagem são também aspectos que deram o tom destas transformações ao longo do tempo, um indicativo disso segundo os autores é o aparecimento dos pardos como grupo social. A compilação de dados retirados de assentos paroquiais de duas principais freguesias do Rio de Janeiro são utilizados para demonstrar como esse grupo surge como resultado da interação coeva entre os indivíduos. Nesse sentido a oikonomia, entendida como economia doméstica, perfazia o lugar central da organização da hierarquia social, sendo a base que regulava o trabalho familiar e a escravidão, passando ao largo da interferência das leis de sua majestade.
A contribuição historiográfica deste livro não é totalmente inédita, uma vez que os conceitos já foram apresentados em outros trabalhos publicados pelo grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos. Ao final da leitura a questão que se coloca é sobre a pertinência de ampliarmos tal proposta teórica para outras áreas da América Lusa, sobretudo para vermos como diferentes configurações sociais se comportaram frente ao quadro teórico apontado pelos autores.
Helida Santos Conceição – 1Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco, s. 205, Centro, Rio de Janeiro, RJ, 20.051-070, Brasil.helidas@gmail.com.
O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime | José Damião Rodrigues
O livro deriva de um evento homônimo de 2010, ocorrido no Museu de Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, organizado pelo Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (CHAM), com apoio da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores. Boa parte das apresentações se converteu em artigos para a publicação de 2012, havendo o acréscimo de apenas um autor não relacionado na programação original do colóquio.
O organizador e autor de um dos artigos, José Damião Rodrigues – professor da Universidade dos Açores na oportunidade do evento, e atualmente docente na Universidade Nova de Lisboa -, desvela na Nota Introdutória mais detalhes acerca da justificativa e dos parâmetros deste O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Comentando a retomada de interesse do estudo acerca dos impérios, indissociável de um panorama onde designações como Atlantic history e global history parecem entrar cada vez mais em voga, o autor enaltece a fomentação de pesquisas revisitando as turbulências e transformações entre os centros políticos europeus e suas respectivas periferias – sobretudo os espaços de domínio ibérico – nos século XVIII e XIX.
Dessa forma,
esta acção (…)pretendeu analisar o período axial que vai de 1750 a 1822 e no qual registramos a ocorrência de um conjunto de eventos fundadores da contemporaneidade política, social e intelectual à escala regional, nacional e internacional, como foram as revoluções americana e francesa, a revolta e a independência do Haiti, a mudança da Corte portuguesa para o Brasil, o início do processo das independências na América espanhola, a primeira experiência liberal em Espanha e a independência do Brasil. Sob este ângulo, pretendeu-se revelar a importância do Atlântico como um espaço para a circulação das elites enquanto factor de difusão de novas ideias e de valores fundamentais das sociedades contemporâneas e de construção de redes de informação. De igual modo, foi destacado o papel das ilhas açorianas que se, por um lado, mantinham as características de uma periferia, por outro, pela sua centralidade geográfica no coração do sistema atlântico, funcionavam como ponto nodal e placa giratória de uma densa rede de fluxos e refluxos (…) (p. 15).
Não obstante ter situado a temática das transformações desse âmbito atlântico, Rodrigues expõe outro tema que encontra muito espaço no desenvolver da obra. Pois tanto o colóquio original quanto a publicação se baseiam na celebração da memória de um acontecimento ilustrativo das transformações do final do Antigo Regime em Portugal: a Setembrizada. O evento constituiu-se no exílio de dezenas de presos sem culpa formalizada, acusados pela regência do Reino de colaborar ou simpatizar com a nova invasão francesa de 1810, chefiada pelo marechal Massena. Os deportados chegaram em 26 de setembro do mesmo ano às ilhas açorianas e muitos deles voltaram a ter participação ativa na conjuntura revolucionária liberal de 1820. Portanto, o colóquio organizado pelo CHAM também busca homenagear esses personagens ligados a introdução da modernidade política em Portugal.
Sem dúvida, a coexistência dos dois temas é uma das características mais marcantes do livro: a diversidade entre os artigos que o compõe. E, de fato, a obra se faz notável por exibir uma rica gama de matizes e vieses possíveis, através dos quais aborda a questão da circulação atlântica de elites e de ideias, deixando clara a fecundidade do objeto. Ao perpassar o índice, o leitor confirma isso ao se deparar com a listagem dos vinte artigos, saltando aos olhos a existência de capítulos escritos tanto em português como em espanhol, cujos títulos elencam desde revoltas escravas na Bahia do século XIX, passando pela ilustração no Peru durante o século XVIII, até um estudo sobre a heráldica portuguesa de finais do Antigo Regime.
Por outro lado, ainda que a diversidade de objetos e temas escolhidos no interior do espaço Atlântico seja latente, existe uma metodologia dominante em O Atlântico revolucionário .Dos vinte autores, oito optaram por se concentrar em um personagem, refazendo e evidenciando, através de suas respectivas trajetórias e produções documentais, pontos concernentes e reveladores de diversas dimensões da realidade pertencentes a essa conjuntura de transformações, compreendida entre os anos de 1750 e 1822, no espaço atlântico. Ao considerar as menos de quinhentas páginas para os vinte textos, fica clara a impossibilidade da publicação de estudos mais extensivo e análises mais minuciosas, contemplando dados e corpos de fontes mais volumosos. Portanto, a opção mais frequente de desenvolver os artigos sobre um personagem se revela bem conveniente, além de resultar em capítulos bastante objetivos e claros em suas intenções, expondo, por meio de casos de grande relevância, ainda que deveras circunscritos, uma profusão de aspectos de um mesmo espaço em um mesmo período de tempo. No mínimo, ficamos diante de valorosas indicações de caminhos para futuras pesquisas, aguardando trabalhos de maior densidade em sua continuidade.
“O espaço público e a opinião política na monarquia portuguesa em finais do Antigo Regime: notas para uma revisão das revisões historiográficas”, de Nuno Gonçalo Monteiro, abre oportunamente o livro, situando o leitor num panorama de referências e subsídios teóricos úteis para a apreciação de muitos dos artigos subsequentes, proporcionando um balanço historiográfico centrado sobre os dois conceitos presentes no título do capítulo – basilares para a compreensão das transformações do século XIX.
Em meio aos debates e pontos de inflexões historiográficos abordados por Gonçalo, são relembrados tanto Fernando Novais, para quem “desde meados do século XVIII (…) existiria uma crise estrutural do sistema colonial”, quanto o posterior trabalho de Valentim Alexandre, que “contraria claramente a ideia de crise do império ou da monarquia antes de 1808” (p. 22). Esse debate, retomado por Monteiro exemplifica o préstimo desse balanço historiográfico e sua aproximação com outros artigos do livro. Um dos elos possíveis se dá com “Remanejamento de identidades em um contexto de crise: as Minas Gerais na segunda metade do século XVIII”, de Roberta Stumpf. Desde o próprio título – ao reafirmar a crise do Império Português no século XVIII articulada com a Inconfidência Mineira – é visível não apenas a influência do pensamento de Novais sobre a produção de Stumpf, mas a própria vigência do acima citado debate nas páginas deO Atlântico revolucionário ,reiterando a adequação do balanço historiográfico de Monteiro na condição de primeiro capítulo.
Ainda a propósito do trabalho de Stumpf, a autora indica, observando o cada vez maior descompasso de interesses entre os naturais de Minas e a Coroa portuguesa nos fins do século XVIII, que, pelo estudo do vocabulário político dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, torna-se latente a cisão identatária dos acusados para com as autoridades metropolitanas, ainda que os mesmos acusados ainda não tivessem uma nova identidade para o projeto no qual se empenharam.
Stumpf aplica, no recorte da Inconfidência Mineira, uma linha de trabalho anteriormente desenvolvida sobre a questão das transformações das identidades no interior da América portuguesa no período de crise, tema bastante pujante em uma historiografia que, nas das últimas duas décadas, inclui a própria autora. Nesse mote, são exemplos e referencias trabalhos como Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira) (István, Jancsó e João Paulo G. Pimenta, São Paulo, Editora Senac, 2000) e Filho das Minas, americanos e portugueses: identidades políticas coletivas na Capitania de Minas Gerais (1763-1792) (Roberta Stumpf, São Paulo, Hucitec, 2010).
Em “Wellington em defesa dos jacobinos? A setembrizada de 1810”, Fernando Dores Costas analisa a efeméride que serviu como ponto de partida para o colóquio, esmiuçando-a e delineando-a como ação arbitrária e desesperada da Regência portuguesa. O intuito desta seria angariar a confiança da população no momento de crise, em uma Lisboa abandonada pela família real e sob ameaça de uma nova invasão de tropas francesas, contra algumas figuras transformadas em bodes expiatórios, acusadas de colaboração com os franceses. Ao centrar-se na trajetória nos escritos de alguns dos exilados nas ilhas açorianas – como o baiano Vicente Cardoso da Costa; José Sebastião de Saldanha de Oliveira e Daun, elemento de primeira nobreza e o médico Antonio Almeida -, o autor demonstra disparidades de pensamentos e trajetórias desses chamados setembrizados, invalidando um pressuposto, decorrente da acusação, de que formariam um grupo coeso e agindo organizadamente em apoio ao exército invasor francês.
“Domenico Pellegrini (1769-1840), pintor cosmopolita entre Lisboa e Londres”, de Carlos Silvera, é uma contribuição de um historiador da arte que demonstra que tanto o artista como sua produção podem ser considerados bons exemplos de vetores de circulação de ideias. Porém, esse mesmo artigo também ilustra um caso de incompatibilização entre os dois temas do livro destacados na Nota Introdutória, a Setembrizada e o próprio espaço atlântico. Se por um lado, a temática do Império Português e da lembrança da Setembrizada – já que Pellegrini foi um dos presos exilados – se mantém em primeiro plano, o espaço atlântico, por outro, tem papel pequeno no artigo. Pois, a trajetória de Domenico compreende rotas entre Itália, Inglaterra, Portugal e um irrisório exílio nos Açores. Dessa maneira, o espaço atlântico não é aqui explorado em toda sua potencialidade de articulador e canal entre dois continentes contendo partes dos impérios ibéricos, tendo, então, sua presença minimizada. Logo, o tema principal do espaço atlântico é sobrepujado pela temática mais secundária da Setembrizada.
Já o artigo do organizador, José Damião Rodrigues, “Um europeu nos trópicos: sociedade e política no Rio joanino na correspondência de Pedro José Caupers”, de forma diferente, demonstra plena articulação e harmonização entre os temas ressaltados na Nota Introdutória . Ao se debruçar sobre a produção epistolar de um membro da Corte lusitana, que atravessou o oceano após a invasão napoleônica, o autor identifica uma rede de conexões, interlocutores e relações que ligam Portugal, Rio de Janeiro e ilhas açorianas, além de incluir um dos setembrizados. Não obstante, o capítulo mostra, sob a ótica de Caupers, e em sua latente inadaptação à condição de reinol perante a nova dinâmica da Corte no Rio de Janeiro, como “em períodos de aceleração da dinâmica histórica ou de mudança social, as divisões e as redefinições que se operam em torno das identidades colectivas adquirem uma importância fundamental, mas complexificam o cenário social e político” (p. 194).
Também lidando com um personagem ilustrativo está Lucia Maria Bastos Neves, com “Um baiano na setembrizada: Vicente José Cardoso da Costa (1765-1834)”. Condizente com seu já conhecido trabalho acerca do vocabulário político, utilizando uma abordagem apoiada em uma história dos conceitos – como no livro Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822) (Lúcia Maria Bastos P. das Neves, Rio de Janeiro, FAPERJ, 2003) -, a historiadora propõe analisar os escritos de Vicente da Costa produzidos contemporaneamente à Revolução Vintista, enfatizando os embates entre o Antigo Regime e o Liberalismo presentes na linguagem política utilizada pelo personagem.
Atentando-nos ao trabalho de Neves, confirmamos que a circunscrição da análise histórica a um personagem não necessariamente corresponde a uma circunscrição de resultados e nem a um extremo particularismo, havendo brechas de interlocução com outros artigos. Aqui, é possível até mesmo constatar o início de um possível debate no interior do livro. Pois, ao examinar o mesmo personagem, em seu já referido artigo, Fernando Dores Costas chega a um diagnóstico consideravelmente diferente do da historiadora sobre o setembrizado Vicente José Cardoso da Costa e seu pensamento acerca das novas formas políticas que, no século XIX fixavam-se nos impérios ibéricos. De acordo com Dores Costa, “Cardoso da Costa defendeu energicamente a tradição pombalina, absolutista. Afirmava a referida obrigação ilimitada de obediência aos governos. Os súbditos estavam impedidos de avaliar, estando obrigados a acatar as ordens tanto dos maus como aos bons governos” (p. 48). Por outro lado, é de maneira mais contemporizada que Neves, após sua análise, descreve o mesmo Cardoso da Costa como um homem imerso em uma conjuntura de crise e partilhando múltiplas linguagens políticas, oscilando entre tradição do Antigo Regime e as novas formas políticas em oposição ao despotismo.
Vicente José Cardoso da Costa ainda volta a ser objeto de estudo em “Experiencia y memoria de la revolución de 1808: Blanco White y Vicente José Cardoso da Costa”, de Antonio Prada. Nesse caso, as conclusões do autor, após análise dos escritos de Cardoso da Costa, são mais próximas às de Lúcia Maria Bastos Neves do que às de Dores Costa.
Ainda no campo da análise do espaço atlântico do Império Português, também situam-se “A heráldica municipal portuguesa entre o Antigo Regime e a monarquia constitucional: reflexos revolucionários”, de Miguel Metelo de Seixas; “Circulação de conhecimentos científicos no Atlântico. De Cabo Verde para Lisboa: memórias escritas, solos e minerais, plantas e animais. Os envios científicos de João da Silva Feijó”, de Maria Ferraz Torrão; “Rotas de comércio de livros para Portugal no final do Antigo Regime”, de Cláudio DeNipoti; “Em busca de honra, fama e glória na Índia oitocentista: circulação e ascensão da nobreza portuguesa no ultramar”; de Luis Dias Antunes, “A difusão da modernidade política. A ficcionalidade da Revolução de 1820”; de Beatriz Peralta García; “Revoltas escravas na Baía no início do século XIX”, de Maria Beatriz Nizza da Silva e “República de mazombos: sedição, maçonaria e libertinagem numa perspectiva atlântica”, de Junia Ferreira Furtado.
Podendo ser visto como uma ponte entre os artigos acerca do Império português e sua contraparte hispânica, temos o derradeiro “Las independencias latinoamericanas observadas desde España y Portugal”, de Juan Marchena. Mais detidos no universo espanhol estão “Entre reforma y revolución. La economía política, el libre comercio y los sistemas de gobierno em el mundo Altlántico”, de Jesús Bohórquez; “Política y politización en la España noratlántica: caminos y procesos (Galicia, 1766-1823)”, de Xosé Veiga e “A través del Atlántico. La correspondencia republicana entre Thomas Jefferson y Valentín de Foronda”, de Carmen de La Guardia Herrero.
Ainda no espaço hispânico, abordando as transformações do fim do Antigo Regime nas colônias, destacam-se “Azougueros portugueses en Aullagas a fines del siglo XVIII: Francisco Amaral”, de María Gavira Márquez e “La ilustración posible en la Lima setecentista: debate sobre el alcance de las luces en el mundo hispánico”, de Margarita Rodríguez García. O primeiro traz o curioso caso de um membro da elite colonial portuguesa exercendo atividade mineradora no atual território boliviano no fim do século XVIII, mesmo apesar do pleno desenrolar da guerra entre Portugal e Espanha, declarada no outro lado do Atlântico. O segundo, focado no periódico Mercurio Peruano, bebe na fonte dos trabalhos de François-Xavier Guerra, ao caracterizar as particularidades da formação de uma esfera pública no espaço colonial de uma monarquia absolutista, portanto, uma realidade não abarcada pelo modelo original de esfera pública desenvolvida por Habermas.
Enfim, O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime modela uma perspectiva desse espaço como um feixe de encontros, com participação fundamental em diversas realidades e processos históricos. Um canal de pleno trânsito de ideias e elites, passíveis das mais diversas nuances e abordagens historiográficas, em uma variação ampla de escala. Um lembrete de que, mesmo considerado em sua unidade de dimensão global, seu sentido nunca pode ser reduzido a um único.
Luis Otávio Vieira – Graduando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH / USP – São Paulo-SP / Brasil). E-mail: luis_vieira_mail@yahoo.com.br
RODRIGUES, José Damião (Org.). O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Ponta Delgada: Centro de História de Além-Mar (CHAM), 2012. Resenha de: VIEIRA, Luis Otávio. Os diferentes universos do espaço Atlântico. Almanack, Guarulhos, n.9, p. 208-212, jan./abr., 2015.
As origens culturais da Revolução Francesa – CHARTIER (HH)
CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2009, 316 p. Resenha de: AZEVEDO NETO, Joachin. A Revolução Francesa revisitada. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 8, p. 205-210, abril 2012.
Roger Chartier é um historiador francês, natural de Lyon. Além de, atualmente, ser professor do Collége de France e atuar nas Universidades de Harvard e da Pensilvânia, o autor teve, dentre outras, a obra A história cultural entre práticas e representações traduzida para o português em 1988. A referência a este livro é necessária porque o mesmo apresenta a matriz teórica que vem regendo a produção intelectual contemporânea de Roger Chartier. Também é preciso salientar que as reflexões sobre a História Cultural enquanto campo de conhecimento, que embasam esta obra, foram inovadoras para a época e abriram novas possibilidades de estudos no campo da história e nas formas de se ler e escrever textos historiográficos.
A articulação entre A história cultural entre práticas e representações e as pesquisas mais recentes desenvolvidas por Chartier, que versam sobre temas que vão desde as relações entre escritores e leitores no Antigo Regime até os desafios da escrita da História, reside na assertiva de que, para este historiador, é necessário compreender o modo pelo qual se estabelecem vínculos entre a leitura e a compreensão dos textos com as condições técnicas e sociais em que esses textos são publicados, editados e recepcionados. Por exemplo, A história ou a leitura do tempo, breve obra publicada recentemente, ilustra bem esses vínculos entre as fases de maturação do pensamento de Chartier quando o autor afirma que uma história cultural renovada deve acatar o desafio de compreender “a relação que cada comunidade mantém com a cultura escrita” (CHARTIER 2009, p. 43) a partir dos usos e significados que são atribuídos aos textos.
Essas reflexões gerais sobre as propostas de Roger Chartier são necessárias para a contextualização do autor de As origens culturais da Revolução Francesa, obra publicada no Brasil em 2009. Na introdução da obra, Chartier se indaga por que escrever um livro que já existe, fazendo referência a um estudo escrito na década de 30 do século XX, intitulado Les orígenes intellectualles de la revolution française, de Daniel Mornet. A questão é que, tanto o conhecimento acumulado em torno do tema da Revolução Francesa se transformou ao longo do século XX, bem como é possível, para os estudiosos da história, a abordagem de temas clássicos da historiografia por meio do levantamento de novas problemáticas.
No primeiro capítulo “Iluminismo e Revolução;Revolução e Iluminismo”, Chartier discute o que seriam, para Mornet, as causas da Revolução. O autor, assim, esquematiza as conclusões de Mornet que embasam, de forma geral, as concepções historiográficas tradicionais sobre a Revolução Francesa: 1) as ideias iluministas circulavam hierarquicamente das elites para a burguesia, daí para a pequena burguesia e, por fim, para o povo. 2) a difusão das ideias iluministas aconteceu do Centro de Paris para a periferia da França. 3) o Iluminismo foi uma peça-chave para o desmonte do Absolutismo. Chartier elabora sua tese invertendo os postulados de Mornet: não foi o Iluminismo que inventou a Revolução Francesa, mas os desdobramentos da Revolução que legitimaram o Iluminismo.
Nesse sentido, o significado teórico do termo origem, que aparece no título da obra de Chartier ainda continua nebuloso para o leitor. Acredito que o conceito-chave que é a todo momento evocado no estudo do historiador francês ecoa no mesmo diapasão das reflexões formuladas por Walter Benjamin em A origem do drama barroco alemão. Segundo Benjamin, a ideia de origem possui uma dimensão dialética e crítica na medida em que: […] apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada que ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir a ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado. Em cada fenômeno de origem se determina a forma com a qual uma ideia se confronta com o mundo histórico, até que ela atinja a plenitude na totalidade de sua história. A origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se relaciona com sua pré e pós-história (BENJAMIN 1984, p.67-68, grifo no original).
Por esse viés, a noção de origem não é utilizada como uma fonte na qual a explicação de todos os fatos possa ser encontrada. O significado atribuído por Benjamin ao termo é o de um fenômeno entranhado de várias temporalidades históricas. Assim sendo, a origem não carrega em si a gênese das coisas, mas se constitui enquanto uma formação que perturba a normalidade do curso das práticas humanas e faz ressurgir antigas questões esquecidas e silenciadas. Por esse prisma, o conceito de origem é dialético porque sua forma é a de uma imagem sempre aberta, sempre inacabada. Essa é a concepção de origem da qual partilha Chartier, embora não faça menções diretas a Benjamin em nenhum momento de As origens culturais da Revolução Francesa.
No segundo capítulo, “A esfera pública e a opinião pública”, Chartier discute como a esfera pública era constituída por um espaço no qual havia um intercâmbio de ideias políticas que estavam distantes de serem controladas pelo Estado. Assim, a esfera pública, seguindo os rastros do pensamento de Harbemas, era um espaço de sociabilidade burguesa. Neste espaço, a nobreza e, tampouco, o povo tinham presença e as diferenças entre os indivíduos que se faziam presentes eram ressaltadas por meio dos posicionamentos e argumentos críticos que estes apresentavam para o debate e não por meio de uma estratificação social que favorecia uma linhagem ou títulos de nobreza.
Simplificando, Chartier fala em esfera pública se referindo aos debates que aconteciam em salões, cafés, clubes e periódicos que eram usados como lócus para discussões, entre as camadas sociais emergentes, de crítica estética sem a intromissão das autoridades tradicionais nessas conversas.
Dentro dessa discussão, é preciso recorrer ao texto clássico “O que é o Iluminismo?” (2004), de Kant, para a elucidação de como o conceito de razão foi estreitamente interligado com a noção de Iluminismo. Kant sugeriu que a liberdade, enquanto vocação humana, só poderia ser exercida quando o indivíduo conseguisse pensar por si próprio. A razão concebida dessa forma possuía uma dimensão pública e privada. O uso privado da razão, por exemplo, por oficiais do Exército ou líderes religiosos, não anulava o uso público da razão porque este era embasado no interesse comunitário. Com base no pensamento de Kant, essas duas esferas autônomas do pensamento crítico não preocupavam o Estado absolutista, que mantinha a ordem vigente através da distribuição de cargos públicos e de status. Porém, para Kant, o uso individual da razão só atingiria sua plenitude quando os cidadãos pudessem registrar, através da escrita, suas críticas ao poder vigente.
No capítulo “O caminho de imprimir”, Chartier discorre sobre as tensões entre os interesses dos parlamentares e do público leitor, que resvalavam, por sua vez, no mercado editorial francês. Usando os testemunhos de Malesherbes, diretor do comércio livreiro e de Diderot, coautor da Enciclopédie, Chartier analisa como a opinião desses homens letrados, que defendiam a livre circulação de livros, libelos e periódicos – mesmo que não apresentassem teor crítico em relação à configuração política da época – esbarravam nas práticas de censura e policiamento que eram impostas pelo poder real.
O título “Será que os livros fazem revoluções?”, do quarto capítulo, possui uma fina entonação irônica. Fatores como o aumento de leitores – na França pré-revolucionária –, mesmo entre representantes das classes populares, e as diversas formas de negociação dos livros, como o aluguel até por hora dos exemplares, adotadas pelos livreiros, não implicava diretamente, para Chartier, em um anseio coletivo revolucionário. Nesse ponto da obra, o autor levanta uma série de críticas ao historiador norte-americano Robert Darnton, reconhecido também como pesquisador da cultura impressa no Antigo Regime.
Em Boemia literária e Revolução, Darnton é categórico ao afirmar que o filão de escritores de libelos inflamados e da baixa literatura erótica – a canalha literária, como os denominou, horrorizado, Voltaire – que abordavam, em seus escritos, temas escandalosos envolvendo a nobreza foram mais decisivos para disseminar o descontentamento político entre a plebe do que os iluministas na França pré-revolucionária. De acordo com Chartier, essa perspectiva está equivocada porque tanto a escrita da boemia literária quanto dos philosophes saciaram a fome de leitura de toda uma geração ávida por ter acesso a temas proibidos, transgressores e irreverentes. Isso significa que a leitura de livros taxados de crônicas escandalosas, e mesmo os da alta filosofia, que habitavam lado a lado os depósitos da Bastilha e as listas de pedidos dos livreiros, caracterizados pela construção de narrativas contestadoras e desrespeitosas das hierarquias estabelecidas, não incutiam, nas mentalidades dos leitores, o desejo de derrubar a ordem vigente.
No quinto capítulo, “Descristianização e secularização”, o autor busca elucidar como o fenômeno cultural da descristianização, ou seja, da falta de crédito das prédicas e dos dogmas morais e religiosos ensinados pela Igreja Católica, vinha sendo gestado entre a população francesa desde o século XVII e que, portanto, não se trata de um advento que eclodiu no final do século XVIII por meio da adesão em massa dos franceses aos ensinamentos e tratados anticlericais contidos nos escritos iluministas. Para o autor, com base nas ideias de Jean Delumeau, é preciso, inclusive, relativizar a ideia de que houve sempre uma França plenamente cristianizada.
De acordo com Chartier, embora as elites tradicionais prezassem em deixar boa parte das suas fortunas para o pagamento das indulgências, entre as camadas médias e populares essa prática não era seguida com frequência.
Com a postura radical adotada pela Igreja durante a Contrarreforma, a impopularidade dos dogmas católicos, sobretudo aqueles ligados aos ideais de uma vida ascética – ligados à defesa das relações matrimoniais apenas como finalidade para a procriação – causou uma série de práticas e mudanças no comportamento sexual dos casais que romperam com a cartilha que era pregada nas missas.
No capítulo “Um rei dessacralizado”, Chartier traça uma discussão sofisticada sobre os principais fatores que culminaram no rompimento da crença na autoridade sacramental do rei por parte dos súditos franceses. É interessante perceber como, até no período pré-revolucionário, os documentos enviados pelos franceses ao rei para serem apresentados em Assembleia Geral, permaneciam margeados por uma retórica que afirmava o caráter paternal e justo do monarca, que deveria proteger os súditos das extorsões e abusos de poder do clero e dos nobres. Como compreender, então, a proliferação de impressos que construíam a imagem de um rei ridículo, imoral e suíno e a execução pública do soberano durante os desfechos da Revolução? Chartier elenca como uma das principais causas do fenômeno da dessacralização do rei o abuso de autoridade real que era exercido por meio da força policial, em meados do século XVIII. Como exemplo, o autor cita que os oficiais de polícia, para cumprir um decreto real que determinava a remoção e prisão dos mendigos e vagabundos parisienses, acabaram prendendo crianças e pré-adolescentes filhos de mercadores, artesãos e trabalhadores. Como resposta, os súditos propagaram rumores sobre um rei que era escravo de prazeres devassos e envolvido em práticas macabras como o assassinato dos jovens capturados pela polícia.
No capítulo “Uma nova política cultural”, o autor faz uma referência ao estudo de Peter Burke sobre a cultura popular durante o alvorecer da modernidade. Na esteira do pensamento de Burke, Chartier afirma que houve um crescente interesse, alimentado pela circulação de canções, imagens e libelos contra as autoridades, por parte das camadas populares por assuntos políticos porque as atitudes administrativas, como a cobrança de impostos, por exemplo, afetava diretamente o cotidiano dessas pessoas. Essa politização da cultura popular ocorreu de forma gradativa, em termos de duração, e culminou na adesão das classes subalternas ao movimento que arruinou o absolutismo.
Outra instituição que se expandiu largamente, por toda a França, foi a sociedade maçônica. Chartier elenca como um dos principais atrativos da Maçonaria o fato de que, tal qual nas tavernas, salões ou academias, os indivíduos eram vistos como iguais entre sí e diferenciados apenas pelos posicionamentos discursivos que adotavam. Embora de forma limitada, a maçonaria e os salões tinham em comum o fato de estabelecerem um espaço aberto para a prática de uma sociabilidade “democrática”, em um contexto histórico e político longe de ser democrático. Porém, como Chartier adverte, é necessário ressaltar o caráter elitista dessas instituições. Os indivíduos deveriam ser prósperos, polidos e intelectualizados para que a Ordem também pudesse ser próspera. De modo geral, seja nas tavernas, salões ou nas lojas maçônicas, ao longo do século XVIII, essas formas de sociabilidades que emergiram se colocaram na contramão da ordem que alicerçava o Antigo Regime.
No último capítulo, “As revoluções têm origens culturais?”, Chartier traça uma comparação entre a Revolução Inglesa, que aconteceu no século XVII e a Revolução Francesa. Embora seja evidente que cada evento possua suas peculiaridades contextuais, o autor sugere que prevaleceu como eixo comum à noção, em ambos os eventos, de que o ideário puritano inglês e o jansenismo francês infundiram, por meio de prédicas religiosas, mas de forte teor político, um profundo sentimento de desconfiança entre a população no que diz respeito à moralidade das autoridades instituídas.
A conclusão que se pode tirar do estudo de Chartier sobre as origens intelectuais da Revolução Francesa é que um evento como esse, explosivo e sanguinário, que rompeu com uma tradição política absolutista construída por séculos, alicerçada pelos sustentáculos da religião e do Estado e que envolveu, de forma geral, todos os seguimentos sociais da França, teve razões complexas e inseridas em um processo de duração histórica mais longa. Desta forma, Chartier lança mais inquietações do que respostas em torno de um tema historiográfico clássico e induz o leitor à reflexão de que os objetos ligados ao campo da história podem ser sempre revisitados, arejados e redescobertos por novos olhares e problemas lançados pelos historiadores para o passado.
Referências
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
______. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
______. A história cultural entre práticas e representações. Tradução de Maria Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
DARNTON, Robert. Boemia literária e Revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KANT, Immanuel. O que é o Iluminismo? In_____. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2004.
Joachin Azevedo Neto – Doutorando Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: joaquimmelo@msn.com Rua Bosque dos Eucaliptos, 280 – Campeche 88063-440 – Florianópolis – SC Brasil.
Leituras e Leitores na França do Antigo Regime | Roger Chartier
Roger Chartier historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola de Annales, onde trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura, e que nesta obra apresenta oito ensaios que constituem uma história cultural em busca de textos, crenças e gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal como ela existia na sociedade francesa entre a Idade Média e a Revolução Francesa. O intelectual francês mostra que a cultura escrita influencia mesmo àqueles que não produzem ou lêem textos, mas interagem com eles. Ao revisitar a chamada Biblioteca Azul, coleção de livros acessíveis vendidos por ambulantes (romances de cavalaria, contos de fada, livros de devoção), além de documentos próprios da chamada “religião popular” e textos sobre temas que se dirigem a um público geral, como a cultura folclórica, o autor enfoca as tênues fronteiras entre a chamada cultura erudita e a popular, mostrando como se ligam duas histórias: da leitura e dos objetos de leitura. Leia Mais
A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825) / André R. A. Machado
A obra ora resenhada faz parte da renovação historiográfica nos estudos sobre as mudanças políticas vividas no mundo lusobrasileiro no primeiro quartel dos oitocentos. Durante décadas, debruçados sobre a “questão da Independência” – tema de forte apelo nacional –, historiadores de diferentes matizes obscureceram as alternativas políticas que se apresentavam para o momento. A mesma perspectiva transformou a Revolução do Porto – vitoriosa em agosto de 1820 – numa espécie de “antecedente” da Independência, reação última ao “projeto recolonizador” levado a cabo pelas Cortes portuguesas.
Desde a década de 1990, autores como István Jancsó – mestre de todos nós e orientador da tese que dá origem a este livro – destacavam os pressupostos a serem refutados e sugeriam os caminhos a serem trilhados por um renovado conjunto de historiadores. Em síntese: 1) recusava-se a pré-existência do Estado e da Nação, com a abolição de expressões como “manutenção da unidade”, “restauração das províncias rebeldes”, “separatismo do Norte”; 2) propunha-se a recuperação da dinâmica política a partir das variáveis que afligiam os cidadãos que se movimentavam na nova cena pública, sem o peso de explicações estruturais, como aquelas pautadas na “truculência das Cortes”, na “falência ibérica” e nas “novas necessidades do capital”; 3) recuperava-se a participação dos “homens do comum”, que ganharam vida: anseios, vinganças e frustrações motivaram sua efetiva participação política, perspectiva muito diversa das “massas de manobra”, por vezes denunciadas sob a falsa aparência de criticidade; 4) por fim, convidava-se a uma imersão no conjunto de documentos produzidos dentro e fora da esfera estatal: códices, caixas e latas conviveriam agora com jornais e folhetos, tomados como novos ingredientes de uma política cujo aprendizado se dava também em praça pública.
Pesquisador atento a tais ensinamentos, André Machado os tomou como balizas para a sua pesquisa, sem, contudo, ater-se a receitas prontas, já aplicadas ao estudo de outras províncias. De maneira autônoma, com sólida discussão bibliográfica e conjunto documental, propôs uma história das possibilidades políticas abertas desde a “adesão” do Grão-Pará à Revolução do Porto até o Reconhecimento da Independência.
Tal recorte poderia sugerir uma “História da Independência desde a Revolução do Porto”, perspectiva teleológica e tradicional que encadeou episodicamente esses dois momentos, dando-lhes inteligibilidade. Em direção diametralmente oposta, o autor reserva à Independência – palavra evitada ao longo do texto e substituída pela noção de “novo alinhamento” – um papel absolutamente secundário ante as disputas suscitadas pelas possibilidades advindas do constitucionalismo português. A seu modo, todos eram portugueses, pressuposto que inviabiliza a perspectiva de “projetos nacionais” emersos com o “7 de setembro”, ou, no caso do Grão-Pará, com o “15 de agosto de 1823”.
Essa é a tônica da primeira parte do livro, dividida em três capítulos. Desde as primeiras linhas, o autor compartilha a narrativa com seus personagens, perscrutando as incertezas e a provisoriedade das posições políticas assumidas ao sabor das circunstâncias. A “quebra da mola real das sociedades bem constituídas” – expressão de autoria do bispo do Pará, inspiração para o título do livro e norte para a noção de “instabilidade” construída pelo autor ao longo da narrativa – provocara um dissenso heterogêneo, múltiplo em suas razões e frágil em sua capacidade de construir acordos duradouros.
Tais questões são acompanhadas de uma análise que articula os estratos dominantes da província às relações de poder expressas nos “partidos” que então se organizavam. Sem recorrer a relações mecânicas de classe / partido, conclui que os proprietários de fortuna acumulada recentemente tendiam a ser “mais constitucionais”, forma de atingir postos até então ocupados por figuras ligadas ao ancien régime português. Para o autor, esses grupos “mais constitucionais” se demonstraram, gradativamente, propensos ao “alinhamento” com o Rio de Janeiro, na medida em que seus projetos políticos foram inviabilizados internamente.
Outras razões são apresentadas na explicação para o “alinhamento”, mas seguramente a mais original é a noção de “bloco regional”, rede composta por sólidos laços econômicos e políticos que aproximavam as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Goiás e Mato Grosso.
Construída a partir de certa leitura de Benedict Anderson (Nação e consciência nacional) – autor comumente evocado pela historiografia brasileira nos debates sobre nações como “comunidades imaginadas” –, a noção serve ao autor como mais um importante contraponto ao clássico “Brasil versus Portugal”.
Sem transformar o “alinhamento” do Grão-Pará em mero reflexo dos interesses do “bloco regional”, estabelece conexões entre a inviabilidade de sua manutenção, por exemplo, a partir do “alinhamento” do Maranhão1, em 28 de julho de 1823, decisão seguida pelo Grão- Pará, poucos dias depois.
Destaque-se ainda a alternativa que o autor oferece às explicações pautadas na centralidade das pressões militares para o “alinhamento”, corporificadas na atuação de John Grenfell, inglês que chegou ao Pará em agosto de 1823 e assumiu a incumbência de comandar as forças navais a serviço de D. Pedro I. Trilhando outros caminhos, tangencia o debate sobre o papel das tropas externas: seu foco são as condições “internas” (dinâmica política provincial e interesses do “bloco regional”) que viabilizaram o “alinhamento” da penúltima província da América portuguesa ao Império nascente.
Na segunda parte do livro, composta por dois capítulos, o autor persegue os conflitos que tiveram continuidade com o “alinhamento”, forte indício de que a questão principal não estava aí, mas nas disputas abertas com a “quebra da mola real”. Se projetos políticos “préalinhamento” persistiam, novidades como a Confederação do Equador – também tomada como proposta de um “bloco regional” – traziam novos ingredientes para o campo da política.
Somem-se a esse quadro de instabilidade a crescente participação política de negros e tapuios, grupos que muitas vezes compartilhavam projetos de futuro distintos daqueles levados a cabo pelos “partidos” da província, e a partida de Grenfell, em março de 1824, uma das poucas autoridades minimamente reconhecidas entre os grupos em litígio.
Gradativamente, constrói a “solução brasileira”, tomando como referência a inviabilização de pelo menos dois importantes projetos: a alternativa republicano-regional, fracassada com a derrota da Confederação do Equador, e o realinhamento a Portugal, prejudicado pelo Tratado de Reconhecimento da Independência, assinado em meados de 1825. Paralelamente, apresenta-nos os sucessos obtidos pela junta de Santarém, representação composta majoritariamente por proprietários e comerciantes, que a partir dos primeiros meses de 1824 acumulou vitórias políticas e militares, recompondo os estratos dirigentes da província ante o “perigo maior” de uma nova São Domingos.
Por fim, vale-se de uma apropriada metáfora de Immanuel Wallerstein (Capitalismo histórico & civilização capitalista) para sintetizar as preocupações que o acompanharam por toda a pesquisa. Para o autor citado, crises sistêmicas se assemelham à experiência de passar por vários pontos de bifurcação, que obrigam a sucessivas escolhas e alimentam incertezas na busca pela estabilidade perdida. Os homens do Grão-Pará, em tempos de crise, não escaparam a essa máxima. Já nós, historiadores, talvez sejamos eternos “homens em tempos de crise”: para o nosso conforto, textos como esse demonstram que é possível, diante de cada bifurcação, aprimorar a caminhada.
Marcelo Cheche Galves – UEMA. E-mail: marcelocheche@ig.com.br.
MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010. 321 p. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.292-205, dez. 2010. Acessar publicação original. [IF].
O Antigo Regime e a Revolução – TOCQUEVILLE (FU)
TOCQUEVILLE, A. de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: REIS, Helena Esser dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.348-349, set./dez., 2009.
Em meio a tantas análises acerca da Revolução Francesa, qual o interesse que O Antigo Regime e a Revolução de Alexis de Tocqueville, escrito em 1856, pode ainda despertar nos leitores contemporâneos? Ilumina, de modo original, nossa compreensão daquele evento e das ideias que ali foram forjadas? As respostas não são evidentes, requerem ler o texto e seu contexto, a letra e a intenção do autor.
No início do prefácio onde apresenta seu livro aos leitores, Tocqueville descarta o propósito de escrever uma história da Revolução Francesa. Tendo despendido mais de cinco anos em uma ampla pesquisa nos arquivos da administração pública, nos cadernos de queixas escritos pelas três ordens em 1798, nos textos dos filósofos consagrados e até na leitura de inúmeras correspondências íntimas e confidenciais que estavam arquivadas no Ministério do Interior, seu propósito, afirma, é desvendar as causas pelas quais a revolução social e política contra o Antigo Regime – que estava em curso em toda Europa – eclodiu na França. Trata-se, portanto, de um texto que busca, por meio da narrativa e da análise dos acontecimentos, conhecer os sentimentos, os costumes, as ideias que prepararam a grande revolução.
Focando a capacidade de inovar do povo francês (de romper com seu passado de submissão para construir uma nova forma social e política baseada na igualdade e na liberdade entre os homens) nos primeiros anos da revolução, Tocqueville aponta cuidadosamente as circunstâncias, os erros e as decepções que fi zeram os revolucionários abandonarem seu objetivo inicial e esquecerem-se da liberdade. Ao comparar a sociedade do Antigo Regime com a sociedade democrática originada pela Revolução, argumenta que a perda da liberdade não decorre de um problema inerente aos homens deste tempo, nem de um problema característico do novo regime, mas do individualismo e da apatia política que já encontram suas raízes nas instituições políticas e na sociedade francesa do Antigo Regime.
As críticas precisas e vigorosas que Tocqueville dirige à nobreza não contêm excessos ou compromissos com os propósitos revolucionários. Ele mesmo, descendente da antiga aristocracia francesa, não adere à democracia espontaneamente, mas tão só porque reconhece que apenas sob este regime a liberdade (entendida como capacidade de cada um pensar e agir por si mesmo e, ao mesmo tempo, participar junto com cada um dos demais no exercício do poder) pode estender-se a todos os homens. Considerando-se independente, Tocqueville traz à luz o longo processo de esfacelamento dos corpos administrativos secundários e de centralização do poder nas mãos do rei. Ele denuncia, em primeiro lugar, que o exercício independente e participativo da liberdade, pouco a pouco, é substituído por privilégios privados que isolam os nobres e os afastam de seus deveres públicos. Em segundo lugar, destaca que a contrapartida dos privilégios de uns é a opressão e a exploração desmedida de quase todos os demais, o surgimento de ódios, rancores e rupturas no tecido social.
A análise tocquevilleana acerca das causas profundas que engendraram a Revolução permite-nos compreender que os desdobramentos despóticos da Revolução Francesa não se deram ao acaso, pelo calor do momento, mas se enraízam em uma longa cadeia de benefícios e violências que favoreceram o despotismo do rei e prepararam o despotismo democrático. Por mais que as palavras despotismo e democracia pareçam estar em campos opostos, Tocqueville – já em A Democracia na América – mostrou que instituições democráticas podem ser coniventes com formas opressivas do exercício do poder político, sempre que a busca por condições sociais igualitárias se sobrepuser à participação política.
O Antigo Regime e a Revolução, publicado vinte anos após A democracia na América, renova o esforço tocquevilleano de conhecer os problemas e buscar remédios adequados ao processo de democratização do estado francês. Se nessa obra ele destacou a grandeza do estado democrático constituído pelos anglo-americanos, foi também extremamente severo, criticando, de um lado, a desigualdade a que estavam sujeitados negros e índios, assim como todo aquele que divergia da maioria por qualquer razão; e, de outro lado, a opressão consentida que surgia do individualismo e da apatia política em vista da qual voluntariamente os homens abriam mãos de seus direitos políticos. É o mesmo espírito de investigação ampla e de crítica certeira que norteia a escrita de O Antigo Regime e a Revolução.
Reconhecendo semelhanças entre as formas despóticas que ocorreram na França e os germes de despotismo que viu nos Estados Unidos, Tocqueville contribui para uma concepção madura e crítica da democracia. Pois, se apenas sob este regime a igual liberdade pode estender-se a todos os cidadãos, suas análises evidenciam que liberdade e igualdade não estão garantidas por qualquer procedimento ou instituição. A sorte da democracia não está dada a priori, posto que a mesma condição social de igualdade entre os homens pode ter como consequência ou um estado político despótico, no qual pouco importa se o déspota é apenas um ou a maioria de um povo, ou um estado político de liberdade, no qual cada cidadão reconhece a si e aos demais como membro do poder soberano.
Ainda que a igualdade social e a liberdade política sejam inseparáveis como qualificativos do Estado democrático, Tocqueville incita-nos a pensar que as diferentes expressões políticas da forma social são consequências que derivam da vontade, da sabedoria e da ação dos homens. Assim, o esforço tocquevilleano para buscar as causas profundas da Revolução assemelha-se, como ele mesmo afirma, ao esforço dos médicos que buscam descobrir, nos órgãos de um corpo já morto, as leis da vida. Ainda acreditando no ideal que inspirou os revolucionários de 1798, por meio da análise dos fatos descritos em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville busca, mais uma vez, instigar os homens a participarem do processo de construção de um estado social e político democrático, no qual liberdade e igualdade estendam-se a todos.
Esta obra, publicada em 1856, foi, no mesmo ano, traduzida e publicada na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha e, ainda antes da morte de Tocqueville, em 1859, alcançou sua quarta edição na França. Desde então, inúmeras são as publicações desse livro. No Brasil, duas edições anteriores encontram-se esgotadas há alguns anos. A edição da Martins Fontes valoriza o texto tocquevilleano, ao incluí-lo em sua coleção de clássicos, assim como pela tradução cuidada do texto. Lastimo apenas que não tenha incluído a totalidade das notas feitas pelo autor, que apresentam aos leitores situações particulares de países da Europa e discutem seus costumes.
Helena Esser dos Reis – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil. E-mail: helenaesser@uol.com.br
[DR]Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.
Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.
A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.
Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.
O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).
A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.
Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.
Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.
Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.
A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.
Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.
A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.
E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).
Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.
Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.
[IF]O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime | Ana Cristina Nogueira da Silva
Ana Cristina Nogueira da Silva integra um grupo de historiadores portugueses de inegável qualidade que, sob a coordenação de Antônio Manuel Hespanha, vem desenvolvendo importantes trabalhos acerca do Estado português, em especial dos séculos XVII e XVIII. Fruto de uma dissertação de mestrado apresentada em 1997, na Universidade de Lisboa, O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime, impressiona positivamente sob vários aspectos: problemática pertinente, rica pesquisa documental, ampla e atualizada bibliografia, análise simultaneamente particular e geral dos aspectos abordados. Nela, a autora propõe interessantes questões acerca da história portuguesa do Antigo Regime e induz à reflexão de pontos mais amplos que podem interessar também aos estudiosos de história do Brasil.
Trata-se de um estudo sobre a “Lei da reforma das comarcas” elaborada em 1790, durante o reinado de D. Maria I, o qual visava a uma racionalização administrativa e judicial do território do Reino. A partir daí, os objetivos de Silva consistem em “falar(…)das formas como essa entidade algo abstrata a que costumamos chamar de Estado moderno pensou o seu espaço num momento histórico determinado – os finais do século XVIII” (p.18), mais especificamente surpreender “a partir dos discursos produzidos pelos agentes de uma reforma territorial experimentada em Portugal(…), um novo imaginário político sobre o espaço que surge nesta época – o imaginário estadual -, bem como a forma como ele foi atuado e apropriado pelos diferentes discursos que se produziram no contexto da discussão desta reforma” para, finalmente, “descrever, com base nos mesmo discursos, as lógicas de organização espacial que tal reforma veio pôr em causa” (p.20). Leia Mais