Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867- 1933) | Francis Manzoni

Quem eram os caipiras e quais os significados de ser um, na São Paulo, de fins do século XIX e inícios do século XX? Esse é ponto de partida do historiador Francis Manzoni para a consistente pesquisa de mestrado em História (UNESP) que resultou no livro Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867-1933). Ao nos conduzir por uma São Paulo diferente daquela dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas lavouras de café, o autor nos apresenta uma gama variada de personagens e costumes que teimavam em resistir aos delírios da burguesia paulista pela (re)construção de uma metrópole moderna e europeizada.

Investigando as relações sociais presentes nos mercados e feiras livres da São Paulo, Manzoni opera na intersecção de campos como a História Social do Trabalho e a História Urbana, dialogando com uma série de estudos que foram realizados nos últimos anos sobre a importância das Praças de Mercado para as principais cidades brasileiras, e que tiveram como preocupação a compreensão das relações, conflitos e tensões sociais que tiveram nas Praças de Mercado o seu núcleo irradiador. Dentre esses estudos temos, por exemplo, o livro publicado por Martins (2010) sobre a Praça de Mercado de Campinas, em que o autor identifica e analisa as múltiplas faces e finalidades dos mercados na cidade do interior paulista, assim como os significados das articulações sociais, econômicas e culturais dos frequentadores daqueles espaços. Outra publicação é o livro de Richard Graham (2010) sobre as relações formadas, e vivenciadas, pelos trabalhadores e trabalhadoras do comércio de gêneros empenhados em alimentar a cidade de São Salvador, na Bahia. Cabe destacar também o livro de Juliana Barreto Farias (2015), sobre a forte presença de africanas nas Minas na Praça de Mercado do Rio de Janeiro, em que a autora iluminou uma série de estratégias de sobrevivências de trabalhadoras escravizadas e livres, assim como as dinâmicas sociais vivenciadas na Praça de Mercado da maior cidade brasileira. Leia Mais

Demons and Spirits in Ancient Egypt | Carolyn Graves-Brown

O que são “demônios”? Apresentação da problemática

A questão coloca-se quando atestamos o fato de que a língua egípcia não fornece um termo próprio para a definição de “demônio” (TE VELDE, 1975, 980). Representando uma definição “tradicional” do termo, Te Velde definiu “demônios” como uma categoria de entidades espirituais diretamente ligadas ao Caos. Todavia, os critérios adotados pelos egiptólogos para a construção de um conceito de demônio derivam da interpretação tardo-antiga e cristã do termo, que os opõe ao conceito cristão de “anjo” (AHN, 1997) – também inexistente na língua egípcia.

A definição da categoria pela Egiptologia assumiu como premissa a definição platônica do daimôn (Symposium 202E), onde demônios eram “mortais” e “criados” em oposição aos deuses. Por outro lado, todos os deuses egípcios eram percebidos como mortais e criados, o que inviabiliza imediatamente essa analogia. Ainda assim, a concepção platônica de “demônios” como seres intermediários entre o mundo mortal e o mundo divino é bem apropriada ao caso egípcio, uma vez que o debate entre o existir e não-existir é para o pensamento religioso egípcio mais relevante do que o debate entre bem e mal (LUCARELLI, 2010, 2). Leia Mais

Der Begriff des Politischen. Synoptische Darstellung der Texte | Carl Schmitt

Autor e livro dispensam apresentações. O impacto suscitado por esse ensaio de 1927 pode ser medido por uma pequena lista dos seus resenhistas de primeira hora, que inclui nomes como Delio Cantimori, Karl Löwith, Eugenio Imaz, Herbert Marcuse, Sérgio Buarque de Holanda e Leo Strauss. A história de sua recepção é fascinante. Um mestre da suspeita como Habermas (2007, p. 80) advertiu que seria um grave erro tentar suprimir as notórias deficiências da teoria política marxista recorrendo à “crítica fascista de Carl Schmitt à democracia”. O tabu habermasiano jamais entusiasmou muita gente, pela simples razão de que Schmitt é um daqueles poucos autores a quem podemos chamar de “bons para pensar”. A esse respeito, uma pequena anedota: Jacob Taubes conta que, quando foi fellow na Universidade de Jerusalém, apenas quatro anos após o fim da Segunda Guerra, teve grande dificuldade para acessar a Teoria da constituição de Schmitt porque o exemplar da biblioteca fora requisitado pelo ministro da justiça, então ocupado com a formulação de um esboço da Constituição para o Estado de Israel (TAUBES, 1987, p. 19). Nos últimos anos, Chantal Mouffe tem apostado suas fichas num híbrido gramsciano-schmittiano que, acredita ela, seria capaz de recarregar as baterias da esquerda num mundo “pós-político”. Tal como o Koselleck de Crítica e crise, que via na moralização uma deturpação do político – uma conhecida tese schmittiana –, Mouffe reclama a mesma neutralização ética do político, além do abandono do racionalismo liberal que permita “[…] mobilizar as paixões para fins democráticos” (MOUFFE, 2007, p. 13-14). Para quem já teve oportunidade de ler Francisco Campos, o déjà vu é inevitável.

O festival de sinais trocados não é menor no campo liberal. Enquanto Johan Huizinga viu nas teses de Schmitt um inequívoco sintoma da “enfermidade espiritual” da Europa do Entreguerras, um influente historiador e teórico do direito como Ernst-Wolfgang Böckenförde assumiu publicamente sua dívida intelectual para com Schmitt e uma inabalada admiração por O conceito do político. E se Mark Lilla rejeita explicitamente toda “política do desespero teológico”, ele é honesto o bastante para admitir, não sem ironia, que o teorema amigo/inimigo, o antiliberalismo e o decisionismo schmittianos são uma espécie de ponto de fuga intelectual em que buscam refúgio e justificação muitos dos que se colocam nos extremos do espectro político. “Não surpreende, assim, que jovens revolucionários que um dia haviam cortado cana em Cuba tomassem o trem para Plettenberg, compartilhando as cabines com seus adversários conservadores” (LILLA, 2017, p. 63). Reinhart Koselleck, Giorgio Agamben e Sérgio Buarque são apenas três entre os muitos que, de fato ou imaginariamente, compraram seus bilhetes para o lugarejo onde se refugiara “o apocalíptico da contrarrevolução” (a expressão é de Taubes). Leia Mais

A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico – NIXEY (AN)

NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desassossego, 2018. Resenha de: SILVA, Paulo Duarte. Ecos de Gibbon: a s trevas cristãs revisitadas?  Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020.

“A encantadora estátua de Atena [em Atenas, aproximadamente entre 529 e 532 e.C.], a deusa da sabedoria […] [n]ão foi só decapitada, como […] usada como degrau. […]. O ‘triunfo’ do Cristianismo estava completo” (NIXEY, 2018, p. 279). Assim Catherine Nixey encerra A chegada das trevas (The Darkening Age, Pan Macmillian, 2017).

Composta por 329 páginas, uma introdução e 16 capítulos, 1 mapa, 33 ilustrações referen­ciadas, 25 páginas de bibliografia e 6 de índice onomástico, a versão portuguesa possui poucos contratempos.1 Uma breve busca online mostra que o texto alcançou grande repercussão. Em linguagem acessível e amparada em novas — e tradicionais — referências, a jornalista recorre à sua formação em Estudos Clássicos em Cambridge e à sua experiência docente pregressa para discutir o papel do Cristianismo na “derrocada” do mundo clássico.

Segundo Nixey, tal ruína iniciou-se com a ascensão de Constantino, que teria inaugurado o “século I do domínio cristão” (p. 197, 201), desvirtuando um mundo em que religião e política não se misturavam (p. 243), já que eram civilizadamente regidos pelas leis (p. 255). Assim, embora reconheça a relevância de questões climáticas e demográficas (p. 157), das invasões “bárbaras” (p. 30-31, 264) e de suposta decadência moral romana (p. 37), a autora responsabiliza o Cristianismo.2

Ao considerar que muitos usa(ra)m “o monoteísmo e suas armas para fins terríveis” (p. 34, 129), a autora relaciona a temática ao debate público contemporâneo, pela alusão expressa à Palmira (p. 17-18, 29): sem citar a obra de Veyne (2015) dedicada à cidade síria, denuncia seu drama, arrui­nada pelos cristãos e, hoje, pelos muçulmanos.

Nixey argumenta que, após intensa contenda intelectual e a destruição de espaços e monu­mentos considerados “pagãos”, a pregação cristã voltou-se à moralização dos costumes sociais e sexuais (p. 28-29, 189-252).3 É difícil não tomar tal juízo como advertência às recentes discussões sobre televangelismo, movimentos antivacina e terraplanistas, “ideologia de gênero” e afins: pro­vavelmente esta é a principal contribuição da obra e, a um só tempo, seu grande risco.

Deste modo, o primeiro eixo da obra remete ao embate entre os escritos de “pagãos” e cris­tãos, com o amplo escopo de interesses e a complexidade investigativa dos primeiros contrastados à relativa simplicidade dos últimos: por exemplo, ao apresentar os tratados de medicina de Galeno (p. 61-65), para quem “[e]ra preciso provar […]. Fazer outra coisa era, para Galeno, o método de um idiota. Era o método de um cristão” (p. 64).4

Além das contribuições “científicas”, outro âmbito elogiado é o da poesia e do teatro, pelas obras de Calímaco e de tragediógrafos como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (p. 160-172). A estes se somam textos satíricos e/ou sexuais, como os de Ovídio, Marcial e, sobretudo, Catulo (p. 171-179).5 No plano religioso, a autora exalta a interpretação cética de Celso em relação aos dogmas cristãos (p. 64-73), e o relativismo politeísta de Luciano, Plínio o Velho, Plutarco, dentre outros (p. 70-81, 110-111, 121, 173-181, 305).

São aclamados ainda pensadores como Cícero, Sêneca, Plínio o Novo (p. 99-113), Libânio (p. 141-152, 189-228, 254-255), Damáscio (p. 23-26, 259-272) e Símaco, líder da chamada “reação pagã” de fins do século IV (153-154). Em termos científicos, literários e religiosos, seus nomes e obras são reunidos sob o epítome da “cultura clássica” e os cuidados do imperador-filósofo Marco Aurélio (m. 180) (p. 61).

À intelligentsia antiga opuseram-se os “grandes gigantes da Igreja” (p. 47). Neste grupo, figuram Tertuliano (p. 91-105, 174-183, 219-228), Orígenes (65-69), Cipriano, Jerônimo (227-241), Martinho de Tours (p. 143-151), Shenoute (p. 243-256) e Agostinho; além de Atanásio (p. 37-49), Teófilo (p. 141-144, 164) e Cirilo (p. 154-167), bispos de Alexandria (p. 157-167), e Crisóstomo, importante pregador cristão (p. 189-252).

Na disputa com os “pagãos”, estes contariam não somente com o apoio de imperadores,6 mas de hostes violentas e temerárias: além de monges que, segundo detratores, eram “vulgares, malcheirosos, mal-educados, violentos” e “falsos” (p. 141, 231-239), as fileiras eram compostas por maqueiros, coveiros, parabolanos alexandrinos (p. 167), além dos circunceliões africanos (p. 252-256).

Subentende-se que o Cristianismo só teria superado o “gênio” cultural clássico pelos favores imperiais e, sobretudo, por meio da violência. Como “todo um modo de vida […] desaparecia” (p. 201), Nixey enfatiza a destruição promovida pelos cristãos, dividindo-a em três ramos: das estátuas, dos monumentos e espaços urbanos e do citado patrimônio literário.

Quanto às estátuas, a autora destaca, dentre outras (p. 127-130, 138-139), as dedicadas à Atena em Palmira (p. 17-18, 280) e Atenas (p. 273), e a ateniense dedicada à Afrodite (p. 137), que ilustra a capa da versão portuguesa. Considera ainda tanto a reutilização dos materiais quanto associa suas castrações ao recrudescimento da pregação cristã (p. 143-153, 252). Centrando-se em Atenas (p. 27, 117, 267-273), e, principalmente, Alexandria, Nixey denuncia a devastação promovida pelos cristãos. Assim, lamenta a destruição da “maior biblioteca do mundo antigo” (p. 27, 157-167), bem como do Farol, do Serapeu e do Museu (p. 117-122). As referências dispersas pelo texto dão a entender que, em âmbito local, outros espaços sociais relevantes foram sendo destruídos ou abandonados, como os teatros, jogos, circos e banhos (p. 221-228).7

Daí resultaria a perda colossal de textos (p. 28, 30-31, 71), “combinação de ignorância, medo e idiotice” (p. 198) e, no campo artístico, correlata à “maior destruição […] que a história humana alguma vez assistiu” (p. 33, 71, nota 97). Tal estrago associou-se a dois processos: por um lado, e não sem problemas, as letras clássicas seriam adequadas ao filtro cristão, que lhes concedia pouca ou nenhuma brecha (p. 171-186); por outro, a censura e a queima de livros cresceriam, com a referida moralização dos costumes testemunhada nos sermões cristãos (p. 189-228).

A nosso ver, Nixey tem dois méritos: criticar contundentemente a interpretação histórica demasiado otimista sobre o “triunfo cristão” (p. 18, 25-26, 33, 273), ao recorrer parcialmente às recentes discussões historiográficas. Assim, ainda que concorde com a premissa dos pesquisadores tardo-antiquistas, pela qual a expansão cristã deva ser considerada um fenômeno histórico rele­vante e multifacetado, a autora critica o viés positivo que algumas interpretações assumiram (p. 130-134, 148-149), como a de Brown (1997, p. 212-213 apud NIXEY, 2018, p. 149, nota 322), que minimizaria a destruição de templos, ou mesmo a alegação de que o Cristianismo seria “prote­tor da tradição clássica” (p. 171).8 Para tal, recorre aos recentes argumentos de Drake (p. 129, nota 260) e Garnsey (p. 150, nota 327), e do próprio Brown (p. 158, nota 346) a respeito da “tolerância cristã”, além de Shaw e Gaddis sobre a “violência sagrada” cristã (p. 243-256).9

Contudo, em que pese reconhecer seus méritos, a leitura do texto promove diversos incômo­dos. Formalmente, a falta de um plano de capítulos e o fato de que os títulos de cada sessão nem sempre são esclarecedores criam uma sensação de repetição. Porém, mais embaraçoso é perceber que, mesmo ao incorporar importantes contribuições historiográficas, um juízo gibboniano per­meia o texto, pelas citações diretas ao historiador britânico (p. 65-66, 95, 121, 132, 192, 201, 264) e pelo tom pejorativo com que interpreta, ironicamente, o “triunfo cristão”.

A responsabilização do Cristianismo conduz a um indisfarçado senso de superioridade estética e cultural dos antigos frente aos seus rivais. Comparados a crianças (p. 126), os cristãos teriam erguido, sobre as ruínas dos templos antigos, edifícios de pior qualidade (p. 117-121, 261), e possivelmente só equiparariam o volume documental da biblioteca alexandrina em meados do século XIV (p. 161).

No texto, a ênfase da autora em um contraste caricato entre a ignorância destrutiva dos cris­tãos e a liberdade “iluminista” antiga é ressalvada de modo muito pontual (p. 31, 117, 137-138, 173-174, 225, 272). Pior: esbarra em frases categóricas como “quer o politeísmo greco-romano fosse verdadeiramente ‘tolerante’ ou não, não restam dúvidas de que os velhos hábitos eram, na sua base, liberais e generosos” (p. 153), ou, ao comentar sobre Plínio o Novo, indicar que este era “o romano perfeito: demasiado educado para se dedicar a uma fervorosa crença nos deuses” (p. 104).

Nixey subestimou a capacidade intelectual dos cristãos no embate com os “pagãos”, mas não apenas. Em um dos raros comentários sobre as contendas intelectuais entre cristãos, afirma que

[o]s heréticos eram intelectuais, portanto os intelectuais eram, se não heréticos, sem dúvida suspeitos. Assim era o silogismo. A simplicidade intelectual ou, para usar um nome menos elogioso, a ignorância, era largamente celebrada […]. A ignorância era poder. (p. 180).

Talvez por isso, também tropece em questões metodológicas e conceituais. Quanto aos docu­mentos, frisa-se o relativo cuidado em relação às fontes selecionadas (p. 31-33, 50, 55, 65, 86, 130-134, 139-143, 238): este, contudo, se ofusca por uma reflexão tardia sobre contingências materiais que então envolviam a produção textual (p. 196, cf. p. 64, 68, 80, 171-186) e pela discrepância com 4 de 5  que examina, minuciosamente, a variada documentação cristã10 em busca da “lente distorcida” (p. 107) e de sua “visão deturpada” (p. 185), e que não encontra equivalência no caso dos “pagãos” (cf. p. 85-90, 99-113).

Quanto aos conceitos, ainda que atente sobre o uso de termos como “nação”, “religião” e “pagão” (p. 33, 133-134), o mesmo não ocorre com outros termos decisivos, como “cristão” e correlatos, como “bíblia” (p. 57, 129, 197), “heresia” (p. 70), “herético” (p. 80, cf. p. 134, 180) e mesmo “judeus” (p. 164-165), indispensáveis em qualquer estudo sobre o assunto. Em verdade, à exceção da menção a bispos e à “elite cristã” (p. 203), não se oferece uma reflexão sobre igreja(s) e Cristianismo(s).

Nota-se que, embora recuse parte do otimismo de diversos estudos tardo-antiquistas, Nixey desconsiderou aspectos que, em conjunto, resultam em uma obra que não atenta devidamente às nuances que envolvem o estudo das relações entre cristãos e “pagãos”. É significativa a ausência de menções aos trabalhos seminais de Jaeger (2014, original de 1961) e Cameron (1991), que mostraram que as fronteiras entre os discursos de cristãos e pagãos eram muito mais porosas do que se supunha.

Assim, embora saudemos a iniciativa em trazer à tona assuntos delicados, com os quais a historiografia vem demonstrando certo embaraço e dificuldade no debate público, frisamos que a dispensa de importantes ressalvas pode apenas reforçar o clichê gibboniano sobre as “trevas” cristãs: corre-se o risco de os muitos lados se entrincheirarem ainda mais. Resta saber como o público lusófono vai tomá-la.11

Referências

CAMERON, Averil. Christianity and the Rhetoric of Empire: the development of Christian discourse. Berkeley: University of California, 1991.

JAEGGER, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega. Santo André: Academia Cristã, 2014.

NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desas­sossego, 2018.

VEYNE, Paul. Palmyre: l’irremplaçable trésor. Paris: Albin Michel, 2015.

Notas  

1 Para além de erros de datação (p. 117), ortográficos (p. 185, 221, 234, nota 584), de concordância (p. 246, 254) e de tra­dução (p. 47, 72, 149), frisa-se a ausência dos títulos dos capítulos no sumário (p. 9).

2 Não à toa, ao defender que o citado “triunfo cristão” teria precipitado gradualmente a “Idade das Trevas” (p. 264), recorre a conhecidos episódios em que os cristãos teriam sobrepujado a “filosofia”, como no assassinato de Hipácia em 415 (p. 158-167) e na destruição da Academia ateniense (p. 30-32, 259-273). Ademais, ressaltam outros em que o “paga­nismo” teria sido suplantado, caso dos monumentos alexandrinos em fins do século IV, e da promulgação do Código de Justiniano, em 529 (p. 262-264).

3 Reconhecendo, timidamente, que tais reclames estivessem de acordo com ditames prévios de parte da aristocracia (p. 215-216).

4 Da mesma forma, é saudada a teoria atomista de Demócrito, além de físicos, matemáticos e astrônomos como Arqui­medes, Erastóstenes, Aristarco, Hiparco (p. 161-162, 272) e a citada Hipácia.

5 No caso deste, Nixey ressalta que o pudor editorial para com seus textos não se limitou aos oitocentos, chegando mesmo até traduções de fins do século passado (p. 176-177).5 de 5

6 Mesmo ambíguo e vacilante, Constantino teria aberto caminho ao “rugido do mundo” cristão (p. 55-57). Justiniano, por sua vez, é mencionado quando se aborda o ímpeto moralizador cristão (p. 211, 252-271).

7 Em compasso à superação das festas antigas (p. 228, 238, 261-262).

8 Além de expor o pudor com que se pode tratar, ainda hoje, a sexualidade em Catulo (p. 171-179) e Ovídio (p. 196), ou mesmo exibida em Pompeia (p. 205-212).

9 Outros temas relevantes remetem à destruição de estátuas por Kristensen (p. 138, nota 279) e à censura de livros por Chadwick e MacMullen (p. 186, nota 438) e Rohmann (p. 198-228).

10 Hagiografias (p. 143-147), epístolas (p. 152-153), histórias (p. 185-186) e, sobretudo, os relatos martiriais (p. 90-98) e de perseguição (p. 99-113), dentre outros.

11 Em 2018, Nixey concedeu uma entrevista ao semanário Expresso, de maior alcance em Portugal no mesmo ano. Disponível em: https://leitor.expresso.pt/diario/29-05-2018/html/caderno-1/cultura/catherine-nixey–o-meu-livro-mostra-como-os-cristaos-destruiram-estatuas-e-templos-e-queimaram-livros-1. Acesso em: 7 jul. 2019. Ao passo que historiadores como Cameron (2017) e Drake (2019) já produziram resenhas de amplo alcance em língua inglesa, a recep­ção do público lusófono continua ainda particularmente atrelada à blogosfera cristã, vide: https://logosapologetica.com/ critica-do-livro-a-chegada-das-trevas-de-catherine-nixey. Acesso em: 7 jul. 2019.

Paulo Duarte Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em História Comparada da mesma instituição (PPGHC-UFRJ). E-mail: pauloduartexxi@hotmail.com.

Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222. (Coleção Ditos e Escritos, IV.)

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1988.  PELBART, Peter Pal. A vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: wellingtonpet@gmail.com.

Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África – PAIVA (AN)

PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017. Resenha de: MACHADO, Carolina Bezerra. A escrita da História da África: Política e Resistência  Anos 90, Por to Alegre, v. 26 – e2019501 – 2019.

Em meio a constantes desafios político-ideológicos, os estudos africanos vêm se firmando como um campo de pesquisa no cenário brasileiro, o que contribui diretamente para o desenvolvimento da escrita da História da África no país. Esse movimento favorece também o rompimento dos estereótipos ainda pertinentes que geram desconhecimento, preconceitos e deturpações acerca da historicidade africana, por anos renegada ou mesmo ocidentalizada. A mudança de perspectiva está amparada em uma historiografia que busca valorizar o africano enquanto sujeito da sua história, colocando-o em primeiro plano para refletirmos sobre os eventos no continente africano, o que não significa renegar a sua relação com o outro, mas desejar compreender os processos históricos a partir do olhar de dentro. Ressalta-se ainda que essa perspectiva traz à tona a riqueza da diversidade presente no continente, que sob o olhar colonial sempre foi visto como homogêneo.  Nesse sentido, o livro Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história da África de Felipe Paiva traz um debate fundamental para repensarmos a escrita historiográfica da África. Resultado de sua pesquisa de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense e agora publicada pela Eduff, o livro concentra-se em um caloroso debate sobre a ideia de resistência na obra História Geral da África da Unesco. Tomado como principal fonte ao longo da sua pesquisa, o conjunto de oito volumes publicados em diferentes momentos entre a década de 1960 e 1990, de acordo com o autor, apresenta uma “polifonia conceitual”, não só pelas diferentes vozes que compõem os volumes, mas, sobretudo, pela diferença teórica que os acompanham ao abordar o termo resistência.

De acordo com Paiva, essa abordagem deveria vir acompanhada de um debate conceitual em que resistência deveria aparecer como um conceito móvel, considerando o ambiente de tensões, conflitos e disputas políticas que envolvem a história do continente. Ou seja, como conceito deve ser visto dentro de um processo passível de permanências e rupturas e retomado dentro da sua historicidade. Logo, ao escolher como referência a obra publicada no Brasil pela Unesco, deve-se considerar o contexto político-social em que cada volume foi produzido, principalmente ao darmo- -nos conta que foi um período de intensas mudanças no cenário africano a partir da independência dos países, rompendo com o jugo colonial.

Todavia, o livro também não deixa de apontar para trabalhos anteriores de intelectuais que compõem a coletânea, o objetivo é introduzir o leitor ao intenso debate historiográfico em que a HGA foi produzida. As escolhas teóricas que a acompanham já vinham sendo desenvolvidas e fundamentadas em torno de uma perspectiva que elegia o africano como o sujeito da sua história. Além disso, chama a atenção também o tratamento do autor para os autores da obra, vistos não apenas como referências historiográficas, mas como personagens históricos e testemunhas de uma época (PAIVA, 2017, p. 19). Essa posição reconhece o quanto esses intelectuais foram testemunhas de mudanças, atuando no processo de formação de suas nações e, por isso, atores diretos na legiti­mação de um movimento historiográfico que era também, se não, sobretudo, político-ideológico.

A escolha da obra não é fortuita, a sua produção fora marcada por um campo de luta política, que pretendia retomar a perspectiva africana como análise central. Para isso, a escolha dos autores da coletânea foi claramente um ato político, à medida que dois terços eram intelectuais africanos (LIMA, 2012, p. 281). Como afirma o historiador Joseph Ki-Zerbo, um dos grandes nomes e organizadores da obra, a História Geral da África vinha na contramão de uma perspectiva que negava a historicidade do continente. Desse modo, a obra não deve ser encarada apenas dentro do campo historiográfico, mas também a partir do campo político, em que o ato de resistir pode ser encarado como a força motriz da coleção. Por isso, acertadamente, Felipe Paiva retoma o termo resistência, presente entre os volumes, mas não claramente definido no conjunto da obra. A polifo­nia apareceria de imediato a partir dos diferentes usos da palavra, que, para o pesquisador, apenas ganha valor conceitual dentro de um espaço colonial e que, por outro lado, desaparece quando os conflitos são entre africanos. Até o VI volume teríamos um uso apenas vocabular da palavra, sem ser claramente definida, assim sendo apenas a partir do volume VII, quando os autores se voltam para o conceito, visto que a presença colonial passa a ser analisada em sua especificidade.

Como realçamos, a sutileza em abordar determinado conceito ao longo da HGA chama-nos a atenção para os usos políticos da obra. O debate promovido contribui para refletirmos sobre a escrita da história da África em diálogo com uma perspectiva teórica que repensa as relações colo­niais a partir dos agentes internos. É nesse limiar que as contradições e complexidades ausentes em uma análise do continente, até então presa a uma perspectiva eurocentrista, passam a ser evidentes. Dito isto, o título escolhido para o livro propõe apontar para as insubmissões africanas, a partir de suas diferentes vozes ancoradas no conceito polissêmico de resistência. Todavia, notamos que Paiva aponta para a contradição existente na HGA. Pois, embora os autores retratem os movimentos de resistência a partir de um processo homogêneo, construído em oposição ao colonialismo, a sensi­bilidade em analisar os artigos que compõem a coleção apontam para as diferenças existentes entre os intelectuais à medida que os interesses individuais, regionais, políticos, culturais, religiosos e, até mesmo, de gênero, vão aparecendo na escrita. Nesse sentido, o uso da palavra resistência deve ser problematizado, por mais que no conjunto da obra seja possível identificarmos que a palavra tenha sido forjada contra o colonizador.

Dividido entre o prefácio de Marcelo Bittencourt, seu orientador ao longo da pesquisa, que destaca o valor da obra a partir da sua contribuição teórica; uma apresentação, que aponta para os objetivos que pretende, as hipóteses que levanta, assim como o porquê de algumas de suas escolhas teórico-metodológicas e mais três capítulos com subdivisões, o livro de Felipe Paiva vem preencher uma lacuna importante para a escrita da história do continente africano, que dentro da realidade acadêmica brasileira também se traduz em resistência.

O primeiro capítulo volta-se, sobretudo, para um debate teórico e historiográfico o qual se destaca um intelectual: Joseph Ki-Zerbo. A análise pormenorizada de suas pesquisas anteriores, estas que dialogam com a escrita da obra referencial, permite acompanhar alguns dos objetivos desenvolvidos na HGA, comprometida historiograficamente com um contexto histórico de valo­rização do continente africano e de afirmação dos movimentos nacionalistas e independentistas que ganhavam força naqueles anos. Nesse ínterim, podemos notar o quanto a escrita de Ki-Zerbo se encontra sensível à perspectiva pan-africanista, traduzida para o “grau de família” que Paiva chama a atenção. A ideia de “família africana”, ou mesmo da África enquanto pátria, é observada a partir dos “intercâmbios positivos que ligariam os povos africanos nos planos biológico, tecno­lógico, cultural, religioso e sociopolítico” (PAIVA, 2017, p. 25). Tal abordagem, de acordo com o autor, merece cuidado, pois por vezes pode negar as contradições existentes entre os intelectuais que contribuíram para a obra, conforme fora apontado acima.

Por isso, ao retomar a ideia de resistência na obra durante o período que antecedeu a presença colonial, esse é visto por Felipe Paiva apenas em sentido vocabular, sem uma definição concreta. O sentido conceitual só aparece em oposição a um outro, estrangeiro, nunca em referência aos combates internos, produzindo uma falsa ideia de harmonia entre os africanos, que a análise do conjunto da própria obra é capaz de negar, como nos mostra seu livro. Desse modo, o primeiro capítulo volta-se para os interesses teóricos e políticos da obra, enfatizando uma leitura que vê a escrita historiográfica do continente dentro de uma perspectiva de tomada de consciência do africano, em um claro processo chamado de “(re)africanização da África”. Somos, nesse sentido, a partir da leitura de Felipe Paiva, direcionados aos cuidados que devemos ter ao nos aprofundarmos sobre os debates acalorados que cercam os interesses que levaram à escrita da obra.

Quanto ao segundo capítulo, a abordagem volta-se, especificamente, para o volume VII da HGA, em que para o autor o conceito de resistência passa a ser propriamente construído e apresentado junto a preocupações epistemológicas antes ausentes. Ao abordar esse momento da coletânea, Paiva ressalta a construção de uma África como personagem, que sofre um trauma e, de maneira coesa, se constrói em roupagem de resistência contra o colonizador. É a partir dessa narrativa que resistência enquanto conceito se desenvolve e dirige-se exclusivamente em oposição ao colonialismo. Temos aí a construção de uma ideia de África pautada a partir da experiência colonial, que embora retomasse a história dos africanos a partir de um novo enfoque, ainda guar­dava uma visão harmônica do continente. A presença europeia seria vista como um choque que rompeu com o passado africano.

Devemos destacar, ainda nesse capítulo, as interpretações sobre o conceito de resistência pertinentes para o historiador. Para ele, podemos apontar para duas abordagens entre os autores da HGA: a tradicionalista e a marxista. A primeira refere-se a um passado pré-colonial permeado 4 de 5  por uma suposta coesão entre o passado, anterior ao colonialismo e retratado como grandioso e estático, e o presente, interessante a partir de uma concepção nacionalista, em que as lutas anti­coloniais do século XIX estariam plenamente em diálogo com os movimentos independentistas que irromperam em meados do século XX. Assim, esses movimentos eram vistos dentro de uma tradição de valorização de uma África resistente e una, que por vezes se utilizou da concepção racial para formatar suas ideias. Há, em diálogo com essa perspectiva, grande ênfase nas autoridades tradicionais retratadas como defensoras de um modelo de vida ligado à tradição africana, posta em oposição à modernidade, interpretada como uma imposição colonial.

Por outro lado, mas com o mesmo objetivo de destacar a tradição de resistência dos africanos, a abordagem marxista é assim denominada a partir do “uso de noções e categorias advindas da historiografia marxista ou que lhe são próximas” (PAIVA, 2017, p. 94). Ou seja, não necessaria­mente esses autores se colocam como marxistas mas retratam o conceito de resistência, sobretudo, em reação ao capitalismo. Por isso, a ênfase na luta de classes, formada na esteira das relações de produção advindas com o colonialismo e impostas aos africanos.

Esses dois aportes teóricos, de acordo com Felipe Paiva, servem para repensarmos sobre um tema fundamental na ideia de resistência na África: a sua temporalidade. Ou seja, como podemos captar quando inicia o processo de resistência em África? Pois, por mais que ocorra uma continuidade entre as variadas formas de oposição africana no período colonial e as lutas independentistas, temos que considerar que elas não são um movimento homogêneo que se estruturou necessariamente para desembocar nas independências, afirmando um caráter progressivo (PAIVA, 2017, p. 114). Cabe, então, apontar para as complexidades que cercam essa relação, visto que a defesa central da pesquisa reside em considerar resistência enquanto processo, passível de permanências e rupturas.

O debate sob esse ponto de vista inicia no final do capítulo 2, a partir de uma série de análises dos autores que compõem a HGA, e levam ao capítulo 3. Voltado, sobretudo, para o VIII volume da coleção, o capítulo problematiza a ideia contida nesse volume de que a libertação nacional seria herdeira de uma tradição de resistência presente na África. Para um aprofundamento da questão, Paiva lança mão de estudos anteriores do organizador do volume, o queniano Ali Mazrui, ressal­tando as diferenças construídas pelo intelectual entre protesto, interpretado como fenômeno do Estado-nação, e resistência, vista como conceito herdeiro direto desse movimento. Desenvolve-se um grande debate teórico que tem por objetivo problematizar o modo como resistência é encarada dentro de um ambiente de valorização nacionalista com grande influência do pan-africanismo.

A partir dos debates travados e construídos com argumentações que extrapolam os objetivos iniciais do livro, pois nos levam para questões como nacionalismo, pan-africanismo, colonialismo, entre outros temas pertinentes à África, ressaltada dentro de sua complexidade, a leitura de Indômita Babel é uma importante oportunidade para conhecermos um pouco mais a História da África, sobretudo, a partir da sua escrita historiográfica, cercada de tensões e desafios. O diálogo com a História Geral da África, referência primordial para os estudos africanos, enriquece e solidifica a discussão proposta por Felipe Paiva, que continua a tecer em sua trajetória acadêmica um debate político-ideológico a partir dos intelectuais africanos Kwame Nkrumah e Gamal Abdel Nasser, tema da sua pesquisa de doutorado, que vem sendo desenvolvida desde 2015 no programa de história da Universidade Federal Fluminense.

Referências

LIMA, Mônica. A África tem uma história. Afro-Ásia, Salvador, n. 46, p. 279-288, 2012.  PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017.

Carolina Bezerra Machado – Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: lowbezerra@gmail.com.

As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910) – MATTOS (AN)

MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 308. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910). Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019503 – 2019.

Entre experiencias, agencias y resistencias: complejos de interconexiones y la coalición contra el colonialismo en el norte de Mozambique (1842-1910)  Among experiences, agencies, and resistances: the interconnection complex and the coalition against colonialism in northern Mozambique (1842-1910)

O florescimento e a consolidação de uma dinâmica historiografia africanista produzida no Brasil, nos últimos quinze anos, permitiu a ampliação das temáticas, objetos e espaços pesquisados. Uma das nações africanas que mais viu crescer o interesse de estudantes e investigadores brasilei­ros foi justamente a de Moçambique. Sinais dessa vitalidade podem ser encontrados na recente premiação da tese de Gabriela Aparecida dos Santos, vencedora do Prêmio Capes de Teses 2018, que versa sobre a construção e as redes de poder do Reino de Gaza, existente no século XIX entre as atuais fronteiras da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique. Outros exemplos são os dos sucessivos eventos sobre a África Austral, como o Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, realizado na Unicamp em 2015, ou a II Semana da África: Encontros com Moçambique, ocorrido em 2016, na PUC-Rio, dedicado inteiramente aos estudos sobre Moçambique e sua História. Nessa ocasião, em específico, pude participar da organização  Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a col igação. . .  2 de 9  do evento ao lado das pesquisadoras Carolina Maíra Moraes e Regiane Augusto de Mattos, esta última autora do livro As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910), publicado pela editora Alameda.

Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2012, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Leila M. G. Leite Hernandez, o livro é um importante contributo para a História da África. Na obra, as relações políticas africanas no norte de Moçambique, dos diferentes agentes sociais e políticos envolvidos nessas relações e do esforço colonial português no seu desmantelamento, são investigadas a partir da complexidade do conceito de resistência. Nesse sentido, a investigação histórica produzida por Regiane de Mattos emprega esse conceito para refletir sobre as experiências e agências africanas no contexto colonial de promoção e implementação das suas ferramentas de dominação.

A argumentação central presente em As dimensões da resistência em Angoche está no exercício de análise de diferentes grupos sociais africanos como agentes históricos, com objetivos diver­sos, trazendo uma série de questões teóricas e desafios metodológicos que vão sendo encarados na medida em que a autora investiga a existência de universos culturais distintos existentes no norte de Moçambique. Para isso, Regiane Mattos lança mão de uma ampla variedade de fontes, localizadas em coleções documentais no Brasil, em Portugal e em Moçambique. O cruzamento das fontes impressas, como os relatos dos militares e governadores gerais, com àquelas localiza­das, especialmente, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, demonstram a preocupação da autora em conectar seus alinhamentos teóricos e metodológicos com uma História empiricamente embasada. Existe um trabalho empírico primoroso de recolhimento e de cruzamento de fontes não necessariamente inéditas, mas que são colocadas sob novos caminhos interpretativos. O desafio em trabalhar com uma base documen­tal proveniente de diferentes formatos e objetivos é encarado pela autora com o seu desbravar de textos em variadas línguas, como o português e o árabe-suaíli, salientando, sempre que possível, as múltiplas possibilidades de traduções que os portugueses produziram para os escritos existentes na língua local. Com isso, as vozes africanas que emergem dos papeis do passado são investigadas como contínuos sistemas de conversões de significados, elaborados de próprio punho, traduzidos para o vernáculo português ou existentes nas entrelinhas das palavras escritas pelos portugueses.

A ideia de rede de relações sociais, culturais, econômicas e políticas construída a partir das experiências específicas dos grupos africanos analisados no livro é traduzida pela autora a partir do uso da expressão “complexo de interconexões”. É exatamente a partir dessas interações existentes entre os sultanatos do litoral norte moçambicano, sobretudo o de Angoche, o intenso diálogo desses com sultanatos do Índico, especialmente o de Zanzibar, as chefaturas macua-imbamelas do interior e a presença crescente das forças colonizadoras portuguesas na região, que a autora utiliza para explicar a formação de uma coligação de resistência. Constituída no final do século XIX por um aglomerado plural de chefaturas africanas, que possuíam uma vasta gama de imbricadas relações, organizaram-se com o objetivo concreto de oporem-se à presença colonizadora portuguesa na região.

Ao elencar variados grupos sociais africanos para o centro da interpretação, a autora iden­tifica uma necessária análise das conjunturas sociais, culturais, políticas e econômicas específicas pelas quais foram construídas as alianças entre distintos atores políticos e militares no norte de Moçambique. Essa guinada analítica denota, por um lado, uma constante, por vezes cansativa, mas importante contextualização das formações sócio-políticas africanas. Por outro lado, demonstra   uma capacidade refinada de leitura crítica das entrelinhas de suas variadas fontes, apresentando uma não linearidade da expansão colonial de Portugal sobre o território. O que quero dizer com isso é que Regiane de Mattos consegue, ao longo de sua obra, apresentar a ação colonial como um processo histórico composto por agentes sociais que tiveram que lidar com as debilidades de seus poderes e as rápidas mudanças promovidas pelos conflitos perpetrados pelos portugueses na sua busca por uma efetivação de sua dominação.

Ao promover uma análise das ações desses sujeitos sociais a partir de suas próprias confi­gurações e contextos sociais, culturais e políticos, a noção de resistência que emerge em sua obra se desvincula do exercício de buscar uma linearidade explicativa entre as ações contrárias ao colonialismo. Nesse sentido, o diálogo estabelecido ao longo do livro com a historiografia que se debruçou sobre o sultanato de Angoche está centrada na maneira pela qual essa empregou o conceito de resistência. Chamando a atenção para o pequeno número de pesquisas existentes sobre o norte de Moçambique para o período estudado, Regiane de Mattos apresenta ao leitor um panorama sobre a bibliografia produzida a partir da década de 1970 sobre as respostas africanas nessa região à expansão colonial portuguesa. Diferentemente do posicionamento de Malyn Newit, Nacy Hafkin, René Pélissier, Aurélio Rocha e Liazzat Bonate, autores elencados por Mattos como aqueles que dedicaram especial atenção à temática de sua pesquisa, As dimensões da resistência em Angoche pretende contrapor-se à noção de que a resistência à dominação colonial perpetrada pelas chefaturas islamizadas do norte de Moçambique tiveram como principal e, por vezes, exclusivo objetivo a manutenção de privilégios obtidos com o comércio de escravizados.

Segundo Mattos, essa bibliografia trouxe importantes contributos. Porém, ao problematizar a coligação estabelecida pelos agentes africanos contra os intuitos externos europeus de controle a partir da primazia econômica do desejo de continuidade da produção baseada na escravatura, teriam estabelecido análises anacrônicas ou moralizantes. Pélissier, por exemplo, os interesses econômicos da continuação do comércio de escravos foram o principal fator unificador na região, pois seria inexistente qualquer “consciência étnica”, sobretudo entre os macuas. Numa linha semelhante, Aurélio Rocha diminui a importância da presença do Islã como forma de estabelecimento de laços que fossem para além das elites e, consequentemente, capazes de produzir redes amplas de interesses. Ao mesmo tempo, pressupõe uma correlação causal de efeito entre as razões das revol­tas do sultanato de Angoche contra os portugueses e as ações europeias contrárias ao tráfico de escravos e, com isso, a impossibilidade do uso do termo resistência. Afinal, no sentido empregado por Rocha e Nacy Hafkin, como o mesmo conceito usado para explicar as lutas nacionalistas de oposição ao sistema colonial e que denotava um sentido de libertação poderia ser empregado para compreender ações africanas “até mesmo no sentido contrário ao do nacionalismo”1?

Questionando a existência de conexões lineares entre as ações africanas, de meados do século XIX e início do século XX, contrárias ao colonialismo e as lutas nacionalistas dos anos 1960, consequentemente posicionando-se nos debates sobre o emprego da noção de resistências na histo­riografia africanista, a autora lança novas luzes aos estudos sobre o norte de Moçambique durante o contexto de rápido desmantelamento das sociedades existentes naquela região. A multiplicidade de fontes empregadas, não necessariamente inéditas, é encarada de maneira singular a partir de procedimentos teóricos e metodológicos que lançam novas luzes sobre a formação da coligação de resistência como resultado da própria constituição e fortalecimento do sultanato de Angoche ao longo do século XIX. Regiane de Mattos presenteia-nos com uma consistente defesa da vitalidade 4 de 9  do conceito de resistência para interpretar as ações africanas, sem reduzi-las às dicotomias entre aqueles que colaboraram ou combateram a presença colonial.

Mattos estabelece um diálogo privilegiado com obras clássicas da historiografia africanista especializadas na temática da resistência, como as de Terence Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman, e com outras mais recentes que a problematizam, como os questionamentos de Frederick Cooper sobre a vitalidade do conceito ou o repensar da noção de insurgência apresentado na cole­tânea organizada por Jon Abbink, Mirjam Bruijn e Klass van Walraven. Seu intuito, com isso, é o de lançar seu olhar sobre as fontes e a bibliografia especializada para realizar “uma abordagem mais matizada da resistência” (MATTOS, 2015, p. 26). Aproximando-se de uma perspectiva recorrente do uso do conceito pela historiografia brasileira que dedicou especial atenção à história da escravi­dão, do negro e do pós-abolição nas Américas e no Atlântico, resistência é compreendida no livro como “o conjunto de ações, sem elas individuais ou organizadas em nome de diferentes grupos, elitistas ou não, não necessariamente incluindo violência física, como respostas às interferências políticas, econômicas e/ou culturais impostas por agentes externos e consideradas, de alguma maneira, ilegítimas pelos indivíduos que a elas foram submetidos” (MATTOS, 2015, p. 26).

Infelizmente, a autora não aponta para a íntima vinculação existente entre a historiografia sobre o passado africano produzida no Brasil e a noção que emprega ao longo do seu livro sobre a resistência, relação vital para a sua capacidade analítica singular das dinâmicas redes entre os grupos sociais africanos do norte de Moçambique. Dada a centralidade do conceito para a obra e a trajetória da autora, teria sido importante que a Regiane de Mattos indicasse como o crescimento significativo da historiografia africanista produzida no Brasil no século XXI e o seu uso relativa­mente distinto do conceito de resistência em comparação às perspectivas africanistas desenvolvidas em cenários acadêmicos africanos ou europeus deve-se, dentre muitos fatores externos ao meio acadêmico, à proliferação das investigações de trabalhos pioneiros sobre essas temáticas no meio historiográfico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais os trabalhos de historiadoras e historiadores passaram nesse contexto promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas perspec­tivas, experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes.  Muitos desses trabalhos foram inspirados pelas variadas perspectivas da micro-história ita­liana,2 pelas obras de E. P. Thompson,3 e por uma bibliografia norte-americana sobre as experiên­cias afro-americanas.4 O balanço historiográfico lançado em 1977 por Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920, citado por Mattos como crítico ao emprego do termo resistência, estabelece paralelos que poderiam ser interessantes de serem explorados entre a virada historiográfica brasileira citada anteriormente. Ao analisar as complexas abordagens existentes no campo da História da África a respeito do tema da resistência africana ao colonialismo europeu, Allen e Barbara Issacman apontam para uma percepção sobre o conceito de resistência para analisar as ações diárias de insatisfação dos africanos durante a vigência da dominação colonial europeia, como cabível de ser influenciada justamente por pesquisas reali­zadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA. Citando Eugene Genovese e o livro A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, livro lançado em 1974 e de grande alcance no Brasil, comparam as ações dos africanos colonizados com as dos escravizados na América:

Like the slaves in the American South, many oppressed workers covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any significant power, direct 5 de 9  confrontation was not often a viable strategy. Instead, the African peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and destruction of European property. The dominant European population, as in the United States, perceived these forms of day-to-day resistance as prima facie evidence of the docility and ignorance of their subor­dinates rather than as expressions of discontent.5

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica do conceito de resistência para a análise das ações africanas no passado colonial está relacionado aos processos de construção dos Estados independentes no período pós-colonial. As fundamentais críticas ao eurocentrismo elaborada nos contextos das descolonizações verteram para análises que reduziam as possibilida­des dos africanos de participarem ativamente da confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações contextuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram para si os desafios de promoção dos Estados africanos após suas independências justificaram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de corroboração das privações de liberdade contemporâneas e formas de repressões a grupos sociais questionadores dos rumos que estavam sendo tomados no período pós-colonial.6

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira, a historiografia africanista, sobre­tudo anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade do termo resistência como conceito e como categoria empírica de análise. Seu emprego em interpretações que reduziam o colonialismo a um sistema de dominação promovedor de uma sociedade binária dividida exclu­sivamente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das motivações e possibilidades das ações africanas para com as relações de poder instituídas, renegaram-no a uma visão de sua suposta incapacidade explicativa.

Não cabe aqui produzir uma interpretação sobre o itinerário ou a genealogia do emprego do conceito de resistência. Quero apenas destacar que as leituras distintas e, porém, tangenciais, sobre o uso e a validade do conceito são, em determinados círculos acadêmicos, entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O consenso atual parece estar na necessidade de evitar análises que retratem de forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aqueles que foram dominados. Isso não quer dizer que inexiste um valor da resistência como conceito ou como fenô­meno histórico. Como conceito e como prática, analisar a ação dos “de baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental para promover interessantes e inovadoras análises das experiências de sujeitos, aos quais lhes eram negados terem vozes durante suas vidas, ao mesmo tempo em que movimenta pautas contemporâneas de movimentos em prol de igualdades e da dignidade humana. Seguindo essa perspectiva, Regiane de Mattos privilegia a ação africana a partir de suas interfaces relacionais baseadas em laços de lealdade, parentesco, doações de terras, pelo comércio e pela religião islâmica como pontos focais de sua análise. É na totalidade dessas teias de relações que a autora constitui sua noção de complexo de interconexões. Consequentemente, aproxima-se de uma perspectiva de uma história total sobre as interações entre sociedades africanas e produções de regimes coloniais que orientam sua visão na leitura das fontes selecionadas. Como a autora recorrentemente chama atenção na sua obra, a procura por

[…] elementos de caráter nacionalista na coligação de resistência no norte de Moçambique pode ter provocado uma simplificação da análise dos fatores desencadeadores da resistência 6 de 9  e das formas de mobilização das diferentes sociedades envolvidas, ressaltando-se apenas o caráter econômico dos objetivos dessa coligação. Também pode ter influenciado um tipo de análise mais restrita, que não considera a dinâmica da resistência em seus diversos aspectos e dimensões (MATTOS, 2015, p. 30).

Ao reorientar o olhar analítico sobre a coligação da resistência, Regiane de Mattos distancia- -se das interpretações historiográficas predominantes que a compreendem por meio da primazia econômica como justificativa da configuração dessa associação para promover a oposição política e militar ao colonialismo português. A autora não deixa de lado a importância, ao longo do século XIX, do comércio de escravos para a formação e expansão do poder de Angoche. Porém, graças a sua abordagem teórico-metodológica, identifica nesse aspecto mercantil uma das muitas justifi­cativas para a união das elites locais contra o avançar colonial português e não àquela primordial. Sua leitura detalhada dos documentos, combinada com os campos bibliográficos que cita, também faz com que não seja promovida uma interpretação que entenda a resistência constituída no norte de Moçambique a presença colonial como cabível de uma avaliação moralizante que precisa ser feita sobre uma possível natureza menos nobre existente na coligação. Evitando embaraços con­temporâneos de um passado indigno de ser definido como resistente ao colonialismo, a escravidão e o comércio de escravos são entendidos como elementos constitutivos daquela sociedade que se encontravam em rápida transformação.  Como resposta à prerrogativa econômica de manutenção da escravidão e do comércio de escravos que direcionou as interpretações existentes, o que temos em As dimensões da resistência em Angoche é o estudo primoroso da complexidade das relações sociais e políticas que vão para além do desejo de manutenção, pelos membros das elites africanas, dessa forma de exploração humana. Regiane de Mattos consegue, sobretudo nos três primeiros capítulos de sua obra, quando mergulha sua análise nas relações familiares, de poder e religiosas, apontar para a diversidade de fatores que sustentaram o apoio entre as sociedades macuas do interior e suaílis do litoral.

A necessidade de compreender as dinâmicas específicas dos contextos históricos advogada por Regiane de Mattos pode ser percebida, por exemplo, no seu exame do papel da etnia e de sua incapacidade explicativa das experiências e ações dos africanos do norte de Moçambique. A cate­gorização dessas populações em grupos étnicos estanques, promovida pelo colonialismo, é pouco eficaz para compreendermos as dinâmicas interconexões que terminaram por promover respostas individuais ao colonialismo ou à organização supra étnica da coligação de resistência. A autora identifica os etnômios descritos nas fontes portuguesas como produtos da modernidade. Ou seja, como fenômenos constitutivos e constituintes do final do século XIX e início do XX precisam ser analisados a partir de uma perspectiva histórica não essencializada. Nesse sentido, a construção das características dos macuas e das sociedades suaílis tem sido percebida como a construção de realidades móveis contextuais. Por um lado, o exercício interpretativo existente em As dimensões da resistência em Angoche desconstrói historicamente o objeto étnico promovido pelo poder colonial que, desconhecendo e negando a história, apressado em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e a justificativa da dominação, construiu, promoveu e engessou etiquetas étnicas. Por outro lado, de maneira semelhante ao esforço em afastar-se das noções de resistência existentes no período das independências nacionais, a obra de Mattos termina por contrapor-se à apropriação dos clichês da etnologia colonial que foram acomodados pelos Estados independentes africanos, muitas vezes como forma de justificar novas práticas de dominação. Ao historicizar as 7 de 9  etnias do norte de Moçambique, especialmente a macua, Mattos não nega a validade da categoria etnia ou dos etnômios para analisar a maneira pela qual os sujeitos sociais africanos organizavam suas vidas antes e durante a colonização. O que a autora faz é uma abordagem que privilegia uma interpretação das etnias como capaz de auxiliarmos na reflexão sobre as sociedades africanas como inter-relacionais, compostas por sobreposições e entrecruzamentos.

Ao destrinchar a impossibilidade de compreensão plena da resistência em Angoche e no norte de Moçambique como parte de planos para a perpetuação do comércio de escravos e de solidariedades étnicas, outros aspectos tornam-se relevantes para constituírem o que Regiane de Mattos chama de “dimensões da resistência”. A ideia de dimensões presente no livro aparece no sentido de variados fatores que convergiam para uma posição contrária à presença portuguesa, como as relações familiares, sobretudo as baseadas na matrilinearidade, as doações de terras que consolidavam alianças estratégicas e o Islã como aglutinador de práticas e perspectivas. A ação de resistir, portanto, deve ser entendida como uma defesa de uma autonomia política, principalmente no que tange às linhas sucessórias de poder, e, comercial, por meio do controle das trocas econô­micas contra a crescente interferência colonial portuguesa.

Unir-se contra a ameaça da perda de autonomia política e econômica estaria baseado numa leitura africana das conjunturas futuras que se desenhavam naquele presente conflituoso. Ou seja, as ações dos sujeitos e grupos sociais são compreendidas em As dimensões da resistência em Angoche dentro da complexidade do jogo de forças quando da construção do colonialismo português na região. É exatamente ao explorar o processo de edificação das relações de parentesco, da expansão do Islã na região pelas elites e pelas bases daquelas sociedades, das trocas comerciais, ou seja, de toda uma vasta gama de fios que se entrecruzavam para compor uma dinâmica social, operacionalizadas de acordo com as demandas das circunstâncias, que Regiane de Mattos consegue caminhar na contramão da historiografia sobre o norte de Moçambique para esse período histórico. O que a autora consegue evidenciar em sua obra é que a coligação de resistência foi feita com base em um passado de trocas que solidificaram relações que foram acionadas na medida em que o colonia­lismo se projetou como um sistema de dominação. Sua análise da coligação da resistência como uma luta pela preservação daquilo que se encontrava ameaçado pelos “mecanismos de exploração impostos pelo governo português, como o controle do comércio e da produção de gêneros agrícolas e de exportação, a cobrança de impostos e o trabalho compulsório” (MATTOS, 2015, p. 269), características primordiais da dominação colonial portuguesa, é solidamente percebida como base para as redes de lealdade construídas ao longo do século XIX, que culminaram na possibilidade de uma mobilização e formação coletiva contra os avanços dominadores portugueses.  No entanto, uma característica escorregadia existente no conceito de resistência, em deter­minados momentos, escapa da análise existente em As dimensões da resistência em Angoche. As imbricadas relações políticas que ocasionavam conflitos entre as chefaturas africanas, nesse caso, em específico contra a expansão do poderio do sultanato de Angoche, apontam para as diversas direções que o conceito pode trazer consigo. Como a própria autora assinala, a contenda entre a pia-mwene Mazia e o xeque da Quitangonha é emblemática dos conflitos na região. A primeira foi acusada de mandar matar o segundo, em 1875, pois este estaria lhe devendo o pagamento da venda de escravos e impedindo a realização desse comércio. Para a autora, a atitude da pia-mwene deve ser lida pelo prisma da resistência à interferência portuguesa sobre os processos sucessórios de poder e como símbolo da luta pela manutenção da autonomia política. Essa é uma interpretação 8 de 9  sustentada com maestria ao longo do livro, já que o mando do assassinato também teria ocorrido, como é argumentado de maneira sólida, porque o xeque estava buscando ampliar seu poder por meio do apoio dos portugueses. Esse apoio não é compreendido como uma força totalizante capaz de controlar na sua plenitude todas as possibilidades de ações africanas existentes naquele cenário político ou como um plano predeterminado pelo poder metropolitano português que foi sendo implementado, na medida em que a dominação europeia na região superou as resistências locais. Como é apresentado ao longo do livro, os portugueses no norte de Moçambique, pelo menos até a última quinzena do século XIX, possuíam diminuta capacidade de implantar qualquer projeto efetivo de dominação, recorrendo a arriscadas parcerias que desestabilizavam as linhas sucessórias predominantes. Isso não quer dizer que os portugueses atuassem apenas como mais uma força dentro daquele contexto político. A ação portuguesa, em prol do que veio a se constituir numa dominação colonial a partir do século XX, é compreendida e explicitada como um processo que, como tal, precisou lidar com encontros e desencontros decorrentes de uma aplicabilidade prática. No entanto, o que cabe questionar é o porquê de o conceito de resistência ser apenas empregado na relação ou entre as chefias ou populações africanas e o poder colonial português. Afinal, se a agência africana é elevada para o centro da análise, não poderíamos supor que o xeque, que viria a ser assassinado, estava usando o apoio português para resistir ao poder reinante materializado na figura da pia-mwene, que havia sido consolidado pelas relações matrilineares de parentesco entre macuas do interior e suaílis do litoral?

As dimensões da resistência em Angoche é uma obra que solidifica o trabalho de uma pes­quisadora rigorosa, com hipóteses inovadoras e que acrescenta importantes contributos para o debate sobre o conceito de resistência no contexto de dominação colonial europeia na África. Uma característica importante que deve ser salientada e que demonstra a vitalidade da obra de Regiane de Mattos se encontra nas portas que a mesma abre para pesquisas futuras. Ao criticar a bibliografia que entende a resistência do sultanato ao colonialismo como uma “resistência opres­sora” que deve ser renegada por não visar uma ideia específica de liberdade, como a existente na resistência nacionalista da segunda metade do século XX, a autora permite extrapolarmos suas interpretações para buscarmos a compreensão de como outros grupos sociais daquelas sociedades africanas, especialmente grupos excluídos ou marginalizados que não chegaram a ser analisados, como, por exemplo, os escravizados, interpretaram, experimentaram, agiram e engajaram-se no contexto de transformação das estruturas sociais do mundo que viviam, levadas a cabo pelas (in)gerências promovidas pela implementação do colonialismo português na região.

O livro é também o pontapé dado por Regiane de Mattos para o enfrentamento de hipóte­ses históricas que poderão ser estudadas em um futuro que espero não esteja muito distante. A própria autora possui um papel pioneiro e central para que esse desejo se concretize o mais rápido possível, já que, conjuntamente com o seu livro, fomos premiados com a disponibilização online do fantástico Acervo Digital Suaíli,7 um trabalho coletivo de parceria entre Brasil e Moçambique que disponibiliza fontes e bibliografias sobre a costa oriental africana. Projetos como esse tornam possível a continuidade de uma rica produção historiográfica brasileira sobre o passado africano que tomou forma nos últimos quinze anos.9 de 9

Notas  

1 ROCHA, Aurélio. O caso dos suaílis, 1850-1913. In: REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA: RELAÇÃO EUROPA-ÁFRICA NO 3º QUARTEL DO SÉCULO XIX, 1., 1989, Lisboa. Anais… Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1989. p. 606 apud MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 23.

2 Um balanço sobre a micro-história italiana pode ser encontrado em LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

3 É fundamental perceber a influência que E. P. Thompson promoveu em variados campos historiográficos ao criticar as interpretações das sociedades em categorias derivadas de modelos estanques que não levavam em consideração contextos específicos a partir das maneiras pelas quais os próprios sujeitos históricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências. Ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: THOMPSON, E. P. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. Ou, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. p. 17.

4 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico brasileiro, ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FONER, Eric. O significado da liverdade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 9-36, 1988; LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas Atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, 1983; LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5 ISAACMAN, Allen; ISAACMAN, Barbara. Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920. The International Journal of African Studies, v. 10, n. 1, p. 48, 1977.

6 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Estados independentes e a produção do passado africano, ver: MILLER, Joseph C. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v. 104, n. 1, p. 1-32, fev. 1999; RANGER, Terence. Nationalist Historiography, Patriotic History and the History of the Nation: the struggle over the past in Zimbabwe. Journal of Southern African Studies, v. 30, n. 2, p. 215-234, jun. 2004.

7 O projeto pode ser acessado pelo seguinte link: http://acervodigitalsuaili.com.br.

Matheus Serva Pereira – Doutor em História e Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: matheusservapereira@gmail.com.

Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância | Ngũgĩ Wa Thiong’o

Internacionalmente reconhecido por seu trabalho literário, dramático e de crítica intelectual, Ngũgĩ wa Thiong’o chegou a ser um dos favoritos indicados ao prêmio Nobel de literatura no ano de 2016. Contudo, sua obra permanece sendo ignorada por grande parte do público brasileiro. Sonhos em tempo de guerra, publicado pela Biblioteca Azul, junto com o premiado romance Grão de trigo, publicado pela Alfaguara, são, por enquanto, as duas únicas obras do autor traduzidas em nosso país. Ambos livros retratam eventos históricos importantes do Quênia, vinculados à emergência da rebelião Mau Mau que levou o país à independência em 1963. Mas, diferentemente de Grão de trigo, o livro Sonhos em tempos de guerra não constitui um romance, mas se apresenta com o subtítulo de memórias de infância. Trata-se, portanto, de um registro de fragmentos da história do Quênia sob a perspectiva intimista das lembranças pessoais do autor.

Profundamente auto-reflexivo e questionador, o próprio relato levanta perguntas sobre o funcionamento da memória que, como o subtítulo anuncia, constitui a base do próprio trabalho. “Mas por que alguém se recorda vividamente de alguns eventos e personagens enquanto outros não? Como a mente é capaz de selecionar aquilo que se sedimenta fundo na memória e aquilo que ela permite flutuar na superfície?” (WA THIONG’O, 2015a, p. 69). Estas incertezas, e outras, sobre a memória e a escrita do próprio passado, tornam o trabalho ainda mais instigante. Assim, é um livro, ao mesmo tempo, forte e delicado, que apresenta os anos iniciais da vida de Ngũgĩ wa Thiong’o, sua educação familiar, religiosa e escolar, focando sobretudo nos espaços primários e de sociabilidade básica que o formaram. Há um provérbio africano que diz “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. A obra que temos em mãos revela como a formação inicial deste gigante intelectual teve como base não uma aldeia comum, mas um povoado que vivia sob a rígida ocupação colonial britânica. Quando criança o pequeno Ngũgĩ vivenciou um universo bastante estendido, marcado pela guerra genocida, travada em África e alhures, com a presença de estrangeiros em sua comunidade, um intenso fluxo de ideias novas e a constante referência a personagens e a lugares distantes. O livro trata, portanto, de uma educação sentimental atravessada por circulações ampliadas, na qual as relações de poder e conhecimento transbordaram, e muito, as dinâmicas locais da “aldeia”. Leia Mais

Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário – SCHMIDT (AN)

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário. Porto Alegre: Libretos, 2017. Resenha de: LAPUENTE, Rafael Saraiva. Traços de uma biografia “revolucionária”: Flávio Koutzii por Benito Schmidt. Anos 90,  Porto Alegre, v. 25, n. 48, p. 411-418, dez. 2018.

Caminhos, contextos e trajetórias: Flávio Koutzii como um “revolucionário” na América Latina

Há por parte da bibliografia vinculada à Ciência Política a alegação de que o PT é a agremiação mais estudada da área (SAN­TIN, 2005; AMARAL, 2013), haja vista possuir uma quantidade numérica significativa de estudos com diferentes abordagens.1 Mas, se isso é relativamente consistente por parte da Ciência Política, é bem verdade que sua “irmã” – a História Política – ainda caminha com vagar sobre a história política e partidária do Brasil pós-democratização e, mais especificamente, sobre o PT e as demais agremiações.  Ainda que os historiadores frequentemente fracassem na tarefa de prever o futuro (HOBSBAWM, 2013), penso que esse contexto é temporário. E ponto chave para isso é buscar entender a trajetória daqueles que vieram a fundar e dar sustentação ao Partido dos Trabalhadores, por meio de sua militância anterior ao Colégio Sion, onde o PT foi oficialmente fundado.

Ainda que Benito Schmidt não se dedique à tarefa de enten­der os anos de Flávio Koutzii como membro do PT e ativo na política institucional, a biografia que o autor traça sobre uma das principais figuras da esquerda gaúcha nos ajuda a conhecer um dos membros mais ilustres da sigla no Rio Grande do Sul.2 Para isso, Benito Schmidt dividiu o trabalho em cinco capítulos, encerrando sua biografia quando o personagem estudado retorna ao Brasil em 1984. E somente entre 1943 e 1984 resultou em um extenso trabalho de 543 páginas, fruto de sete anos de pesquisas. O autor, contudo, convoca desde o início outros pesquisadores a se debru­çarem sobre o recorte posterior, chamando a atenção para o fato de que o período “em branco” do trabalho possui particularidades relevantes a serem analisadas por novos pesquisadores. Isto é, que a opção por não incluir esse período não está no fato de este ser, supostamente, menos relevante do que o estudado.

A introdução do livro chama a atenção para esse ponto, destacando que o pós-1984 “trata-se de um período riquíssimo” (SCHMIDT, 2017, p. 14), bem como dos bastidores em que chegou ao biografado e os conflitos em torno de “convencê-lo” ao recorte temporal. A introdução, sem dúvidas, é a parte do livro onde o autor provoca uma série de curiosidades e inquietudes, fazendo com que o leitor se sinta instigado a prosseguir a obra. Fugindo, assim, das introduções “burocráticas” que, por vezes, possuem os trabalhos acadêmicos.

Ter o biografado vivo, o que é pouco usual, é peça chave nisso, haja vista que a introdução vai narrando parte dos “basti­dores” dos sete anos de pesquisa, em especial sobre a relação entre pesquisador e pesquisado. Ao longo do livro, Schmidt vai deixando claro, direta ou indiretamente, que Koutzii teve papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa não apenas como entrevistado, mas sendo partícipe em todo o processo do trabalho, indicando, cedendo fontes e intermediando entrevistas. E também divergindo de Schmidt, embora o autor assinale poucas vezes no decorrer do livro os momentos em que isso ocorreu.

Essa participação de Koutzii, mais “direta”, aliada com a explícita identificação do autor com as bandeiras defendidas pelo biografado, evidentemente que deixam o leitor, como se diz popu­larmente, com o “pé atrás” em relação ao trabalho. Mas no decorrer do texto, à medida que Schmidt vai analisando a trajetória e, em especial, os contextos políticos nos quais Koutzii estava inserido, fica claro que não se trata de um texto chapa branca ou heroificante, comumente observado pelas biografias ditas “comerciais”.3.

Chama a a Chama a atenção no livro também o vasto material consultado pelo autor. Schmidt, para “seguir os passos” de Koutzii, frequentou dez arquivos diferentes, localizados em Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, assim como o acervo pessoal de Koutzii. Apesar disso, o que predomina durante o livro são as entrevistas orais. Schmidt realizou 48 delas, algumas na França, Argentina e Alemanha, com figuras que estiveram próximas de Koutzii ao longo da trajetória analisada, sendo obviamente a maioria delas com o próprio biografado. Essas entrevistas deixaram o livro com uma narrativa estimulante. Elas, aliadas com a boa escrita do autor, transformaram as densas 543 páginas em uma leitura fluida. É fácil constatar que a biografia foi escrita pensando em atingir um público maior do que aquele que possui interesses acadêmicos.4t

Naquilo que concerne à organização do livro, ele foi dividido em cinco capítulos, cada um abordando uma fase diferente da vida de Koutzii. No primeiro, Benito Schmidt busca conhecer Koutzii antes de Koutzii, traçando o contexto de sua infância e adolescência no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, bem como a estrutura familiar do biografado. Nesta, dando especial atenção a Jacob Koutzii, pai de Flávio e cuja trajetória estava vinculada ao PCB, ao judaísmo e à crítica de cinema. Nesse ponto em particular, Schmidt utilizou amplamente o livro A Tela Branca, escrito por Jacob Koutzii. A trajetória de Flávio Koutzii nesse capítulo também contempla sua vida escolar no Instituto de Educação General Flores da Cunha e no Colégio de Aplicação, dando ênfase especial às consequências de sua posição enquanto judeu e comunista quando estudava no primeiro; no segundo, Schmidt busca analisar a influência daquele ambiente para a formação política do biografado.

Como durante toda a biografia, Schmidt não se ateve apenas às atividades políticas. Esteve atento às relações pessoais de Koutzii, tanto com a família como também amorosas. Nesse capítulo, em particular, abre um fio que só terá desfecho no final do livro: o encontro entre Koutzii e Sônia Pilla, que, entre tantas idas e vindas, seria marcado por um reencontro em 1984, união que se mantém, destacando que as relações afetivas e familiares se misturavam com a ação militante em todo o período estudado.

Essas relações pessoais também por vezes trouxeram, no decor­rer do livro, tanto a distensão como a angústia. No capítulo dois, o leitor pode dar boas gargalhadas quando o autor questiona, “com alguma maldade”, se “‘o Flávio jogava [futebol] bem?’. Ele respondeu o que eu pressentia: ‘não’” (SCHMIDT, 2017, p. 145). Por outro lado, quando o autor se debruça sobre a prisão na Argentina, é necessária muita frieza e abstração para não se colocar no lugar de Clara Koutzii nos dias de cárcere do filho, principalmente no momento em que ela tem que optar entre visitar Flávio ou ir ao enterro do marido Jacob. O livro também possui o mérito de ressaltar por diversas passagens que, apesar das muitas dificuldades, medos, angústias e incertezas, o biografado e seus pares também abriam brechas para brincadeiras e descontrações mesmo nos momentos mais aflitos de suas respectivas trajetórias.

Depois de Benito Schmidt buscar compreender as “raízes” de Koutzii, no capítulo seguinte estuda o início da militância do biografado em Porto Alegre no PCB. Abordando o período de retorno a Porto Alegre depois de uma malsucedida tentativa de estudar em São Paulo, Schmidt destaca o papel da UFRGS na atuação política de Koutzii: “perguntei-lhe: ‘e na Universidade, o que é que vocês faziam concretamente?’, ao que ele respondeu sem pestanejar: ‘política! [risos]. Política o tempo todo’” (SCHMIDT, 2017, p. 99-100), destacando sua atuação dentro do Movimento Estudantil da UFRGS. Um dos pontos para o qual Schmidt cha­mou a atenção foi a vitória de Koutzii como presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Característica importante desse capítulo, que estará presente nos demais, é o fato de o autor dar ênfase especial ao contexto em que está inserido o seu personagem. Isto é, por meio da busca dos passos de Koutzii, Benito Schmidt vai traçando sempre um importante paralelo contextual, transformando o livro em uma ferramenta para compreender o Brasil dos anos 1960 – e os impactos da Ditadura Militar no Movimento Estudantil – nesse capítulo, e também as ditaduras latino-americanas pelas quais Koutzii passou em função do exílio nos capítulos seguintes. A dedicação do autor aos contextos explica o porquê de a biografia ter ficado extensa, mas garante uma leitura mais rica do que só “seguir os passos” de Koutzii, ressaltando as decisões tomadas pelo biografado dentro do que é chamado de campo de possibilidades.

Finaliza o capítulo 2 com a Geração de 1968 e a decisão tomada por Flávio Koutzii e membros do Partido Operário Comunista de sair do Brasil para a França clandestinamente antes que fossem presos. Assim ele sintetiza o biografado no período abordado, dizendo que “[…] Flávio vivenciou com intensidade os acontecimentos políticos do seu tempo: o movimento estudantil, o golpe de 64, os debates que sacudiram e reconfiguraram a esquerda brasileira nos primeiros anos da ditadura, a luta armada”. Para Schmidt, “[…] a política, aliás, parece ter se tornado a partir de então o eixo central de sua existência, abarcando inclusive suas relações que normal­mente chamaríamos de privadas, como as amizades e os amores”. Por isso, compreende sua atuação política “no sentido de agir para transformar a sociedade e tomar o poder” (SCHMIDT, 2017, p. 186).  O Capítulo argentino é o título do capítulo três. Ainda que a parte mais “pesada” da biografia fosse dedicada ao capítulo seguinte e também ocorresse na Argentina, é compreensível a divisão do autor para uma parte destinada à militância de Koutzii na Argen­tina e, no quarto capítulo, destinando-se aos pedaços da morte no coração. Dessa forma, denota-se que existe um antes e depois na vida de Koutzii com a prisão e tortura durante a ditadura militar argentina, destacando ainda o fato de as organizações de esquerda também terem sido perseguidas nos governos de Peron e Isabelita. Embora, há de se ressaltar que o capítulo argentino abranja a atuação de Koutzii no Chile e na França.

É possível perceber, por meio do capítulo três, os artifícios dos militantes de esquerda para driblar as ditaduras latino-americanas, como a utilização de passaportes e identidades falsos, traçando, por exemplo, o trabalhoso processo empreendido por Flávio Koutzii para ir ao Uruguai e, de Montevidéu, ir de barca a Buenos Aires e, da capital argentina, se deslocar de ônibus a Santiago, para o Chile de Allende (SCHMIDT, 2017, p. 194-197). Ponto interessante do trabalho é poder observar a militância internacionalizada de Koutzii, identificando a atuação do personagem em múltiplos contextos, por vezes também ilustrando os choques provocados por essas diferenças.

Além disso, o livro explora a aproximação de Flávio Koutzii com a IV Internacional ainda na França e, na Argentina, sua mili­tância no Partido Revolucionário dos Trabalhadores, na Fracción Roja, uma dissidência que teve no biografado uma das principais lideranças dos rojos, e na Liga Comunista Revolucionária.

Se o capítulo três muito lembra um “filme de ação”, haja vista as estratégias lançadas pela esquerda para confrontar e burlar as ditaduras latino-americanas, em especial a argentina, no capítulo quatro, No ‘coração das trevas’, o autor prenuncia o que virá em um depoimento pessoal: “certas vezes, depois de realizar as entre­vistas, tive que caminhar pelo parque, tomar um sorvete, ver um filme alegre a fim de recuperar certa confiança na humanidade” (SCHMIDT, 2017, p. 312). Nesse capítulo a prisão de Koutzii é analisada, tanto por meio de entrevista oral como pelo jornal La Razón, que definia o biografado como “o responsável pelos grupos armados na América Latina da IV Internacional” (SCHMIDT, 2017, p. 315). Junto a isso, há a análise do contexto de desaparecimentos e sequestros de membros da esquerda naquele país, ilustrando a tensão da apreensão de Koutzii nesse cenário.

As práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas ScAs práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas Schmidt busca compreendê-las mais como um ato organizado, estruturado e articulado do Estado argentino visando à destruição física, mas principalmente psicológica dos presos políticos. Não é à toa que o maior capítulo é o mais tenso, embora Schmidt consiga “quebrar” essa narrativa ressaltando eventuais momentos de lazer e resistências simbólicas contra o sistema prisional argentino pelos presos políticos.

O capítulo finaliza com a extensa campanha em defesa da liberdade de Flávio Koutzii, cuja presença intensa de sua mãe possui localidade central, bem como a mobilização de figuras políticas, como o deputado federal Airton Soares, intermediando sua soltura, a campanha realizada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia e o abai­xo-assinado internacional com importantes adesões da esquerda. Também foi muito destacado pelo autor o apelo embasado nas condições de saúde de Koutzii, com problemas cardíacos e a perda de 25 quilos no cárcere. Schmidt, para isso, usou ampla gama de materiais primários, com a cobertura que a campanha pela libertação de Flávio Koutzii possuiu, em especial na imprensa.

Para mim Paris não foi uma festa. O título do último capítulo, trecho de uma fala de Koutzii, induz o leitor a imaginar que os dramas vividos na Argentina iriam persistir na França. Mas não é o que acontece. Nesse momento, quando o biografado retorna à França, Schmidt aborda quatro fases naquele novo contexto: os pri­meiros contatos de Koutzii, sua relação com a psicanálise para lidar com os traumas que passou na Argentina, seu trabalho intelectual na École des Hautes Études en Sciences Sociales que resultou no livro Pedaços da morte no coração, analisando o sistema carcerário argentino e seu ingresso gradual no debate político brasileiro, posi­cionando-se pelo PT e participando de sua construção em Paris. Para essa fase, Schmidt foi à França entrevistar alguns integrantes da IV Internacional. Assim, buscou conhecer o período em que Koutzii esteve no país. Além dessas, Schmidt entrevistou seu psicanalista na França, que também havia saído do Brasil por motivos políticos.

A biografia termina destacando a participação, ainda que indireta, de Koutzii na fundação do PT e seu retorno em 1984. Ela é, portanto, uma biografia que estuda a atuação de Koutzii como um militante revolucionário no sentido literal da palavra. A finalização do livro conta com dois curtos textos que não são de Schmidt. O primeiro, de Guilherme Cassel, busca fazer uma breve síntese da atuação política de Koutzii como vereador e deputado estadual. Cassel, é importante destacar, foi assessor de Flávio Koutzii5, uma informação ausente do livro, mas de suma importância para aquele que não é familiarizado com a história recente da esquerda gaúcha. Uma síntese que carrega traços dessa aproximação, cujo formato é mais de um testemunho do que de uma análise, como a de Benito Schmidt.

O breve texto de Koutzii é uma síntese sobre sua vida, a experiência de participar de uma biografia em vida e um chamado. Chamado de esperança, para a reversão dos tempos sombrios decor­rentes do golpe de estado de 2016. Chamado que é carregado de simbolismo, como a biografia explicita.

Notas

1 Embora, pessoalmente, eu venha defendendo que existe uma lacuna muito grande sobre os “PTs regionais”, bem como das demais siglas que não possuem praticamente maiores estudos com recortes geográficos menores.

2 Há de se ressaltar, entretanto, que Benito Schmidt chegou a redigir um livro chamado História e memórias do PT gaúcho (1978-1988), onde aborda esse pro­cesso inicial do PT. A obra, contudo, nunca foi publicada. O autor desta resenha teve acesso ao “borrão” do livro, cedida por Schmidt, ao qual agradeço por isso.

3 Refiro-me a biografias escritas normalmente por pesquisadores “independentes” e jornalistas, cujo apelo comercial descompromissa de maior aprofundamento e de rigores teóricos e metodológicos inerentes à pesquisa acadêmica.

4 De fácil constatação foi a positiva recepção da obra por parte de diversos mili­tantes do PT e da esquerda do Rio Grande do Sul, observando-se que, no dia do lançamento do livro, boa parte dela esteve reunida. No local do lançamento, ocorrido no Santander Cultural, um número considerável do público ficou do lado de fora da sala, impedido de assistir à fala de Koutzii, pela superlotação.

5 Koutzii, inclusive, atribuiu, em entrevista, a sua atuação parlamentar destacada pela escolha de sua equipe. Perguntado sobre ela, disse: “Era o Guilherme Cassel e o Paulo Muzell, esses dois praticamente como os caras que ajudavam a pensar e a escrever essas coisas”. Entrevista de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https://www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1D pcfdN9KZVtc0E0ya?n=421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.

Referências

AMARAL, Oswaldo E. do. As transformações nas organizações internas do Partido dos Trabalhadores (1995-2010). São Paulo: Alameda, 2013.

ENTREVISTA de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https:// www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1DpcfdN9KZVtc0E0ya?n =421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.  HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SANTIN, Ricardo. Construção de um partido político: a trajetória e a estabili­dade política do PP gaúcho. Porto Alegre: Editora Berthier, 2005.

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucio­nário. Porto Alegre: Libretos, 2017.

Rafael Saraiva Lapuente –  Doutorando em História pela PUC-RS. Bolsista CAPES. E-mail: faelvocal@gmail.com

Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos – JUNQUEIRA (AN)

JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015.  Resenha de: SANTOS JÚNIOR, Valdir Donizete dos. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, p. 369-375, jul. 2018.

Em tempos de globalização, quando, com raríssimas exceções, as mais diversas partes do mundo, das mais cosmopolitas às mais recônditas, se veem conectadas e interligadas pelas tecnologias de ponta nas comunicações e nos transportes, a primeira metade do século XIX apresenta-se como uma época ambígua: tão distante e, ao mesmo tempo, tão próxima de nós, de nossas vivências, do que somos e do que pensamos.

Distante, pois a correspondência epistolar, os diários manus­critos e as longas viagens a vapor parecem estar há anos-luz das comunicações informatizadas, dos aparelhos eletrônicos de última geração e das rápidas viagens aéreas que cortam os céus e mobilizam pessoas em todos os continentes. Próxima, uma vez que o período entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX marca o advento de um momento histórico do qual ainda, de certa forma, fazemos parte. Durante esses anos, as então recentes inovações da indústria, especialmente o advento da energia a vapor, facilitaram o trânsito em águas até então desconhecidas pelo Oci­dente e encurtaram as distâncias entre as várias partes do planeta.

A tais transformações técnicas somava-se o racionalismo ilustrado tão exaltado pelo liberalismo do século XIX, que buscou esqua-drinhar, classificar e catalogar tudo o que de novo fosse encontrado pelas potências ocidentais, construindo um conjunto de saberes que ditava hierarquias e incitava desejos imperiais. Tratava-se de um novo capítulo – um dos mais importantes – do processo de interligação de toda a superfície do globo terrestre, que se iniciara com as navegações ibéricas do século XV e que no século XIX vivenciava seu auge.

É sobre esse contexto de intensas transformações econô-micas, sociais, culturais, políticas e tecnológicas que evidenciavam o avanço do capitalismo e da modernidade, ainda marcadamente ocidentais e, em grande medida europeus, que se debruça Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842), a viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos, o instigante e fundamental trabalho da historiadora brasileira Mary Anne Junqueira. Resultado de sua Tese de Livre-Docência em História dos Estados Unidos, defendida em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, esse livro apresenta ao público brasileiro, alicerçando-se em sólida pesquisa acadêmica, a U.S. Exploring Expedition, primeira viagem científica de circum- -navegação do globo promovida pelos Estados Unidos. Executada pela Marinha norte-americana (U.S. Navy) entre 1838 e 1842, a missão foi comandada pelo genioso e polêmico capitão Charles Wilkes (1798-1877), autor dos cinco volumes da narrativa de viagem que serve como fio condutor do trabalho.

Trilhando as intersecções entre o mundo das viagens, a dis­cussão científica e os interesses geopolíticos em jogo na primeira metade do Oitocentos, Velas ao mar apresenta, de início, uma dupla importância ao pesquisador dedicado à História das Américas, espe­cialmente aos que se debruçam sobre o século XIX, qual seja, sua densa reflexão teórico-metodológica e sua originalidade temática.

Acerca do primeiro aspecto, Junqueira, estudiosa de temáticas e autores da chamada teoria pós-colonial, dialoga com referências importantes dessa seara, como Dipesh Chacrabarty, Mary Louise Pratt e o fundamental Edward Said. Discute com Chacrabarty, por exemplo, a necessidade de tirar a Europa do “centro” das análises   acadêmicas; com Pratt, a existência de trocas, mesmo que assimé­tricas, entre colonizadores e colonizados nas chamadas “zonas de contato”; e com Said, a construção de saberes e conhecimentos como fatores de afirmação e dominação imperial. Merece destaque especial sua leitura do historiador argentino radicado nos Estados Unidos, também interlocutor da teoria pós-colonial, Ricardo Salvatore, referência básica que se evidencia nas linhas e entrelinhas dos três primeiros capítulos de Velas ao mar. Discutindo a constituição de “lugares de saber”, Junqueira defende, acompanhando Salvatore, a existência de uma tensão latente entre a circulação transnacional de conhecimentos científicos, intelectuais ou técnicos e o processo de afirmação dos Estados nacionais no século XIX. Dito de outra maneira, a perspectiva transnacional, atualmente em voga na histo-riografia, nem sempre supera, mas frequentemente convive com o paradigma nacional.

Ainda em termos teórico-metodológicos, a autora reserva o quarto capítulo de seu trabalho exclusivamente a uma reflexão sobre a utilização dos relatos de viagem como fonte para o historiador. Para além de um mero balanço historiográfico, Junqueira aponta para a variedade desses textos e alerta para os cuidados que o pesqui-sador deve ter ao trabalhar com esse material. De acordo com a estudiosa, é preciso estar atento ao local de onde fala o viajante, ao seu universo cultural, ao período em que escreveu seu texto em relação ao período em que o publicou, à forma que escolheu para elaborá-lo (narrativa, carta, memória, diário etc.) e ao público que buscou cativar. Além dessas indicações metodológicas, a autora trava diálogo com a crítica literária, concebendo uma instigante reflexão sobre os relatos de viagem como um “gênero híbrido”. Partindo dessa premissa, entende esse documento como sendo essencialmente múltiplo, capaz de ser lido de distintas maneiras por pessoas e em tempos diversos, e cujas vozes, estilos e formas evidenciam grande polissemia.

A respeito de sua originalidade temática, Velas ao mar des­taca-se em alguns aspectos. Primeiramente, a U.S. Exploring Expe­dition, curiosamente, não é, como destaca a autora, a despeito de sua importância na História dos Estados Unidos, uma expedição que tenha sido alvo de maciços estudos, especialmente de pesquisas acadêmicas de fôlego. Velas ao mar é, portanto, o primeiro trabalho sobre essa desconhecida empreitada nos marcos da investigação historiográfica brasileira1.

Em termos estruturais, o livro de Mary Anne Junqueira é composto por duas partes. Os três capítulos que formam a primeira seção do trabalho (“Em nome da ciência: para compreender a U.S. Exploring Expedition”) preparam o terreno para a análise propria­mente dita da fonte. Inicialmente, insere a expedição comandada por Charles Wilkes em um contexto mais amplo das viagens de circum-navegação levadas a cabo por diversos países entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do XIX. Com o aprimoramento das técnicas de navegação e a crescente importância do Oceano Pacífico e dos grandes contingentes populacionais asiáticos para o comércio internacional, conhecer e mapear os mares era de suma importância para a obtenção de vantagens econômicas e geopolíticas. Nesse sentido, os Estados Unidos colocavam-se, ao se lançarem nessa empresa, em compasso e, ao mesmo tempo, em competição com países como a Inglaterra, a França e a também emergente Rússia, como pretendentes ao poder que o conhecimento sobre o mundo poderia propiciar.  Junqueira discute ainda, nos dois capítulos seguintes, dialo­gando com a História das Ciências e dos saberes científicos, como a expedição se circunscreveu em um quadro mais geral de definição de padrões internacionais acerca da navegação no globo terrestre. Nesse sentido, a autora nos mostra, seguindo Salvatore, que, na ten­são entre a circulação transnacional e os interesses especificamente nacionais, uma vasta gama de conhecimentos, como as longitudes da Terra, as coordenadas geográficas e o mapeamento náutico, entendidos atualmente por muitos como dados puramente técnicos, foram fruto de intensa disputa geopolítica, da qual os norte-ameri­canos se mostravam bastante propensos a participar. Constituiu-se, dessa maneira, nos marcos da primeira metade do século XIX, um quadro em que os Estados Unidos – que buscavam seu lugar no mundo – estabeleceram uma relação ambígua em relação à Europa, oscilando entre a admiração e a concorrência.

A seção final do trabalho (Cultura imperial: as Américas na narrativa de viagem de U.S. Exploring Expedition), composta por quatro capítulos, debruça-se mais especificamente sobre o mundo dos relatos de viagem: refletindo teórica e metodologicamente sobre esse tipo de fonte (capítulo 4), analisando de maneira mais detida a narrativa escrita pelo capitão da U.S. Exploring Expedition, Charles Wilkes, (capítulos 5 e 6) e cotejando, ao lado deste, relatos deixados por dois outros membros da tripulação da expedição, o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds (capítulo 7).

Sobre os cinco volumes da narrativa de Wilkes, a historiadora destaca sua inserção em um conjunto maior de textos que formam o relato oficial da viagem, composto originalmente por vinte e três tomos que versam sobre assuntos diversos, como etnologia, filologia, meteorologia, botânica, hidrografia, os aspectos mais diversos da zoologia e a temática das “raças do homem”. Junqueira ressalta os embates e as tensões expostas no processo de escrita desse docu­mento oficial, já que por seu caráter polêmico e por ter sido acusado de cometer diversos excessos ao longo da viagem, Charles Wilkes não era considerado por muitos a pessoa mais indicada para esse encargo. Como se evidencia pela leitura do trabalho, não somente o capitão foi o autor da descrição da viagem, como também a usou para se defender de seus críticos.

Velas ao mar reserva um de seus capítulos para uma análise sobre como Wilkes descreveu as Américas. Para tanto, a autora realiza um instigante debate sobre a questão da raça no relato e principalmente sobre a maneira como o capitão norte-americano concebia a ideia de “raça anglo-saxônica”. Inserida em uma reflexão alicerçada em uma bibliografia em língua inglesa especializada no tema, Junqueira discute a construção de uma retórica que concebe a superioridade civilizacional desse grupo formado por britânicos e norte-americanos em relação aos demais povos do planeta. Balizado por esse discurso, Wilkes afirmava a inferioridade dos povos que na América haviam sido colonizados por espanhóis e portugueses. O capitão não se utilizava para se referir a estes últimos, como era de se esperar, de expressões relacionadas à ideia de “latinidade”, como América Latina ou raças latinas, pois se o “anglo-saxonismo” da América do Norte já estava consolidado na época da expedição, o mesmo não se pode dizer da reinvindicação da “latinidade” por parte dos ibero-americanos, que somente iria se estabelecer de fato na retórica do continente a partir da década de 1850.  Mary Anne Junqueira encerra seu trabalho analisando, ao lado das narrativas de Wilkes, outros dois relatos produzidos por membros da expedição do U.S. Exploring Expedition: o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds. Para além de considerações sobre as relações pessoais e hierárquicas, bem como os costumes e as práticas cotidianas de tais viagens, é possível afirmar que a principal contribuição desse capítulo para o conjunto do trabalho seja a constatação de que a cultura imperial presente nas ideias norte-americanas já na primeira metade do século XIX não era privilégio de suas elites, mas era compartilhada pelas diversas classes sociais. A despeito das desavenças que esses dois outros personagens pudessem ter tido com Wilkes durante a viagem, não divergiam de seu capitão em um aspecto: a concepção da superioridade dos anglo-saxões em relação aos demais povos do continente americano.

Finalmente, é preciso mais uma vez destacar que Velas ao mar representa uma importante contribuição não somente para aqueles que estudam os relatos de viagem e a história das Américas no século XIX, mas para todos que desejam ter acesso a um trabalho de pesquisa sólida e reflexão acadêmica densa. Enfim, Mary Anne Junqueira oferece novamente elementos para o conhecimento da História dos Estados Unidos no Brasil, demonstrando que, já em seu processo de formação nacional na primeira metade do Oitocentos, os norte-americanos ambicionavam um lugar de destaque entre as nações mais poderosas do mundo e enunciavam precocemente uma retórica imperial que, como se sabe, tem justificado, desde meados do século XIX, a presença dos Estados Unidos em diversas regiões do globo, não necessariamente de modo cordial e pacífico.374  Valdir Donizete dos Santos Junior .

Valdir Donizete dos Santos Junior  – Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (Campus Jacareí) e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: valdirdsjr@gmail.com.

Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir – GODINHO (AN)

GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014. Resenha de: KNACK, Eduardo Roberto João. Em diálogo com as Ciências Sociais. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 361-369, dez. 2016.

O livro organizado pela Professora Doutora em Antropologia Paula Godinho, da Universidade Nova de Lisboa/Instituto de História Contemporânea, Antropologia e Performance – Agir, Atuar, e Exibir, publicado pela Editora 100Luz em 2014, permite, além de conhecer pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento nas ciências sociais em Portugal (tendo como tema principal a performance), estabelecer um diálogo profícuo, teórico e prático, com a pesquisa em história. Inicialmente, é importante apresentar algumas considerações sobre o conceito performance e os temas desenvolvidos nos capítulos da obra.

Para Godinho, […] a relação entre a ação, a atuação e a encenação são o fulcro desse livro, que trata de performances, de ritos, de jogos e de quem os realiza e realizou, indagando passagens rápidas ou lentas, tempos e espaços de fronteira (GODINHO, 2014, p. 11).

Momentos que devem ser pensados com um rigor crítico que acabou se esvaindo dos estudos sobre esse tema. Eis uma primeira ponte erguida entre história e antropologia. A autora faz questão de contextualizar historicamente os sujeitos e grupos estudados, pois as práticas em foco ocorrem no presente, que “é histórico, resultado de um processo”, ou seja, não é possível estudar a performance, a ação e atuação de indivíduos e/ou grupos sem levar em consideração sua historicidade e como suas práticas vão se (re)significando ao longo do tempo.

As performances são encaradas como uma atuação que requer algum tipo de palco e uma audiência, apresentando uma dimensão espetacular, com “[…] atores e espectadores que se interlegitimam, tendendo a constituir uma forma de escrutinar o mundo quotidiano, visto como tragédia, comédia, melodrama, etc.” (GODINHO, 2014, p. 14). Essas performances estão presentes nos diferentes grupos sociais, entre “dominantes e dominados”. Ao introduzir a noção de “dialética do disfarce e da vigilância”, que permeia a relação de forças entre dois grupos, é utilizada a tipologia dos “discursos públicos”, que vão ao encontro das visões hegemônicas, que capitulam frente a seus interesses e valores, e a performance exerce papel chave na sua legitimação e dos “discursos escondidos” (SCOTT, 2013), que tem certa liberdade de ação, podendo contradizer e até ridicularizar os dominantes.

A partir dessas considerações iniciais, a obra está dividida em três partes. A primeira apresenta alguns textos que buscam delinear uma “antropologia da performance”, com o subtítulo: Antropologia e performance( s): atuar, encenar, exibir. O primeiro capítulo dessa primeira parte do livro, intitulado For years, I have dreamed of a liberated Anthropology, de Teresa Fradique, indaga sobre a definição do conceito de performance a partir de elementos que lhe seriam próprios, como a participação, a ação e o estranhamento, que estão presentes na própria prática, no comportamento do antropólogo. Assim, emerge a defesa de uma etnografia como experiência subjetiva sem que isso venha a solapar a antropologia enquanto área das ciências sociais e humanas. Embora essas considerações resultem de uma reflexão sobre a prática de uma área vizinha, a questão da subjetividade na pesquisa em história é importante, envolvendo o papel das instituições que legitimam a própria prática, o fazer da história e a dinâmica acadêmica, a partir do estímulo à apresentação dessas pesquisas aos pares, o que envolve performance (apresentação) e audiência.

O próximo capítulo da primeira parte é A dimensão reflexiva do corpo em ação: contributos da antropologia para o estudo da dança teatral, de Mario José Fazenda. Além de empreender uma revisão da literatura de autores que trabalharam com o seu objeto, busca observar a dança teatral em uma perspectiva histórica, entendida como uma ação social, simbólica enquanto sistema de significações dos seres humanos que não é mero reflexo da cultura, mas uma prática cultural construída pelos corpos em movimento. O capítulo A política do jogo dramático: marginalidade descentrada como resistência criativa (estudo de um grupo de teatro universitário), de Ricardo Seiça Salgado, se debruça sobre a história de um grupo teatral, o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), para pensar o conceito de “jogo dramático” como propulsor de mudanças na arte e na sociedade.

No capítulo Práticas artísticas contemporâneas: imaginação e exibição da nação, Sónia Vespeira de Almeida relaciona os conceitos de prática artística e performance, associados a maneiras de fazer e à criatividade cultural dos grupos sociais. Sua análise volta-se para uma exposição realizada em um museu e no trabalho de dois artistas de gerações diferentes, concluindo que as práticas de arte, enquanto modos de comunicação, articulam a capacidade de significar, construir e exibir a subjetividade dos sujeitos. No último texto da primeira parte, Metateatro da morte: as encomendadoras das almas numa aldeia da Beira Baixa, Pedro Antunes e João Edral centram sua análise em um ritual de culto dos mortos realizado durante a quaresma em aldeias de Portugal, onde segundo os autores, as práticas e discursos de uma religiosidade popular são indissociáveis de ações performativas e políticas.

A segunda parte do livro, O lugar do político: memória, ação e drama social, inicia com o capítulo Os ataques anticlericais na I República (1910-1917): historiografia, violência e performance, de Diogo Duarte, que estuda as ações que envolveram a danificação, destruição ou mesmo uso profano de objetos religiosos em um contexto de transformação nas relações entre Estado e Igreja em Portugal. Processo que tem início com o governo do Marquês de Pombal, mas atinge seu auge na implantação da República a 5 de outubro de 1910. Seu olhar recaí sobre a performance desses atos como reveladora de intenções políticas e/ou provocadoras, e não apenas servindo a interesses superiores, muitas vezes alheios aos sujeitos que os praticaram. Em A performance do viver clandestino, segundo texto dessa parte do livro, Cristina Nogueira observa, durante o fascismo português, uma cultura política da clandestinidade comunista, com diferentes regras a serem cumpridas que alteravam o comportamento dos sujeitos, obrigando-os a assumir uma nova forma de ser, através da criação de um papel a ser representado, o que envolve viver em uma permanente performance.

Paula Godinho escreve o capítulo A violência do olvido e os usos políticos do passado: lugares de memória, tempo liminar e drama social, no qual realiza um estudo sobre três momentos onde o passado é evocado a partir da construção de placas comemorativas, rompendo silêncios e omissões por parte de grupos dominantes, como aquele em que uma placa foi colocada, em 1996, em uma aldeia de Cambedo da Raia, zona fronteiriça que sofreu com a repressão por ter abrigado fugitivos do franquismo; em 2012 um monumento foi erguido em Ourense, para lembrar as vítimas portuguesas do franquismo na Galiza; e, ainda em 2012, o descerramento de uma placa de homenagem a trabalhadores portugueses que construíram a estrada de ferro Zamora e Ourense. Ao observar essas cerimônias, conclui a autora que existe a necessidade de rememorar, comemorar, para ultrapassar o trauma deixado pelas feridas da repressão de regimes autoritários nas localidades analisadas.

Elsa Peralta também se dedica à análise de monumentos com o capítulo O Monumento aos Combatentes: a Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação. Partindo da ideia de que cemitérios e cultos dos mortos constituem representações simbólicas da ordem social dos grupos envolvidos, Peralta pesquisa o Monumento aos Combatentes do Ultramar nas guerras coloniais em que o regime português se envolveu entre 1961 e 1975. Tal monumento teria sido erguido em nome da normalização da ordem social partindo de uma associação própria dos combatentes e de seu ressentimento, ao observar a opinião pública oscilar entre posições contrárias e a favor das guerras e de suas ações nesse contexto. O último capítulo da segunda parte, Teatro de amadores em Almada: performance e espoir em tempo de Revolução, de Dulce Simões, observa um grupo de teatro amador, o TACA (Teatro de Animação Cultural de Almada), formado por estudantes das escolas técnicas de Almada entre 1974-1976. A autora conclui que as companhias teatrais, nesse momento, aparecem como uma força representativa de opções políticos-ideológicas diferentes que emergiram com uma descentralização do teatro promovido pelo processo revolucionário.

Fazer teatro era participar das transformações sociais e políticas significativas que estavam em curso em Portugal, e a performance desses sujeitos produziam significados que circulavam com força na sociedade.

A terceira e última parte do livro, Homo Performans: entre ação e atuação, começa com o texto de Sónia Ferreira, “Magazine Contacto”: Media e Performance na Construção da Identidade Nacional, onde a autora analisa um programa televisivo sobre comunidades portuguesas na diáspora enquanto prática performativa.

O capítulo de Nuno Domingos, Boxe e Performance: Lisboa, anos quarenta, busca interpretar o jogo, o boxe em particular, enquanto performance histórica, percebendo as atividades desportivas como espaços de intenção normativos, em constante disputa e negociação pela própria linguagem performativa que legitima modos de agir no cotidiano. Xerardo Pereiro e Cebaldo León escrevem o capítulo Turismo e performances culturais: uma visão antropológica do turismo indígena onde observam como o turismo indígena guna do Panamá recria espaços sociais e culturais através de práticas performativas, buscando analisar todos os envolvidos nesse turismo controlado, desde os gestores, até os serviços oferecidos aos sujeitos que desempenham, recriam performances ritualísticas para os turistas.

Maria Alice Samara, no capítulo Outras cidades: as cooperativas e a resistência cultura no final do Estado Novo, busca identificar modos de vida alternativos e sociabilidades comunitárias de grupos que lutavam contra o regime ditatorial, assim analisa algumas cooperativas culturais na grande Lisboa como a Pragma (Cooperativa de Difusão Cultural de Acção Comunitária) criada em 1964, a Devir Expansão do Livro, de 1969 e a Livrelco, do início de 1960.

O último capítulo, Vidas e performances no lúdico de Ana Piedade, apresenta suas considerações a partir de um trabalho realizado ao longo de vários anos na localidade de Lavradio, em Portugal. A autora reflete sobre o papel da memória na reprodução do gesto lúdico e como o lúdico (entendendo o jogo como prática ritual, como performance) se constitui como memória, “culturalizando” tempos e espaços vividos na infância.

A obra demonstra com clareza que as performances não são apenas simples reflexos ou mesmo expressões de uma cultura, mas são elas mesmas agentes ativos de mudanças (TURNER, 1988, p.

24). A referência a Turner não é mero acaso, pois se trata de um dos autores citados com recorrência nos diferentes capítulos descritos acima. Juntamente com Schechner (2003), baliza as fundamentações sobre o principal conceito/tema tratado – performance. Para Schechner: The phenomena called either/all ‘drama’, ‘theater’, ‘performance’ occur among all the world’s peoples and date back as far as historians, archeologists, and anthropologists can go (SCHECHNER, 2003, p. 66).

Em síntese, fazem parte da existência humana. Soma-se a esta contribuição de caráter geral e legitimador do estudo da performance as noções de “Drama”, “Script”, “Theater” e “Perfomance” (SCHECHNER, 2003, p. 71).

Drama pode ser entendido como o domínio dos autores de uma prática/produção, o srcipt como domínio daqueles que ensinam, theater aparece como a atuação daqueles que desempenham as performances, e a performance adentra no domínio da audiência. É claro que um indivíduo pode realizar mais de uma dessas funções, mas essas definições permitem, metodologicamente, observar todo o trabalho realizado em torno de uma performance em diferentes grupos e cenários culturais, como bem demonstram os temas abordados no decorrer do livro. As próprias danças e demais atividades teatrais, as práticas artísticas levadas a cabo por grupos que visam construir/legitimar identidades nacionais, rituais populares, as encenações que envolvem inaugurações de monumentos, a movimentação dos corpos, práticas esportivas, enfim, uma variedade de atividades desempenhadas em público podem ser pensadas, analisadas a partir das contribuições de Schechner.

Turner (1988, p. 25) contribui com a autonomização da noção de “liminality”, que caracteriza a fronteira de um ritual, de uma performance, “[…] entre um antes (de que nos desfazemos, purificando- nos) e um depois, em que nos reagregamos” (GODINHO, 2014, p. 12). A liminaridade constitui, portanto, uma espécie de ápice das práticas performativas, permitindo observar como elas mudam os sujeitos e/ou grupos que participam, seja como atores ou como audiência. Outro autor que está presente nas discussões no transcorrer da obra é James C. Scott (2013) e a formulação dos conceitos “discurso público” e “discurso oculto”. Os discursos públicos designam “[…] as relações explícitas entre os subordinados e os detentores do poder”, e o discurso oculto é aquele que ocorre nos bastidores, “[…] fora do campo de observação directa dos detentores do poder” (SCOTT, 2013, p. 28, p. 31).

Dentre os diálogos possíveis com a história que a obra Antropologia e Performance pode trazer, sua aproximação fundamental está na própria base da pesquisa. A crítica das fontes, dos documentos produzidos por sujeitos e grupos no passado, pode ser concebida, em muitos casos, como uma prática performativa, as próprias fontes, muitas vezes, são produzidas em virtude de práticas culturais, ritualísticas e performáticas. A sociedade política é permeada de ritualizações que envolvem produções documentais. A imprensa, seja escrita, falada ou televisionada, também é marcada por essa dimensão performativa. Assim, levar em consideração as diversas performances envolvidas na produção de documentos analisados pelos historiadores pode revelar traços importantes dos modos de ser, agir e pensar de determinados grupos. A própria performance é carregada de uma historicidade particular, o que abre outro diálogo possível com a antropologia.

Pesquisar a historicidade das práticas performativas pode revelar mudanças profundas não apenas nos rituais, festividades, jogos, etc., mas transformações importantes pelas quais as sociedades passaram, alterando, ou estruturando, o cotidiano vivido dos indivíduos. Também é importante pensar nas relações de poder que envolvem as performances, pois se há um “drama”, um “script”, agentes que organizam, desempenham e muitas vezes se apropriam dessas práticas, há uma audiência, que não permanece imobilizada, mas também se envolve, e em certas ocasiões passando à condição de organizadores, em um processo dinâmico de (re)construção das práticas performáticas. A noção de discurso público e discurso oculto também abre portas para os historiadores, que devem buscar mais do que a produção de uma massa documental e de um investimento material e simbólico em representações de grupos que figuram como elites em determinado contexto. Mas há, mesmo entre as elites, discursos ocultos que ocorrem fora do palco (o mesmo ocorre com os grupos subalternos) que podem ser percebidos ao se aproximar o olhar para as performances, especialmente em seus momentos liminares. Dessa forma, a leitura da obra proporciona um diálogo profícuo entre historiadores, antropólogos e demais pesquisadores das ciências sociais, abrindo horizontes e possibilidades de estudos interdisciplinares.

Referências

GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014.

SCHECHNER, Richard. Performance Theory. London: Routledge, 2003.

SCOTT, James C. A dominação e arte da resistência: Discursos Ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.

TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications, 1988.

Eduardo Roberto Jordão Knack – Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Pós-Doutorando na Universidade Federal de Pelotas – UFPel.

Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória – HUYSSEN (AN)

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. Resenha de: MACHADO, Diego Finder. Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 371-379, dez. 2016.

Como imaginar futuros em um mundo cada vez menos confiante em relação às promessas de progresso de uma época anterior? As sociedades contemporâneas do Ocidente, em contraste com outras sociedades, têm manifestado um renovado interesse pelo passado e pelos seus vestígios. Frente ao que podemos considerar uma “crise de futuro”, o presente vem ocupando uma posição dominante em nossas experiências de tempo. Contudo, trata-se de um presente que procura, insistentemente, enraizar-se em um passado apropriado às suas ansiedades, em uma tentativa de barrar a efemeridade dos nossos dias. Neste contexto, ainda é possível imaginar futuros alternativos que não sejam apenas o futuro da memória?

O crítico literário alemão Andreas Huyssen, em seu último livro traduzido para o português, a coletânea de ensaios intitulada Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, aproxima duas temáticas centrais em suas pesquisas: as consequências do modernismo na obra de alguns artistas contemporâneos e as políticas da memória, do esquecimento e dos direitos humanos. Estabelecendo trânsitos pelas fronteiras que demarcam essas temáticas, a afinidade entre os diferentes capítulos do livro é construída em torno da problematização da memória em contextos transnacionais. Para o autor: A afirmação mais geral deste livro é que tanto o discurso do modernismo quanto a política da memória se globalizaram, mas sem criar um modernismo global único ou uma cultura global da memória e dos direitos humanos (HUYSSEN, 2014, p. 12-13).

Para além das experiências históricas da Alemanha e dos Estados Unidos, que lhes são mais familiares, buscou interpretar conexões transnacionais que ultrapassam as geografias do Atlântico Norte, aproximando-se de geografias alternativas das paisagens de memórias traumáticas e de experimentações estéticas modernistas na América Latina, Ásia e África.

Diante da evidência contemporânea de um declínio do debate sobre o “pós-modernismo”, o autor chama atenção para o retorno dos discursos sobre a modernidade e o modernismo na arquitetura e nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas artes plásticas, na música, nos estudos midiáticos, na antropologia e nos estudos pós-coloniais. Para ele, aquele debate foi “uma tentativa norte-americana de reivindicar a liderança cultural”, a partir dos anos de 1920, por isso marcado por um “provincianismo geográfico” (HUYSSEN, 2014, p. 11).

A primeira parte da obra é dedicada a interpretar geografias alternativas do modernismo em um mundo globalizante, colocando em discussão as maneiras como a cultura metropolitana de um modernismo clássico foi traduzida e apropriada criativamente em países colonizados e pós-coloniais na Ásia, África e América Latina, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Um diálogo crítico com alguns artistas e seus experimentos estéticos é tramado: o argentino Guillermo Kuitca e seus experimentos cartográficos como um pintor do espaço; o sul-africano William Ketridge e a indiana Nalini Malani e os seus teatros de sombras como arte memorial; o vietnamita Pipo Nguyem-duy e sua série de fotografias de ruínas ecológicas da modernidade; e a colombiana Doris Salcedo com sua instalação artística que convida à reflexão sobre as continuidades entre colonialismo, racismo e imigração. Não deixa de lado outros artistas de diferentes nacionalidades, fazendo-nos compreender que a geografia do debate deve focar como o modernismo, nas artes visuais, é reiterado e reinterpretado.

Inspirado no antropólogo indiano Arjun Appadurai (2004), Huyssen procura analisar como a modernidade e o modernismo foram disseminados por fluxos culturais complexos que aproximaram as ideias de local e global em constante negociação. Para ele, é preciso escapar da crença inocente em uma cultura local autêntica que deveria ser preservada dos encantos homogeneizantes da globalização.

Como afirma, “[…] o binário global-local é tão homogeneizante quanto a suposta homogeneização cultural do global à qual se opõe” (HUYSSEN, 2014, p. 23). Esse olhar dualista, atado ao local, impede a compreensão transnacional das práticas culturais e o reconhecimento dos fluxos desiguais de traduções, transmissões e apropriações locais de um “modernismo sem entraves”.

Outra questão apontada é a necessidade de retomar, sob novos ângulos, o modelo superior e inferior pelo qual o espaço cultural do início do século XX foi hierarquicamente clivado entre cultura de elite e cultura de massa. Segundo o autor, este modelo, prematuramente descartado nos estudos norte-americanos sobre o pós- modernismo, ainda pode servir como paradigma para analisar modernismos alternativos e culturas globalizantes que assumiram formas distintas em diferentes momentos históricos. A reinscrição desta problemática nas discussões da modernidade cultural em contextos transnacionais pode estimular novos tipos de comparação que vão além das dicotomias clichês – tais como global versus local, colonial versus pós-colonial, moderno versus pós-moderno ou centro versus periferia –, recolocando em debate hierarquias e estratificações sociais que atravessam as culturas de acordo com as circunstâncias e as histórias locais. Além disto, repensar a relação superior-inferior hoje nos remete aos debates sobre os novos vínculos entre estética e política, bem como entre experiência e história.

A segunda parte do livro é dedicada à problematização das políticas de memória, de esquecimento e de direitos humanos na contemporaneidade, retomando, sob novos matizes, questões já apresentadas ao público brasileiro em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (HUYSSEN, 2000). Antes, como um entremeio que estabelece conexões entre modernismos e culturas de memória, Huyssen lança um debate instigante que se desloca entre a nostalgia contemporâneas das ruínas e as memórias traumáticas dos escombros da modernidade. Esta diferenciação entre ruína e escombro, que faz eco aos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin (2012), nos convida a pensar sobre às diferentes maneiras como, em um presente globalizado, olhamos para a decadência dos vestígios do passado. Por um lado, há um olhar nostálgico que se aproxima do encantamento pitoresco dos românticos pelas ruínas, uma utopia às avessas que demonstra a saudade de um outro lugar localizado no passado. Segundo o autor, “[…] essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros” (HUYSSEN, 2014, p. 91). Por outro, a nossa contemporaneidade se depara cotidianamente com os escombros de uma modernidade cruel, marcada por atrocidades que soterraram os futuros sonhados pelos vencidos da história. Como lembra, os bombardeios nunca pretenderam produzir ruínas, mas escombros. Porém, em uma época seduzida pelo passado, tais escombros, muitas vezes, acabam estetizados enquanto ruínas, alimentando um mercado da memória como entretenimento que banaliza e envolve em sentimentos nostálgicos as marcas presentes de um passado traumático. Este imaginário das ruínas é, como destaca o autor: Central para qualquer teoria da modernidade que queira ser mais que o triunfalismo do progresso e da democratização, ou a saudade de um poder passado de grandiosidade (HUYSSEN, 2014, p. 99).

Para além de um otimismo cego, podemos nos defrontar com o lado obscuro e destrutivo da modernidade visível nas ruínas, os desastres do passado que continuam a assombrar a nossa imaginação.

Estabelecendo um diálogo crítico com os estudos consagrados sobre a memória, especialmente com a obra dos franceses Maurice Halbwachs (2006) e Pierre Nora (1993), Huyssen destaca que tais estudos inseriram a memória primordialmente em contextos nacionais, bem como procuraram demarcar uma fronteira que colocava em lados opostos a história e a memória. Atualmente, o divisor história/ memória tem sido superado, reconhecendo a interdependência entre as maneiras de narrar o passado. Além do mais, tais estudos se mostram insuficientes em um momento no qual os discursos sobre a memória e a análise das histórias traumáticas tornaram-se transnacionais.

É preciso, segundo o autor, abandonar o conceito de memória coletiva, tal como uma memória mais ou menos estável de um grupo ou uma nação como ideal, em busca de memórias conflituosas. Para ele, “[…] a memória é sempre o passado presente, o passado comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e de evasão” (HUYSSEN, 2014, p. 181). A memória “nunca é neutra” e “[…] está sempre sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (HUYSSEN, 2014, p. 181). Neste sentido, para além do conflito entre memórias coletivas e memórias individuais, ou entre memória e historiografia, seria importante analisar “[…] os conflitos entre campos de memórias rivais que tentam eliminar ou, pelo menos bloquear um ao outro” (HUYSSEN, 2014, p. 182).

Esta virada teórica e metodológica faria com que atentássemos às batalhas entre passados, travadas não apenas em contextos nacionais, como também em contextos transnacionais. Portanto, pensar em políticas da memória em um mundo globalizante está para além da circunscrição do que seria uma “memória cosmopolita”. É preciso compreender as assimetrias e competições travadas nas trajetórias transnacionais da memória.

Em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.

Em diálogo com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (2007), Huyssen busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido e o esquecimento dos bombardeios de cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial para o pleno reconhecimento do horror do Holocausto. Em ambos os exemplos, uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.

Ao propor a discussão sobre uma ética do esquecimento público, o autor se aventura em um tema difícil que, sem dúvida, consiste no ponto mais audacioso e inovador da obra. No entanto, apesar de insistir no caráter residual de como o tema aparece nos escritos de autores que, como Paul Ricoeur, privilegiaram o estudo da memória, não deixa muito clara uma proposta original para refletir sobre o que considera um “esquecimento voluntário”, um tipo de esquecimento que exigiria esforço e trabalho. Mesmo ao complexificar a questão, situando as estratégias de esquecimento num campo de termos e fenômenos tais como “[…] silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p. 158), acaba não esclarecendo as diferenças entre estas estratégias.

Afinal, é possível dizer que algo silenciado ou reprimido foi de fato esquecido? Talvez, uma atenção maior às sutilezas de cada um destes termos poderia nos mostrar níveis intermediários entre a memória e o esquecimento, tal como já há alguns anos propôs Michael Pollak (1989) ao problematizar o silêncio não como uma forma de esquecimento, mas como uma “memória subterrânea” que, em disputas de memórias, resiste aos excessos das memórias oficiais.

A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, como destaca o autor, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos. Por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica, que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos. Por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. Entretanto, como afirma o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).

Um campo onde as aproximações entre direitos humanos e memórias têm emergido de maneira mais intensa é o campo das reivindicações pelos direitos culturais de populações indígenas ou descendentes de escravizados na América Latina, no Canadá e na Austrália, bem como os direitos civis e sociais nas novas formas de imigração e diáspora. Essa dimensão dos direitos humanos: Reivindica os direitos de grupos culturais dentro de nações soberanas, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humanos como direitos dos indivíduos, e também com um entendimento homogêneo da nacionalidade (HUYSSEN, 2014, p. 206).

O movimento pelos direitos culturais, movimento que desestabiliza as ideias de identidade nacional, tem dado ênfase na diversidade cultural em um mundo cada vez mais interligado, aderindo, fundamentalmente, à política de identidade grupal. Neste debate, as ideias de global e local entram em conflito, em reações contra a globalização e a temível possibilidade de uma homogeneização cultural. Novamente o autor traz à tona uma crítica a concepções que imaginam uma suposta autenticidade intocada das culturas locais, o que gera conflitos quando grupos culturais diferentes entram em contato. Para além de uma compensação identitária, “[…] os direitos culturais devem preservar a prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixá-la e escolher outra” (HUYSSEN, 2014, p. 209).

Embora não circunscrita no interior dos limites do campo da História, a obra de Andreas Huyssen tem sido fundamental para pensar a prática historiadora, especialmente em relação à História do Tempo Presente. As análises elaboradas pelo autor nos convidam a pensar, a partir da problematização das políticas da memória e dos modernismos em um mundo globalizante, as imbricações entre temporalidades e espacialidades no presente vivido. Como um crítico da cultura, este autor propõe uma reflexão sobre as maneiras como no presente se articulam passado e futuro, global e local, alertando para a importância da imaginação de futuros alternativos. Não se trata da nostalgia de uma crença inocente nas promessas de progresso atualmente desacreditadas, mas uma incitação a pensarmos sobre as maneiras como futuros possíveis, desamarrados de um peso asfixiante do passado, foram e continuam sendo imaginados.

A experiência histórica brasileira, embora brevemente mencionada em alguns dos seus ensaios, praticamente está ausente da cartografia de geografias alternativas analisada e interpretada pelo autor. O Brasil, ao contrário da Argentina, não é, nesta obra, um território privilegiado na compreensão das políticas de memória e dos modernismos na América Latina. Apesar disso, a historiografia brasileira da última década tem se valido de conceitos e teorias mobilizadas pelo autor em seus trabalhos, especialmente a noção de “cultura da memória”. Em diálogo com autores do campo da História, como Reinhart Koselleck (2006) e François Hartog (2013), a obra de Andreas Huyssen tem sido apropriada pelos historiadores interessados em pensar o tempo não apenas como um instrumento taxionômico, pelo qual os acontecimentos de um passado são medidos e circunscritos, mas o tempo como algo vivido e experimentado em sociedade. Na atualidade de nosso país, experiências diversas de tempo são friccionadas, colocando lado a lado, por exemplo, os traumas do período da nossa ditatura civil-militar e as lutas pelo reconhecimento de direitos culturais negados a minorias.

Neste sentido, a leitura de Culturas do passado-presente pode ser um interessante convite a novos olhares para a nossa própria história, a um olhar crítico para um tempo presente demasiadamente encantado pelo passado e temeroso por um porvir que se mostra pouco promissor.

Referências

APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. (Coleção ArteFíssil).

Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.

Diego Finder Machado – Doutorando em História na História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939) – PINTO (AN)

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. A Construção do “Outro”. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 355-360, dez. 2016

Nesta obra, que resulta de um trabalho complexo de investigação, Alberto Oliveira Pinto desenvolve um tema peculiar e sensível, expondo inúmeras referências e acontecimentos que reforçam toda a sua investigação. O autor dispõe-se a analisar as Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas, no período compreendido entre 1924 e 1939, recorrendo a um extenso e consistente trabalho de pesquisa em arquivos históricos (legislação, arquivo colonial), bem como à análise de obras literárias editadas no período em questão e que passaram pelo concurso de literatura colonial1.

O exame extremamente cuidadoso e bem fundamentado, não somente do período em análise (1924-1939) como também mais alargado – período de intensificação da política colonial portuguesa (criação do 3ª Império), o mapa cor-de-rosa, a Conferência de Berlim, a implantação da República Portuguesa em 1910 e a instabilidade política e económica que se viveu posteriormente, levando assim ao golpe de estado e à instalação da ditadura militar em 1926 e mais tarde, à instauração do Estado Novo – leva-nos a considerar como obra essencial e um útil instrumento não só para académicos, investigadores, professores, estudantes, como para o público em geral, quer em Angola e em Portugal, quer nos restantes países lusófonos, em particular aqueles que se localizam no continente africano.

A obra encontra-se dividida em quatro partes, cada uma delas dividida em 2 capítulos, perfazendo no total 8 capítulos. Na primeira parte – Representações do “Outro” – o autor disserta sobre os conceitos de cultura, identidade e memória, conceitos-chave para se perceber a “produção do outro” (PINTO, 2013, p. 69), ou seja, os pilares em que assentaram a política colonial portuguesa para os territórios africanos, no caso concreto, Angola. O autor estabelece assim a relação entre cultura e antropologia, cultura e nacionalismo e cultura e colonialismo, em torno do qual se desenrolará toda a sua investigação. Estes conceitos, utilizados para descrever e justificar a exploração do outro constituem a base em que assentou a política colonial portuguesa para os territórios africanos. A exploração do homem africano, o trabalho forçado (com destaque para o Código do Trabalho de 1928), as teorias do darwinismo social defendidas a partir da segunda metade do século XIX e que encontrou o seu expoente máximo em Oliveira Martins, a ascensão de António de Oliveira Salazar e a publicação do Ato Colonial em 1930, são apenas alguns exemplos.

A segunda parte – Angola na escrita e na memória colonial portuguesa: a emergência do território e dos homens angolanos – é dedicada à apresentação de Angola, ou seja, a “outra” parte da história. Para o efeito, e para melhor compreensão, o autor faz uma breve referência aos reinos aí existentes e que deram origem ao nome Angola, a definição das suas fronteiras bem como o percurso de passagem do “reino de Angola” a “Angola colonial” (p. 161) e posteriormente “província de Angola” (PINTO, 2013, p. 172). De seguida o autor disserta sobre as categorias socio-raciais em que assentou a política colonial e que levaram à criação do “outro”, nomeadamente indígenas (os africanos), assimilados, destribalizados, mestiços, cafrealizados, cafuzo, cabrito (PINTO, 2013, p. 193-241), conceitos imprescindíveis para compreensão da sociedade angolana atual.

Na parte III – A Literatura Colonial Portuguesa: Angola e os Angolanos na Década de 1920 e as Memórias Silenciadas – o autor estabelece a relação entre a história, sua área de especialidade, e a literatura, justificado a sua opção de trabalho e reforçando deste modo a importância da interdisciplinaridade quando se trata de produzir conhecimento, no caso presente, a “[…] literatura como modo de produção de história ou veículo de historiografia” (PINTO, 2013, p. 257). Ainda nesta terceira parte, o autor analisa duas dessas obras publicadas antes da aprovação do Ato Colonial (1930), instrumento legislativo que de certa forma serve como demarcação entre dois períodos distintos da política colonial portuguesa, nomeadamente, Ana a Kalunga. Os Filhos do Mar, de Hipólito Raposo (1926) e, A Velha Magra da Ilha de Luanda: Cenas da Vida Colonial, de Emílio de San Bruno (1929). Nestas obras, o território é descrito como se se tratasse de uma atração exótica, que é preciso desbravar, a colonização é romanceada como “missão civilizadora” que só a raça superior (branca) tem capacidade para empreender e o africano é descrito como negro, animal que deve ser domesticado. A literatura colonial funciona como mais um instrumento de propaganda colonial.

As Imagens Fabricadas dos Angolanos ou a Retórica da “Diferença Negativa” depois do Acto Colonial de 1930, constitui o ponto fulcral de análise da parte IV, onde o autor, como o próprio título indica, analisa obras publicadas depois da aprovação do Ato Colonial (1930). Alberto Oliveira Pinto inicia essa quarta parte com a apresentação de Henrique Galvão, eminente figura portuguesa da época, analisando, para o efeito, uma obra publicada antes de 1930, nomeadamente, Em Terras de Pretos. Crónicas de Angola, e duas obras publicadas depois dessa data: O Velo D’Oiro e O Sol dos Trópicos. De seguida, analisa outras duas obras literárias de dois autores distintos e pouco conhecidos pelo público em geral, nomeadamente, Conquista do Sertão, de Guilherme de Ayala Monteiro e Princesa Negra, de Luís Figueira. Em cada uma das obras analisadas, o autor procura essencialmente mostrar como “[…] são vistos os africanos, concretamente os angolanos, na literatura colonial portuguesa que se segue ao Ato Colonial” (PINTO, 2013, p. 447). Na análise de cada uma das obras subjaz essencialmente a “[…] pura linha darwinista, o branco (que) é uma raça que evolui e o negro (que) é uma raça estagnada” (PINTO, 2013, p. 431), daí ser caraterizado como selvagem, primitivo, polígamo, alcoólatra, animal, bicho, preguiçoso, tribalista, supersticioso, cupido, preto, entre outras.

As mais de 600 páginas que constituem a obra levam-nos assim a uma viagem pela história de dois países, um colonizador e outro colonizado, ultrapassando mesmo essa fronteira pois, apesar de abordar em particular a construção de uma cultura ou identidade angolana na sua relação com Portugal, ela pode ser ferramenta de trabalho para moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são- tomenses e mesmo brasileiros pois descortina uma época histórica para Portugal e que se liga às ex-colônias. Para o caso concreto do Brasil importa sobretudo compreender o período pós-independência daquele país e a sua relação com Angola e Portugal. A excelente descrição dos conceitos rácicos como mestiço (filho de mãe preta e pai branco), indígenas, assimilados, cafuzos, cabritos, entre outros, ajudam-nos a entender ainda no presente, a sociedade angolana uma vez que a sua base socioeconómica continua assente no legado português. A obra conta ainda com um anexo rico em documentação história, bem como uma extensa listagem bibliográfica organizada e que pode servir de ponto de partida para os novos “aventureiros”.

Não obstante, há dois aspetos que merecem um comentário adicional. Em primeiro lugar, esperar-se-ia que o autor desenvolvesse mais este período histórico, que debatesse mais esse conceito de “angolanos e suas culturas”, isto é, quem eram os angolanos na altura, de que cultura estamos a falar e de que forma isso influi na realidade atual do que é ser angolano e da cultura angolana, aspeto que sem dúvida justificaria uma discussão mais aprofundada porque a obra, pela temática analisada e sobretudo pela metodologia de análise, interessa, obviamente, a um público muito mais vasto do que a academia, sobretudo os luso-angolanos. Ao invés disso, disserta sobre conceitos embora importantes e apenas analisados de forma superficial, não são essenciais para compreensão do estudo, como por exemplo: o espaço greco-romano, o Islão, o etnocentrismo, as referências às Mil e Uma Noites e a Thomas More e a sua Utopia.

Concordamos que enriquece a obra e alarga o nosso campo de conhecimento, mas torna-a demasiado extensa e desvia a nossa atenção do objetivo principal.

Um segundo aspeto prende-se com a análise de trabalhos escritos por autores angolanos ou luso-descendentes, não só como comparação de duas perspetivas diferentes – colonizado versus colonizador – como poderia dar-nos uma ideia não do pensamento sobre os “outros”, mas do pensamento dos “outros”. Um paralelismo com autores angolanos certamente que enriqueceria a obra pois, apesar de parte da história angolana ter que ser encontrada na história portuguesa já que Angola era vista como um “prolongamento de Portugal” (PINTO, 2013, p. 535), teria sido muito interessante constatarmos a diferença de discurso entre portugueses, brancos naturais de Angola, mestiços e africanos. Dada a carência de investigação sobre a temática em particular e sobre o período histórico no geral, teria sido uma mais-valia se o autor tivesse aprofundado um pouco mais sobre esse assunto. Fica assim aqui uma pista para dar continuidade à investigação que permita sobretudo caraterizar a cultura angolana e os angolanos.

Certamente que se trata de uma obra de mestre que enriquece a história angolana e portuguesa, e de todas as ex-colônias portuguesas no geral, abrindo novos caminhos e demonstrando o quanto ainda pode ser feito, constituindo de igual forma um eficiente incentivo para um maior intercâmbio entre pesquisadores angolanos, portugueses e luso-descendentes interessados em saber mais sobre as suas origens, bem como pesquisadores interessados em alargar as suas análises sobre os estudos coloniais e o reflexo desse período na atual sociedade quer da ex-colônia, quer da ex-metrópole.

Notas

1 Criado em 1926 por Armando Cortesão e previsto nos artigos 50ª e 64ª do Ato colonial (1930), realizado anualmente pela Agência Geral das Colónias para “[…] propaganda do Império Português, progresso da cultura colonial e desenvolvimento do interesse pelos assuntos respeitantes às colónias” (PINTO, 2013, p. 396).

Referências

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. 689 p.

Ermelinda LiberatoDoutora em Estudos Africanos no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE- -IUL). Professora da Univeresidade Agostinho Neto – UAN – Angola. E-mail: ermelinda.liberato@gmail.com.

El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado – MALLIMACI (AN)

MALLIMACI, Fortunado. El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2015. Resenha de: QUADROS, Eduardo Gusmão de. O estado da fé: catolicismo e governo na história Argentina Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 491-496, jul. 2016.

Conhecer a história dos argentinos contribui para alargar a visão geralmente difundida da história do Brasil. Existe, afinal, uma série de processos políticos e econômicos que apresentam traços semelhantes, o que poderia ser ampliado, obviamente, para a história latino-americana como um todo. Isso é especialmente válido se o foco estiver em uma instituição internacional, como é o caso da Igreja Católica Romana.

Qualquer estudo sobre a história do catolicismo necessita articular esses dois aspectos: o global, gestado a partir do Vaticano, e o nacional ou local, onde a ação religiosa deve intervir respeitando os elementos condicionantes mantidos pelos atores sociais. No primeiro nível, a Igreja Católica apresenta-se como salvadora da humanidade, já que representa a ação do Deus criador dos céus e da terra; no segundo nível, é uma instituição política que atua como uma “nação” dentre outras, com o interesse de fortalecer seu domínio.

Ao enfrentar a questão do “mito da laicidade” na história da Argentina, Fortunato Mallimaci tem isso claro. Portanto, por toda a obra, sua análise percorre as vias de mão dupla entre a Europa e a América Latina, sem esquecer o modo como as camadas populares reagem às estratégias implantadas pelas elites, sejam elas políticas ou religiosas. O fundamento teórico-metodológico para integrar tais  aspectos é de inspiração bourdieusiana, apesar de o autor indicar diversas vezes as reflexões de Ernst Troeltsch como suporte relevante.

O livro estrutura-se em seis capítulos. Eles podem ser lidos como hipótese de periodização, mas também podem ser formas de relação que a instituição eclesiástica católica estabelece com as demais esferas sociais. Assim, não é meta do autor realizar uma abordagem propriamente contextual, e o texto rompe com a confortável linearidade cronológica, uma decorrência da postura de considerar “,[…] el catolicismo como un lugar social donde se confrontan discursos competitivos y desiguales” (p. 66), preferindo intercambiar os marcos históricos com processos contemporâneos. Os limites entre o que estaria “fora” ou “dentro” da igreja são altamente questionáveis quando se quer entender seu papel na governamentabilidade: Un análisis sociológico sobre el catolicismo no puede abordar su sujeto de estudio si lo encierra en un universo puramente religioso. El fenómeno debe estar ligado a la sociedad que lo involucra y si esta se encuentra dividida, conflictuada, enfrentada, se pueden encontrar esos conflictos, con formas proprias, dentro del espacio de lo religioso, especialmente si se trata de un movimiento dominante y extensivo como es el catolicismo. Si esos conflictos se agudizn se puede ver cómo se generan estructuras intermedias y paralelas que un estudio de ese tipo no puede ignorar. Por esto, creemos necesario mostrar los procesos que relacionen estructuras, agentes y personas en el largo plazo (p. 66).

Nessa perspectiva, o capítulo inicial trata da mescla dos valores e símbolos católicos com as manifestações nacionais argentinas. O ideário de edificar uma religião civil perpassa o discurso das elites sócio-religiosas.

Mesmo que tenha sido declarada a laicidade estatal desde meados do século XIX, bem como da educação, o autor afirma que “[…] sin símbolos y sin sagrados no se consolidan las nuevas naciones” (p. 20).

A igreja católica não era tão forte, na época, para interferir diretamente nesse projeto, contudo havia uma crença difusa, sem demasiada fidelidade doutrinária ou ética, que unificava boa parte da população. O conflito com as ideias do positivismo foi tênue e já nos primórdios do século XX a igreja-mãe estava casada com o estado-pai (p. 33).

Nas décadas de vinte e trinta do mesmo século, as tendências integristas, totalizadoras, inspiradas na imagem do Cristo Rei, tornaram- se consolidadas. Os cristãos, nessa visão, precisavam lutar para estabelecer o domínio divino, e consequentemente da instituição que o representa, sobre todas as coisas. A oportunidade de atuação eficaz adveio de um fator extrarreligioso: a crise global do liberalismo ao final dos anos vinte. Dessa forma, o discurso católico passou a se colocar como uma terceira via entre o temido comunismo e os problemas da democracia burguesa. As duas fontes secularizadas de esperança perderam, naquele momento, boa parte de sua credibilidade social.

Cada vez mais a igreja assumiu a posição de ser o cimento que sustentava a sociedade argentina. O processo de diocesização, incrementado rapidamente nessas primeiras décadas do século, possibilitou a capilaridade necessária à expansão da “geografia católica” pelo território nacional. Há, entretanto, uma diferença sensível em relação ao catolicismo brasileiro nesse caso, pois a maioria do clero, inclusive o episcopado, era natural do próprio país (p. 94).

O capítulo terceiro demonstra a importância da Ação Católica para todo o período que se segue. Sua espiritualidade, de forte aspecto militar e integral, contribuiu efetivamente para incorporar ao seio da igreja católica setores sociais ainda desprezados, a exemplo dos jovens e das camadas empobrecidas. O autor ressalta que a recente ruptura teórico- metodológica, relativizando as dicotomias entre sagrado e profano ou oficial e popular, são importantes para que surjam novos estudos acerca desses sujeitos, geralmente invisibilizados na documentação. Esses estudos deveriam enfocar mais suas lógicas internas, os motivos de adesão e as estratégias simbólicas de legitimação constituídas (p. 109).

O grupo de militantes da Ação Católica partia do pressuposto de que existiria um déficit de catolicidade na configuração social e até entre os membros da igreja. Encampavam, então, a tarefa de cristianizar todas as instituições sociais, gerando um novo tipo de patriotismo católico em um contexto de fortes conflitos ideológicos. A comprovação dessa habilidade de produzir um novo consenso nacionalista foi o apoio dado ao vitorioso movimento golpista de 1943, com a posterior incorporação de muitos membros do laicato católico no aparato estatal.

Decorrente desse modelo de inserção social, o foco do autor nos três últimos capítulos da obra parte da análise do mundo do trabalho.

A afirmação deste na configuração política e religiosa ocorreu através da mescla de valores religiosos com o insurgente peronismo. Existem afinidades evidentes entre a forma de governo estabelecida por Perón e o catolicismo social moldado pela Ação Católica, mesmo que houvesse grupos discordantes que acusavam as ações ditatoriais do regime. Nesse momento de intensa politização do cristianismo, ou de sacralização do político, Jesus passou a encarnar “el primer justicialista” (p. 137).

Apesar de Perón ser militar de carreira, a militarização do catolicismo, com a consequente simbiose entre a igreja romana e as forças armadas, manifestou-se com maior intensidade na ditadura dos anos setenta. Mallimaci faz questão de denunciar o regime instaurado após o golpe de 1976 como um terrorismo de Estado com fundamento cívico-religioso-militar (p. 168). Verdade que o quinto capítulo busca demonstrar um período mais duradouro, que perpassa todos os golpes militares, e este provém do catolicismo de matiz integral propalado pelos militantes católicos. Tal herança nunca fora unívoca, é bom ressaltar, e o movimento antiperonista nutriu-se igualmente do imaginário cristão-militarizado para excomungar e expulsar Perón da Argentina.

O catolicismo integral e o peronismo serão objetos de disputa social no esforço coletivo de construir uma Argentina verdadeiramente católica. Dois movimentos são exemplares desse conflito de tradições.

De um lado, está o movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo, a experiência de messianismo utópico e popular mais importante do final da década de sessenta. Conforme o autor: La critica social y politica del Movimiento a la ditadura del momento fue respondida desde lo politico, lo social y lo cultural.

También hubo otra, teológica, política y religiosa, pronunciada por los sacerdotes católicos que formaban parte de ese gobierno militar. […] (Pero) En el Movimiento de Sacerdotes para el tercer Mundo se disociaba la memoria católica de la función legitimadora de las relaciones sociales hegemónicas y se las trasladaba a las clases subalternas primero y luego al movimiento político mayoritario en sectores populares (p. 192).

Do lado oposto, partindo da crítica teológica, política e religiosa, nessa ordem, estavam os capelães militares. Esse grupo, em texto divulgado na grande imprensa, denunciava seus companheiros de batina, como é demonstrado pelo autor quando este cita um documento gerado pelo Comando de Operações Navais, assinado pelo capelão Duilio Barbieri. Afirma-se nesse texto que: […] hay fundadas razones para creer que entre estos sacerdotes (para el tercer mundo) hay algunos que son activistas comunistas expresamente infiltrados ya desde el seminario, y que con esos sacerdotes estamos en el cero absoluto del espíritu (BARIBIERI, 1970 apud p. 193).

A tensão sócio-religiosa perdurou até a ditadura civil-militar implantada em 1976. A repressão violenta, utilizando inclusive grupos paramilitares, foi legitimada pela Conferência Episcopal Argentina.

Mallimaci chega a afirmar peremptoriamente que “[…] los golpes militares nunca recibieron la reprobación del cuerpo epsicopal, tanto en Argentina como en el resto de América Latina” (p. 194).

O leitor pode estar curioso para saber como o padre Jorge Bergoglio, atual Papa Francisco, se portou nessa conjuntura. A obra apresenta denúncias de que ele, enquanto superior dos Jesuítas, desprestigiou tanto sacerdotes quanto leigos ligados à Companhia de Jesus durante a perseguição governamental e eclesiástica. Estes eram aqueles que estavam inseridos exatamente nas lutas dos pobres. Ainda como provincial da Universidade do Salvador, vinculada à Companhia inaciana, padre Bergoglio participou da condecoração, concedida em 1977, ao almirante Emílio Massera, conhecido já na época por sequestrar, torturar e “fazer desaparecer” muitos membros do catolicismo (p. 200).

Esse tema do papa argentino retorna ao final do livro, quando este trata das reconfigurações recentes no campo religioso argentino.

O catolicismo integral ficou fragmentado com o impacto das redefinições democráticas no espaço público, bem como com o crescente pluralismo religioso. Ter um papa peronista (cf. p. 239) fortalece a relação simbiótica entre nação e fé católica. Assim, a laicidade permanecerá apenas no nível jurídico, como um mito social vigoroso nesse enviesado processo de reconhecimento da liberdade.

A obra aponta, destarte, para desafios fulcrais da democratização ainda recente na América Latina. Talvez o autor tenha, no intuito de demonstrar sua tese, ressaltado demasiadamente a continuidade da relação instituída entre catolicismo e governo, ou desprezado momentos em que a religião se distanciou do campo político, que é um princípio afirmado teoricamente (p. 149). Todavia, como se buscou indicar nesta resenha, o livro de Mallimaci está prenhe de intuições analíticas e metodológicas capazes de revigorar os estudos acerca dos atores religiosos, suas representações sociais, lógicas identitárias, pretensões legitimadoras e, sobretudo, crenças.

Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória.

Eduardo Gusmão de Quadros – Docente do PPG em História e em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Doutor em Historia pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com.

Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições – LIMA (AN)

LIMA, Mario Helio Gomes de. Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições. São Paulo: É Realizações, 2013. 198 p. Resenha de: OLIVEIRA, Amurabi. Do pretexto ao subtexto de Casa-Grande & Senzala. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, p. 449-457, dez. 2015.

O historiador e antropólogo Mario Helio Gomes de Lima (2000, 2010) já havia dedicado dois livros à obra de Gilberto Freyre, entretanto, seu mais recente trabalho, Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições, não se volta a um exame mais amplo do legado intelectual do pensador pernambucano, mas sim à sua obra mais célebre: Casa-Grande & Senzala. Esse livro, publicado originalmente em 1933, formou o primeiro volume de uma tetralogia inacabada intitulada Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil, da qual fazem parte Sobrados e Mucambos, de 1936, e Ordem e Progresso, de 19571.

Sendo Casa-Grande uma obra clássica, que se constitui como um referencial para diversos campos disciplinares, em especial para os da Sociologia, Antropologia e História, ela já foi bastante debatida e examinada. Todavia, como indica Lehmann (2008), houve, nos últimos anos, um crescimento evidente do interesse pela obra desse autor, o que tem mobilizado pesquisadores, tanto brasileiros quanto estrangeiros, a buscar novos ângulos de análise de seu trabalho. O livro de Helio não se propõe a ser um exame detalhado aos moldes de Guerra e Paz, que almejou lançar novas teses interpretativas (ARAÚJO, 1994), mas sim, um trabalho cujo valor encontra-se no seu caráter esclarecedor, e mesmo didático, a respeito de Casa Grande & Senzala e de seu autor, sanando algumas dúvidas que surgem durante a leitura e desvelando alguns dos mistérios da escrita desse que é considerado um dos livros que inventou o Brasil (CARDOSO, 2013). Esse trabalho hercúleo é realizado não apenas através de um exercício de interpretação da própria obra, mas também por meio do diálogo com outros livros de Freyre, além de seu “diário”, publicado com o título de Tempo Morto e Outros Tempos (2006b), e de cartas trocadas entre o pensador e alguns de seus contemporâneos, que revelam as contradições, anseios e angústias do autor durante o processo de construção dessa obra monumental.

O livro encontra-se subdividido em seis partes: 1) o pretexto, 2) o intertexto, 3) o contexto, 4) o texto, 5) os entretextos, 6) o subtexto. Essa organização não visa apenas a didatizar a apresentação do tema central do livro, mas a apresentá-lo de tal modo que ele consiga ser tanto uma valiosa introdução aos neófitos no legado de Freyre, quanto um trabalho de síntese útil aos leitores mais familiarizados com a obra do intelectual de Apipucos2.

Na primeira parte, apesar de a apresentação de Gilberto Freyre não se resumir à simples descrição da biografia pessoal ou da formação intelectual do autor, o que não é olvidado completamente, Helio chama a atenção para a forma como Freyre grafava seu sobrenome, com “Y” e não com “I”, bem como “Mello” e não “Melo”, o que já apontara para o seu interesse pelo passado, pela origem dos nomes e suas raízes. Desse modo, destaca-se que, para Freyre, o passado nunca é totalmente esquecido, mas sim, vivo e pulsante, projetando-se no presente e no futuro. Afinal, para ele, o tempo era “tríbio”, ou seja, passado, presente e futuro se interpenetravam continuamente. Sua formação intelectual inicial e a vivência nos Estados Unidos tiveram um peso significativo na elaboração de seu modo de entender o Brasil, especialmente no que diz respeito às relações raciais. Nesse sentido, também pesa a complexa posição política que adotou, com sua aproximação a Estácio Coimbra (1872-1937) e seu subsequente exílio com a ascensão do governo de Vargas, em 1930, período no qual escreveu seu livro mais conhecido.

Em O Intertexto, o foco volta-se para a própria escrita de Freyre, afinal, ele afirmava que, antes de ser sociólogo, antropólogo ou historiador, ele seria escritor (FREYRE, 1968). Como já havia notado Motta (2009), Freyre tinha algo mais de artista do que de cientista. Porém, sua marca não se restringia à escrita cambaleante entre o fazer científico e o fazer literário, entre os quais ele não percebia haver barreiras estanques, ela também estava presente no exercício contínuo de reescrita de seus próprios trabalhos, o que inclui seu diário de juventude, em grande medida, uma “autoficção”.

Como é bem demonstrado, nos momentos em que Freyre buscou ser historiador sempre o foi com hífen: “historiador-sociólogo”, “historiador-antropólogo”, todos unidos pelo “historiador-escritor”, pois, “O Gilberto Freyre historiador é o que não separa – como muitos antigos, da sua tradição clássica muito remota, mas sempre viva e presente – o escritor da escrita, nem a narração do narrado ou do narrador” (p. 58). Não podemos esquecer que, para Freyre, a saudade é uma ferramenta heurística que lhe possibilita revivenciar empaticamente o passado (VILLAS BOAS, 2006), para assim compreender melhor o presente; metodologicamente, essa indissociabilidade também é fundamental. De forma bastante sintética nos são apresentadas aquelas que seriam as principais influências do autor de Casa-Grande & Senzala: A escrita de Freyre plasma-se em duas influências fundamentais: os textos de autores portugueses (tanto os ortodoxos quanto os heterodoxos) e da literatura moderna dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Espanha, que frequentou na década de 1920. Duas influências individuais poderosas na sua formação: Oliveira Lima e Franz Boas, na época de sua formação nos Estado Unidos. (p. 62) A respeito da influência de Franz Boas, é relevante considerarmos os questionamentos realizados por Motta e Fernandes (2013), que apontam para o seu peso relativo na formação de Freyre, considerando que ele fez seus estudos de pós-graduação em História Social e não em Antropologia, ainda que tenha cursado disciplinas nesse departamento (PALLARES-BURKE, 2005). Assim, Boas nunca foi seu orientador no sentido formal do termo. Ademais, ainda que ele reivindique a influência decisiva de Boas em sua obra desde o prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2005), os autores apontam outras influências intelectuais que teriam pesado de forma mais significativa na formação intelectual de Freyre, como Charles Maurras (1868-1952).

Nesse capítulo, Helio ainda realiza um exercício bastante didático de classificação dos trabalhos de Freyre, organizando-os em grandes blocos em termos de temáticas, finalidades, relevância e, principalmente, de conexão entre eles; afinal, o autor busca demonstrar que, apesar da diversidade, haveria uma unidade de propósitos, métodos e realização na obra de Freyre, de modo que: “Encontrar esses pontos são os primeiros passos para uma leitura empática do que fez” (p. 74).

Já em O Contexto, o livro trata do cenário de fundo do período de publicação de Casa-Grande & Senzala, tanto em termos de dados mais objetivos, considerando, por exemplo, o caráter rural e analfabeto do país naquele período, quanto em termos do debate intelectual colocado ao fundo. Nessa direção, sua análise conflui com a de Bastos (2006) ao indicar que a questão racial era central para as discussões políticas e intelectuais dos anos de 1920, sem desconsiderar as condições às quais Freyre estava exposto de forma mais sui generis, como no que diz respeito a suas restrições orçamentárias. Esse capítulo também é interessante por desvelar algumas lendas que Freyre criou em torno de si próprio, comparando alguns dados que são citados em livros e a forma com que aparecerem nas cartas pessoais.

A contextualização realizada compreende ainda as condições dadas para a produção desse clássico do pensamento social brasileiro, bem como a cena cultural de fundo. Por exemplo, apesar de soar anedótico, Helio traz à tona o dado de que, em 1932, a música mais bem-sucedida no carnaval foi O Teu Cabelo não Nega, que era acompanhada de outras músicas cujo tema era a questão da mestiçagem, especialmente por meio da figura da mulata. Sendo assim, Casa-Grande & Senzala seria o estudo mais abrangente naquele contexto sobre um tema que estava posto no cotidiano dos brasileiros, o que explica, em parte, o forte impacto que sua publicação teve nos meios intelectuais. Esse livro teria realizado uma nova leitura do Brasil, elaborando uma visão que o país tinha de si mesmo quanto à mestiçagem. Para Cardoso (2013), a ressonância de Casa-Grande & Senzala até o atual período se deve ao fato de que Freyre cria um mito sobre o Brasil, no qual nós nos reconhecemos e gostamos de acreditar. Não me parece que Helio discorde totalmente dessa leitura, mas ele destaca que houve uma série de ações paralelas no plano cultural que confluíram com algumas das questões postas por Freyre, ao menos no sentido de tentar construir uma nova interpretação do país.

Outro detalhe interessante diz respeito à ambiguidade do ano de lançamento do livro, já que, como fora publicado no final do ano, na folha de rosto a data é 1933 e, na capa, 1934. É assim que esse capítulo é iniciado, discutindo ainda como: O título é quase uma metáfora das relações de raça e de classe no Brasil. Parte de uma simplificação do complexo arquitetônico-político-econômico da colonização portuguesa.

Não que casa-grande ou casa grande fosse o termo corrente ao longo dos séculos para designar a residência dos senhores – o termo usado era casa de vivenda ou casa de morada –, mas funciona bem para designar uma sociedade de extremos, contrastes e contradições em que a cordialidade pode abraçar a violência. (p. 103-104) Helio retoma a dificuldade de classificação do livro, que pode ser compreendido tanto como um livro autônomo quanto como parte de um projeto maior, de uma tetralogia que finalizaria com o livro Jazigos e Covas Rasas. Porém, esse último projeto não chegou a ser realizado. Sem embargo, Helio chama a atenção para o fato de que a sequência dos livros, especialmente os da trilogia publicada, passa, em alguma medida, uma falsa impressão, já que o autor não observaria os períodos históricos dentro de uma visão convencional. Haveria sim “[…] algo de anárquico no seu modo de trabalhar o tempo, resultante não só do corte sincrônico da antropologia, mas de sua paixão pela literatura, domínio por excelência do mito (ou vice-versa). Não é anacronismo o que reivindica, e sim a interpenetração do tempo” (p. 111). Esse exercício é realizado tomando como chave analítica o oikos, a história íntima da sociedade patriarcal.

O autor ainda se volta para o debate entre Freyre e seus críticos, sejam aqueles que questionam seu rigor científico sobre alguns temas, como é o caso de Josué de Castro, ou os que problematizam a validade de suas ideias para todo o Brasil.

A respeito disso, destacaria os inúmeros prefácios escritos pelo autor, pois situam bem esse debate. Em Casa-Grande & Senzala isso fica mais claro, na medida em que os inúmeros prefácios podem ser lidos e interpretados à luz das reacomodações vivenciadas por Freyre no campo científico brasileiro (SORÁ, 1998). Entretanto, o prefácio para Ordem e Progresso também é bastante interessante por apresentar uma nota metodológica que esclarece alguns pontos de suas escolhas (FREYRE, 2004), bem como o prefácio da segunda edição de Sobrados e Mucambos, no qual ele reafirma que suas teses não se aplicariam apenas para o Nordeste, mas sim para todo o Brasil, de modo que aqueles que o criticaram por tal universalização, especialmente através da categoria de patriarcado, estariam confundindo forma e conteúdo, pois, embora houvesse uma variação de conteúdo etnográfico, a forma permaneceria a mesma: a família patriarcal (FREYRE, 2006a).

É problematizado ainda como a ideia de mestiçagem de Freyre se opõe ao racismo presente na obra de Oliveira Viana (1883-1951), o que vale também para os portugueses. Gilberto Freyre desenvolve um raciocínio distinto do presente em Populações Meridionais do Brasil, publicado em 1920, ao compreender os portugueses como europeus e africanos, e, ao chegar até mesmo a afirmar posteriormente que os portugueses representam o povo menos europeu da Europa (FREYRE, 2011). Helio resume que as principais divergências entre Freyre e Oliveira Viana se dava por meio dos resultados aos quais ambos chegaram em relação à miscigenação, pois, para Viana, esse fenômeno seria algo negativo, e, para Freyre, algo positivo.

Muito rapidamente, Helio aborda a polêmica em torno do chamado “mito da democracia racial”, reafirmando, o que já fora feito por muitos, que a expressão “democracia racial” não fora utilizada por Freyre, sendo mais recorrente, em sua obra, o termo “confraternização das raças”. No entanto, a questão não é aprofundada por Helio, talvez porque ele compreenda que esse ponto vem sendo exaustivamente revisitado por diferentes ângulos e prefira, então, indicar como o livro inovou não apenas em sua interpretação do país, como também na linguagem.

O capítulo Os entretextos se volta ainda mais fortemente para o propósito didático que o autor leva a cabo ao propor uma pequena antologia de fragmentos de Casa-Grande & Senzala. Já em O subtexto, o autor nos apresenta uma divisão da recepção do livro em três momentos: o primeiro iria de sua publicação até a metade dos anos de 1960, quando haveria mais avaliações positivas do que negativas sobre o livro, ainda que houvesse ataques por parte dos conservadores no que diz respeito ao uso da linguagem coloquial, à crítica aos jesuítas e à apologia à cultura afro-brasileira; o segundo iria da metade dos anos de 1960 até os anos de 1980, período em que o trabalho é combatido por sua suposta falta de cientificidade e pela interpretação assumida sobre a sociedade brasileira, porém Helio ressalta que muitas críticas eram realizadas sem que o trabalho fosse lido; e, por fim, terceiro momento se inicia nos anos de 1990 e se acelera com as comemorações do centenário de seu nascimento nos anos 2000, quando surgem novos trabalhos que visam a aprofundar a análise de sua obra. Nesse ponto, Helio nos traz uma seleção de alguns trabalhos produzidos nesse período que ele considera emblemáticos, indicando ainda outras fontes complementares para uma melhor compreensão de Casa-Grande & Senzala.

O livro de Helio se apresenta como parte desse novo conjunto de trabalhos que passam a revisitar a obra de Freyre. Talvez lhe falte uma crítica mais incisiva, porém, claramente, sua meta é mais esclarecer do que criticar, desmistificando não apenas o próprio Freyre, como também alguns argumentos contrários à Casa-Grande & Senzala que não se sustentam ante uma análise mais minuciosa.

Creio esse seja um livro fundamental para sociólogos, antropólogos e historiadores que almejem adentrar de forma mais profunda na interpretação do Brasil elaborada por Freyre.

Notas

1 Na “Nota Metodológica” de Ordem e Progresso, o autor afirma que: “Este estudo – Ordem e progresso – é o terceiro da série que, iniciada com o ensaio Casa-grande & senzala, teve sua continuação em Sobrados e Mucambos e será concluída – como já se disse no prefácio – com o ensaio Jazigos e covas rasas, atualmente em rascunho e a ser publicado em breve” (FREYRE, 2004, p. 39). Nesse sentido, podemos falar em uma tetralogia inacabada.

2 Nome do bairro na cidade do Recife no qual Freyre passou boa parte de sua vida adulta. Atualmente, localizam-se nele tanto a Fundação Joaquim Nabuco, instituto de pesquisas sociais fundado por Freyre, quanto a Fundação Gilberto Freyre.

Referências

ARAUJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 1994.

BASTOS, Elide Rugai. As Criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.

CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que Inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob regime de economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005.

_____. Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Editora UnB, 1968.

_____. Novo Mundo nos Trópicos. São Paulo: Global, 2011.

_____. Ordem & Progresso. São Paulo: Global, 2004.

_____. Sobrados & Mucambos: decadência do patriarcado rural no Brasil. Global: São Paulo, 2006a.

_____. Tempo Morto e Outros Tempos. São Paulo: Global, 2006b.

LEHMANN, David. Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue. Horizontes antropológicos, v. 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008.

LIMA, Mario Helio Gomes de. Gilberto Freyre. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010.

_____. O Brasil de Gilberto Freyre. Recife: Comunigraf, 2000.

MOTTA, Roberto. Élide, Gilberto, Imagismo e Língua de Universidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 185-206, fev. 2009.

MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila. Gilberto Freyre, um Enigma Genealógico. In: MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila (Org.). Gilberto Freyre: região, tradição, trópico e outras aproximações. Rio de Janeiro: Instituto Miguel de Cervantes, 2013. p. 11-36.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: UNESP, 2005.

SORÁ, Gustavo. A construção sociológica de uma posição regionalista: reflexões sobre a edição e recepção de Casa-grande e Senzala de Gilberto Freyre. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 36, p. 121-139, fev. 1998.

VILLAS BOAS, Glaucia. Mudança Provocada: passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Amurabi Oliveira – Doutor em Sociologia (UFPE), professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. E-mail: amurabi_cs@hotmail.com.

Poesia e Polícia – Redes de comunicação na Paris do Século XVIII – DARNTON (AN)

DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 228p. Resenha de: MATTOS, Yllan; DILLMANN, Mauro. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p. 357-362, jul. 2015.

Em 2014, a comunidade de historiadores brasileiros recebeu a tradução de mais um livro do renomado historiador norte-americano Robert Darnton. Trata-se de Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII, publicado originalmente nos EUA, em 2010, (no mesmo ano de O Diabo na água benta, com tradução no Brasil em 2012). A obra é dedicada ao estudo dos circuitos de comunicação e poderes políticos de difamação na Paris de meados do século XVIII, uma continuidade e um complemento dos seus próprios estudos sobre o tema da arte da calúnia política.

Autor de obras historiográficas de grande repercussão internacional, como O grande massacre de gatos (1985) e O Beijo de Lamourette (1990), entre outras, o professor da Universidade de Harvard nos brindou com este novo livro que busca constatar as referidas “difamações” a partir da consulta a diversas fontes como poemas, canções, panfletos, cartazes e uma série de escritos críticos que imiscuíam política e moral contra o rei francês Luís XV [1710-1774].

A pesquisa de Darnton traz à luz a “mais abrangente operação policial” da Paris de 1749, seguindo a trilha deixada por seis poemas sediciosos (p. 8). Darnton está interessado em analisar os sistemas de comunicação e de circulação de informações na Paris semialfabetizada do século XVIII, através da poesia, seja em sua forma escrita, recitada ou cantada. Para tal, busca apreender a “opinião pública” (a atmosfera de opiniões, a “voz pública”) expressa nas poesias e nas canções que circulavam na época. Ao mesmo tempo, mas com menor envergadura, procurou compreender a maneira como as pessoas ouviam as canções, buscando recuperar os “sons do passado” para uma compreensão mais rica da história, a fim de “fazer a história cantar” e “[…] reconstituir alguns padrões de associação ligados a melodias populares” (p. 11, p. 85, p. 102). Em suma, Darnton busca rastrear uma rede de comunicação oral desaparecida, como ele enfatiza, há 250 anos, argumentando que “[…] a sociedade da informação existia muito antes da internet” (p. 134).

Neste empreendimento, Robert Darnton parte de uma operação policial de 1749, grifada na capa do inquérito pelos algozes como “caso dos catorze”, quando a polícia prendeu catorze indivíduos na Bastilha acusados de difamar o rei Luís XV através da poesia. Uma das funções da polícia, à época, estava na “supressão da maledicência acerca do governo” (p. 09), pois difamar o rei era crime. O “caso dos catorze” foi o mote encontrado por Darnton para analisar a rede de comunicação oral e escrita e a circulação de informações, mas também de disputas políticas na França do Antigo Regime.

No que tange à comunicação oral, Poesia e polícia não consegue ir além daqueles que escreviam e copiavam poemas e versos sediciosos contra o rei e sua política, chegando muito pouco ao mundo dos analfabetos (ou semianalfabetos, como quer o autor) e pobres, quando muito aproxima-se daqueles que se envolviam com tais escritos, sejam clérigos, estudantes ou habitantes do Quartier Latin. É acertado que a memorização fora um instrumento importantíssimo nesses tempos, mas, no caso desses poemas, funcionava mais a rede escrita de bilhetes que circulavam de bolso em bolso, colete a colete. A leitura dos poemas em voz alta promovia uma “cadeia de difusão”, devido às amplas redes de comunicação que pouco puderam ser mapeadas tanto pela polícia do Antigo Regime quanto pelo historiador da atualidade, porque não deixaram registros facilmente identificáveis. Por outro lado, os poetas eram, em geral, filhos de chapeleiros, filhos de professores, escreventes, ex-jesuítas, estudantes, advogados, clérigos e os autores das poesias eram provenientes socialmente tanto da Corte quanto das camadas mais baixas (p. 119). Havia também um círculo clerical clandestino, já que era comum a presença de ideias políticas entre o clero e os padres interessados em literatura (p. 25), sobretudo quanto à temática acerca do jansenismo (p. 53-56).

Como argumenta Darnton, as poesias e canções não representavam nada de excepcional, mas revelavam o descontentamento social e o sistema de comunicação (p. 60) na França, uma vez que eram publicações irreverentes, sediciosas, satíricas, dadas ao escárnio.

Assim, o autor identifica a variedade de poesias e de gêneros, caracterizando-as em diversas categorias, como jogos de palavras, zombaria, piadas, tiradas de espírito, baladas populares, cartazes burlescos, cantos de natal burlescos, diatribes (p. 109-121).

O que Darnton enfatiza é o caráter político dos poemas, pois eram escritos que convertiam política em poesia (p. 49). Os protestos populares vinham desta rede de comunicação, dos poemas, das canções, dos impressos, cartazes e das conversas (p. 34). Alguns poemas tornavam-se odes, ou seja, “[…] versos trabalhados à maneira clássica e com um tom elevado, como se tivessem sido feitos para a declamação no palco ou numa tribuna pública” (p. 61). Poesias e odes tornavam-se facilmente canções, Chansonniers, cujos temas giravam em torno de diversas questões sociais, principalmente escárnio ao rei e críticas à administração pública. Cantores e canções moviamse nas escalas sociais; folhetos e manuscritos eram comercializados em Paris e a música estava na rua, o espaço do violino, da flauta e da gaita de fole. Essas canções eram, de fato, numerosas e, na sociedade semianalfabeta, as canções eram como jornais. Os versos compostos entre 1748 e 1750 pelos catorze incluíam 264 canções e o rei certamente via nessas canções o ódio de seu povo (p. 48).

A obra explicita claramente a metodologia empregada pelo historiador no manejo e na exploração de suas fontes, além do cuidado em apresentar os documentos como “prova” de seus argumentos, suas justificativas, suas interpretações, considerando, evidentemente, as dificuldades e os limites de apreensão da comunicação oral para um recorte temporal bastante recuado. O autor busca, então, os “ecos” dessa oralidade em outros textos, como epigramas, charadas, diários e cadernos de anotações (p. 81). Do mesmo modo, confessa a dificuldade do historiador para constatar a “recepção”, levando em conta que a análise textual não oferece conclusões sólidas sobre difusão e recepção (p. 108). De qualquer forma, ele busca a “reação dos contemporâneos aos poemas” (p. 122). Essa “reação” é indicativa da “recepção” e Darnton busca em fontes como diários e memórias. Para acessar a opinião pública, Darnton vale-se de uma série de documentos como diários, memórias, arquivos da Bastilha, fichas da polícia. O livro é justamente uma tentativa de recuperar as mensagens transmitidas em redes orais, em redes de comunicação, a “paisagem mental” composta de atitudes, valores e costumes, como Darnton refere na conclusão.

A metáfora do historiador-detetive, empreendida por Collingwood (A ideia de história) e Carlo Ginzburg (no famoso ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário), é retomada por Robert Darnton, colocando em discussão o ofício do historiador: interpretar a interpretação, interpretar o significado, vinculados ao contexto de sua produção, ou em suas palavras: “[…] os detetives trabalham de modo empírico e hermenêutico […]”, interpretando pistas, seguindo fios condutores e montando o caso “[…] até chegar a uma convicção” (p. 146). Portanto, ele buscou interpretar a interpretação da política e da polícia, além do significado dos panfletos no contexto de comunicação do século XVIII francês.

É nesse sentido que a obra aproxima-se da metodologia de Clifford Geertz (1989). A inicial exposição descritiva do caso dos catorze e dos poemas (thick description, se quisermos usar o termo do antropólogo) segue-se à interpretação cultural, tomando por princípio a recusa à teorização, discordando tanto das perspectivas de Michael Foucault como das de Jürgen Habermas sobre a construção da “opinião pública”. Para este caso, além das explicações que faz em todo o livro, a discussão poderia ganhar mais fôlego se Darnton colocasse suas análises em relação a outros autores ligados a esta temática, tais como como Arlette Farge (Dire et mal dire: l’opinion au public XVIIIème siècle), Mona Ozouf (Verennes) ou Roger Chartier (entre outros: Lectures et lecteurs dans la France d’Ancien Règime e Origens culturais da Revolução Francesa), oferecendo bons contrapontos à sua análise. Um dos problemas da noção de “voz pública” é que se deixam de lado as diferenças sociais de todo tipo para dar ênfase ao que é comum. Lendo o livro de Darnton, pode-se ter a impressão de que todas as pessoas estavam imersas na crítica ao rei, à sua amante e às decisões reais. Embora o autor coloque em dúvida essa premissa (p. 132), não discorre muito sobre essa questão. Por outro lado, talvez nesse Poesia e polícia, Darnton tenha melhor utilizado a construção hermenêutica através do registro documental, recorrendo fartamente à contextualização, contrabalanceando com o uso do texto documental em si.

Por fim, considerando alguns aspectos formais, o livro é feito para atrair um público além dos historiadores: bastante conciso, com pouco mais de 140 páginas de texto, subdivididos em 15 curtos capítulos, e 44 páginas de anexos brevemente comentados, constituindo- se de fácil e prazerosa leitura, em que o leitor encontrará não poucas repetições de argumentos. Ressaltam-se, também, alguns desacertos da tradução, como “Velho Regime” ao invés de Antigo Regime, e ortográficos. Os anexos, por sua vez, são apresentados como apêndices e trazem a transcrição dos poemas analisados, divulgados em meados do século XVIII francês, e com um hiperlink para aquele leitor mais curioso que quiser ouvir as canções. Vale escutar essas canções subversivas através da voz de Hélène Delavault, acompanhada pelo violão de Claude Pavy, no seguinte endereço eletrônico: <www.hup.harvard.edu/features/dapoe>. Para melhor demonstrar essa circulação, Darnton construiu um diagrama com indicação do esquema de distribuição, do circuito de comunicação dos catorze homens das camadas médias, considerados “jovens intelectuais”, que foram presos pela polícia (p. 23). O livro também traz imagens dos documentos pesquisados, dos “pedaços de papel”, das “folhas rasgadas”, dos poemas manuscritos e rabiscados em folhas avulsas que chegaram aos dias de hoje, pois foram apreendidos e arquivados pela política francesa. Além disso, o autor ilustra a obra com pinturas retratando cantores e vendedores de livros e imagens de livros de canções manuscritas (p. 90-93).

O livro de Robert Darnton certamente interessará aos estudiosos das práticas de escrita e leitura, aos pesquisadores das ideias do Antigo Regime e da cultura política e aos interessados, especialistas ou não, em História Moderna, em História da Literatura ou em Crítica Literária. Uma boa leitura – poder-se-ia dizer adorável e prazerosa, se considerarmos a atual discussão que os historiadores brasileiros vêm fazendo a respeito da função social da História e da necessidade de significação histórica para além da academia – de um trabalho de historiador que nos brinda com uma diferente concepção da cultura política do Antigo Regime francês.

Referências

CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.

___________. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Portugal: Editorial Presença, 1981.

FARGE, Arlette. Dire et mal dire: l’opinion au public XVIIIème siècle. Paris: Seuil, 1992.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura.

In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989, p. 13-41.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-80 .

OZOUF, Mona. Varennes: a morte da realiza, 21 de junho de 1791. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Yllan de Mattos Doutor em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense e professor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ (UNESP, campus Franca). Contato: yllanmattos@yahoo.com.br.

Mauro DillmannDoutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS -RS). Professor do Instituto de Ciências Humanas e da Informação, Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

A História, a Retórica e a Crise de paradigmas – BERBERT JR (AN)

BERBERT JÚNIOR, Carlos Oiti. A História, a Retórica e a Crise de paradigmas. Goiânia: Universidade Federal de Goiás/Programa de Pós-Graduação em História/Funape, 2012, 296p. Resenha de: PASSOS, Aruanã Antonio dos. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p. 351-355, jul. 2015.

Mais de quarenta anos depois de seu início, o debate ainda causa polêmica. De um lado, os defensores de uma tradição que almeja à história o estatuto de ciência, rainha das humanidades. Do outro, alguns estudiosos interessados na dimensão narrativa e discursiva da história tentando mostrar que essa pretensão à ciência só se sustenta na cabeça de alguns sujeitos que monopolizam um saber e estão mais interessados em suas dimensões políticas e legitimidade institucional. Do olhar mais superficial de um jovem estudante que se inicia na difícil tarefa de entender uma profissão tão antiga, esses dois grupos mostram-se contraditórios e uma avaliação preliminar desse mesmo jovem tende a ressaltar que definitivamente as posições são irreconciliáveis. Ledo engano, como bem mostra o livro A História, a retórica e a Crise de Paradigmas, de Carlos Oiti Berbert Júnior, que vem a público pela editora da Universidade Federal de Goiás.

Apresentado como tese de doutorado defendida no programa de pós-graduação em História da Universidade de Brasília, o trabalho soma méritos ao campo da teoria da história e da historiografia no Brasil de forma consistente, e vem a enriquecer os debates sobre o pós-modernismo no campo do conhecimento histórico. Sob este aspecto, cabem aqui algumas observações. A primeira refere-se ao crescimento da teoria da história em território nacional. É inegável que ela nunca esteve ausente dos gabinetes e da pena dos historiadores.

Tampouco foi subordinada fiel ou joguete na mão daqueles que procuravam legitimar ideais e posturas políticas. Ao contrário, esse crescimento de publicações, cursos, livros, programas de pós- -graduação, eventos que se voltam para a teoria da história, pode ser entendida pelo próprio momento em que a historiografia vive. Nas palavras de François Dosse, um momento de “retorno do sentido”, em que após as críticas que emergiram de um lado pela linguistic turn norte-americana, além do esgotamento do estruturalismo e do marxismo, a sensação era de pós-orgia, metáfora que empresto do pós-moderno Jean Baudrillard. E nesse contexto a teoria passou a ser encarada como leitmotiv para uma reconstrução epistemológica e metodológica que superasse as aporias da pós-modernidade.

A segunda ressalva refere-se ao caráter inerente da escrita da história e sua narração, objeto de atenção especial por parte de Berbert Júnior. Podemos especular que desde que Heródoto e Tucídides iniciaram a escrita da história tal como a concebemos, o elemento da “narrativa” sempre esteve entre as preocupações dos historiadores.

O que não podemos negligenciar é a natureza da discussão em torno da narrativa no final do século XX. Em muito esta discussão tem por pano de fundo a “crise” dos paradigmas estruturalistas, marxistas e dos Annales do final dos anos 1970 e, por outro lado, um “retorno” à narrativa enquanto elemento de especificidade do conhecimento histórico que em muito se aproximaria da narrativa literária. O caráter de cientificidade almejado pelos Annales teria passado definitivamente por cima do caráter narrativo da história, por mais latente que esse caráter atualmente nos pareça e ainda que muitas das grandes obras produzidas por Marc Bloch e Lucien Febvre contemplem elementos literários (p. 19).

Como pano de fundo de todo o debate estabelecido em torno desse suposto “retorno” da narrativa, encontramos o estabelecimento de novas posturas teóricas e metodológicas em relação à produção de conhecimento histórico. Neste mesmo contexto, encontramos a micro-história italiana, a “new left” inglesa e, mais posteriormente à própria “guinada linguística” nos EUA, escrevendo – literalmente – o passado de forma diferente dos grandes modelos. A análise de Berbert Júnior leva esse contexto à tona a partir da constatação de que há uma

crise de paradigmas no interior da própria narrativa histórica (p. 9), o que já é ponto de grandes controversas ainda hoje. Assim, o autor define as dimensões do seu estudo: “[…] principalmente, apresentar os caminhos que levaram à crise que resultou, simultaneamente, no rompimento com o paradigma moderno e no estabelecimento de um novo paradigma, denominado pós-moderno” (p. 9).

Ao extremo, podemos observar Hayden White proclamando a história enquanto ficção documentada. Os efeitos causados pela historiografia da chamada “guinada linguística” caíram em erro ao absolutizar o estatuto do passado. Essa postura acabou por tornar qualquer compreensão do passado como ultrassubjetivista, em que a categoria moderna da “universalidade” assumindo contornos absolutos demoliu com a diferença entre as culturas (p. 223).

Porém, não se pode negar que a noção de White de imaginação histórica é fundamental dentro da epistemologia da história atual e os desdobramentos afetam vários campos do saber histórico: cultural, político, simbólico, religioso etc. O que Berbert Júnior revela de fundamental é que o paradigma pós-moderno acabou por relegar a retórica a uma simples questão de poder, quando, e aqui temos outro ponto forte do livro, a retórica está no centro de tensão entre as rupturas que pós-modernos almejaram fazer com as metanarrativas universais modernas (p. 10).

Assim, o coração da obra ressignifica a retórica como uma chave não apenas interpretativa, mas como alternativa diante das aporias tanto de modernos quanto de pós-modernos. Uma via para superação da crise de paradigmas: “[…] a retórica possui outras funções na teoria da história que não somente aquelas que foram destacadas pelos autores vinculados ao paradigma pós-moderno”, já que: “[…] a possibilidade de retomar o caráter de referência da narrativa a partir da capacidade do texto historiográfico de se referir ao passado”, efetiva-se na própria retórica (p. 227-229).

Ancorado em farta bibliografia, o trabalho divide-se em três capítulos, em que tanto o debate quanto autores fundamentais dos dois paradigmas – Dominick LaCapra, Paul Ricouer, Carlo Ginzburg, Jörn Rüsen, Hayden White, Terry Eagleton, Michel de Certeau, Frank Ankersmith, Keith Jenkins – são tratados de forma clara e ao mesmo tempo sem prolixismos ou vulgarizações que empobrecem a tessitura dos acontecimentos e muitas vezes tornam qualquer discussão teórica abstrata demais e descolada da realidade.

Um dos primeiros desafios é a definição do paradigma pós- -moderno, que também demonstra uma das tônicas de toda obra: sua acessibilidade e a escolha das interlocuções. Acertadamente, o texto foge das polemizações e se concentra no cerne do debate em que se definem as diferenças e surpreendentemente desvela as similitudes entre modernos e pós-modernos. Assim, “[…] a ruptura estabelecida entre o chamado paradigma pós-moderno e o moderno concede ao primeiro uma excessiva ênfase na interpretação” (p. 26).

Ao invés de estudar-se a “obra em si”, passou-se a dar maior valor às interpretações sobre a obra. A realidade em si não teria, dessa maneira, mais interesse central nas preocupações dos historiadores, já que a “[…] atribuição de significado e a interpretação estariam muito mais vinculadas a determinados esquemas a priori (tais como os encontrados em estratégias definidas a partir da ‘elaboração do enredo’, da ‘formalização da argumentação’ e das ‘implicações ideológicas’) do que à pesquisa histórica propriamente dita” (p. 36).

No limiar dessa perspectiva, como bem demonstra o capítulo dois (Universalidade, contingência a teoria da história: uma análise de categorias), ao analisar as asserções de Keith Jenkins, percebe-se que a relativização de toda abordagem dos historiadores é o resultado eminente da perspectiva pós-moderna, já que: “[…] se não existe, a certeza de que a história possa apreender diretamente do passado, a consequência maior será a relativização de todas as abordagens e o abandono da epistemologia no que se refere à análise do discurso entendido com ou um todo” (p. 43). Aqui encontramos outro ponto alto da análise da obra. Para além do mapeamento das premissas dos dois paradigmas, interessa a percepção dos caminhos alternativos que “[…] consigam evitar tanto o reducionismo objetivista, preconizado pelo paradigma moderno, quanto o voluntarismo subjetivista, exortado pelo paradigma pós-moderno, quando da atribuição do significado” (p. 45).

E, para a percepção dos possíveis caminhos alternativos, é a noção de retórica que, em diálogo com o direito, pode estabelecer uma compreensão das dimensões teóricas do debate. Nas palavras do autor: “[…] advogamos uma concepção de retórica que considere os aspectos cognitivos e o papel dinâmico da relação entre o historiador, os textos e o contexto e, que está inserido” (p. 77). Talvez aqui tenhamos uma pista importante para se pensar nas formas de superação das aporias e armadilhas que o debate coloca ao nosso jovem estudante, o qual antes não acreditava nessa possibilidade.

Por fim, é inegável que a obra contribui sobremaneira para a teoria da história e historiografia atuais, pela acessibilidade, clareza e pela qualidade das análises. Ao final, o leitor sente-se estimulado a avançar naquilo que o texto não pôde fazer: a crítica da recepção do debate em território nacional, ponto esse tangenciado no primeiro e segundos capítulos de forma breve. Mas a essa tarefa caberia outra obra tão ou mais densa quanto esta.

Aruanã Antonio dos Passos – Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Contato: aruana.ap@gmail.com.

O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos – MACEDO (AN)

MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: COUTINHO, Renato Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 553-558, dez. 2014.

Boas perguntas, por vezes, costumam gerar boas respostas.

É muito raro uma pesquisa consistente, com hipóteses originais e abordagem coerente partir de uma questão de menor relevância. Nas últimas décadas, as pesquisas na área de história e o pensamento social brasileiro vêm se debruçando sobre um debate gerado por uma indagação inquietante. Como Getúlio Vargas, presidente que governou durante período ditatorial, especialmente entre 1937 e 1945, conseguiu estabelecer suas bases de apoio eleitoral entre os trabalhadores brasileiros, com o Partido Trabalhista Brasileiro, no período democrático, entre 1946 e 1964? Indo direto ao problema, podemos sintetizar a pergunta da seguinte maneira: como explicar a popularidade de Vargas e de seu projeto político, o trabalhismo, entre os trabalhadores? Em linhas gerais, podemos identificar a existência de duas vertentes analíticas que percorrem caminhos bastante distintos para explicar o mesmo fenômeno. A mais antiga delas destaca as ações dos agentes estatais. Censura, repressão policial e propaganda política são os objetos mais investigados da perspectiva que busca, em última análise, entender a popularidade de Getúlio Vargas como resultado das bem-sucedidas estratégias de dominação social. Interpretações mais recentes preocupam-se com as relações mantidas entre o Estado e os setores populares, elevando os trabalhadores à condição de ator político. Projetos e crenças políticas, demandas sociais e organizações sindicais, ideias e valores culturais dos trabalhadores tornam-se objeto de estudo dos historiadores. Ou seja, temos duas correntes interpretativas que formularam variáveis independentes que se situam em polos distintos: para uma delas, as ações do Estado explicam o comportamento dos trabalhadores; para outra, as interações entre eles e o Estado se tornam a chave explicativa.

Para os leitores que estão familiarizados com o tema, não é difícil decifrar quais são as perspectivas apontadas acima. A primeira delas, a mais antiga, acabou por produzir e consolidar o conceito de populismo como ferramenta conceitual capaz de explicar a popularidade de líderes como Vargas – valorizado pelo seu carisma.

Segundo essa perspectiva, a estrutura social construída pelo processo de modernização capitalista tardia acabou conferindo ao Estado-Nacional uma condição privilegiada de dominação sobre os trabalhadores, por conta da ausência de um histórico de lutas capaz de gerar, entre essa camada da população, uma consciência de classe autônoma.

A segunda perspectiva delineada anteriormente vem cumprindo a tarefa de dialogar e enfrentar proposições que há décadas estão enraizadas não só no campo acadêmico, mas também no senso comum. Tendo como base trabalhos inovadores, como a A invenção do trabalhismo (GOMES, 2005), o suposto problema da falta de organização e consciência de classe dos trabalhadores brasileiros foi substituído por vasta pesquisa documental que visava a dar conta da construção da cultura política do operariado brasileiro a partir das suas próprias experiências de luta. A premissa de que a repressão e a propaganda foram capazes de gerar satisfação ou persuadir os trabalhadores foi abandonada. Pesquisas recentes, baseadas em fontes documentais, comprovam que o operário brasileiro interagiu com o Estado, resultando em trocas materiais e simbólicas que, em muitos aspectos, respondiam aos anseios e às reivindicações dos próprios trabalhadores. Vale destacar que não se trata de mudar os nomes, simplesmente trocando o termo populismo por trabalhismo. Não se trata da substituição de conceitos.

Trabalhismo é compreendido como um projeto político resultante das relações entre Estado e classe trabalhadora, em que ambos foram protagonistas na construção do projeto político.

O livro O movimento queremista e a democratização de 1945, da historiadora Michelle Reis de Macedo (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013), oferece sólida resposta para a pergunta que mobiliza diversos historiadores brasileiros. Nas palavras da autora: “[…] por que vários setores sociais, especialmente a maioria dos trabalhadores e setores populares, apoiavam o ditador?” (p. 17). Sem se perder nos intermináveis debates conceituais que envolvem a temática escolhida, a autora não se furta de destacar com clareza a sua filiação teórica e metodológica. Porém, o faz sem os andaimes das citações bibliográficas que, quando exageradas, tornam o texto enfadonho até mesmo para o especialista. O livro de Michelle de Macedo é uma obra sustentada por uma edificação conceitual rica e clara, mas com as estruturas teóricas cobertas pelo refinado acabamento documental. A utilização de uma vasta documentação e a análise das fontes são os maiores méritos do trabalho da historiadora, e, para a satisfação do leitor, as polêmicas conceituais são discorridas em meio aos problemas postos pela pesquisa.

O livro é o primeiro publicado sobre o movimento queremista no Brasil. Inspirados pela frase “Queremos Getúlio”, os queremistas organizaram comícios, produziram panfletos e pressionaram diretamente o presidente Getúlio Vargas a lançar sua própria candidatura para as eleições que colocaram fim ao regime ditatorial do Estado Novo, em dezembro de 1945. O movimento acabou não conseguindo sucesso na sua principal empreitada – a candidatura de Vargas –, mas teve influência determinante no resultado eleitoral das eleições presidenciais de 1946, além de ter contribuído decisivamente para a organização das bases programáticas e para a composição social do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Dividido em quatro capítulos, a obra destaca inicialmente a conjuntura internacional gerada pela vitória dos países aliados sobre os regimes fascistas ditatoriais na Segunda Guerra Mundial.

A autora mostra como o discurso de oposição ao Estado Novo buscou associar a imagem de Vargas aos líderes fascistas europeus.

A União Democrática Nacional (UDN), partido que inicialmente arregimentou um leque de oposicionistas a Vargas, iniciou a campanha eleitoral motivada pela certeza de que a imagem do ditador não poderia resistir ao contexto de ampla mobilização e exaltação dos valores liberais democráticos que ressurgiam prestigiados ao final da guerra. A campanha para a presidência, articulada em torno do brigadeiro Eduardo Gomes, começou contagiada pelo otimismo da certeza da vitória.

Nem mesmo o avanço das organizações queremistas a partir do segundo semestre de 1945 foi capaz de conter o ânimo da campanha udenista. Mesmo nos casos em que a mobilização queremista se mostravam coordenada e em crescimento, a resposta dos líderes udenistas era marcada pelo descrédito daqueles que julgavam os atos dos trabalhadores como “desvios” gerados pela propaganda estadonovista.

No segundo capítulo, Michelle de Macedo vai ao encontro do seu objeto de estudo. Ao analisar as ações coletivas dos queremistas, a autora mostra para o leitor os significados que norteavam as escolhas políticas dos trabalhadores que apoiavam Getúlio Vargas. Através de matérias veiculadas em jornais e de cartas enviadas para o presidente, a autora desvenda valores e anseios que orientavam os trabalhadores que defendiam a candidatura de Vargas. As divergências entre o pensamento liberal udenista e a cultura política dos trabalhadores entravam em conflito especialmente em torno da compreensão de “qual” democracia estava em jogo. Para os queremistas os avanços materiais promovidos pela legislação trabalhista conquistada nos anos anteriores eram mais importantes do que um sistema político baseado em regras formais de competição partidária. A cultura política popular mostrava-se alheia ao discurso liberal da campanha udenista, que tinha como princípio o fortalecimento das instituições da democracia representativa. Investigando quais eram as demandas populares em 1945, a autora mostrou como a questão da representatividade nos parâmetros da democracia liberal estava em segundo plano para o trabalhador brasileiro. Naquela ocasião, mesmo com a vitória das democracias liberais no conflito mundial, o interesse do trabalhador brasileiro era assegurar os benefícios trabalhistas que foram distribuídos durante o governo do presidente Vargas. Nesse contexto, a saída de Vargas representava uma ameaça aos ganhos materiais conquistados no regime que encerrava. E a ameaça era real. Afinal, a campanha udenista desqualificava a legislação social, acusando-a de “fascista”. Aliás, foi nessa época que surgiu a famosa expressão de que “a CLT era cópia da Carta del Lavoro”. Arroubos eleitorais udenistas, certamente, mas que assustaram os trabalhadores.

No capítulo seguinte, a análise do apoio dos comunistas ao queremismo é um dos pontos mais interessantes e elucidativos na disputa entre udenistas e queremistas. Os udenistas tinham como certo a oposição do líder comunista Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas. Não foi o que ocorreu. Ao contrário, Prestes apoiou Vargas.

A partir daí, os liberais udenistas reforçaram a crítica aos partidários de Vargas e Prestes associando suas crenças aos regimes totalitários europeus. No discurso da UDN, o fascismo de Vargas e o comunismo de Prestes representavam a mais terrível ameaça aos valores democráticos. A participação do Partido Comunista do Brasil (PCB) foi um complicador a mais na campanha eleitoral udenista. Como também da imprensa, toda ela alinhada com a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e com a UDN. Ainda no terceiro capítulo, a autora apresenta uma série de matérias publicadas nos jornais que visavam a ensinar a história do Brasil para o trabalhador brasileiro.

Nesses textos, o povo brasileiro sempre aparecia atuando em busca dos seus direitos sociais.

Por fim, Michelle de Macedo analisa o processo de institucionalização do movimento após a desistência de Getúlio Vargas de participar das eleições presidenciais. O queremismo é entendido nesse momento como um primeiro esboço das principais demandas dos trabalhadores que apoiariam, nos anos seguintes, o PTB.

Outro ponto de grande relevância do capítulo que conclui o livro é a pressão feita por facções do queremismo para que Getúlio Vargas declarasse seu apoio à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD. Isso realça o grau de autonomia que os defensores da candidatura de Vargas tinham em relação ao líder político. Durante toda a campanha eleitoral de Dutra, Vargas não pronunciou uma única palavra de apoio ao candidato do PSD. Apenas às vésperas da votação é que Vargas decidiu pedir o voto a Dutra, fato que, muito certamente, contribuiu para a derrota da UDN nas eleições de 1946.

A autora mostra como a pressão dos queremistas contribuiu para a decisão de Vargas, e esse evento comprova como as interações entre a liderança política e os agentes sociais são marcadas por pressões – mesmo que desiguais – vindas de ambos os lados.

Como já escrevi anteriormente, o livro de Michelle de Macedo é mais uma valiosa resposta a um problema que intriga muitos historiadores: a popularidade de Getúlio Vargas entre os trabalhadores.

Resposta que agrega mais substância ainda aos pesquisadores que se dedicam a compreender o fenômeno Vargas não apenas como o resultado de ações manipuladoras por parte do Estado, mas como o resultado da materialização de demandas sociais produzidas por agentes conscientes e organizados.

Referências

FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

Renato Soares Coutinho – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e Professor de História do Brasil da Universidade Castelo Branco. Contato: rscoutinho@hotmail.com.

A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento – MUDIMBE (AN)

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde (Portugal), Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 563-568, dez. 2014.

“O mito é um texto que se pode dividir em partes e revelar a experiência humana e a ordem social” (MUDIMBE, 2013, p. 180).

A obra A invenção da África: Gnose, Filosofia e a Ordem do conhecimento1, de Valentin Yves Mudimbe2, caracteriza-se por abranger uma perspectiva historicista que problematiza os conceitos e discursos do que conhecemos como uma África mitificada. As verdades veiculadas por filósofos, antropólogos, missionários religiosos e ideólogos, bem como imagens ocidentalizadas e/ou eurocêntricas, inerentes aos processos de transformações dos vários tipos de conhecimentos, são desconstruídas por Mudimbe pari passu aos padrões imperiais ou coloniais. Para tal empreitada, vale ressaltar as inúmeras referências que compõem um sólido corpus documental utilizado pelo autor em sua investigação, ou seja, estas transitam da filosofia romana ao romantismo alemão. Ou ainda, o questionar e investigar através do termo gnose, cunhado com o intuito de erguer uma arqueologia do(s) sentido(s) do Pensamento Africano.

Para o autor, o sentido, assim como os usos de um conhecimento “africanizado” e a forma como foi orquestrado, ou seja, um sistema de pensamento que emergiu estritamente de questões filosóficas, pode ser observado através dos conteúdos veiculados pelos pensadores que o forjam, ou ainda, através dos sistemas de pensamento que são rotulados como tradicionais e as possíveis relações destes com o conhecimento normativo sobre África. Logo, uma sucessão de epistemes, assim como os procedimentos e as disciplinas possibilitados por elas são responsáveis por atividades históricas que legitimam uma “evolução social” no qual o conhecimento funciona como uma forma de poder. As africanidades seriam um fait, um acontecimento e a sua (re)interpretação crítica abrange uma desmistificação que se calca na argumentação de uma história africana inventada a partir de sua exterioridade.

Essa exterioridade que veste a África de roupagens exóticas é problematizada com as inúmeras missões e alianças que arranjavam um forte compromisso com os interesses religiosos e a política imperial. No entanto, o cerne da problematização presente no texto de Mudimbe concentra-se na análise da experiência colonial, um período ainda contestado e controverso, visto que propiciou novas configurações históricas e possibilidades de novos ícones discursivos acerca das tradições e culturas africanas. Sobre a estruturação colonizadora, o autor a coloca como um sistema dicotômico, com um grande número de oposições paradigmáticas significadas. São elas: as políticas para domesticar nativos; os procedimentos de aquisição, distribuição e exploração de terras nas colônias; e a forma como organizações e os modos de produção foram geridos.

Assim, emergem hipóteses e ações complementares, como o domínio do espaço físico, a reforma das mentes nativas e a integração de histórias econômicas locais segundo uma perspectiva ocidental.

Os conceitos de tradicional versus moderno, oral versus escrito e impresso, ou os sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada, economias de subsistências versus economias altamente produtivas, podem ser citados para que exemplifiquemos o modo como o discurso colonizador pregava um salto de uma extremidade considerada subdesenvolvida para outra, considerada desenvolvida. Queremos com isso dizer que houve um lugar epistemológico de invenção de uma África. O colonialismo torna-se um projeto e pode ser pensado como uma duplicação dos discursos ocidentais sobre verdades humanas.

Para que seja possível obter a história de discursos africanos, é importante observar que alterações no interior dos símbolos dominantes não modificaram substancialmente o sentido de conversão da África, mas apenas as políticas para sua expressão ideológica e etnocêntrica. É como se houvesse uma negritude, uma personalidade negra inerente à “civilização africana” que possui símbolos próprios, como a experiência da escravidão e da colonização como sinais dos sofrimentos dos escolhidos por Deus.3 Contudo, à medida que compreendemos o percurso dos discursos e rompemos epistemologicamente com posições essencializadas, podemos questionar, como sugere Mudimbe, quem fala nestes discursos? A partir de que contexto e em que sentido são questões pertinentes? Talvez consigamos responder essas questões com uma reescrita das relações entre etnografia africana e as políticas de conversão.

Desse modo, o texto de A invenção da África traz com pertinência o refletir sobre alguns autores como E. W. Blyden,4 que rejeitava opiniões racistas ou conclusões “científicas” como os estudos de frenologia populares nos oitocentos. Frequentemente cognominado como fundador do nacionalismo africano e do pan-africanismo, Blyden em alguma medida comporta esse papel, visto que descreveu o peso e os inconvenientes das dependências e explorações, apresentando “teses” para a libertação e ressaltando a importância da indigenização do cristianismo e apoio ao Islã. Para Mudimbe, essas propostas políticas, apesar de algum romantismo e inconsistências, fazem parte dos primeiros movimentos esboçados por um homem negro, que aprofundava vantagens de uma estrutura política independente e moderna para o continente.

A obra segue com reflexões que esboçam embates a respeito da legitimação da filosofia africana enquanto um sistema de conhecimento, visto que algumas críticas expõem esse pensée como incapaz de produzir algo que sensatamente seja considerado como filosofia.

A história do conhecimento na África é por vezes desfigurada e dispersa em virtude da sua composição, ou seja, o acessar de documentações para sua constituição por vezes não apenas oferece as respostas, mas as ditam. Além disso, o próprio conjunto do que se considera por conhecimento advém de modelos gregos e romanos, que mesmo ricos paradoxalmente são como todo e qualquer modelo, incompletos. Muitos dos discursos que testemunham o conhecimento sobre a África ainda são aqueles que colocam estas sociedades enquanto incompetentes e não produtoras de seus próprios textos, pois estes não necessariamente se ocupam de uma lógica do escrito (DIAGNE, 2014).

A gnose africana testemunha o valor de um conhecimento que é africano em virtude dos seus promotores, mas que se estende a um território epistemológico ocidental. O que a gnose confirma é uma questão dramática, mas comum, que reflete a sua própria existência ou, como uma questão pode permanecer pertinente? É interessante lembrar que o conhecimento dito africano, na sua variedade e multiplicidade, comporta modalidades africanas expressas em línguas não africanas, ou ainda categorias filosóficas e antropológicas usadas por especialistas europeus veiculadas em línguas africanas. Isso quer dizer que as formas protagonizadas pela antropologia ou pelo estruturalismo marxista onde havia uma lógica original do pensamento trans-histórico inexistem.

As ciências, ou a filosofia, história e antropologia são discursos de conhecimento, logo, discursos de poder e possuem o “[…] projeto de conduzir a consciência do homem à sua condição real, de restituí-la aos conteúdos e formas que lhe conferiram a existência e que nos iludiram nela” (FOUCAULT, 1973, p. 364). Sucintamente, a obra de Mudimbe comporta a análise de algumas teorias e problematizações, como a escrita africana na literatura e na política, propositora de novos horizontes que salientam a alteridade do sujeito e a importância do lugar arqueológico. Ou ainda podemos salientar a negritude, a personalidade negra, e os movimentos pan-africanistas como conhecidas estratégias que postulam lugares.

Contribuições de escolas antropológicas, o nascimento da etnofilosofia, a preocupação com a hermenêutica, ou o repensar do primitivo e da teologia cristã, dividem as ortodoxias que podem ser visibilizadas, por exemplo, com a discussão sobre a Filosofia Bantu, de Tempels ou ainda com as revelações de Marcel Griaule acerca da cosmologia Dogon. A antropologia que descreve “organizações primitivas”, e também programas de controle advindos das estratégias colonialistas, produziu um conhecimento que demandava aprofundamento nas sincronias dessas dinâmicas. Com isso, é plausível considerarmos que os discursos históricos que interpretam uma África mítica são apenas um momento, porém significativo, de uma fase que se caracteriza por uma reinvenção do passado africano, uma necessidade que advém desde a década de 1920.

Notas

1 Editada recentemente no ano de 2013 pelas edições Pedago em parceria com as Edições Mulemba, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, o volume é uma tradução do original em inglês publicado em 1988 pela Indiana University Press.

2 Nascido em Jadotville no ano de 1941, antigo Congo Belga e atualmente República Democrática do Congo, Valentim Yves Mudimbe posicionou seus interesses de pesquisa no campo da fenomenologia e do estruturalismo, com foco nas práticas de linguagens cotidianas. O autor doutorou-se em filosofia pela Catholic University of Louvain em 1970, tornando-se um notável pensador, seja através de suas obras que problematizam o que se conhece como história e cultura africana, ou ainda pela oportunidade de trabalhar em instituições de Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Havard College. Mudimbe ocupou cargos como a coordenação do Board of African Philosophy (EUA) e do International African Institute na University of London (Inglaterra), e atualmente é professor da Duke University (EUA). Disponível em: <https://literature.duke.edu/people?Gurl=& Uil=1464&subpage=profile>. Acesso em: 16 jun. 2014 3 “A negritude é o entusiasmo de ser, viver e participar de uma harmonia natural, social e espiritual. Também implica assumir algumas posições políticas básicas: que o colonialismo desprezou os africanos e que, portanto, o fim do colonialismo devia promover a auto-realização dos africanos. (MUDIMBE, 2013, p. 123). “A negritude destaca-se como resultado de múltiplas influências: a Bíblia, livros de antropólogos e escolas intelectuais francesas (simbolismos, romantismo, surrealismo, etc.) legados literários e modelos literários (Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Claudel, St. John Perse, Apolinaire, etc.). Hauser apresenta várias provas das fontes ocidentais da negritude e duvida seriamente da sua autenticidade africana. HAUSER, M. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982, p. 533.” (MUDIMBE, 2013, p. 116) 4 Para informações mais precisas sobre Edward Wilmot Blyden, sugere-se A Virtual Museum of the Life and Work of Blyden. Disponível em: <http://www.columbia.edu/~hcb8/EWB_Museum/Dedication.html>. Acesso em: 30 jun. 2014.

Referências

DIAGNE, Mamoussé. Lógica do Escrito, lógica do Oral: conflicto no centro do arquivo. In: HOUNTONDJI, Paulin J. (Org.). O antigo e o moderno: a produção do saber na África contemporânea. Mangualde; Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014.

FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1973.

HAUSER, Michel. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História PUCRS – Bolsista CAPES. E-mail: priscilamariaweber @yahoo.com.br.

Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée – MBEMBE (AN)

MBEMBE, Achille. Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée. Paris: Éditions La Découvert, 2010, 246p. Resenha de: MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 559-562, dez. 2014.

Desde as descolonizações e retiradas de seus países dos antigos poderes coloniais europeus, a situação do continente africano vem sendo assunto frequente e polêmico entre intelectuais, políticos e formadores de opinião no próprio continente e fora dele. Os diversos problemas econômicos e sociais, a instabilidade política e os conflitos internos fazem com que a metáfora da “caixa sem chave”, usada como epígrafe de um dos capítulos do livro Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée, do cientista político camaronês Achille Mbembe, pareça se justificar. O hermetismo presente nessa metáfora amplifica-se com a imagem que o leitor encontra logo no título do livro: a da “grande noite”.

A obra de Mbembe apresenta um exame complexo da natureza desse fechamento em que se encontram o continente e os fenômenos que o compõem. Obra de teor político, Sortir de la grande nuit, além de se valer de imagens poéticas, parte de um relato pessoal de memórias do próprio autor, camaronês com formação acadêmica na França e longa passagem pelos Estados Unidos, que vive atualmente na África do Sul, onde leciona na Universidade de Witwatersrand. O percurso intelectual da obra reflete, portanto, a trajetória do próprio autor: tendo importante foco na África francófona e seu relacionamento ambíguo e tenso com os poderes coloniais franceses, não deixa de considerar as possibilidades e visões que advêm desses diversos países que perfaz a experiência do autor.

Em seu ecletismo literário, o ensaio inicia-se com uma narrativa dos anos de infância, no Camarões, estabelecendo a África, incontroversamente, como núcleo de onde o pensamento do autor se organiza e a partir do qual se articulam as influências de fora. De sua infância em Camarões, Mbembe destaca e elabora seu convívio inicial com os dois elementos que, articulados, dão o teor do livro: a noite e a morte. O autor recorda como o impressionaram, quando criança, os cadáveres ao relento, revolvidos por escavadeiras; relembra também os revolucionários tornados terroristas pelo discurso do poder colonial, mortos aos quais foi negado o reconhecimento de uma sepultura. Acima de tudo, o autor lembra como buscava simbolizar e entender essa realidade que o cercava, e é aí que a metáfora central do livro aparece em sentido denotativo e conotativo: era à noite que o jovem Achille Mbembe buscava construir um discurso sobre a morte. Não é negado o papel que teve o encontro com o cristianismo nessa busca por entendimento: a religião que veio de fora aparecia tanto como discurso de insubmissão quanto como possibilidade de haver, após o escuro da morte e da noite, algo de vida.

Mbembe deixa evidente, no decorrer da obra, o ceticismo com que encara a cultura do colonizador em seus anos de estudante na França. Lá, ele se depara com um povo orgulhoso de sua tradição republicana humanista e universalista, de sua língua como uma “língua humana, universal”. Mbembe não deixa de apontar e elaborar uma contradição entre esse humanismo universalista e o racismo que vê no bojo da própria sociedade francesa e na forma como esta se impusera em seu país natal. A obra do autor antilhano Frantz Fanon abre para ele novas perspectivas sobre o tema da raça, o faz ver o confinamento em uma raça como algo que pode ser superado, bem distante da rigidez dos postulados raciais com que as tradições francesas formaram narrativas de cidadania e pertença a uma humanidade; postulados nos quais o estatuto de “cidadão” é barrado àqueles que, embora admitidos na grande esfera da “humanidade”, o são com certas limitações: são seres humanos “primitivos”, limitados em sua humanidade última. O pensamento de Fanon o coloca à frente com o desafio de romper tal clausura identitária e fazer ver que o homem negro, longe de ser um “primitivo”, é um “homem”, ao qual não faltam quaisquer predicados que definem essa categoria.

Para além da França, Mbembe articula as oportunidades de entendimento que se lhe apresentaram suas experiências nos Estados Unidos e na África do Sul. Uma história de luta por direitos civis, a presença de personalidades negras altamente influentes e a capacidade, mais pronunciada que a da França, de captar para suas universidades as elites africanas, fazendo dos Estados Unidos um destino mais atraente do que a França, cuja influência Mbembe vê declinar. A África do Sul não consegue esconder os vestígios de seu passado discriminatório, que faz o autor ver nela “o signo da besta”; no entanto, o trânsito étnico, nacional e cultural do país dá a ele um cosmopolitismo que é incorporado pelo autor em seu pensamento.

Acima de tudo, é enfatizada a necessidade de uma descolonização, mais que política ou econômica, subjetiva, interior; ou, para usar as palavras do autor, é necessária uma “reconstituição do sujeito”, no qual se desmontem as estruturas coloniais e o possível seja reabilitado. Mbembe é inequívoco em afirmar que esta não é uma tarefa meramente prática-política: um trabalho epistemológico e estético deve ser efetuado, por meio do qual um novo conhecer-se a si mesmo pode emergir. Em particular, a importância da literatura e da crítica literária é enfatizada nesse movimento de descolonização.

A exclusão da África enquanto realidade surge no discurso ocidental primeiramente como uma operação da linguagem. A literatura africana surge como uma reação contra a falta de realidade que reveste o signo africano, enquanto a crítica literária busca operar a desconstrução da prosa colonial, sua montagem mental, suas representações e formas simbólicas que serviram de infraestrutura ao projeto imperial.

Em quaisquer áreas disciplinares, Mbembe identifica no discurso africano três paradigmas político intelectuais, não necessariamente autoexcludentes: o nacionalismo anticolonial, o marxismo e o pan- -africanismo. O primeiro teve uma influência importante na esfera da cultura, da política e economia; o segundo foi fundamental na formação do que veio a ser conhecido como “socialismo africano”; e o terceiro enfatizou a solidariedade racial e transnacional. Para Mbembe, parece, tais paradigmas tendem a ser excessivamente fixos, não dando conta da complexidade e do dinamismo que caracterizam o continente africano. O autor lembra como a África não compreende apenas os negros, mas também as diversas etnias que vieram lançar raízes em seu solo; não compreende apenas os que lá ficam, mas os que de lá saíram, mas continuam sendo, não obstante, africanos.

A África de Mbembe constitui-se, então, não como fonte estática, mas como intervalo de modificações e passagens; seu é o discurso, não mais das origens, mas do movimento, de uma “circulação de mundos”, como conceitua o próprio autor. A esse novo paradigma, Mbembe dá o nome de “afropolitanismo” – movimento no qual a África relativiza suas raízes e busca se reconhecer no distante e o distante no próximo, o próprio no outro. Esse novo paradigma, Mbembe enfatiza, torna insustentável mesmo a “solidariedade negra” proposta pelo pan-africanismo; a raça, afinal, resulta do discurso colonial e externo, exatamente aquele que se busca superar.

Talvez não seja coincidência o fato de o livro se iniciar com as palavras “Il y a um demi-siécle” (há meio século) e terminar com “temps nouveaux” (novos tempos). No título mesmo, já se insinua a inclinação do pensamento do autor para o que há de vir, ao qual todo o trabalho histórico, biográfico e crítico, estendendo-se ao longo da obra. A saída da grande noite a que o autor insta seu leitor é uma busca de vida, uma vontade de comunidade; a noite e a morte englobam as heranças do passado colonial – o confinamento racial, a dependência política e econômica, a subordinação psíquica e intelectual. A vida que busca o empreendimento do autor passa pela negação mesma dessas heranças, mas se dirige a uma nova identidade, um novo centro, que não negue, mas celebre sua multiplicidade.

Notas

1 O livro acaba de ser publicado em língua portuguesa, com o título Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Mangualde; Luanda: Edições Pedagô; Edições Mulemba, 2014. 204p.

Adriano Moraes Migliavacca – Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; doutorando em Literaturas Estrangeiras Modernas pela mesma universidade. E-mail: adrianomigglia@gmail.com.

Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – FIGUEIREDO (AN)

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP, 2012. 148p. Resenha de: SILVEIRA, Flávio Leonel A. da. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 401-406, jul. 2014.

Acredito que o ofício da leitura é sempre uma dádiva compar­tilhada com o autor que torna público o seu trabalho. Ao oferecer aos leitores os seus devaneios acerca de determinado tema (sobre o qual se debruçou ao longo de um período de sua vida), por certo, o artífice desvela parte da aventura intelectual que envolve a imersão meditativa e o investimento em pesquisas, leituras e diálogos com fontes diversas, possibilitando a outrem que mergulhe no universo ético-estético da obra que traz em suas mãos sobre a qual também, seguindo a inspiração bachelardiana, se lança em devaneios fecundos.

Todavia, a leitura é igualmente troca, por tratar-se de um diálogo silencioso, de um cruzamento de horizontes hermenêuticos que tensiona/aproxima os anseios do autor aos do leitor, num processo criativo capaz de instaurar certo jogo interpretativo que impulsiona a construção do saber para além das intenções primeiras de quem escreve, passando a compor um repertório compartilhado pelo qual a leitura do Outro avança em direção às sutilezas do tema abordado. A obra, se pensarmos com Deleuze (1991), desdobra-se em devires possíveis na leitura, porque os devaneios imaginativos do leitor, ao encontrarem os do autor, se não o alcançam totamente, cercam-no, perscrutam-no e abrem-se à reflexão, seguindo caminhos insuspeitados e próprios.

-O autor, portanto, diante de sua “vontade de saber” (FOUCAULT, 1982), complementaria o anseio de conhecer alheio e, assim, supriria temporariamente a falta que, paradoxalmente, nos preenche sobre dado tema e desde aí nos instiga a querer compre­ender melhor o tema debatido. Ele nos lança às descobertas e às reflexões, mediante a consciência do que seria, de alguma forma, a dimensão saudável de nossa ignorância, a “vontade de saber” sobre as questões que aborda em seu texto. O encontro de ambos, uma espécie de leitmotiv de ideias articuladas e abertas, insiste em nos conduzir ao encontro das tensões e convergências presentes em diversas leituras e temas, quiçá entre regiões que o texto expõe como panorama possível.

É nesse sentido que o livro de Aldrin Moura de Figueiredo intitulado Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – excerto de sua tese de doutorado em História, laureada com o prêmio IAP de Literatura em 2011 –, é o exemplo de uma obra que, ao explorar a diversidade cultural brasileira a partir da experiência intelectual modernista dos anos 20 do século passado no norte do país, força-nos a pensar as possibilidades de expressões regionais acerca de um modo de ser moderno, refle­tindo o ethos de uma determinada sociedade.

Aldrin Figueiredo oferece ao leitor um livro saboroso, de leitura fluida e interessante. A sua proposta de produzir um texto de caráter acadêmico – mas diria que de maneira ensaística – cuja preocupação é a de contribuir para a “ruptura com a história linear” (p. 16) revela uma obra com 148 páginas de instigante leitura, principalmente para aqueles que desejam conhecer melhor o universo literário e histórico amazônico, com as suas vicissitudes políticas e extensões estéticas, que o historiador aborda com maestria.

Nesse sentido, ao deslocar a perspectiva de pensar o Moder­nismo através do sudeste do país e, mesmo, colocando-nos na situação de termos que relativizar certas noções de unidade nacional mediante um caminho que nos conduz à “polissemia dos regiona­lismos” (p. 12), Aldrin Figueiredo permite que pensemos a plura­lidade cultural brasileira de maneira atenta às peculiaridades regio­nais, sem com isso cair em bairrismos quanto à análise que propõe. Se “o modernismo amazônico” significou mais uma forma de expressão dos modernismos brasileiros que tomaram assento em diferentes porções do país, desde os seus conteúdos estéticos e políticos, é porque as imagens que moveram os intelectuais à época, em sua dialética criativa, ao emergirem de uma espécie de fundo comum de arquétipos e de símbolos nacionais que também fervilhavam noutros cantos do país, assumiram na Amazônia fei‑ções próprias, mestiçando o regional ao nacional, sem com isso perder de vista a amplitude do fenômeno, porque ele estava inse­rido no que representava a globalização cultural como decorrência do fausto da borracha, com a sua “bela época”, mas, também, com suas mazelas socioeconômicas e políticas.

Ao voltar-se para as idiossincrasias do “movimento” ocor­rido no norte do Brasil e, mais especificamente, no Pará, o autor demonstra a existência dos outros modernismos que ocorreram no cenário intelectual brasileiro. Portanto, para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, havia cenários de efervescência estética que produziram formas sociais, leituras do contexto nacional e do mundo pela óptica regional. Sendo assim, a importância do livro está em evidenciar a presença de pensamentos inquietos e disso­nantes com os paradigmas intelectuais e estéticos da época, que se espraiavam pelas várias porções do território nacional. A Amazônia não foi exceção.

O espaço amazônico enquanto receptáculo de imagens mítico-fantásticas e de encantarias diversas; de saberes, fazeres e dizeres distintos; de mesclas complexas de Belle Époque, com seus teatros suntuosos e óperas europeias, com florestas e rios selváticos e exube­rantes – quando figuras caboclas evocariam o imaginário em torno da rede de dormir, de bois-bumbás e de comidas com temperos singulares – carreava uma simbólica de imagens ressignificadas pelo modernismo paulista. Ora, na visão da intelectualidade local, a Amazônia – e, neste caso, o Pará – estava situada para além desse reservatório imagético de “coisas” exóticas, pois ela mesma nutria uma produção que trazia consigo a potência revolucionária desde uma estética que buscava romper com os cânones presentes no seu vasto território, onde Belém e Manaus figuravam como ambiências para as “letras amazônicas”, a partir dos jovens pensadores que deambulavam pelas suas ruas, galerias e cafés atentos às diversas dimensões do que representariam as formas de ser amazônida.

Longe de existir uma unidade de grupo, havia pessoas interes­sadas em debater acerca do lugar da Amazônia na história brasileira, sem com isso legitimar os símbolos veiculados por uma “comunidade imaginária” (ANDERSON, 1993), que evocavam imagens icônicas da Amazônia, manauara ou belenense, centradas em algumas datas, iconografias e episódios. Não se tratava, dessa forma, de reificar imagens autoritárias de certa história da Amazônia nem de servir de mero manancial de imaginários para modernismos outros. Era preciso desconfiar de tais boas intenções históricas e estéticas, mas, acima de tudo, era preciso rir de si e dos outros desde o seu lugar, que provocativamente denomino de “descentrado”.

A leitura do livro lança boas pistas para pensarmos as tensões entre o que chamarei aqui, por falta de oposição mais caricata, de centro e de periferia, bem como acerca das formas engenhosas que se buscou para revertê-las, quiçá suprimi-las. Talvez a consciência de que a dita periferia é também um centro de evocação das diferenças estimulasse a reação de alguns intelectuais aos manifestos que surgiam à época, longe dos labirintos amazônicos de florestas e de rios com as suas boiunas hediondas. Era preciso produzir os manifestos, sim, mas estando situados na paisagem-matriz (BERQUE, 1998).

O que parece ficar claro é que a Amazônia, na visão dos lite­ratos locais, não poderia ser percebida como simples elaboradora de imagens para outras porções do país e, desta forma, alguns deles se insurgiram contra tal figuração. Ela, pelo contrário, mostrava-se autônoma, no sentido de ser produtora de um pensamento prenhe de riquezas e, por isso, capaz de engendrar transformações sensí­veis, considerando-se o seu lugar no cenário nacional. Ao mesmo tempo, mantinha-se integrada ao pensamento nacional desde o seu afã de diferença, pois tinha uma voz, uma agência que os intelec­tuais tomavam para si como representantes deste devir estético amazônico no contexto nacional.

Portanto, os modernistas do Norte desdenhavam do parnasia­nismo enfadonho, dos europeísmos miméticos de forma ambígua, e não faziam por menos em relação aos paulistas, pois se por um lado dialogavam com parcela deste pensamento, não deixavam de devorá-lo, exatamente pela insurgência em relação ao centro e pela consciência de não serem apenas fornecedores de imagens, buscando subvertê-las desde o seu lugar. É possível que naquele momento os intelectuais amazônidas, à sua maneira, descentrassem o centro, a fim de reverterem à periferia, revelando os “aspectos diversos do modernismo literário” (p. 11).

Os ímpetos revolucionários dos Novos Paraenses diante de seu projeto de nação, em que a Amazônia teria um lugar central, indi­cavam a força e a dinâmica tensional que o regionalismo assumia naquela década, especialmente em torno das revistas A Semana (1918) e Belém Nova (1923), loci de emanação da rebeldia dos jovens literatos nortistas. Se Bruno de Menezes era a figura de proa nas plagas para­enses, no contexto amazônico acreano essa figura parece ter sido Abguar Bastos, não menos rebelde e crítico às formas canônicas de pensar e, mesmo, ao modernismo dos paulistas. De qualquer forma, a Amazônia seria, também, lugar de deambulação criativa de duas figuras interessantíssimas, que à sua forma dialogaram com o universo sensível e intelectual da região: Raul Bopp e Mário de Andrade. Sua contribuição ao modernismo excedeu os limites da “Pauliceia” e, para o primeiro, dos Pampas, mas esta já é outra história.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemá­tica para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 84-91.

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DAOU, Ana M. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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Flávio Leonel A. da Silveira Professor Adjunto do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo – Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFPA. E-mail: flabreu@ufpa.br.

O desafio historiográfico – REIS (AN)

REIS, José C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 160p. (Coleção FGV de bolso. Série História). Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 407-415, jul. 2014.

José Carlos Reis, autor de diversas obras sobre teoria e filo­sofia da história, apresenta, em O desafio historiográfico, uma porção de temas que vem inquietando os historiadores, sobretudo em relação às crises que a ciência da história tem enfrentado desde os meados do século XX. Neste sentido, logo na introdução, o autor lança diversas questões sobre o “fazer” a história e o “ser” historiador. Conforme ressalta, seu livro “[…] tem a pretensão de propor uma reflexão ao mesmo tempo fácil e densa, rápida e profunda […] sobre o ‘desafio historiográfico’” (p. 7).

Qual seria esse desafio? Ou seriam desafios? No decorrer dos seis capítulos do livro (alguns inéditos, outros reorganizados a partir da sua vasta publicação), Reis intentará mostrá-lo[s]. No primeiro deles – homônimo ao título do livro –, o autor inicia a discussão evidenciando algumas das questões que mais têm importunado os historiadores ao longo das últimas décadas. Com “irônico sadismo”, Reis pretende com isso provocar, ou melhor, “irritar” os profis­sionais da história, expondo uma porção de críticas que a área tem sofrido, pois, na sua visão, “[…] o ganho com isso é enorme! É o fim do dogmatismo, da solene e hipócrita confiança no ‘ofício’”, uma vez que promove “o enfraquecimento dos sérios e pedantes tência de fontes; o esquecimento de reserva, isto é, aquele que é rever­sível, um tesouro profundo que pode ser recuperado; e o esquecimento manifesto, aquele que é conscientemente manipulado, apagando-se situações “constrangedoras” da história de um país, por exemplo.3 Como controlar tais abusos e vencer os esquecimentos? Seria a historiografia capaz de proteger a memória? Na leitura de Reis, Ricoeur acredita que sim, pois uma memória  […] instruída, esclarecida pela historiografia, e uma histo­riografia capaz de reanimar a memória declinante, que a rea­tualiza, que reefetua o passado, podem ser uteis à vida […] na busca do reconhecimento de si dos indivíduos em seus grupos, dos grupos em relação aos outros e da humanidade como união universal dos grupos e indivíduos (p. 45).

Ainda no segundo capítulo, o autor apresenta-nos as três fases da operação historiográfica elaboradas por Ricoeur. A fase documen­tária, momento em que o historiador procura coletar dados exte­riores, a partir dos problemas e das hipóteses por ele lançados; a fase da explicação/compreensão, momento em que o pesquisador organiza a massa documental na tentativa de compreendê-la e interpretá-la; e a terceira fase, que é a da representação narrativa, isto é, o fecha­mento da operação historiográfica – sem nos esquecermos, claro, da recepção e apropriação dos leitores.

No fechamento do capítulo, José C. Reis afirma mais uma vez que Ricoeur procura reunir memória e historiografia, pacificar a sua “relação difícil”, demonstrando que o objetivo de ambas é o mesmo: vencer o esquecimento. O objetivo maior da memória-historiografia é a “reconciliação com a vida”, que se realiza “no perdão”, por meio de um trabalho de luto, de “psicologia coletiva” que a historiografia acaba exercendo (p. 61). Tal concepção, no entanto, pode ser criti­cada se levarmos em consideração os perigos que existem com a perspectiva apaziguante ricoeuriana, pois é muito mais fácil para o opressor esquecer-se das atrocidades que cometeu do que para o oprimido se esquecer das que sofreu, e temas como o Holocausto e o Golpe Militar estão aí para nos mostrar como não é fácil achar uma justa medida entre o perdão e a justiça.

No terceiro capítulo, o autor retoma algumas das discussões feitas no início do livro e se dedica a nos mostrar o debate em torno da narrativa histórica, evidenciando especialmente as críticas feitas por Hayden White, que provocaram diversas crises na histo­riografia. O historiador norte-americano é categórico ao sinalizar que o discurso historiográfico não seria realista, pois os historia­dores fazem apenas a construção de versões por meio de um “arte­fato verbal em prosa”, e que a “[…] história é uma representação narrativa das representações-fontes”, não havendo oposição entre história e ficção (p. 64); “o passado como tal” é inacessível e o passado ao qual os historiadores podem ter acesso – seus traços ou restos documentais – é constituído por textos (discursos), e não por uma realidade extradiscursiva – um referente externo ao discurso (FALCON, 2011, p. 170). Em resumo: não há cientificidade na operação historiográfica.

Para fazer tal análise, Reis abordará principalmente a obra Tempo e narrativa4, de Ricoeur, que faz uma profunda discussão acerca dessas indigestas questões apontadas por White. Segundo nosso autor, Ricoeur defende o realismo histórico, pois “[…] o tempo vivido não é inenarrável”, “[…] as narrativas históricas são ‘variações interpretativas’ do passado […] mas [são] realistas”, uma vez que “[…] as intrigas variam, mas as datas, os documentos, os personagens, os eventos, os locais, são os mesmos”. Exemplifi­cando, Reis ressalta que existem várias configurações narrativas sobre a Revolução Francesa ou o Golpe de 64, “[…] mas elas não podem alterar [seus] dados exteriores” (p. 69-76). No decorrer do capítulo, entretanto, ele nos mostrará que, para Ricoeur, apesar de inicial­mente heterogêneas e opostas, as narrativas histórica e ficcional também se entrecruzam, porém sem se confundir.

Como exemplo de tal afirmação, no último tópico do capí­tulo, há uma análise do debate feito por Ricoeur acerca da obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II, de Braudel, que “[…] seria um exemplo revelador do caráter produtivo do entrecruzamento entre narrativa histórica e ficcional” (p. 83) e que evidencia o fato de que não há um “retorno à narrativa” – na prática, nunca houve “nem partida nem abandono”, pois mesmo as primeiras gerações dos Annales nunca abandonaram a narrativa, uma vez que “sociedades”, “classes”, “mentalidades” e inclusive o “Mediterrâneo” são “quase-personagens” de uma narrativa, já que “mesmo a mais estrutural é construída a partir das fórmulas que governam a produção das narrativas (CHARTIER, 2002, p. 86-87), o que, claro, não invalida o discurso histórico.

No quarto capítulo, o autor faz uma descrição geral das princi‑pais características dos Annales, mostrando aquilo que houve de inovador na sua prática historiográfica, em oposição à historiografia tradicional oitocentista. Segundo Reis, os primeiros Annales são parti­dários de uma “história-problema”, que se opunha à historiografia tradicional, acusada de ser meramente narrativa, descritiva e despro­blematizada, pois pretendia apenas “[…] narrar os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, em sua evolução linear e irreversível, ‘tal como se passaram’”. Na “história-problema”, o historiador escolhe seus objetos no passado a partir de interrogações do presente (p. 93). Para obter tal êxito, os Annales inovaram de várias maneiras: a noção de “fato histórico” como construção, em oposição ao “fato dado” nos documentos (escola metódica); a ampliação e a variedade do uso das fontes histó­ricas; e a ambição de uma história total e global. Unindo-se a tais propostas, os annalistes propuseram o uso da interdisciplinaridade.

Ainda que breve, tal discussão servirá como uma antessala para o debate feito no capítulo seguinte, Annales versus marxismos: os paradigmas históricos do século XX. Nesse capítulo, o autor faz inicial­mente uma abordagem acerca das principais diferenças entre a modernidade iluminista e a pós-modernidade para poder, poste­riormente, situar os Annales e o marxismo. No primeiro caso, o projeto moderno iluminista é eminentemente racional e constrói um sujeito singular-coletivo absoluto e consciente, e a história é um processo inteligível com um final claro, isto é, “[…] a vitória da razão, que governa o mundo” (p. 105). Para tanto, segundo Reis, a modernidade desprezava o presente e o passado, lançando seu olhar para o futuro e provocando, assim, uma “aceleração da história”. Esse é um dos pontos em que recaem as críticas a tal projeto, pois a “intervenção radical da realidade histórica” acabou por produzir um nível de agressão que não trouxe progresso e feli­cidade. Daí emerge uma visão anti-iluminista, que pretende pôr fim ao “projeto moderno” em favor de um “pós-moderno”.

O pós-modernismo é dividido em duas fases: a primeira delas é ligada ao estruturalismo, que criticava a noção de “sujeito­-universal”, uma vez que, para os estruturalistas, “[…] o homem não é só sujeito, mas também objeto” (p. 108). Entretanto, ali ainda havia uma tentativa de “[…] produzir uma inteligibilidade ampliada da história”, “um discurso da razão” (p. 110) – não mais centrada no sujeito absoluto, pois “sua verdade é oculta” e fica além da ilusória, falsa e aparente razão. Na segunda fase, mais conhecida como pós­-estruturalista, radicalizavam-se algumas posições, incluindo-se até mesmo os primeiros estruturalistas nas críticas, por ainda manterem um discurso racionalizante. Nas palavras de Reis, a  pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, desmemoriza o discurso da ‘razão que governa o mundo’ […], aborda um mundo humano parcial, limitado, descentrado, em migalhas […], assistemático, antiestrutural, antiglobal” (p. 111), e “o conhecimento histórico é múltiplo e não definitivo: são in­terpretações de interpretações (p. 112).

“Onde situar os Annales e os marxismos?”, nos pergunta Reis. Em primeiro lugar, é difícil situá-los, pois ambos não são homo­gêneos e talvez isso seja até um componente positivo, conforme ressalta, talvez “[…] a heterogeneidade interna dos dois grupos permita alguma aproximação e colaboração” (p. 114). Neste sentido, o autor divide sua discussão em três leituras, enfatizando espe­cialmente as diferenças entre o marxismo-soviético e os Annales: uma primeira que valoriza aquilo que é comum; a segunda, que nos mostra sua oposição; e uma terceira que os considera simples­mente diferentes, isto é, nem complementares nem opostos, apenas “[…] vistos como teorias, hipóteses de trabalhos que só têm valor e só podem dialogar porque são ‘diferentes’” (p. 115), e só assim é possível obter elementos para a escrita de uma história plural, e não totalitária. A respeito da sobrevivência ou não de ambas as correntes – Annales e marxismo –, tudo dependerá do resultado do embate entre “o projeto moderno” versus “pós-modernidade”, uma vez que ainda não há total abandono do iluminismo.

O último capítulo da obra pareceu um tipo de apêndice, que teve como intenção inserir a historiografia brasileira em um debate teórico até então eminentemente norte-americano-eurocêntrico. A discussão ali feita é válida e importante, mas seria mais apropriada em outra ocasião, pois é curioso que uma abordagem tão rica tenha sido feita em um capítulo tão curto. Cremos que o ideal seria dedicar uma obra de mesmo perfil (isto é, versão de bolso) somente às contribuições de Freyre, já que tal investida nos pareceu solta e sem conexão direta com os demais capítulos. De qualquer modo, é importante frisar que Reis intentou abrir uma discussão sobre “ser historiador do/no Brasil” no sexto capítulo. No entanto, como tal tarefa seria impossível de ser realizada em tão pouco espaço, o autor apresenta apenas a contribuição de Gilberto Freyre, sobre­tudo no que tange ao seu talento como narrador e como precursor de uma porção de temas inovadores na historiografia, uma vez que “[…] descobriu, ao mesmo tempo que os franceses dos Annales, a história do cotidiano […] das mentalidades coletivas, a renovação das fontes da pesquisa histórica” (p. 144) etc. Isso significa dizer que, apesar de toda a contradição e a polêmica que cercam a obra e a figura de Gilberto Freyre, ele também foi um inovador, e não somente um reprodutor de tendências europeias, não desconside­rando, é claro, que boa parte de sua formação acadêmica foi feita nos Estados Unidos, sob forte influência alemã.  O desafio historiográfico é uma importante contribuição, espe­cialmente para historiadores mais jovens, pois José Carlos Reis consegue fazer um debate extremamente complexo muito didatica­mente, e isto é louvável. Não podemos deixar de dizer, entretanto, que algumas questões são tão resumidas que podem dificultar a compreensão de um leitor iniciante, exigindo, de certo modo, uma leitura prévia de alguns temas ou uma busca em outra bibliografia, como o próprio autor avisa na introdução da obra.

Ademais, além de advertir contra um dos maiores males da escrita da história e de seus profissionais, isto é, a tendência “parri­cida” em relação aos nossos mestres e às correntes historiográficas anteriores a nós, o que ficou subentendido é o fato de que Reis inclina-se a aceitar a proposta ricoeuriana, isto é, a via do diálogo e da “não dogmatização” do saber histórico. O ideal, na visão do autor, é caminharmos sempre pela via da compreensão, ainda que os embates sejam inevitáveis. Neste sentido, faz-se necessário aproveitarmos o que há de importante nas mais diversas vertentes historiográficas, sem incorrermos no erro de ficarmos cegos e per‑didos em uma só visão.

Notas

1 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain Fran­çois. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

2 Ricoeur – diz Reis – pondera, entretanto, que em algumas profissões, como o teatro, por exemplo, a “memória artificial” é uma poderosa arma contra o esquecimento (p. 37).

3 Helenice Rodrigues da Silva dá um exemplo típico em relação ao esquecimento mani‑festo. Diz ela que, nas comemorações dos “500 anos do Brasil”, foram “esque‑cidos” “os massacres indígenas, a escravidão negra, as violências da história”, em prol dos “mitos fundadores e das utopias nacionais (o ‘paraíso tropical’ e o ‘país do futuro’)” (2002, p. 432).

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010.

Referências

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FALCON, Francisco J. C. Estudos de teoria e historiografia, volume I: teoria da histó­ria. São Paulo: Hucitec, 2011.

SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 425-438, 2002.

Cláudia Regina Bovo – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: claubovo@yahoo.com

A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber – MATA (AN)

MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 236p. Resenha de: CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 417-426, jul. 2014.

Na linha de estudos atuais no campo da história intelectual e das ideias, o professor Sérgio da Mata realiza em A fascinação webe­riana: as origens da obra de Max Weber um trabalho que, dentre outros objetivos, busca elucidar as bases do encantamento intelectual, da sedução que a obra de Max Weber suscita na comunidade acadê­mica em todo o mundo.

A “fascinação” – termo cunhado na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré – denota, segundo o historiador mineiro, um tipo de tentação intelectual que, de forma ambivalente, poderia levar ao mesmo tempo à obliteração da autonomia da obra de um autor, bem como à sua consequente abnegação no campo das ideias.

Na contramão deste caminho entre fascinação e sacrifício do intelecto, Sérgio da Mata traz um instigante estudo acerca do legado weberiano, desde a dívida do intelectual para com a Escola Histórica Alemã até os caminhos e as fronteiras da recepção de sua obra em terras brasileiras.

Ancorados num extenso trabalho de pesquisa em arquivos e bibliotecas alemãs, os estudos reunidos pelo Weberforscher brasileiro baseiam-se em uma melhor compreensão dos chamados “anos de aprendizagem”, de formação histórico-jurídica do intelectual alemão, antes do seu tardio sociological turn, ao fim da primeira década do século vinte.

 Com o princípio metodológico básico de analisar apenas o que antecede esse marco, preocupando-se com o “início” e o desen­volvimento progressivo da vida intelectual weberiana, o autor evita a tendência a panoramas retrospectivos ou a um tipo de teleolo­gismo muito comum em abordagens sobre obra de Weber, ainda perceptível em trabalhos recentes, como os de Francisco Teixeira e Celso Frederico (TEIXEIRA; FREDERICO, 2011), ou no artigo de Gerhard Dilcher (DILCHER, 2012).

Tendo como pressuposto a elevação feita pelo próprio Weber da ciência histórica à categoria de Grundwissenschaft, o pesquisador enxerga na formação intelectual do autor de A ética protestante uma perspectiva que seria sempre e decididamente histórica. Essa ideia de um approach weberiano às ciências históricas – que há alguns anos causaria estranhamento a leitores desatentos – é a base do argu­mento de Mata em boa parte de sua obra.

Em um exercício de história contrafatual, o autor chega mesmo a sustentar que, caso a carreira de Weber tivesse se encerrado em 1909, este dificilmente estaria situado entre os fundadores da moderna sociologia alemã.

É em tal provocação que reside a tentativa por parte do histo­riador de reconstrução da trajetória de Weber dentro daquilo que denomina a “era de ouro do historicismo”. Discordando de interlo­cutores que tendem a observar na virada do oitocentos ao século vinte o germe de uma crise da ciência histórica, Mata vê, pelo contrário, na fundamentação epistemológica do historicismo – realizada por Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert no período – uma indissociável gênese da obra e da metodologia weberianas.

É justamente fugindo da sombra da sociologia de Max Weber que o autor inicia todo um capítulo acerca daqueles anos de apren­dizagem em Heidelberg, Göttingen e Berlim – “três templos da ciência histórica oitocentista” (MATA, 2013, p. 35) –, quando o jovem “jurista” formar-se-ia em um ambiente intelectual ampla­mente influenciado pela Weltanschaung histórica.

Mata busca aqui identificar algumas das figuras que mar‑caram o início da trajetória intelectual do estudante oriundo de Erfurt para concluir que Weber foi, nem mais nem menos que qualquer contemporâneo seu, o resultado dos estilos de pensamento histórico

 

419.

Anos 90, Porto Alegre, eentão vigentes. Seus laços familiares com o eminente historiador Hermann Baumgarten, a simpatia inicial pelo trabalho de Heinrich von Treitschke, além do convívio do jovem Max com o círculo de Theodore Mommsen, são alguns dos muitos indícios que corro­boram a tese do autor.

Desconstruindo a ideia de que Weber teria rejeitado, ou mesmo se oposto à ciência histórica de seu tempo, o historiador nos prova o contrário a partir de um olhar atento sobre a pouco estudada primeira fase da carreira do intelectual germânico. Considerando a perspectiva trazida por Mata nesse primeiro capítulo, torna-se fácil concordar com sua assertiva, segundo a qual “Max Weber começou a tornar-se o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão” (MATA, 2013, p. 35).

Mas, longe de limitar a ascendência intelectual do jovem autor aos domínios da Ciência Histórica, Mata fornece-nos o panorama de toda uma constelação de ideias e relações intelectuais que teriam influenciado a formação do economista e historiador do direito Max Weber.

A partir da leitura sincrônica de alguns dos mais importantes estudos históricos e econômicos publicados pelo autor até 1905, Mata é capaz de identificar um padrão metódico comum na obra do então professor de Heidelberg. Ao tratar em especial da concepção plural das relações de causalidade e, ao mesmo tempo, da tendência de Weber a enfatizar determinadas macrodeterminações em função do problema específico elucidado, o pesquisador contesta aquelas leituras que tendem a exagerar a perspectiva “idealista” do autor alemão.

É este apurado exame dos primeiros trabalhos de Weber que permite ao historiador chegar a duas conclusões gerais: primeiro, que Weber (ao menos na primeira fase de sua carreira) não teria proposto nem se tornado refém de uma “teoria” histórico-social abrangente. Segundo, que somente o desconhecimento em relação à obra weberiana explicaria por que se chegou a ver no autor de Erfurt uma versão idealista de Marx. E são justamente as preocu­pações práticas que permitem ao historiador identificar uma “clavis weberiana” – especialmente nos vinte primeiros anos da trajetória intelectual do autor. Por trás da inteligência teórica, Weber falaria sempre em uma intenção prática.

 

 

Na trilha do que persegue nas digressões teóricas de um Weber prematuro, Mata procurará, entretanto, nas publicações tardias do intelectual turíngio, sinais de uma possível concepção filosó­fica da história. Principalmente no que tange à sua percepção do processo de racionalização ocidental e no caráter inexorável que atribui ao conceito de Rationalizierung, o autor brasileiro irá buscar no resultado das investigações empíricas weberianas possíveis liga­ções com a obra do historiador escocês Thomas Carlyle.

Por sua “extraordinária força ética” e pelo ideal de reforma social em harmonia com a recusa a toda alternativa que implicasse a subversão violenta da ordem, Carlyle tornara-se bastante sedutor aos olhos da intelectualidade alemã do fin-de-siècle. Do autor de Past and Present, Weber herdara, por exemplo, aquela ampla dimensão atribuída ao trabalho na modernidade e as idiossincrasias da noção de “heroís‑mo carismático” no cerne do processo de burocratização ocidental.

Exercício semelhante é feito pelo autor no que diz respeito à dívida weberiana ao pensamento do filósofo neokantiano Hein­rich Rickert. Distanciando-se da apressada leitura de Ivan Domin­gues (DOMINGUES, 2004) e dos equívocos cometidos por Fritz Ringer (RINGER, 2004) na análise de tal relação, Mata insiste na necessidade de entendimento dos pressupostos rickertianos para melhor compreensão dos fundamentos do pensamento histórico de Weber. Do autor de Os limites da formação de conceitos nas ciências naturais, Weber extraíra a ideia de que as pré-condições à caracteri­zação de um trabalho de história como científico seriam: objetivi­dade, contextualização e imputação causal. Weber teria expressado bem esta preocupação de Rickert ao observar que o historiador que abre mão dessas pré-condições comporia “um romance histó­rico, não uma verificação científica”.

Além disso, do filósofo prussiano, teria sido importante para o economista político aquele abrangente conceito de cultura – segundo o qual o cultural seria qualquer realidade investida não apenas de sentido, mas de valor – e o seu ideal de “verdade” como um valor do qual a ciência jamais poderia abrir mão. Longe de expressar um relativismo, o perspectivismo histórico weberiano, como exposto por Mata, estaria muito mais próximo daquele modesto ideal de verdade defendido por Rickert. 420  Marcelo Durão Rodrigues da Cunha.

Abertas tais perspectivas críticas quanto à análise das origens do pensamento histórico weberiano, Sérgio da Mata amplia o debate no quarto capítulo, ao tratar da discussão em torno da “teoria” dos tipos ideais, desenvolvida por Weber. É realizando uma história do próprio conceito em tela que o autor relativiza a originalidade da tal aspecto do pensamento teórico-metodológico do intelectual alemão.

Expressando uma tentativa de fundamentar a perspectiva tipologizante nas ciências naturais, o autor alerta que a noção de “tipo” havia se tornado um jargão na Alemanha entre fins do século dezenove e início do vinte. Como reverberação da Methodenstreit entre economistas alemães e austríacos – envolvendo nomes como Gustav von Schmoller e Carl Menger (RINGER, 2000) – e do debate, igualmente intenso, que contrapôs historiadores políticos a historiadores culturais (ELIAS, 1997, p. 117), Mata verifica a percepção de alguns daqueles limites do historicismo que contri­buíram para a reformulação epistemológica da disciplina histórica na Alemanha guilhermina. Nas discussões entre Eberhard Gothein, Dietrich Schäfer e Ernst Troeltsch, seria perceptível o embate acerca da utilidade de categorias tipológicas que visassem a extrapolar os limites do singular na representação de fenômenos históricos.

É também na ciência jurídica e na ligação de Weber com o jurista Georg Jellinek que Mata identifica como o autor do artigo sobre a “Objetividade”, de 1904, teria feito uso dos “tipos empíricos” de Jellinek, invertendo seus polos – os denominando “tipos ideais” – de modo a se distanciar de seu elemento propriamente normativo, – aproximando-os do que classificava como “ciências da realidade”.

A dívida de Weber para com a teologia – e aqui destacam-se as formulações de Ernst Troeltsch – é ressaltada como igualmente importante naquilo que se tornaria tão central em sua obra. Como uma espécie de conceito jurídico “desnormativizado”, o tipo ideal weberiano representaria uma forma de compromisso entre o aban­dono e a conservação da filosofia da história, sendo, nesse sentido, uma “forma resignada da filosofia da história”. Mais do que simples‑mente comprovar que não há originalidade na “teoria” weberiana dos tipos ideais, Mata é capaz de trazer novamente à tona uma série de debates entre eruditos que outrora padeciam em um longo período de esquecimento.

Ao tratar de outro controverso aspecto da obra de Weber, a “isenção de valor” ou “neutralidade axiológica” (Wertfreiheit) do conhecimento histórico social, o autor opta por reconstruir a evolução de tal sentido na obra de Weber, contrapondo a posição do intelectual às de alguns de seus contemporâneos. Em trabalhos como o ensaio sobre a “Objetividade” ou em A ética protestante, além do diálogo com as obras de Rickert e Schmoller, o histo­riador evidencia, em um primeiro momento, que há na obra de Weber uma preocupação com o “dever ser” (Sollen) do erudito que extrapola o campo propriamente epistemológico, estendendo-se também à ética da prática pedagógica.

Mata conclui que Weber sustenta a opinião segundo a qual o historiador, o jurista e o sociólogo podem e devem ter sua própria visão de mundo, sua ética e suas convicções políticas, mas não a ciência histórica, o direito e a sociologia enquanto tais. Weber afir­maria querer se afastar dos adeptos de uma neutralidade axiológica “radical”, para quem a historicidade dos postulados éticos deporia contra a importância histórica destes. Ao mesmo tempo, julgaria que não cabe à ciência empírica valorar positivamente uma ética só por ela ter dado forma a épocas e culturas inteiras. Nesse sentido, a neutralidade axiológica weberiana residiria, em última análise, numa transposição da ética da convicção para o campo gnosiológico.

Apontando o caráter estritamente formal da solução weberiana para o problema dos valores, além de sua posição pouco conse­quente do ponto de vista filosófico, Mata joga luz sobre o tão atual debate acerca das relações entre ciência e consciência moral.

Dando prosseguimento ao debate acerca da influência do pensamento weberiano na ciência histórica, o pesquisador ambi­ciona, no sexto capítulo, compreender os motivos do amplo desco­nhecimento a respeito da obra de Weber – tanto no Brasil quanto no exterior – e do seu legado para o ofício dos historiadores.

Dedicando-se ao entendimento de alguns importantes aspectos da visão de Weber sobre a ciência histórica, Mata analisa a opinião do intelectual frente aos escritos de três relevantes historiadores – Leopold von Ranke, Karl Lamprecht e Eduard Meyer – de modo a melhor aproximar-se de sua própria visão a respeito do tema.

Em tal exercício, o historiador conclui que tudo parece afastar as posições de Weber, sobretudo, do segundo desses autores. Os argumentos apresentados na polêmica com Meyer levam-no, toda‑via, a concluir que entre a história “positivista” de Lamprecht e a história compreendida como “ciência cultural” de Weber existiam evidentes afinidades eletivas. Mata percebe que ambos se reconhe­ciam como representantes de uma história cultural que desafiava abertamente os rígidos cânones historiográficos vigentes.

A aproximação com o trabalho do Weber historiador no atual momento do que classifica como “crises de sentido intersubjetivas” seria, segundo Mata, profícua na medida em que – distanciando-se de uma perspectiva de exagero do ficcional – este versaria sobre uma ciência preocupada com os desdobramentos do real.

Nos capítulos seguintes, o autor reitera tal posição referente à relevância da Weberforschung no presente, ao analisar o uso do conceito de “despotismo oriental” e o debate acerca da existência de uma posição religiosa e de uma teologia política na obra de Max Weber.

No primeiro caso, em um pequeno excurso complementar, Mata empreende uma elucidativa avaliação dos escritos weberianos acerca da situação política na Rússia do início do século vinte. Em sua análise, o autor conclui que Weber surpreendentemente mantém sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo – de forma coerente com o que era pensado pelos fundadores do mate­rialismo histórico em sua noção de “despotismo oriental”.

No segundo, Mata reserva dois capítulos inteiros para debater a complexa relação do autor em tela com a teologia e a prática reli­giosa. A partir de uma perspectiva própria à história das ideias, o historiador enaltece a importância do homo religiosus Max Weber para o “estudioso da religião Max Weber”. Em uma minuciosa análise da trajetória dos estudos teológicos de sua família, além das rela­ções do jovem jurista com seu primo Otto Baumgarten, o autor percebe que, longe do que era pregado por Friedrich Schleierma­cher, Weber entendia que vida religiosa interior e ação transforma­dora no mundo não deveriam nem poderiam se contradizer.

Mais adiante, ao discutir a existência de uma teologia política por trás da Ética protestante, o autor traz – em recurso a elementos sociopolíticos, acadêmicos e biográficos do contexto de produção da obra – uma surpreendente interpretação do mais conhecido trabalho do intelectual alemão. Levando em consideração elementos biográ­ficos, além da posição do autor diante da política de seu tempo, Mata é capaz de perceber no estudo de história cultural weberiano tanto a expressão tardia do Kulturkampf1 quanto um tratado de teologia política.

Tratando ainda do clássico estudo de Weber, o historiador irá desconstruir no capítulo seguinte o que considera a formulação do mito de A ética protestante e o espírito do capitalismo como obra de socio­logia. Considerando a forma pela qual o autor emprega as categorias de “tipos ideais” – “uma construção mental destinada à medição e caracterização sistemática de conexões individuais, isto é, impor­tantes devido à sua especificidade” (WEBER apud MATA, 2013, p. 180) –, Mata percebe em tal recurso heurístico a tentativa por parte do autor de facilitar a identificação e a análise de realidades percebidas como singulares, que seriam, em última instância, histó­ricas. Além disso, declarações do próprio Max Weber e uma análise do contexto de produção historiográfica do período corroboram a tese do historiador mineiro, segundo a qual A ética protestante teria sido concebida, antes de tudo, como um estudo de história cultural.

Uma última e relevante preocupação de Mata em seu traba‑lho diz respeito à recepção da obra de Max Weber entre historia­dores brasileiros desde o início da difusão de seus escritos em terri­tório nacional ao longo do último século. De uma favorável leitura de suas ideias durante as décadas de 1930 e 1940 – em interlocu­tores como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues – à crítica e incompreensão de sua “interpretação espiritualista da História” Mata busca em nossa historiografia aquele “elo perdido” entre a obra weberiana e sua interpretação por interlocutores locais.

Neste caminho de reconstrução de itinerários e desmistifi­cação de noções há muito atreladas à herança weberiana, o autor brasileiro erige novas perspectivas úteis à apreciação do “mito de Heidelberg” e de sua obra. Como alternativa a uma ótica dema­siado contextualista, Mata opta por trabalhar com a noção de cons­telações intelectuais e suas delimitações (HEINRICH, 2005, p. 15-30) – ou “espaços de pensamento”. Tal esforço metodológico, conforme buscou-se demonstrar no curto espaço desta resenha, é coroado pelo sucesso da análise do autor em combinar contextos e insights biográficos, fornecendo-nos um panorama das principais conquistas da obra histórico-sociológica de Max Weber.

Se um dos objetivos de Sérgio da Mata – conforme exposto em suas últimas digressões – estava associado à compreensão de um autor dedicado à história como ciência da realidade, pode-se considerar que seu trabalho cumpre à risca a intenção de trazer à tona tal debate. De posse daquela “coragem diante do real” e diante da recente tendência à “ficcionalização de tudo”, Mata é capaz de perceber em seu estudo o quanto o legado de Max Weber se mostra cada vez mais relevante ao entendimento do real enquanto vocação e profissão também no mundo contemporâneo.

Notas

1 Política implementada pelo chanceler Otto von Bismarck entre 1871 e 1878 com o objetivo de secularizar o Estado alemão e eliminar a influência da Igreja Católica Romana sobre a cultura e a sociedade germânica do período.

Referências

DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a história. Passo Fundo: Ediupf, 2004.

DILCHER, Gerhard. As raízes jurídicas de Max Weber. Tempo social, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2012.

DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.

ELIAS, Norbert. “História da cultura” e “história política”. In:______. Os ale­mães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

HEINRICH, Dieter. Konstellationsforschung zur klassischen deutschen Philo­sophie. In: MUSLOW, Martin; STAMM, Marcelo (Hrsg.). Konstellationsforschung. Frankfurt am Main: C.H. Beck, 2005.

HÜBINGER, Gangolf. Max Weber e a história cultural da modernidade.

RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: a Comunidade Acadêmica Ale­mã, 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.

______. A metodologia de Max Weber. São Paulo: Edusp, 2004.

TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx, Weber e o mar­xismo weberiano. São Paulo: Cortez, 2011.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.

______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Marcelo Durão Rodrigues da Cunha – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Fapes. E-mail: marceloduraocunha@gmail.com.

Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? – CANGUILHEM (AN)

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável). Thiago Fernando Sant’Anna. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 443-448, dez. 2013.

Precisas as palavras de Georges Canguilhem sobre Michel Foucault no texto “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, publicado no número 242 da Revista Critique, em julho de 1967, as quais argumentaram que “[…] o êxito de Foucault pode ser justamente entendido como recompensa pela lucidez que permitiu a ele enxergar este ponto para o qual, diferentemente dele, outros foram cegos” (CANGUILHEM, 2012, p.9). Canguilhem tece, no texto, com palavras afiadas, uma defesa do pensamento edificado por Foucault em seu projeto arqueológico de explorar a rede epistêmica a partir da qual emergiram “certas formas de organização do discurso” (CANGUILHEM, 2012, p.22-23), subvertendo a devoção ao curso progressista da história e interditando “toda ambição de reconsti tuição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15). Irônicas, suas palavras desafiavam aos detratores de Foucault: “Humanistas de todos os partidos, uni-vos” (CANGUILHEM, 2012, p. 09)? Profundas teriam sido as relações entre Canguilhem e Foucault.

Nos anos 1960, Canguilhem, no relatório escrito para a avaliação da tese “Loucura e Insânia”, durante o doutoramento de Foucault, declarou ter sentido “um verdadeiro choque” (ERIBON, 1990, p. 130) diante de suas ideias que se inscreviam, indubitavelmente, no espaço da vanguarda acadêmica. Difícil também seria dimensionar a amplitude da inspiração que foi Canguilhem para Foucault quando nos deparamos com as palavras usadas por Eribon (1990, p. 131) para se referir ao reconhecimento do primeiro pelo segundo em seus trabalhos arqueológicos, como lugar onde estaria “gravada a sua marca”.

Conhecido por não publicar “grandes volumes, mas contribuições delimitadas” (ERIBON, 1990, p. 130), Georges Canguilhem, nascido em 1904, no sudoeste da França, e sucessor de Bachelard, na Sorbonne, em 1955, publicou, em 1967, o que Eribon (1990, p. 131) considerou como um “artigo muito vigoroso e muito notado”: um comentário sobre As palavras e as coisas. Canguilhem estaria “irritado com as críticas dos sartrianos contra Foucault” (ERIBON, 1990, p. 131), já que As palavras e as coisas “[…] foi recebida com hostilidade nos meios de esquerda”, acusada pelos comunistas como “um manifesto reacionário” que negava a história, a historicidade e servia aos “interesses da burguesia” (ERIBON, 1996, p. 101).

Esse referido texto, responsável por “[…] tirar Georges Canguilhem da sua tradicional reserva” (ERIBON, 1996, p. 104), é “[…] quase inteiramente consagrado a rebater as críticas que foram feitas a Foucault a propósito da história”, já que o arqueólogo propõe uma analítica que se diferencia das análises dos historiadores da biologia, principalmente no que diz respeito às “relações de continuidade e descontinuidade entre Buffon, Cuvier e Darwin.” (ERIBON, 1996, p. 105). Ao longo do breve e denso texto, objeto desta resenha, dividido em cinco partes, Canguilhem destacou a importância e o alcance da abordagem de Foucault, ao operar ferramentas, ancoradas numa incontornável experiência histórica, que possibilitaram à sua arqueologia perceber “indícios de uma rede epistêmica”, em resumo, descrever uma “episteme” (CANGUILHEM, 2012, p. 19).

Daí, ser inegável, aqui, reconhecer a importância das refl exões realizadas em As palavras e as coisas, onde Foucault entrecruza filosofia e historicidade. Machado (2005, p. 100) destacou bem as palavras de Canguilhem, para quem esse texto, aqui resenhado, significava a “[…] impugnação do fundamento que certos filósofos creem encontrar na essência ou na existência do homem”. Impugnação essa denunciadora da falência da filosofia moderna em “[…] manter a distinção entre o empírico e o transcendental, ao tomar o homem das ciências empíricas, o homem que nasceu com a vida, o trabalho e a linguagem, como o modo de ser do homem da modernidade” (MACHADO, 2005, p. 100). O próprio Canguilhem já havia reconhecido quando de sua relatoria sobre a tese de Foucault, que este “[…] leu e explorou pela primeira vez uma quantidade considerável de arquivos”; que “[…] um historiador profissional não deixaria de ser simpático ao esforço feito pelo jovem filósofo” ao analisar docu mentos em primeira mão; e que “[…] nenhum filósofo poderá censurar a M. Foucault ter alienado a autonomia do juízo filosófico pela submissão às fontes da informação histórica” (ERIBON, 1990, p. 133). Como poderíamos compreender esse fenômeno – Foucault – à luz de suas críticas às perspectivas tradicionais a partir das quais se escreve história e na direção de sinalizar para inversões outrora tão distantes de serem compreendidas por aqueles que o atacavam? Tais afirmações conduzem-nos a reconhecer que emoldurar em um quadro o contexto dos anos 1960/1970, e ali inscrever o pensamento de Michel Foucault, sinalizar-nos-ia equívocos. Impreciso também seria se, nesse enquadramento, optássemos por anunciar a fixação de alguma teoria foucaultiana à propalada crise dos paradigmas, quando, no plano geral, os modelos explicativos, orientados por conceitos de “ordem”, “evolução”, “linearidade”, “racionalidade”, “progresso” e “verdade inquestionável” não respondiam satisfatoriamente às questões colocadas às Ciências Humanas; a mesma coisa se deu em um plano específico, quando se emergiu uma revisão e desestabilização das certezas no interior da disciplina da História, confrontada com a suspeita quanto ao seu estatuto de inteligibilidade diante da ampliação de seu campo temático, de suas abordagens e de seus objetos, enfim, de ruptura com as metanarrativas.

Não seria menos insuficiente dizer que aqueles anos fundaram o pensamento de Foucault em um contexto de dissolução da sociedade burguesa, de crescente uniformização da cultura de massas e de questionamento da posição de “centro” por parte daqueles movimentos sociais como os movimentos feministas, negro, gay etc.

Inegável, por outro lado, seria reconhecer que a transgressão do paradigma iluminista, moderno, racionalista, cartesiano foi possível com as histórias das pessoas inomináveis de Michel Foucault e a contestação da construção discursiva da História na qual os acontecimentos ganhavam sentidos, desconstruindo a ideia de “verdade” impressa nos documentos. Atualmente, o pensamento de Foucault imprimiu, no campo de estudos da História, uma subversão incontornável, o que tornaria qualquer desprezo a essa incursão uma ingenuidade, na mesma direção que seria percebida se tentássemos rotular suas problematizações em qualquer outro tipo de enquadramento. O pensamento de Michel Foucault, ou melhor, o seu estilo de pensamento não é um bloco monolítico a ser apreendido, domesticado dentro dos limites de uma teoria, ou sequer enquadrado em qualquer contexto social, econômico ou cultural a priori.

A esquiva destes aprisionamentos discursivos que contextualizam e tipologizam masmorras do pensamento pode ser percebida na leitura do texto de Georges Canguilhem sobre o livro As palavras e as coisas.

O que Michel Foucault quis dizer com o conceito de episteme quando o escreveu, ao longo do livro, As palavras e as coisas? Trata- -se de problemática que permeia as refl exões de Georges Canguilhem em “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, traduzido agora para a língua portuguesa pelas Edições Ricochete, inaugurando a Coleção Inominável, coordenada por Marlon Salomon.

Canguilhem assinalou o texto de Foucault com pistas que fizessem surgir “um ponto” de abertura de uma “avenida” (CANGUILHEM, 2012, p. 09), que indicasse uma analítica sobre a constituição do “homem” como objeto de investigação das ciências humanas, distante de uma história social de uma ciência, e próxima, por outro lado, de uma rede de enunciados. O texto decifra os contornos de uma chave, usada e elaborada simultaneamente pelo filósofo francês para abrir sentidos em textos, diga-se de passagem, originais, empoeirados e desprezados por estudiosos. Chave essa da qual o leitor de Foucault pode lançar mão para encontrar não o seu proprietário ou inventor, não para revelar algo ou fenômeno escondido, à espera da iluminação. Mas uma chave a ser forjada no movimento de seu uso, a ser decriptada na direção de sinalizar para “a sucessão descontínua e autônoma das redes de enunciados fundamentais”, sucessão essa que “[…] interdita toda ambição de reconstituição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15).

A essa altura, podemos afirmar, conforme o texto de Canguilhem, que já não é mais possível recusar a incontornável presença da historicidade na constituição da cultura, em recusa a qualquer isolamento de Foucault a um tipo de pensamento que sonhasse naturalizar a cultura ou que aspirasse a superar, progressivamente, uma contradição (CANGUILHEM, 2012, p. 11). A analítica deste arqueólogo exuma descontinuidades radicais – fronteiras entre pensamentos possíveis de serem pensados e pensamentos que não podem mais ser pensados – sem receios em retomar pontos já abordados ou suspender o tráfego por questões não apropriadas naquele momento em que tecia As palavras e as coisas. Como a lâmina de uma katana de samurai, Foucault, que “[…] não tinha medo da morte […]” (VEYNE, 2009, p. 149), exercita a perigosa prática de pensar, “[…] correndo o risco de espantar-se e até de aterrorizar- -se consigo mesmo […]” (CANGUILHEM, 2012, p. 29), corta as palavras, decepa evidências, desentranha “condições práticas de possibilidades” (CANGUILHEM, 2012, p. 30) que constituíram o homem como objeto do saber e denuncia, com isso, o “sono antropológico” daqueles que tomavam o homem como um objeto dado para, daí em diante, fazer progredir, uma ciência.

Canguilhem, por sua vez, afia ainda mais a lâmina de Foucault em sua obra traduzida por Fábio Almeida. José Ternes e Marlon Salomon afinam-se, respectivamente, no prefácio e na gestão da coleção inaugurada pela Edições Ricochete. Os cinco estudiosos aqui citados nos permitem abdicar do recurso do contexto como explicador de um fenômeno. Longe disso, possibilitam uma transgressão do pensamento ao percorrer a rede de enunciados proposta pela episteme de Foucault, de forma a recusar as raízes, a origem ou a iden tidade fixa do objeto. Os referidos estudiosos elucidam a percepção de um “ponto”, um caminho, uma “avenida”, para além das estruturas engessadas, para além dos personalismos, mas na direção das descontinuidades, das rupturas, dos entrecruzamentos nos processos que o constituem. Foucault não se inscreve, portanto, em um quadro, mas o analisa no mesmo movimento em que o constitui, através 447 Thiago Fernando Sant’Anna. da sua “técnica de incursão reversível” (CANGUILHEM, 2012, p.19). Ele não lê um mundo previamente dado como um texto, mas o observa como quem observa o quadro inscrito, simultaneamente, em seu processo de pintar. Canguilhem afia o estilo de pensamento de Foucault, enfatizando, como um argumento em contra-ataque, o “sono antropológico” – termo de Michel Foucault – que definia “[…] a segurança tranqüila com a qual os promotores atuais das ciências humanas tomam como objeto dado aí antecipadamente para seus estudos progressivos o que, de início, era apenas seu projeto de constituição” (CANGUILHEM, 2012, p. 29). Em seu artigo, Canguilhem destaca a importância do conceito de episteme no livro As palavras e as coisas, em que o filósofo analisa, constitui, elabora uma “técnica laboriosa e lenta” (CANGUILHEM, 2012, p. 16), que percorre por Borges, Velásquez, passando por Cervantes, na reconstituição de uma rede de saberes que faz emergir as Ciências Humanas e o homem como sujeito e objeto deste saber, anunciando a morte do homem e o esgotamento do Cogito, em um mesmo ataque.

Referências

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável)

ERIBON, Didier. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

______. Michel Foucault (1926-1984). Lisboa: Livros do Brasil, 1990. (Coleção Vida e Cultura) MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 3 ed. Rio de Janerio: Zahar, 2005.

VEYNE, Paul. Foucault. O pensamento, a pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.

Thiago Fernando Sant’Anna –  Doutor em História pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado em Arte e Cultura Visual, pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Universidade Federal de Goiás/ Faculdade de Artes Visuais. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás/ Campus Cidade de Goiás. E-mail: tfsantanna@yahoo.com.br.

Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente – FLORI (AN)

FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente. 1ª ed. Tradução de Ivone Benedetti. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. Resenha de: ALMEIDA, Néri de Barros. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 449-453, dez. 2013.

As cruzadas foram um acontecimento em seu próprio tempo. Seus testemunhos contam-se entre os mais vastos e diversificados do período. O interesse que despertaram ainda em plena Idade Média, o envolvimento dos grandes personagens de então entre os quais se contam imperadores, papas e príncipes regionais aliados ao reconhecimento pelos historiadores modernos de sua importância na dinâmica histórica lhe garantiram um lugar de destaque na memória coletiva. A esse conjunto provavelmente deve-se o fato de mais de novecentos anos após seu aparecimento, as cruzadas ainda integrarem dimensões da experiência como representação.

As cruzadas inspiraram as artes plásticas, a música e a literatura e atualmente continuam inspirando o cinema, a teledramaturgia, revistas de vulgarização científica, romances gráficos e formas diversas de entretenimento em que se contam simulações lúdicas e jogos virtuais. Ao lado das heresias e da inquisição, elas também constituem um dos pilares em que se apoia a autocrítica ocidental quando observa seu passado medieval. A palavra cruzada tem um lugar importante em nosso vocabulário ora aplicando-se à violência do fanatismo religioso, ora à firme reunião de forças benéficas em torno de uma causa nobre, geralmente ligada a um ideário de salvação.

Podemos assim falar em cruzada pela infância ou cruzada contra a fome. A ambivalência que a ideia de cruzada ainda comporta em suas evocações cotidianas expressa a própria complexidade do fenômeno. Mesmo os historiadores não se sentem capazes de produzir um juízo único e definitivo a respeito do que foram as cruzadas. Discutem se estas se definem por seu caráter de expedição militar ou de peregrinação, se os benefícios espirituais devem ser tomados entre seus dados fundamentais, se as expectativas escatológicas se contam entre suas motivações decisivas, se o componente popular foi significativo e qual a importância de Jerusalém em sua deflagração.

Não há conceito capaz de se impor isoladamente como verdadeiro. Nem mesmo os movimentos que devem ser identificados pelo termo cruzada são reconhecidos de forma unívoca. Estariam as expedições para o oriente no mesmo plano que as lutas contra os muçulmanos na Espanha durante a Reconquista ou aquelas contra os pagãos da Europa Oriental, os hereges albigenses e os imperadores rebeldes ao papado? Afinal, o que constitui o cerne comum das expedições ocorridas entre fins do século XI e fins do século XIII que a partir de meados do século XII vieram a ser conhecidas como cruzadas? Em Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Campinas: Editora da Unicamp, 2013), temos a oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Flori em defesa de um conceito de cruzada. A pergunta da qual parte seu estudo é: como a comunidade cristã, em sua origem pacifista, desenvolveu um pensamento e uma prática em relação à violência bélica que lhe permitiu aderir de forma justificada e legítima a diversas empresas guerreiras a ponto de a Igreja vir a se tornar a deflagradora direta de um conflito com a extensão e repercussão das cruzadas? O propósito da obra consiste em demonstrar que essa mudança não foi repentina.

A tese que guia a obra é aquela de que a cruzada foi o desdobramento de uma ideia cristã antiga, surgida no longínquo século IV – momento em que são dados os passos decisivos para a institucionalização da Igreja – que advogava que certos conflitos militares deveriam ser entendidos como desejados por Deus e, portanto, realizados em seu nome e com sua aprovação. Tratar-se-ia de guerras que, em função de suas motivações e seus fins específicos, seriam sacralizadas, ou santas. Dessa forma, Flori entende a cruzada como uma modalidade de guerra santa. Aqui, é necessário um esclarecimento, uma vez que o autor não identifica a guerra santa ao jihad, esforçando-se por mostrar, ao tratar das relações complexas entre a cristandade e o islã medievais, as diferenças entre os dois tipos de combates sacralizados.

Parte dos estudos dedicados às cruzadas procuraram compreendê-las a partir da observação do evento já em curso ou de seus resultados. Basta lembrarmos das vertentes que viram nelas a resposta à crise de um feudalismo incapaz de reproduzir-se sem a conquista de novos territórios ou um primeiro movimento da mundialização que mais tarde seria completado pelas Grandes Navegações, responsável pela imposição do sistema de valores cristãos fora das fronteiras tradicionais da cristandade. Nesses dois casos, a compreensão do que foram as cruzadas se desloca e o fenômeno que propriamente constituem permanece incompreendido. Jean Flori procura apresentar cada um dos elementos que, de seu ponto de vista, integram a trama que tornou as cruzadas possíveis. Dessa forma, seu livro se estende do século IV a 1096, quando da pregação de Urbano II, feita durante o concílio de Clermont (1095), surge a primeira cruzada. Flori produz sua reconstituição atento tanto a ideias quanto a processos demorados e eventos pontuais. Da trama rica e densa proposta pelo autor, que envolvem considerações a respeito da evolução das relações entre cristãos e muçulmanos, o aparecimento e a consolidação de um forte movimento penitencial e peregrinatório a partir do século XI e a intensificação de expectativas de ordem escatológica no mesmo período, podemos destacar três questões que nos parecem maiores. Em primeiro lugar, a aproximação entre a Igreja e o Império que ainda na Antiguidade Tardia transformou a autoridade pública secular em protetora militar da comunidade de cristãos seja contra inimigos externos seja contra as próprias dissensões internas que ameaçavam sua ordem hierárquica e a paz social. Em segundo lugar, na Idade Média, o prosseguimento dessa política de busca de apoio nas lideranças laicas em ambientes em que a autoridade real ou imperial não se faziam presentes ou não se mostravam particularmente sensíveis a essa ordem de problema, momento em que podemos destacar a situação vulnerável da Sé romana e suas ações para atrair apoio que lhe garantisse proteção armada tanto contra potentados locais quanto contra invasores. Em terceiro lugar, a reforma da Igreja que, entre os séculos XI e XII, alterou de forma significativa o sistema de autoridade eclesiástico perpetrando uma separação mais nítida, inclusive no domínio material, entre o que era ou não consagrado, entre o que estava sob a autoridade eclesiástica e o que estava submetido ao arbítrio laico. Um dos resultados dessa reforma foi a reivindicação papal da liderança direta de Cristo sobre os conflitos de ordem militar de seu interesse. Como lembra o autor, com as cruzadas, o papa, investido da proteção já não apenas do patrimônio de São Pedro mas da própria herança de Cristo “[…] falava como comandante de todos os cristãos, em nome de Cristo”.

Os dez capítulos que constituem a obra conduzem o leitor pelo processo em que se integram ao longo dos séculos medievais até o ano de 1096 os diversos elementos que compõem a cruzada.

Assim, depois de um estudo introdutório a respeito da forma como o tema foi problematizado pela historiografia (Capítulo 1) o autor discute a herança que a tradição imperial de Constantino a Carlos Magno legou das relações entre violência guerreira e sagrado (Capítulo 2). Em seguida, um bloco importante de textos ocupa-se do período capital transcorrido entre os séculos X e XI. O autor trata aí de um problema importante: a Paz de Deus conduziu à cruzada como defendeu a tese lançada por Georges Duby? A resposta negativa dá ensejo a um interessante panorama do que foi a Paz de Deus e da tradição em evidência em sua discussão mobilizada em favor da construção da especificidade da cruzada. Isso se dá sem que seja negado um papel à Paz de Deus, sobretudo por meio da concessão de benefícios espirituais aos defensores de igrejas nela envolvidos (Capítulo 3). Em seguida é analisada a relação entre santidade e violência (Capítulo 4), sobretudo por meio dos santos guerreiros e a sua contribuição no processo de sacralização da violência (Capítulo 5).

Deslocando de forma mais incisiva seu olhar em direção à Santa Sé, Flori mostra a associação de signos militares à autoridade de São Pedro (Capítulo 6) e a forma como a violência militar integrava a ideia que Gregório IX fazia da defesa da liberdade da Igreja (Capítulo 7). O bloco seguinte trata da relação com o “outro”, o elemento externo à cristandade que, embora sempre presente no pensamento bélico cristão, se reveste de profunda materialidade com os destinos orientais (Capítulo 8) e ocidentais (Capítulo 9) da expansão muçulmana. Para encerrar, o autor reafirma seu pressuposto de que as cruzadas têm fundamentos de diferentes ordens (espirituais, teológicos, bélicos, políticos) e temporalidades (do século IV a 1096), mas que o campo fundamental em que a vemos se conformar é aquele do enriquecimento da ideia de guerra santa. É em relação a este conceito diante de suas alterações em 1095 que o autor tece sua definição de cruzada (Capítulo 10).

As opções do autor e seu resultado no campo conceitual, como é de se esperar de todo grande trabalho, certamente resultarão em perplexidade de alguns e em discordância frontal de outros. No entanto, a riqueza de seu percurso, sua coragem num campo antigo e proeminente em que ainda não se atingiu nenhuma unanimidade e, em particular, o fato de chamar nossa atenção para a importância da ideia de guerra santa na tradição política e teológica cristã, resultam em uma aventura pela erudição e pelo pensamento de grande valor para o estudioso de qualquer dos temas e sub temas abordados.

* Este texto faz parte, em sua quase integralidade, da “Apresentação” feita à resenhada.

Néri de Barros Almeida – Livre-docente. Professora junto ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ UNICAMP). É coordenadora do núcleo UNICAMP do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail:neridebarros@gmail.com.

O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil – HOLLANDA; MELO (AN)

HOLLANDA, Bernardo B. B.; MELO, Victor A. O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, 209p. Resenha de: CAPRARO, André Mendes; SOUZA, Jhônatan Uewerton. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 325-330, jul. 2013.

Há algum tempo que, a despeito das desconfianças de alguns historiadores, multiplicam-se as abordagens e os horizontes temáticos da historiografia. No bojo desse processo de expansão das fronteiras disciplinares, as pesquisas em história adentraram em aspectos até então negligenciados da cultura, apuraram o olhar sobre o cotidiano, lançaram luz ao que, a princípio, – mais por descuido que por mérito – parecia frívolo, portanto, desmerecedor de refl exões aprofundadas.

No interior dessas transformações, assistimos à constituição de um campo de estudos sobre a história dos esportes, institucionalizado em núcleos de pesquisa espalhados por diversas universidades em diferentes estados brasileiros, como Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul ou Bahia.

Do ponto de vista da tipologia das fontes, o desenvolvimento do campo de estudos em história dos esportes esteve atrelado, desde o início, à pesquisa em imprensa. Não raro, propiciando um profícuo espaço de trocas entre história, jornalismo e comunicação social.

Contudo – apesar de notáveis exceções –, essas pesquisas tendiam a desprezar, de início, as peculiaridades das fontes jornalísticas. Selecionando textos em separado, pouco atentas às posturas editoriais dos periódicos ou com o cotidiano das redações e suas disputas internas de poder, que, entre outras coisas, delineiam os limites da enunciação de um discurso. As pesquisas terminavam por limitar suas potencialidades, como resultado dos descuidos metodológicos.

Com o amadurecimento do campo de estudos, novas questões estão postas, dentre elas, aquelas respectivas à singularidade das fontes de imprensa. Em especial, quanto ao seu particular estatuto de fonte/ objeto. À luz dessas considerações, recebemos com entusiasmo a coletânea O Esporte na Imprensa e a Imprensa Esportiva no Brasil, que tem como organizadores Victor Andrade de Melo e Bernardo Borges Buarque de Hollanda, dois renomados historiadores do esporte, detentores de obras referenciais no interior desse campo de estudos.

O livro está alojado na Coleção Visão de Campo, da editora 7Letras, que reúne outras obras dedicadas à história do esporte. Sua proposta de resgatar as experiências de alguns dos principais periódicos esportivos brasileiros durante o século XX, surge em boa hora. Tomada como um todo, a obra converte-se em instigante ponto de partida para a reflexão sobre as múltiplas formas de olhar para os impressos enquanto fontes e objeto de estudo, tornando-se, assim, um eficaz convite à pesquisa. Talvez seja esse seu principal mérito, pois, ao iluminar pontos específicos, dá-nos a dimensão da escuridão e das inúmeras possibilidades de pesquisa em história dos esportes.

Já no título do prefácio, escrito por Ronaldo Helal, deparamonos com uma pergunta inquietante: O esporte na imprensa ou a imprensa no esporte? Resgatando um dos questionamentos levantados por Victor Andrade de Melo no primeiro capítulo da coletânea, Helal identifica um dos pontos nevrálgicos da obra, qual seja, a relação dialética en tre esporte e imprensa. De fato, tanto o esporte quanto a imprensa, caminharam de mãos atadas no decorrer do século XX, autonutrindo-se como campos em constante interpenetração.

Pensar a imprensa de “corpo inteiro”, esse seria o objetivo da obra, afirmam Victor Andrade de Melo e Bernardo Borges Buarque de Hollanda na apresentação da coletânea. Para os autores, haveria uma lacuna quanto à imprensa esportiva, no hall de obras dedicadas à história da imprensa brasileira. Isso não seria fortuito, a imagem do leitor de esportes como alguém de baixo poder aquisitivo e estreita capacidade intelectual, teriam corroborado no sentido de rebaixar esse segmento da imprensa como uma vertente de menor valor para o entendimento da sociedade brasileira e das representações acerca da nação. Seria necessário resgatar os periódicos esportivos enquanto atores sociais, objetos de análise em toda sua complexidade, agentes na edificação de imaginários acerca da nação. Eis, em linhas gerais, a proposta do livro.

Em Causa e Consequência: esporte e imprensa no Rio de Janeiro do século XIX e década inicial do século XX, Victor Andrade de Melo debruça-se sobre os primórdios do esporte e sua inserção na imprensa carioca.

Neste capítulo, o autor chama a atenção para as múltiplas relações estabelecidas entre os esportistas e a imprensa, indicando o papel de mediador ocupado por esses periódicos, entre as agremiações e o grande público. Aqui, a imprensa é compreendida enquanto protagonista no processo de construção de sentidos e significados no entorno da prática esportiva. Sendo a construção desses sentidos e significados, o resultado das mediações estabelecidas entre os interesses do periódico, dos jornalistas e do que estes consideravam como “interesse público” (normalmente o interesse de pequenos setores sociais).

Em seguida, Luiz Henrique de Toledo analisa um dos mais importantes periódicos esportivos paulistanos, em: A cidade e o jornal: a Gazeta Esportiva e os sentidos da modernidade na São Paulo da primeira metade do século XX. Enfatizando o período em que Gazeta Esportiva era apenas um suplemento do jornal A Gazeta, Toledo desvela uma série de representações sobre o processo de metropolização de São Paulo e os sentidos atribuídos à cidade nesse suplemento. Com seu libera lismo paulistanista, o periódico desenvolve uma linguagem bairrista, empregando sentidos específicos à prática do futebol em São Paulo, especialmente no que se refere à sua relação com a ética do trabalho, sustentando, assim, no ambiente esportivo, uma série de autorrepresentações difundidas acerca da cidade, na primeira metade do século XX.

Bernardo Buarque de Hollanda, em O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre 1930 e 1980, opta por uma visão panorâmica da trajetória do Jornal dos Sports, tomando como eixo cronológico a participação de Mario Filho na publicação. Contudo, o objetivo não é reiterar as mitologias construídas em torno do cronista, ao contrário, Hollanda apresenta um Mario Filho distinto, cercado por diversos outros cronistas que, como ele, frequentavam os círculos do poder, contribuindo para o estreitamento dos víncu los desse periódico com as instâncias políticas e a administração esportiva.

Um dos méritos do artigo é, sem dúvida, apresentar um JS para além de Mario Filho. O periódico esportivo do grupo Bloch Editores é o tema de André Alexandre Guimarães Couto em, O discurso pela imagem: Manchete Esportiva e sua proposta fotojornalística (1955-1959 e 1977-1979).

Abarcando dois períodos distintos de circulação da revista, o autor analisa com cuidado o enfoque que o semanário dava às imagens, inspiração herdade da revista Manchete, carro chefe do grupo Bloch.

Para tanto, Couto adentra às estruturas da revista, percorrendo desde sua equipe de fotógrafos e cronistas até sua estrutura editorial e os enfoques da publicação. O cuidado com a técnica e o protagonismo legado às imagens, encontram-se em sincronia com os discursos sobre “modernização” do país, difundidos naqueles períodos.

Álvaro do Cabo, em Um raio-x da Revista do Esporte, dedica-se à análise panorâmica de diversas colunas deste semanário. Criada nos anos 1960, em meio a um período de grande efervescência no esporte nacional, a Revista do Esporte aposta no sensacionalismo de suas coberturas, dando grande ênfase à vida privada dos atletas – principalmente os futebolistas –, em consonância com a proposta editorial de outro semanário, a Revista do Rádio. Assim como André Couto, Álvaro do Cabo chama-nos a atenção para as trocas estabelecidas entre a imprensa esportiva e outros segmentos da imprensa. Relação fundamental para a compreensão das opções editoriais de alguns periódicos.

Criada em meio às restrições impostas pela censura, a revista Placar é o tema de João Malaia, que foca os primeiros instantes desta publicação em, Placar: 1970. O recorte temporal reduzido possibilitou ao autor verticalizar sua análise, revisitando temas ainda presentes em nossa memória histórica do futebol. É o caso dos posicionamentos da revista a respeito da demissão de João Saldanha, analisada por meio das crônicas de Hamilton de Almeida, das charges de Henfil, das declarações do próprio Saldanha ou das composições imagé ticas do semanário. Compreendendo tanto aspectos de contestação quanto de apoio ao regime, o autor defende a importância de estudar a imprensa esportiva em regimes de exceção. A dupla licença da qual gozavam esses periódicos, a esportiva e a humorística, abria o espaço necessário para a crítica, todavia, essa crítica sempre vinha mesclada às necessidades ou opções de alinhamento, como bem pontua Malaia em sua análise sobre a publicidade nesses periódicos.

Em Juventude em revista: surfe e Fluir, Rafael Fortes segue com as reflexões que desenvolve desde sua tese de doutoramento. Atribuindo grande atenção à cultura jovem na década de 1980, Fortes contextualiza a revista Fluir no interior de uma gama de produtos culturais – novelas, seriados, filmes, programas de rádio, moda etc.

– que passavam a identificar no público jovem um mercado consumidor lucrativo, abrindo, assim, espaço considerável aos esportes radicais, dentre eles o surfe. Com habilidade, Fortes demonstra o papel ativo de Fluir na institucionalização e profissionalização do surfe, seja em suas publicações, enfocando as viagens e os campeonatos em detrimento da prática cotidiana do surfe, seja em sua atuação junto às entidades especializadas ou cobrando dos atletas uma postura “profissional”, afim de dissociar o surfe de imagens depreciativas, como o uso de drogas e o localismo.

Por fim, Mauricio Stycer escreve sobre a trajetória do diário Lance! em, Lance! um jornal do seu tempo. Inspirado em periódicos de outros países, como o espanhol Marca e o argentino Olé, Lance! propunha uma nova forma de jornalismo esportivo, um jornal “pra cima”, escrito na linguagem do torcedor. Fruto das mudanças experimentadas pelo futebol na década de 1980, Lance! é o primeiro projeto de mídia financiado exclusivamente por investidores profissionais. Dando maior importância aos aspectos gráficos que ao conteúdo, o periódico fora idealizado tendo como público alvo o torcedor-consumidor, figura central do futebol-empresa. Com escrita apurada, Stycer reconstitui os embates travados no interior da redação para delimitar os princípios editoriais do novo impresso.

Antes de mais nada, Lance! é tratado aqui como a expressão no jornalismo esportivo, dos novos ares que invadiam o futebol.

O caráter coletivo da obra e a diversidade dos autores – alguns historiadores, outros sociólogos, antropólogos, jornalistas etc. – imprimem no livro uma pluralidade de abordagens e enfoques, ganhando na multiplicidade dos olhares e perdendo quanto à coesão e unidade da coletânea. Todavia, mesmo que com níveis distintos de qualidade e profundidade, os autores dão conta da proposta inicial do livro. Aliás, o próprio sucesso na empreitada dá-nos a condição de identificar lacunas e advoga pelo surgimento de novos projetos como esse.

Uma das principais lacunas diz respeito à espacialidade desses periódicos. Compreendemos a opção por veículos de pretensão e alcance nacional, contudo a repetida seleção de periódicos situados no Rio de Janeiro ou em São Paulo pouco contribui para o conhecimento das distintas formas de apropriação e ação da imprensa no interior do campo esportivo. De fato, ao fazê-lo, corre-se o risco de voltar ao óbvio, mesmo que por caminhos distintos dos traçados pelos antigos memorialistas. Outra lacuna, dessa vez temática, incide sobre a supremacia do futebol masculino profissional nas abordagens. Justiça seja feita, quase todos os autores dão algum espaço para outras modalidades ou diferentes formas de apropriação do futebol. Contudo, excetuando alguns capítulos, o peso das análises é deveras desigual. Compreendemos que o fato está ligado às opções editoriais dos próprios periódicos analisados e que os limites do capítulo exigem recortes. Entretanto, a inclusão de órgão específicos, como feito com Fluir, agregaria na compreensão das relações entre im prensa e esporte no Brasil.

A título de conclusão, O Esporte na Imprensa e a Imprensa Esportiva no Brasil é leitura recomendada para todos os interessados em história dos esportes ou história da imprensa no Brasil. Como dito anteriormente, a qualidade da obra instiga-nos a projetar futuros trabalhos.

Sem dúvida, como demonstraram Bernardo Buarque de Hollanda e Victor Andrade de Melo, é possível pensarmos em coletâneas específicas sobre outras mídias ou produções culturais. Desse modo, o papel dos programas de rádio, televisão, as especificidades da internet, a inserção dos esportes nas telenovelas, as questões respectivas à recepção dessas informações. Enfim, ao cumprirem com louvor sua proposta, os autores terminam por estimular novos estudos, temática e abordagens, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento dos estudos em história dos esportes.

André Mendes Capraro – Professor do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: andrecapraro@onda.com.br.

Jhonatan Uewerton Souza Mestrando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. E-mail: jhonatanusouza@gmail.com.

Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries – SCOTT (AN)

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009. 256p. Resenha de: LA JOUSSELANDIÈRE, Victor Santos Vigneron de. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 339-346, jul. 2013.

Mesmo que recebida com bons olhos pela maior parte dos pesquisadores, a perspectiva interdisciplinar ainda tem um longo caminho até se tornar uma prática recorrente. Por si só, essa consta tação justifica o interesse de Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Nesse livro, Heidi Scott amplia os horizontes da pesquisa peruanista ao trabalhar no limiar entre História e Geografia, tomando por objeto a própria paisagem descrita pelos cronistas. Contudo, deter-se na valia dessa perspectiva em nada ajudaria a ultra passar as generalidades muitas vezes evocadas quando se fala em interdisciplinaridade.

Ora, essa opção engendra na obra em questão uma série de consequências analíticas, não apenas no que toca ao tema específico da colonização, mas ainda no que diz respeito à própria relação entre teoria e História. É certo que o livro de Scott encontra uma imagem mais orgânica, indistinta mesmo, entre tais temas; dividi-los, contudo, permite compreender o alcance de sua aventura por limites acadê micos tão pouco frequentados. Os impasses daí resultantes não deixam de ser uma das riquezas desse gesto.

No primeiro capítulo, Landscape and the Spanish Conquest of Peru, a autora anuncia os delineamentos básicos que darão forma às análises realizadas ao longo do trabalho. Em última instância, são essas considerações que dão coesão a uma obra estruturada por capítulos autônomos em seus temas e recortes. O principal elemento comum emerge em torno do conceito de “paisagem” (SCOTT, 2009, p. 1-15).

Segundo a autora, não se trata de reconstituir os traços dos “espaços reais” atravessados e narrados pelos cronistas, mas de atentar ao processo mesmo de “produção da familiaridade”, que os torna cognoscíveis e passíveis de descrição. A sugestão já foi desenvolvida por autores clássicos, como Edmundo O’Gorman e John Elliott (O’GORMANN, 1992; ELLIOTT, 1984, p. 9-40). Contudo, o que particulariza a análise de Scott é a ênfase dada à agência indígena nesse processo de cons trução simbólica da paisagem. A autora não deixa, aliás, de iniciar seu livro com uma crítica a Elliott, que teria dado um tom excessivamente europeu à produção da familiaridade descritiva (SCOTT, 2009, p. 1-5). A crítica a Elliott pode ser tomada como chave de leitura para o restante da obra, pois o que está em questão não é apenas uma discordância no que toca à participação indígena no processo de construção da paisagem, mas sim o próprio conceito de “colonização”. O tom hispanista adotado por aquele historiador seria apenas a manifestação de um diagnóstico mais fundamental a respeito da própria presença europeia na América. Scott argumenta que o termo se presta a uma definição demasiado uniforme da realidade americana sob a presença europeia. No que diz respeito à discussão com Elliott, procura demonstrar que sua leitura hispanista da produção da paisagem tornaria homogêneas as relações de força que não o são, não apenas no contexto peruano, mas nos variados contextos coloniais americanos na primeira Idade Moderna. O exercício historiográfico empreendido nos cinco capítulos seguintes aten de, em última ins tância, a essa preocupação no que diz respeito aos conceitos e às explicações unificadoras consagradas.

A partir do capítulo dois, Scott parte para a empiria com o fito de atestar o desvalor do conceito de “colonização”. Para tanto, a autora volta sua atenção para os momentos mais decisivos do processo de instituição do domínio castelhano no Peru. O segundo capítulo, Beyond textuality. Landscape, embodiment, and native agency, inicia esse percurso ao tratar da conquista. Perceba-se que o argumento ganha tanto mais força quanto se trata de uma primeira geração de cronistas, cuja relação com os índios peruanos, a princípio, seria superficial quando comparada com a interação existente décadas mais tarde. Esse é, por exemplo, o fundamento da periodização proposta por Franklin Pease para as crônicas andinas (PEASE, 1995, p. 15-63). Ora, acompanhar a narrativa da conquista elaborada por Nicolás de Ribera ou ainda a clássica descrição dos acontecimentos dada por Pedro Cieza de León é um recurso estratégico da autora. Se analisado em perspectiva com documentos produzidos por outras fontes, como as petições feitas ao rei pelos curacas de Jauja, esse discurso da conquista emerge como fruto de uma “experiência paisagística” mediada pelos índios (SCOTT, 2009, p. 26-36). Por um lado, a existência de uma descrição menos “literal” da paisagem por parte dos espanhóis seria fruto da rede de proteção que se interporia entre esses e a “paisagem real”. Por outro lado, esta contaria com elementos compatíveis com o acervo cognitivo europeu tendo em vista as intervenções promovidas no espaço pelos Incas, fato que teria possibilitado a localização da conquista numa “paisagem familiar” (SCOTT, 2009, p. 36-42).

Se de fato essa discussão tem por objetivo deslocar o hispanismo um tanto esquemático de Elliott, trata-se ainda de uma crítica voltada contra outra importante explicação unificadora para o período colonial peruano. Também a “história dos vencidos” é evocada por Scott por conta de seu, digamos, “excesso conceitual”. Para tanto, elege-se como interlocutor Nathan Wachtel, importante referência desse modelo explicativo que adquiriu força em meados do século XX. Se por um lado concorda em investir ao índio um papel central nas suas análises, Scott discorda do caráter “traumático” atribuído por Wachtel à conquista (WACHTEL, 1977, p. 55-64). Ao procurar relativizar a ruptura provocada por esse acontecimento, a autora tende a contrapor o caráter “negociado” da presença espanhola à “desestruturação” por este sustentada. Contrária à concepção negativista embutida no epíteto “vencidos”, Scott propõe compreender o caráter positivo da agência indígena na constituição de uma nova “experiência paisagística” no Novo Mundo.

O último item desse segundo capítulo anuncia uma das tônicas dos capítulos subsequentes. Ao mencionar as transformações ocorridas após o período da conquista, com a emergência de uma “paisagem colonial”, a autora retorna para a discussão acerca da colonização com respeito a outro de seus momentos definidores, inaugurado com a “pacificação” dos vecinos por La Gasca, em 1548 (SCOTT, 2009, p. 42-48). A partir, portanto, do terceiro capítulo, Landscapes of resistance? Peru’s ‘Relaciones geográficas’, o conceito é agora questionado justamente onde ele parecia mais apropriado. Mais especificamente, trata-se de inventariar os limites postos ao projeto de produção de cidades espanholas, isto é, de intervenção colonial na paisagem americana. Note-se que essa proposta analítica se pretende válida para uma década tão significativa quanto a de 1570, em que as incertezas quanto ao futuro da região teriam sido suplantadas pelas reformas centralizadoras do vice-rei Francisco de Toledo, funcionário talhado à imagem e semelhança de Felipe II (LOHMANN VILLENA, 1967). E o campo escolhido para tanto dificilmente poderia ser mais significativo que as Relaciones geográficas.

É nesse conjunto de informes solicitados aos funcionários reais em toda a América que Scott pretende descobrir as marcas da agência local. À primeira vista, seria corroborada aquela visão “tradicional”, notando-se a marca da política de Toledo na redução dos índios dispersos, levando à sua desvinculação da paisagem, ao mesmo tempo em que tinha lugar a “extirpação” de uma toponímia e uma geografia idolátricas. Contudo, esse mesmo tema permite à autora questionar o enquadramento binário, reputado a autores como Wachtel, que divi de as posições possíveis na sociedade colonial a dominantes e vencidos.

À diferença dessa perspectiva, Scott observa a intimidade dessas posições, havendo antes uma interpenetração de elementos culturais na constituição de algo novo. Isso seria corroborado pela Relación enviada pelo corregedor de Jauja, que permitiria observar os vaivéns dos huancas perante as instituições castelhanas, privilegiadamente emblematizadas na figura do ladino Felipe de Guacra Paucar (SCOTT, 2009, p. 60-69). Mas o que o caso particular dos huancas de Jauja sugere são as restrições generalizadas à política de reduções. Aliás, isso não se deveu apenas à obstinada mobilidade indígena, mas também à resistência oposta a esse plano por parte de muitas autoridades espanholas (SCOTT, 2009, p. 69-74). Seu interesse pessoal, imediato e concreto, muitas vezes obstaria qualquer “projeto colonial”, distante e abstrato.

O capítulo seguinte, The mobile landscapes of Huarochirí, deparase com outro contexto fundamental à afirmação da colonização peruana, tendo um papel significativo na política de “extirpação de idolatrias”, ali iniciada por Francisco de Ávila em 1610. Contudo, aquilo que poderia representar a consolidação do projeto evangelizador é lido sob outra perspectiva por Scott. Assim como a política civil de redução não teria deitado raízes, também sua equivalente eclesiástica, a paróquia, não teria impedido a mobilidade indígena (SCOTT, 2009, p. 75-107). Da mesma forma os corregedores estariam entre os principais obstáculos à política colonial, a evangelização seria atravessada pelos mais variados interesses: curas de paróquia, jesuítas, índios e funcionários reais conformariam um panorama impossível de ser reduzido a um núcleo conceitual. É particularmente interessante para a argumentação da autora a contraposição entre a exemplar Relación geográfica produzida pelo corregedor local e as formulações contidas no Manuscrito de Huarochirí (SCOTT, 2009, p. 90-98). Se aquela pode dar a ideia de uma execução zelosa das orientações filipinas, este revelaria a superficialidade da disrupção (do “trauma”) operada pelos espanhóis em seu combate à geografia idolátrica. A própria ação extirpadora é colocada em tela por Scott, que sublinha as contradições nesse processo, tendo em vista os interesses múltiplos representados pelos curas, pelos extirpadores e pelos índios. Essa situação teria dado ensejo mesmo a um estranhamento crescente perante a paisagem, narrada pelos religiosos de modo a tematizar a resistência do terreno ao conhecimento de suas propriedades idolátricas. Nada mais distante, enfim, da progressiva penetração das instituições coloniais, inclusive sob seu braço eclesiástico, no interior peruano.

Os dois últimos capítulos, Negotiating Amazonia e Contested fron tiers and the Amazon/Andes divide, possuem o interesse adicional de versarem sobre regiões pouco analisadas pela historiografia, a fronteira amazônica do vice-reino. O percurso analítico adotado no livro é conhecido: Scott parte da crítica à explicação historiográfica consagrada que associa o tema amazônico às representações edênicas. A esse respeito, o capítulo quinto retoma a significativa trajetória de Juan Recio de León para aferir até que ponto a paisagem da Amazônia boliviana teria sido objeto de uma intricada negociação. Ao analisar essa personagem, percebe-se que o próprio tema edênico é antes um “recurso discursivo” à disposição dos cronistas para defender seus interesses pessoais. Com essa constatação é possível compreender a construção da paisagem local enquanto “espaço de oportunismo”, expressão empregada por Scott em um de seus subtítulos (SCOTT, 2009, p. 111). Nesses quadros, a trajetória turbulenta de Recio de León apresenta as várias estratégias discursivas que esse ator adota, uma a uma, a depender do momento em que se encontra, jogando com as conveniências: a vantagem da conquista, seu papel missionário, a riqueza prometida pela região, os riscos representados por estrangeiros que frequentam o lugar, a possibilidade do transporte de prata pelo Amazonas, de ampliação da mão de obra indígena em Potosi.

Não deixa de ser irônico, ou melhor, significativo, que Madri seja o lugar por excelência onde essa variedade de argumentos poderia ter lugar. O volume de informações que ali chegavam e a impossibilidade de confirmação direta caracterizariam o espaço de onde, supostamente, irradiariam as diretrizes colonizadoras (SCOTT, 2009, p. 124-131). Ao mesmo tempo, trata-se de combater a visão dualista que opõe o espaço andino àquele amazônico, fato que não é indiferente a uma apropriação da própria visão incaica (SCOTT, 2009, p. 133-136). Tal intento é realizado principalmente no capítulo sexto, em que são apresentados os diversos projetos que sublinharam a possibilidade de investir na região. Possibilidade essa, destaque-se, aventada contra as expectativas da administração castelhana.

A essa altura cabe indagar-se sobre a articulação entre o encaminhamento metodológico proposto pela autora e seus resultados historiográficos. É possível perceber que toda a narrativa empreendida por Scott parte de uma posição nominalista com relação às explicações ou conceitos unificadores. Um a um, “colonização”, dualidade entre “vencedores” e “vencidos”, ruptura da conquista ou impermeabilidade da fronteira são questionados por sua incapacidade de dar conta do “real”. Lembre-se a esse respeito, que a autora não deixa de mencionar a “paisagem real” ao lado do “discurso” sobre a paisagem (SCOTT, 2009, p. 1-15). Em certa medida, portanto, o conceito encontrar-se-ia em “excesso” diante da empiria. Pelo contrário, a profusão de interesses pessoais marcaria um cenário que apenas poderia ser definido como “complexo”. Deve estar claro a essa altura que o gesto negativo empregado por Scott com relação à historiografia possui sua contraparte: a complexidade é complementada pela ênfase na ação individual (a “agência” indígena, a busca de interesses pessoais, os “espaços de oportunismo”). Fato que não é estranho ao próprio conceito de “paisagem” empregado pela autora, que recusa o distanciamento entre visão e escrita e enfatiza uma abordagem multissensorial e totaliza a experiência do meio pelo sujeito.

A “negociação” a que o discurso sobre a paisagem está submetido incorpora, por conseguinte, a própria dimensão corpórea.

Sem negar a riqueza de possibilidades assim aberta, há de se questionar a validade intersubjetiva de uma perspectiva que contrapõe as múltiplas experiências sensíveis ao trabalho do conceito.

Este não deveria encontrar sua determinação na empiria, na experiência corpórea? Longe de ser uma questão estritamente teórica, trata-se de uma dúvida que remete a alguns impasses da obra de Scott. Isso porque ao colocar lado a lado “discurso sobre a paisagem” e “paisagem real” (assim como a intervenção indígena correspondente a esses dois campos) a autora afirma a vigência do conceitual, do simbólico. Nesses termos, o conceito de “complexidade” joga um papel estratégico, sem o qual seria impossível à própria autora construir seu discurso historiográfico. Essas questões ajudam a compreender alguns dos limites da crítica feita, por exemplo, ao conceito de “trauma”, em seu uso dado por Wachtel. Se é inquestionável que este autor não aferiu de maneira correta as fundamentais continuidades demonstradas por Scott, esta tampouco considerou o fato de “trauma” supor uma relação (necessariamente prenhe de mediações) entre estrutura e acontecimento. Desse ponto de vista, é possível sustentar, ainda que numa conformação distinta daquela pretendida por Wachtel, uma experiência traumática da conquista. Da necessidade assim constatada de conjugar experiência subjetiva e operação historiográfica intersubjetiva nota-se, por fim, que, ao centrarse excessivamente no polo individual, a autora de Contested territory deu-se com uma definição oportunista do poder, que não é compreendido como relação, e sim como predicado. Nessa redução conceitual reside muito da impugnação avançada contra o conceito de “colonização”.

Referências

ELLIOTT, John H. O Velho Mundo e o Novo: 1492-1650. Lisboa: Querco, 1984.

LOHMANN VILLENA, Guillermo. Étude préliminaire. In: MATIENZO, Juan de. Gobierno del Perú (1567). Lima/Paris: IFEA, 1967. p. I-LXIX.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: refl exão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992.

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: PUCP/FCE, 1995.

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009.

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus: les indiens du Pérou devant la conquête espagnole, 1530-1570. Paris: Gallimard, 1977.

Victor Santos Vigneron de La JousselandièrePossui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2008) e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor de história da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. E-mail: victorvig@gmail.com.

Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900 – CROSBY (AN)

CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. Tradução: José Augusto Ribeiro, Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia da Letras, 2011. Resenha de: VENCATTO, Rudy Nick. .Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 331-338, jul. 2013.

As questões socioambientais ganharam um grande impulso nas discussões acadêmicas, principalmente no final do século XX e início do século XXI. É neste cenário que a obra de Alfred W. Crosby1, Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900 ressurge, no ano de 2011. Publicado primeiramente no ano de 1986, nos Estados Unidos, o livro foi lançado no Brasil pela Editora Companhia das Letras no ano de 2011, em uma versão de bolso, fruto de uma tradução da primeira reimpressão, que data de 1991.

Cabe aqui uma primeira reflexão plausível de debates. Por que uma obra lançada no século passado ganha evidência no Brasil somente no ano de 2011? Em um panorama no qual as preocupações ambientais auferiram lugar de destaque, editar uma obra com tal magnitude de discussão significa também, para a editora, um mercado de circulação favorável. Além disso, é inegável que a temática abordada por Alfred Crosby é pertinente, não somente neste século, mas sim, em qualquer temporalidade, pois proporciona diferentes olhares sobre os movimentos expansionistas e coloniais, estimulando, assim, a quebra de alguns paradigmas.

De uma forma geral, a obra de Alfred W. Crosby problematiza o processo de expansão das populações europeias, principalmente por volta dos 0 a 1900, porém sem perder de vista um recorte temporal mais longínquo. O foco de sua discussão concentra-se na invasão biológica lançada pelas levas europeias em outras regiões do planeta, as quais constituíram aquilo que denominou-se de “biota portátil”2. Crosby aufere um lugar protagonista à biota portátil, sendo ela responsável por expulsar ou até mesmo eliminar a flora, fauna e os habitantes nativos de distintas regiões do mundo, dando origem às “Neoeuropas”, ou seja, Austrália, Nova Zelândia e América.

Para tal reflexão, sua obra foi dividida em doze capítulos, ao longo dos quais, Crosby passeia da Pangeia, há aproximadamente 180 milhões de anos, até 1900. Segundo ele, neste período, as Neoeuropas já estão constituídas e, por sua vez, são responsáveis pelo abastecimento mundial de alimentos estando todas situadas em latitudes similares, em zonas temperadas dos hemisférios norte e sul, possuindo a grosso modo, o mesmo clima. Como introdução, Crosby lança explicações para delimitar seu tema, partindo de uma preocupação central: entender as razões que levaram os europeus e seus descendentes a estarem distribuídos por toda a extensão do globo.

Segundo Alfred Crosby, o bom desempenho das campanhas imperialistas e expansionistas europeias está ligado a questões ecológicas e biológicas. Porém, ao fazer estas afirmações, o autor acaba por simplificar estas campanhas, e/ou, até mesmo, naturalizálas, diminuindo, assim, a relevância das questões econômicas, políticas e culturais que também foram agentes neste processo. Trata-se de uma afirmação audaciosa que por vez pode direcionar os leitores a caírem na malha discursiva do autor, tomando os movimentos de conquista e extermínio enquanto ações naturais, ligadas apenas a questões biológicas.

É no segundo capítulo intitulado, Revisitando a Pangeia: o Neo lítico Reconsiderado, que Crosby passa a olhar mais atento para o processo de evolução e desenvolvimento de diferentes espécies, tomando como eixo de análise a divisão da Pangeia3. Para Crosby, este movimento definidor dos continentes proporcionou que muitas formas de vida se desenvolvessem de maneira independente e em muitos casos, com exclusividade, o que, segundo o autor, pode explicar as diferenças extremas de fl ora e fauna entre a Europa e as Neoeuropas.

Chama atenção a definição de cultura que Crosby traz para sua análise. É cabível de compreensão que sua concepção adapta-se aos interesses que procura desvendar neste processo de investigação, apresentando de forma limitada uma categoria de análise tomada por tanta complexidade e debatida em várias áreas das ciências humanas.

Para Crosby (2011, p. 25), cultura pode ser entendida enquanto: […] um sistema de armazenamento e alteração de padrões de comportamento, não nas moléculas do código genético, mas nas células do cérebro. Essa mudança tornou os membros do gênero Homo os maiores especialistas em adaptabilidade de toda natureza.

Para o crítico literário Raymond Williams, os conceitos são elementos historicamente constituídos, fixando sentidos, imagens e margens de significações que, muitas vezes, imobilizam o passado no passado. Os conceitos, antes de empregados como verdades ou paradigmas, devem ser vistos e problematizados em seu movimento, levando em consideração o espaço e o tempo em que foram criados.

Só assim será possível aplicar análises que venham a compreender os sentidos cristalizados, vividos em outras temporalidades (WILLIANS, 2001). Neste sentido, para além da proposta de Crosby, cultura deve ser entendida não apenas enquanto manifestações biológicas, mas sim enquanto um complexo de relações que são constitutivas e constituintes dos sujeitos humanos.

A partir da concepção biológica de cultura, Crosby levanta hipóteses sobre o desaparecimento dos grandes mamíferos em localidades onde o gênero Homo fora se estabelecendo. Para o autor, as doenças e o fogo utilizado para efetivar grandes queimadas podem ter alterado o hábitat dos gigantes tornando impossíveis a vida e a reprodução. Segundo Alfred Crosby, este processo foi uma mutação cultural que deu origem à “Revolução do Neolítico”4.

No terceiro capítulo, intitulado Os Escandinavos e os Cruzados, Crosby dá ênfase às primeiras colônias ultramarinas da Europa, sendo elas: a Islândia e a Groenlândia. Estabelecidas por populações escandinavas, estas, por sua vez, contribuíram para a criação de mecanismos necessários para o bom desempenho das navegações no século XV. Segundo o autor, o sucesso nestas colônias esteve relacionado à competência náutica, à capacidade de lidar com atividades da pecuária e à adaptação a uma alimentação a base de leite.

Por outro lado, o fracasso, mais tarde, também está relacionado às questões fisiológicas e estratégicas. Para ele, a ausência de cereais, madeira e ferro nestas localidades, tornava o contato comercial com esse continente inviável, e o resultado por um maior intervalo de tempo sem contato com o continente europeu era o extermínio por surtos de epidemias. Em suas palavras, “[…] as doenças infecciosas davam a impressão de trabalhar não para os escandinavos, mas contra eles.” (CROSBY, 2011, p. 64).

No discurso de Crosby, os agentes patógenes que muitas vezes passam despercebidos na análise dos processos de colonização são cruciais para compreender os sucessos e fracassos das expansões europeias. Entretanto, não se deve perder de vista que agentes culturais como costumes, língua, religião, entre outros, são de suma importância para uma compreensão mais abrangente sobre estas campanhas. Olhar somente para a biota portátil significa dar muito crédito a um único conjunto de fatores. Faz-se necessário somar outros elementos que tiveram papel ativo neste processo de ocupação e colonização.

Por outro lado, a quebra de paradigmas que Crosby possibilita é plausível de elogios. É ainda no terceiro capítulo que, fazendo uso de uma rica documentação baseada em cartas de navegação e diários de navegadores, o autor torna possível quebrar com os mode los explicativos que cristalizam o contato e a ocupação europeia do continente americano, apenas enquanto fruto das navegações do século XV. Problematizando a chegada dos escandinavos na região do atual Canadá, Crosby contribui para perceber a história enquanto movimento e processo, estabelecendo, assim, uma série de novos elementos para esta refl exão.

O quarto capítulo é As Ilhas Afortunadas; o quinto, Ventos; e o sexto, Fácil de alcançar, difícil de agarrar, figuram o processo de expansão marítima empreendido pela Europa entre os séculos XIV e XV.

São nesses capítulos que o autor chama atenção às funções dos arqui pélagos para os navegadores. Passando de sinais de orientação no oceano a lugares de abastecimento, tornaram-se, mais tarde, elos entre as metrópoles e as colônias. Para Crosby, os arquipélagos funcionaram como experimentos no processo de expansão das atividades agrícolas e pecuárias. Transformar ilhas em lugares de abastecimento significava disseminar espécies de animais, muitas das quais, num período longo de tempo, acabaram causando alterações nos elementos da fl ora e fauna. Segundo Crosby, (2011, p. 86) “É possível que plantas nativas tenham desa parecido e animais nativos tenham morrido por falta de alimento e abrigo”.

O autor levanta uma refl exão que impulsiona os leitores a pensar sobre a instabilidade do ambiente natural. Para Crosby, muitas espécies que se julgam nativas de um lugar foram em algum tempo trazidas pelos europeus, espalhando-se e levando a crer que sempre existiram em um determinado espaço. Perceber que espécies dora vante tomadas enquanto nativas foram em outros tempos, introdu zidas consciente ou inconscientemente por migrações humanas, significa perce ber os sujeitos humanos num processo relacional com a natureza.

Penso neste momento no trabalho de Simon Schama, Paisagem e memória (1996), no qual, segundo o autor, antes mesmo de estarmos lidando com uma natureza, estamos lidando com uma paisagem, ou seja, olhares que foram lançados sobre a natureza e que, de alguma manei ra, instituem significados para esses espaços. Schama instiga a perceber a natureza não apenas por olhares da botânica ou dos bió logos, mas sim a partir dos usos e das representações presentes no imaginário dos seres humanos. Para o autor, é necessário redescobrir o que já possuímos, mas que, de alguma forma, escapa-nos ao reconhecimento e à apreciação. Através desta concepção, é possível estar atento à rique za, à antiguidade e à complexidade da tradição paisagística com relação aos modos de ver a natureza.

O sétimo capítulo é Ervas; o oitavo, Animais; e o nono, Doenças, dão ênfase, e Crosby não poupa em exemplos, na expansão da biota portátil que, para o autor, fora o principal agente delimitador do sucesso na constituição das Neoeuropas. São nestes capítulos que, sutilmente, Crosby diminui o peso das ações de extermínio causadas pelo expansionismo europeu. Para ele, as mudanças também fugiram do controle humano quando algumas espécies de animais como o rato embarcaram nos porões dos navios levando consigo um universo de agentes patológicos. Para Crosby (2011, p. 201-202), “Isso parece indicar que os seres humanos raras vezes foram senho res das mudanças biológicas que provocaram nas Neoeuropas.”.

É no nono capítulo que essa abordagem é realizada com maior cautela. Crosby dá grande ênfase às ações modificadoras causadas pelos agentes patógenes, excluindo, assim, de maneira sutil, a responsabilidade europeia pela ação e devastação nas colônias ultramarinas.

Em suas palavras, “Foram os seus germes os principais responsáveis pela devastação dos indígenas e pela abertura das Neoeuropas à dominação demográfica”. (2011, p. 205). De certa forma, cabe pensar que quando a ação das enfermidades fora percebida pelos europeus, a mesma passou a ser utilizada enquanto arma no processo de expansão.

Neste caso, excluir a intenção e dar ênfase somente à biota, significa realizar uma anistia no processo de extermínio e isentar os conquistadores das chacinas realizadas.

No décimo capítulo, Nova Zelândia, o autor preocupa-se em destacar o caráter distinto da formação dessa Neoeuropa. Baseando-se em trabalhos de botânica e analisando o processo de colonização da Nova Zelândia, Crosby aprofunda-se na compreensão das mudanças proporcionadas pela biota portátil. Este capítulo emerge enquanto exemplo mais específico, para dar legitimação à análise proposta pelo autor em ressaltar as interferências europeias nos outros continentes.

É nos capítulos décimo primeiro, Explicações e décimo segun do, Conclusão, que Alfred Crosby procura fechar sua análise, mas sem esgotar as possibilidades de refl exão. Cabe destacar que, ainda no capítulo Explicações, o autor retoma a explicação daquilo que seria a biota portátil tornando, de certa forma, algo maçante em seu texto.

Por outro lado, este balanço final vem enquanto auxílio aos leitores que não se debruçam pelos caminhos de toda a obra. Mais uma vez, Crosby vai insistir no discurso que naturaliza o processo de invasão e extermínio causado pela expansão europeia. Um de seus argumentos concentra-se ao fato de que, por volta do século XV, as modificações e devastações de espécies vivas já faziam parte do processo de evolução destes continentes. Em suas palavras: “Em 1500, o ecossistema dos pampas estava arrasado, desgastado, incompleto – como um brinquedo nas mãos de um colosso pouco cuidadoso.” (CROSBY, 2011, p. 290).

Alfred Crosby estimula a olhar para os movimentos migra tórios, sejam eles no Neolítico ou no século XV, enquanto duas levas de invasores da mesma espécie. Para ele, os primeiros atuaram como tropa de choque abrindo caminho para a segunda leva, a qual, numericamente maior, estava equipada com economias mais complexas.

(CROSBY, 2011, p. 291).

De certa forma, O imperialismo ecológico, de Alfred Crosby, possibilita lançar olhares para outros elementos que também são significativos na compreensão dos processos de expansão e colonização difundidos pelo globo. Porém, faz-se necessário, ao longo do texto, estar atento para não naturalizar estas ações humanas, as quais, no discurso do autor, ganham uma imparcialidade perante os agentes naturais. Olhar para as modificações impulsionadas pelas navegações significa não perder de vista os agentes políticos, econômicos e sociais presentes neste processo.

É significativo pensar no caráter da biota portátil e sua capacidade de modificação dos espaços. Caminhar pelas linhas do Imperialismo Ecológico, de Crosby, permite estar atento a esses agentes.

Entretanto, é de suma importância não cair nas amarras e deixar de lado a bagagem cultural que se desloca com esses movimentos migra tórios, levando consigo, transformações e adaptações. Olhar para ambos os aspectos torna a compreensão das ações humanas mais esclarecedoras e possibilita não perder de vista as ações e decisões humanas, imbricadas em diferentes conjunturas e temporalidades.

Notas

1 Nascido em Boston, em 1931, o autor estadunidense atuou em diversas universidades americanas e se estabeleceu na Universidade do Texas, em Austin, onde aposentou-se, no ano de 1999. Suas pesquisas ao longo de sua carreira contemplaram principalmente questões voltadas para a história biológica, assumindo como maior preocupação as ações e interferências causadas pelos processos evolutivos de diferentes espécies de seres vivos.

2 Conjunto de animais, plantas e doenças que navegaram com os europeus efetivando projetos de colonização e dominação de novas terras.

3 Massa única de terra a qual, após sua divisão, deu origem aos continentes. Este movimento iniciou-se por volta de 200 milhões de anos atrás.

4 Para Crosby, essa revolução ocorreu quando os humanos passaram a triturar e polir. Mais tarde vem o surgimento da agricultura e a domesticação dos animais, a qual vai iniciar primeiramente no Velho Mundo (Europa) e mais tarde nas Neoeuropas. (2011, p. 29).

Referências

CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900.

Tradução de José Augusto Ribeiro, Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia da Letras, 2011.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Cultura y sociedad. 1780-1950. De Colerige a Orwell, Buenos Aires: Nueva Visión, 2001.

Rudy Nick Vencatto – Docente do Curso de História da Universidade Paranaense – UNIPAR e doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: rudy_nick@hotmail.com.

Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824 – MOTTA (AN)

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824. São Paulo: Ed. Alameda, 2009. 288p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, p. 403-409, dez. 2012.

O livro Direito à terra no Brasil aborda as concepções de juristas e memorialistas portugueses sobre a lei de sesmarias e as tensões e conflitos que tiveram lugar na estrutura fundiária da América portuguesa entre 1795-1824.

Essa lei foi promulgada em Portugal no século XIV em um momento de crise econômica e teve o intuito de obrigar o beneficiado com a concessão régia a cultivar a terra recebida.

Como escreveu a autora Márcia Motta, o Brasil foi uma das poucas possessões portuguesas que aplicou a lei de sesmarias, mas com um objetivo diferente do original português. Ou seja, nas terras do Brasil o alvo principal foi o de incentivar a ocupação e nobilitar os colonos que prestavam serviços ao rei.

Para esses colonos, contudo e conforme concluiu a autora, a solicitação de uma sesmaria tornou-se um canal de legitimação de seus status de proprietário diante de um ambiente fundiário indefi– nido e que muitas vezes os obrigava a socorrerem-se nos tribunais régios para defender seus direitos.

Esse livro que trata de uma das questões ainda hoje contundentes na história do Brasil, está dividido em quatro partes distribuídas em pouco mais de 280 páginas. O fio condutor do argumento é a lei de sesmarias e seu tratamento diferenciado em duas conjunturas do intervalo 1795-1824: a do reinado de D. Maria I, marcado pela defesa da lei e o período das cortes constituintes em Lisboa, quando a lei foi condenada e extinta em defesa do direito pleno de propriedade.

Nessas duas conjunturas, na América portuguesa, sesmarias continuaram sendo solicitadas pelos colonos. Do ponto de vista da Coroa, a concessão das sesmarias era uma maneira de garantir a ocupação de territórios situados em área de confl ito e disputa, como nas regiões de fronteira a oeste e sul do Brasil.

Na primeira parte do livro a autora discute o discurso ilustrado de memorialistas e jurisconsultos que defendiam o uso produtivo da terra diante da crise agrária vivida pela sociedade portuguesa no século XVIII. A autora situa essa problematização na crise dos valores do antigo regime português e na emergência de uma consciência individual própria do liberalismo.

Assim, as idéias fisiocráticas de Bernardo de Carvalho Lemos e Domingos Vandelli foram favoráveis à privatização das terras de uso comum e à sua ocupação produtiva e individual, conforme previsto na lei de sesmarias. A autora conclui que os fisiocratas acreditavam que ocorreria a recuperação da economia portuguesa através da aplicação de medidas como essas.

Márcia Motta dá a entender que o avanço do individualismo agrário fez parte do processo maior de reordenamento jurídico da sociedade portuguesa no século XVIII. Nesse caso, a Lei da Boa Razão, promulgada em 1769, determinou que o direito pátrio deveria prevalecer sobre o direito romano. Diante disso, a modernização do direito português em relação à questão fundiária ocorreu pela via da conservação do direito antigo. Uma modernização conser vadora, que consagrou a posse imemorial.

Neste ponto há a explícita inspiração nas diretrizes teóricas de Costumes em comum, do historiador inglês E. P. Thompson. Este mostrou que o argumento da posse comum e imemorial foi usado inclusive em partes da Inglaterra do século XVII pelos ocupantes de terras que enfrentavam o avanço do conceito de propriedade individual.

Do discurso de jurisconsultos e memorialistas a autora prossegue, na parte 2, pelo caminho da legislação régia e pela ação dos homens públicos, guiando-se pelo alvará de 1795 e pelas percepções dos irmãos D. Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarino (1796-1801) e Francisco Maurício de Souza Coutinho, governador da capitania do Pará.

O alvará de 1795, revogado um ano depois, surgiu na esteira da reforma do direito português e do avanço das idéias racionais da ilustração que infl uenciaram o reordenamento das relações entre a metrópole portuguesa e sua principal colônia no final do século XVIII: o Brasil.

O intuito do alvará era o de regularizar a concessão de sesmarias, reafirmando seus princípios de ocupação e uso produtivo. Além disto, seu intuito era também o de normatizar o registro das terras para que fossem evitados conflitos que prejudicassem a estabilidade da governabilidade da colônia e do Império. Os irmãos Coutinho entendiam que a consagração do Império ocorreria pela ocupação estável e produtiva da terra. Francisco Coutinho chegou, inclusive, a redigir um minucioso texto sobre o alvará de 1795.

A autora mostra como este governador tinha uma posição mais reticente em relação à Coroa. Ele criticou a tradicional concessão de áreas extensas e defendeu a necessidade de um conhecimento mais racional das áreas a serem demarcadas. Para tanto sugeriu a intervenção de cartógrafos, astrônomos e geômetras. As dificuldades que os irmãos Coutinho enfrentaram para concretizar suas percepções na colônia mostram os limites do poder na administração imperial.

Na terceira parte da obra, o leitor acompanha as metamorfoses da sesmaria no ambiente da colônia. Essas mudanças aconteceram tanto no campo semântico como nos usos e concepções dos próprios colonos, mas em de acordo com as imposições da conjuntura da crise do Império e da independência.

Enquanto a Coroa desejava controlar a ocupação territorial na colônia, por questões políticas e como resposta ao espírito racional cientificista do período, os colonos solicitavam sesmarias diretamente ao rei ou ao Conselho Ultramarino.

As intenções destes, contudo, tornavam-se cada vez mais especulativas, tendo em vista a necessidade de assegurar o direito de domínio e transmissão de seu patrimônio. Ou seja, esses colonos tendiam progressivamente a desejar a legitimação de uma condição de proprietário diante do costume e da existência de uma grande maioria de ocupantes de terra.

De acordo com conclusões da autora, o título de sesmaria, no final do século XVIII já não tinha o valor nobilitador de outros tempos. Porém, permitia ao colono passar da incerta e potencialmente tensa situação de ocupante, para a de legítimo proprietário ou senhor de terra. Mesmo o sesmeiro estava sujeito a ver suas terras invadidas ou ocupadas. Mas o título assegurava-lhe o direito de futuras reivindicações, munindo-o de um registro que o habilitava a buscar os tribunais.

A quarta e última parte do livro retoma a discussão dos ilustrados portugueses sobre as sesmarias, mas na conjuntura das cortes constituintes e independência do Brasil. Naquele momento a defesa da propriedade individual da terra envolveu a condenação do sistema de sesmarias e principalmente do seu princípio de obrigatoriedade de cultivo, que impunha-lhe condições de acesso e uso.

Ainda assim, nesse período, a Coroa procurou firmar sua territorialidade, promulgando decretos e alvarás que garantiam a propriedade, confirmavam as sesmarias, regulamentavam demarcações e instituíam funcionários específicos para tratar do assunto, como os juízes de sesmarias, que deveriam ser indicados pelas câmaras.

A sesmaria continuou sendo invocada por alguns sesmeiros, mesmo com a sua extinção oficial em 1822. Nas considerações finais a autora cita um caso curioso, de um fazendeiro, grileiro de grande extensão de terras no Pará, que recorreu a esse argumento em 2005, para inventar o que ela chama de “ponto zero” na ocupação daquela área.

Márcia Motta já é referência no tema questão fundiária no Brasil pelo menos desde 1998, quando publicou Nas fronteiras do poder.1. Em Direito à terra no Brasil, resultado de suas pesquisas de pós-doutorado realizadas em Lisboa em 2003, a autora inova em relação ao seu trabalho anterior por recuar ao século XVIII e recuperar no reino o sentido das sesmarias na governabilidade do Império e o debate de memorialistas e juristas sobre essa lei em duas conjunturas distintas. Na historiografia portuguesa poucos são os trabalhos sobre sesmarias, destacando-se o de Virginia Rau2.

Na medida em que seu foco é a lei de sesmarias, domínio real e de autoridades régias, como a do governador, encarregado de enviar as solicitações para o rei ou para o Conselho Ultramarino, o problema da terra nas cidades da América portuguesa, um dos mais difíceis na história fundiária do Brasil, ainda permanece sem respostas3.

A autora não deixa de mencionar o papel consultivo da instituição municipal no momento da concessão de uma sesmaria, sugerindo uma possibilidade de reflexão e pesquisa: terras e câmaras na América portuguesa.

Nesse caso, a boa lembrança é o historiador inglês Charles Boxer (286), que chamava atenção para a estabilidade assegurada pelas câmaras, mais do que governadores, bispos e magistrados transitórios, o que significa que aquelas instituições, embora situadas na escala inferior da administração eram peças chave para a estabilidade da colonização e do Império.

Um dos pontos altos de sua problematização é a que se refere ao poder régio como ação que não se limitava à aplicação racional da lei de sesmarias. Em certas circunstâncias a própria Coroa legalizava a posse, dando-lhe status de legítima ocupação territorial. O alvará de 9 de julho de 1767 é uma boa demonstração disso, pois ele definia que ninguém poderia ser tirado de sua posse sem antes ser ouvido (p. 72).

Compreender como o poder funcionava no Império tem sido um dos principais desafios enfrentados pela historiografia portuguesa e estrangeira, e ao concluir sobre o movimento pendular da Coroa, que ora reprimia, ora era permissiva com as ocupações irregulares (p.

261) a autora fornece subsídios para que essa questão seja pensada.

Ao mostrar os zelos das autoridades régias em torno da normatização do acesso à terra na colônia, especialmente a partir do alvará de 1795, a autora fornece argumentos também para que se possa discutir os limites de ação dos vários níveis de autoridade no Império Português.

Essa ação ponderada certamente garantiu um nível mínimo necessário de estabilidade política e longevidade ao Império Português.

Os governadores concediam as sesmarias, mas as câmaras da América portuguesa eram prévia e devidamente ouvidas, para que fossem respeitados os limites de suas áreas de ação e distritos. Com isso os confl itos próprios da duplicação de datas de uma mesma terra poderiam ser evitados.

É certo, portanto e concordando com a autora, que a sesma ria era um instrumento da colonização e de poder (p. 123), provo cador de ódios, desavenças e rancores entre sesmeiros e entre estes e a Coroa. Mas também foi a oportunidade para as câmaras periodicamente se afirmarem como instância legítima de poder.

Posteriormente, na década de 1820, a Coroa criou a função de juiz de sesmaria. Os nomes dos aspirantes a tal cargo deveriam ser indicados pela câmara. Assim, a política de terras no Império e no contexto da independência, além dos confl itos, proporcionava também um mundo de oportunidades de afirmação de poder e legitimidade a instituições imemoriais e de forte tradição portuguesa, como os conselhos municipais.

Na parte 1 o título “As sesmarias: origem e consolidação de um costume”, não parece adequado. No texto, costume se refere aos terrenos baldios ou áreas de pasto comum, condenados por jurisconsultos e memorialistas. Na forma como está a expressão, dá a entender ao leitor que se refere à sesmaria, quando originalmente esta é uma instituição legal. Talvez ficasse mais preciso um título que expressasse a idéia de sesmaria e seus conflitos com o uso costumeiro da terra.

O conteúdo desta primeira parte contribui sobremaneira para o pesquisador brasileiro ter a percepção do quanto o discurso ilustrado da decadência da agricultura era aplicado não somente no Brasil, mas também no Reino.

Na narrativa do problema das sesmarias no Império português o capítulo 4 quebra a continuidade do texto. Das discussões de memorialistas e juristas portugueses no reino, a autora passa para as práticas e concepções dos colonos em torno dessa concessão régia, para no quarto capítulo retornar, em grande medida, aos ilustrados portugueses na conjuntura das cortes constituintes de 1821. Este recurso pode ter sido uma maneira de se ajustar ao recorte cronológico que propôs analisar, ou seja, o período 1795-1824.

Na medida em que o tema do direito à terra foi tratado no âmbito do Império português, o título do livro poderia ter sido mais preciso, pois a abordagem da autora não se restringiu ao território do Brasil.

Direito à Terra no Brasil é um livro recomendável para todo aquele que se interessa pela história fundiária do Brasil. Com ele, Márcia Motta, professora na Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da mesma instituição, mostra que esse incômodo problema político-social, na realidade, tem raízes mais profundas e remonta ao lado português da nossa formação.

Notas

1 MOTTA, Márcia M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. RJ, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.

2 RAU, Virgínia. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa, Editorial Presença, 1982.

3 GLEZER, Raquel. Chão de terra. SP, Ed. Alameda, 2007; RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a câmara municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, FFLC-USP, Dissertação de Mestrado, 2010; MOURA, Denise A. S. Disputas por chãos de terra: expansão mercantil e seu impacto sobre a estrutura fundiária na cidade de São Paulo (1765-1822). Revista de História. USP, n. 163, 2º. Semestre de 2010, p. 53-80.

Denise Aparecida Soares de MouraProfessora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. E-mail: dmsoa1@yahoo.com.br.

Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória – BAUER (AN)

BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012, 330p. Resenha de: PADRÓS, Enrique Serra. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 479-484, jul. 2012.

O livro de Caroline Silveira Bauer, que serviu como mote para esta resenha, constitui inestimá vel contribuição sobre uma temática pendente na sociedade brasi leira, o embate entre Políticas de Memória e Políticas de Esqueci mento relacionado ao passado ditatorial, dentro de uma perspectiva histórica. A partir de um olhar simultâneo sobre as ditaduras civil-militares de segurança nacional do Brasil e da Argentina, o estudo resgata, mediante análise rigorosa, a profundidade, a complexidade e a precisão de dinâmicas e conjunturas particulares e balizadoras de um exercício comparativo que permite destacar e compreender os pontos de encontro e desencontro das experiências concretas.

Resultado de profunda pesquisa documental sobre os arquivos produzidos pelos regimes repressivos, do mergulho nas legislações pertinentes e de uma apurada avaliação dos mecanismos e do funcionamento da violência estatal, em cada um dos países, a obra centra o foco na questão dos desaparecimentos políticos e seu entorno específico. Entretanto, isso é feito sem perder de vista o funcionamento de um terrorismo de Estado que envolve a sociedade como um todo, através de tantos outros elementos coercitivos, explícitos ou não, e do delineamento dos círculos concêntricos e vasos capilares irradiadores de práticas cotidianas de anestesiamento e desmobilização. Assim, é muito elucidativa a menção feita a um personagem criado pelo psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky, o Senhor Galindez, um funcionário da ditadura, quando este diz: “Para cada uno que tocamos, mil paralizados de miedo. Nosotros actuamos por irradiación”. É a explicitação do terror na sua forma mais abrangente, envolvente, massiva. Portanto, o medo, nas suas diversas formas de manifestação, surge como sensação fantasmagórica diluída, introjetada, asfixiante, pairando entre os indivíduos, contaminando suas relações e definindo estratégias de sobrevivência. Tal medo é um fator fundamental de dominação no contexto das ditaduras; sua percepção e lembrança, durante os processos de transição, constitui fator essencial na lógica de disputas entre memória e desmemória dos fatos acontecidos, bem como das responsabilidades decorrentes.

A obra está estruturada em três capítulos: 1) A prática do desaparecimento nas estratégias de implantação do terror; 2) A transição política e os desaparecimentos; e 3) Políticas de Memória e Esquecimento. Há um núcleo comum de métodos repressivos em ambos países, mas diferentes na aplicação. Essa diferença é motivada por conjunturas e urgências diferentes, que, por sua vez, são responsáveis por graus diferenciados de extensão e intensidade. Porém, na sua essência, manifestam-se não só nos países comparados, mas em todo o Cone Sul.

O texto não foge das questões cruciais. Reconhece a existência de diferenças significativas entre Brasil e Argentina, entre as quais uma presença mais constitucional e legal, no caso do Brasil, e mais clandestina e de extermínio, no caso argentino. Contudo, não refuga diante dos argumentos que resultam da comparação direta baseada nos números do extermínio físico que servem de base das justificativas de toda relativização da violência utilizada pela ditadura brasileira. Efetivamente, a essa argumentação Bauer contrapõe que é de maior relevância a compreensão do paralelismo na montagem das estratégias repressivas do que comparar número de opositores mortos e desaparecidos. A política de desaparecimentos constitui uma dessas estratégias que, em última instância, mantém toda a sociedade como potencial vítima do terrorismo de Estado (p. 33).

A problemática que envolve o desaparecimento, como expressão de um complexo e profundo processo repressivo, é crucial na pesquisa de Bauer. É assim que a autora mergulha nesse processo, perscrutando uma dinâmica de etapas sequenciadas ou encadeadas, e, principalmente, o rol dos mecanismos constitutivos – sequestro, tortura, incomunicação, censura, hostilização etc. –, os quais funcionam como componentes desse sistema, entrando nas arestas do seu encaixe e produzindo consequências diversas sobre a sociedade, sempre impactantes. Tudo isso faz parte do que é identificado como “Estratégia da implantação do terror”, que gera consequências difíceis de integrar em uma única dimensão explicativa, por isso a ideia de fragmentos “incoláveis” (p. 103-104).

Portanto, a prática de desaparecimento, algo inédito na região enquanto política de Estado, complementa-se com os silêncios, os diversionismos, as mentiras oficiais oferecidas aos familiares das vítimas; ou seja, não há pistas, nem respostas, nem informações. Se por um lado tal ação atinge diretamente aqueles que buscam alguém, por outro, acaba alimentando uma situação não desejada, qual seja a possibilidade de ser compreendida como crime contínuo e, a partir dessa compreensão, abrir uma brecha na estrutura de impunidade.

No ápice da eficiência dessa engrenagem, o desaparecimento significa, literalmente, “a morte da própria morte” (p. 30). É contra esse objetivo procurado veementemente pelas ditaduras de segurança nacional e aqueles que, tendo capacidade de decisão, omitiram-se em relação a esse passado imediato, que vão se manifestando, de forma difusa, os esforços reivindicativos que apontam embrionariamente à elaboração de políticas de memória; no início, isso pode ocorrer à margem da legalidade, mediante pequenas ações de resistência individuais ou de iniciativas desencadeadas por organizações de direitos humanos que surgem ou se consolidam nesse embate.

Particularmente, o trabalho de Bauer incide, de maneira especial – amparada nos marcos do debate sobre o tempo presente –, no que é considerado ponto de infl exão e de superação das tendências de consolidação do esquecimento e da impunidade nos países em questão, ou seja, a ruptura derivada da irrupção de projetos políticos que, de forma díspar, recolocaram o resgate do passado imediato e o debate da consigna “Memória, Verdade e Justiça”, no início dos anos 2000.

A erudição do texto está garantida pela qualidade da proposta da autora e do diálogo que ela estabelece com a produção historiográfica especializada nos variados aspectos que encaminham o seu percurso de pesquisa e análise. Assim, desfilam no roteiro das questões e refl exões que se sucedem no transcorrer da narrativa autores como Irene Cardozo, Ludmila Catela, Horacio Riquelme, Dominique Lacapra, Marie-Monique Robin, Pierre Abramovici, José Martins Filho, Juan Corradi, Ricard Vinyes, Hugo Vezzetti e Emilio Crenzel, entre tantos outros.

Entre as diversas conclusões apresentadas no volumoso e aprofundado estudo, sobressaem-se os resultados recolhidos nos últimos anos, em experiências tão diferentes como a brasileira e a argentina. Eles permitem confirmar que, de certa forma, contextos marcados por silêncio, esquecimento induzido e impunidade, ou seja, marcados pela ausência da atuação da Justiça, também são contextos de ausência da Verdade (como sinônimo de informação, esclarecimentos e respostas devidas). Em contrapartida, quando ocorrem iniciativas concretas que possibilitam encarar o passado traumático, o resgate da Memória e da Verdade torna-se possível, consequente e, em parte, até reparador. Ainda, essas iniciativas podem ser incorporadas ao presente cidadão, mantendo a expectativa da atuação da Justiça, em um futuro indefinido, apostando em que a compreensão dos seus efeitos sociais depuradores do entulho autoritário possa constituir um componente de mobilização rumo a uma sociedade mais ética e democrática.

A importância da obra reside em mostrar a longa continuidade projetada como objetivo pelas ditaduras de segurança nacional, a inconclusão da resolução dos seus crimes, objeto de negociação que garantiu a imunidade perpétua da impunidade para aqueles que deram e executaram tais ordens. Sabe-se que a recuperação do cenário democrático trouxe duas grandes frustrações a curto prazo: a primeira, o fato de que os problemas socioeconômicos não se resolveram com o fim da ditadura; a segunda, a ausência de Justiça combinada com os generosos e cúmplices silêncios e esquecimentos disseminados desde o estado pelo conjunto da sociedade. Neste ponto, Bauer utiliza as palavras de Zaverucha (p. 199-200), para não deixar dúvidas a respeito do sentido real do fim das ditaduras: “Os militares deixaram de ser governo, mas continuaram no poder”, o que lhes permitiu se justificarem como vitoriosos. E mesmo na Argentina, as ações golpistas dos “cara-pintadas” mostraram que havia limites e incertos cenários diante da relação de forças existente.

O rastro que a obra faz do roteiro do embate entre as medidas de resgate e de esquecimento é outro dos seus pontos altos.

Cuidadosa e sistematicamente, elabora a cronologia contextualizada dos avanços, recuos, retrocessos e novos avanços. A análise das leis de anestesiamento, esquecimento ou impunidade, como queira-se defini-las, é realizada com critério e riqueza de detalhes, abrindo o ângulo do foco para contemplar e avaliar as posições e os fatores em jogo, sem perder de vista a lógica cambiável do posicionamento desde o Estado, bem como a pressão incansável das organizações de direitos humanos, especialmente as que representam os familiares de mortos e desaparecidos e dos sobreviventes. Nessa perspectiva, a autora reconhece como uma espécie de paradigma universal, na investigação sobre as políticas de memória e da aplicação dos elementos componentes da justiça de transição, o que reconhece como “Efeito K” na área de direitos humanos, sintetizado pela ordem dada pelo presidente Néstor Kirchner de retirar quadros de repressores em ambientes públicos, inclusive militares (p. 310). Cabe um último reconhecimento, no caso brasileiro, o estudo do apelo à justiça internacional, por parte dos familiares das vítimas – amparados em organismos de direitos humanos e defensores históricos dos mesmos –, como possibilidade de responsabilizar um Estado vitimário que é protegido e poupado pelos argumentos jurídicos elencados pelo Supremo Tribunal Federal. Tal situação reveste-se da maior relevância, pois, ao se constituir como fato inconcluso do tempo presente de um passado traumático, ainda aberto, seus futuros desdobramentos deverão definir um caminho para resolver situações de uma história sensível quando bloqueados internamente por interpretações e medidas paradoxalmente aceitas pelo Estado democrático.

A contribuição da obra de Carolina Bauer reveste-se da maior relevância, considerando a necessidade e a ousadia de colocar, lado a lado, duas experiências que, embora mantendo especificidades concretas, possuem evidentes aproximações, paralelismos, semelhanças em certos aspectos e conexões reconhecidas. Deve-se destacar, finalmente, que colocar o resgate da história recente sob o crivo do debate sobre as políticas de memória é uma atitude metodológica que merece ser salientada, já que sinaliza para a história em si dessas experiências traumáticas, e para como seus desdobramentos foram projetados no tempo e na sociedade, pois, tal qual afirma Mariana Caviglia: “Cuando el terror se vuelve política de Estado, como en la dictadura, las consecuencias de esa dominación no culminan al tiempo que ésta se retira del poder; se llevan en el cuerpo y se transmiten de generación en generación […]” (p. 113). Essa é uma realidade que está longe de ser esgotada.

É na procura de dar inteligibilidade a este processo tão complexo e de recuperar significados remarcados conjunturalmente que o estudo comparativo de Caroline Bauer se mostra denso e qualifi– cado nos aportes consequentes que traz ao debate historiográfico.

A combinação dos efeitos produzidos diante da abertura de novos caminhos que estão sendo trilhados pelo Brasil – finalmente com uma política de Estado sobre estas questões (sem entrar no mérito dos objetivos ou das intenções da mesma) –, com o produto social, político e ético que resulta da consolidação da atuação incisiva da justiça na Argentina, permite selecionar matéria-prima para aprofundamento de muitas das refl exões que pioneiramente constituem este Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória.

Sem dúvida, trata-se de uma leitura imprescindível e de extrema valia para quem pretende se aprofundar nestas instigantes temáticas vinculadas ao passado recente e traumático do Cone Sul.

Referências

CAVIGLIA, Mariana. Dictadura, vida cotidiana y clases medias: una sociedad fracturada. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. p. 25-26.

ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: controle civil ou tutela militar? São Paulo: Ática, 1994. p. 11.

Enrique Serra PadrósDepartamento de História e Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. E-mail: lola@adufrgs.ufrgs.br.

Teoria da História (v. 4) Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história | José D’Assunção Barros

BARROS, José d’Assunção. Teoria da História, vol. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2011, 447p. Resenha de: MARQUES, Juliana Bastos. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 485-489, jul. 2012.

Paul McCartney, reconhecido como um dos compositores populares mais prolíficos e talentosos do mundo contemporâneo, costuma citar com frequência que nunca quis aprender teoria musical, para que o conhecimento formal não o prejudicasse ao compor.

Essa “ingenuidade teórica” também constitui mais em benefício do que em um eventual empecilho para o leitor na compreensão do texto do professor José d’Assunção Barros, em sua ousada proposta de empregar a teoria musical para construir uma metáfora de compreensão da historiografia.

O volume aqui resenhado faz parte de uma série dedicada à apresentação e discussão de temas fundamentais sobre Teoria da História, sendo precedido por um primeiro volume que trata de conceitos mais abstratos e gerais, além de dois outros com uma análise da história da historiografia a partir do seu estabelecimento como disciplina profissional no século XIX. Ainda não publicados, mas já anunciados, seguem outros dois volumes sobre as tendências mais recentes formuladas no séc. XX. Nesse sentido, o volume IV mostra-se como um interlúdio (a alusão ao termo é intencional) dentro da proposta da coleção, retomando a apresentação de alguns autores já analisados em outros volumes (Ranke, Marx, Benjamin) e introduzindo capítulos relativos ao pensamento de Droysen, Weber, Ricoeur e Koselleck. A proposta é utilizar a metáfora do acorde musical para classificar e explicar as infl uências intelectuais durante a carreira acadêmica dos autores citados, o que se apresenta também como uma proposta geral para eventuais estudos seguintes com outros autores que pensam o fazer historiográfico (como se vê, não necessariamente historiadores). Coloca-se para avaliação, portanto, uma questão primordial: se e como a metáfora funciona e o quanto é útil para o que se propõe.

O autor explica, no primeiro capítulo, de forma simples, os conceitos que utiliza e o desconhecimento prévio de teoria musical por parte do leitor não deverá trazer grandes dilemas para a compreensão da metáfora. Logo de início, explica-se o que é um acorde musical: “[…] um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (p. 15). Assim, classificar um autor dentro da proposta significa traçar essas “notas” que comporiam o acorde, que podem ser tanto correntes teóricas específicas que formariam sua identidade teórica e/ou historiográfica (por exemplo, a Hermenêutica em Ricoeur), como também infl uências pessoais (a religiosidade em Droysen) ou técnicas metodológicas (o “comparativismo” em Max Weber). O único autor dentre os analisados que parece se encaixar mais diretamente na compilação de um acorde que o defina é Ranke, que Barros classifica como “monódico”, por causa da constância das infl uências nele detectáveis durante toda a sua vida – assim, o acorde de Ranke seria constituído pelas “notas” Historicismo ou crítica documental como “nota fundamental”, estilo, Fichte, religiosidade e nacionalismo (o idealismo hegeliano apresentar-se-ia como uma “antinota”, termo cuja correspondência musical me escapa). Todos os outros autores, em maior ou menor grau, têm complexidades classificatórias tais que parece impossível construir apenas um único acorde que os abarque, dilema que Barros resolve com o fato de que diferentes acordes consonantes entre si podem ser construídos no tempo de acordo com as mudanças inerentes às trajetórias intelectuais analisadas.

O texto não procura uma rigidez classificatória, como pode parecer à primeira vista, mas o resultado disso nos diferentes capítulos é irregular. As análises de Ricoeur e Koselleck, talvez não por coincidência os autores mais recentes, beneficiam-se de uma atenção maior às ideias originais dos próprios autores, em especial no segundo caso. Dado que o texto de Barros é deliberadamente claro e fl uente (como ele anuncia no primeiro livro), tais capítulos servem como introduções bastante úteis a questões tais como o embate hermenêutico entre a subjetividade e a objetividade em Ricoeur, ou as refl exões sobre o tempo e o progresso em Koselleck – por vezes, o texto lembra claramente o formato de uma aula.

Para o eventual historiador que também conheça teoria musical, no entanto, a metáfora parece incompleta, às vezes afl itiva no que lhe falta. Um acorde musical jamais existe sozinho, sendo apenas a expressão mais sucinta da harmonia determinada dentro de uma tonalidade (dó maior, mi bemol menor, assim por diante), quando não ao menos em relação a uma pauta e clave que o localize sonoramente. O acorde de, digamos, fá maior, é definido primariamente como o conjunto da tônica (nota principal, o próprio fá maior) e as notas que soam harmonicamente mais próximas a ela dentro da série harmônica, no caso a terceira e a quinta a partir da tônica dentro da escala, portanto lá e dó. A rigor, qualquer outra nota poderá fazer parte do acorde dentro da tonalidade de fá maior, considerada sua relação harmônica com a nota principal. Sendo assim, é possível notar que a lógica fundamental de um acorde é a própria relação entre as notas (os intervalos entre a tônica e quaisquer outras notas que o acorde forme), determinada pela tonalidade como um conjunto – isso sem mencionar outras formas musicais que não o sistema tonal, também possíveis. Ora, essa complexidade está ausente da metáfora de Barros, que usa o acorde apenas como um empilhamento de “notas” em cima de uma nota fundamental (nunca chamada de tônica no texto), sem relacioná-las entre si e à suposta tonalidade que as constitui.

Por exemplo, se supomos que a tônica de Max Weber seja o Historicismo (p. 131) – aliás, por que a tônica de um autor não pode ser o próprio autor? Ou o autor seria a tonalidade como um todo? –, qual seria a relação (tecnicamente falando, o “intervalo”) da tônica com as “notas” filosofia neokantiana (sua “nota de topo”, termo que também me escapa: seria uma sétima maior ou simplesmente a nota mais aguda?), ou com o já citado “comparativismo”? Uma forte quinta justa ou uma sutil sexta maior? Para a teoria musical, essas diferenças são absolutamente determinantes quando se constrói um acorde. Como a “tríade temática fundamental” da política, economia e religiosidade de Weber poderiam se constituir em uma só “nota” (p. 140)? E os “harmônicos ocultos” de Marx e Nietzsche, como se relacionam com o acorde? Não seria o caso de se estabelecer uma sequência harmônica dos acordes de autores em constante mudança como Ricoeur ou Foucault, como em um coral de Bach, ou também uma eventual melodia das obras do autor também seria expressiva dentro da metáfora? A própria ideia de melodia parece quase desimportante dentro do conjunto da metáfora, até que surge, no capítulo sobre Koselleck, quando Barros propõe que o “[…] devir histórico (ou a sensibilidade humana diante desse devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, outras em relação de divergência” (p. 294). A melodia significaria então o movimento histórico humano no meio de onde se tocam os acordes de cada pensador? É uma pena que Barros não desenvolva essa ideia em todo o texto, pois ela me parece rica em possibilidades, bastante coerente e de uma poesia encantadora.

Acredito que o autor esteja plenamente consciente dessas questões, dado que também tem sólida formação musical. Minha impressão sobre qual seria o motivo dessas relações fundamentais não serem explicitadas na metáfora é que requereriam um trabalho exponencialmente mais complexo e demandariam um conhecimento musical bem mais avançado do leitor para compreender todas as relações harmônicas realmente embutidas na metáfora do acorde musical. Nesse sentido, entendo a proposta de Barros até mesmo como um convite, ainda que não explicitado, para que essas nuan ces musicais sejam futuramente analisadas, por historiadores ou por músicos. Embora a princípio isso pareça um esforço de classificação direto demais, a teoria musical comporta, nos dias de hoje, uma liberdade muito maior de relações sonoras do que a harmonia tradicional de Bach, assim como é evidente que não se pode classificar as influências e a trajetória intelectual de um determinado autor dentro da história do pensamento histórico também em rígidos paradigmas ou etiquetas.

Sendo assim, o livro tem o mérito de ultrapassar em muito seu caráter didático, que em si já é bastante louvável, dada a clareza da explicação providenciada pelo autor sobre as trajetórias intelectuais dos autores analisados. Como um trabalho experimental, no entanto, é o primeiro passo de muitos a serem dados no sentido da interdisciplinaridade profunda que é sim possível entre História e Música, pois são ambas realizações eminentemente humanas que se constroem no tempo e têm historicidades ligadas a influências e a regras, transcendendo-as em busca de ordenações originais para representar o mundo.

Juliana Bastos MarquesProfessora Adjunta. UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pós-Doutorado em História pela USP (Universidade de São Paulo). Email: leirunirio@gmail.com. Endereço: Rua Dr. Júlio Otoni, 278 fundos. Bairro Santa Teresa. Rio de Janeiro/RJ. CEP 20241-400.

Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política – TAMAGNO (AN)

TAMAGNO, Liliana (Coord.). Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política. Buenos Aires: Colección Culturalia, Editorial Biblos, 2009, 206p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, p. 397-402, dez. 2011.

Hace casi diez años, Liliana Tamagno nos proveía de una obra que iba a convertirse en una referencia ineludible para los estudios antropológicos e históricos sobre los pueblos indígenas en contextos urbanos: se trataba de Nam qom hueta’a na doqshi lma’. Los tobas en la casa del hombre blanco (2001). Si aquella obra se centraba específicamente en el caso de los grupos tobas que, provenientes de la provincia del Chaco, se habían asentado en la periferia transicional entre las ciudades de Buenos Aires y La Plata (Argentina), dando por tierra a través de las refl exiones vertidas allí con muchas ideas fuertemente arraigadas en el sentido común sobre la pérdida de identidad étnica, aculturación o exclusión, construidas desde la globalización y la desigualdad en las sociedades modernas, la compilación Pueblos indígenas.

Interculturalidad, colonialidad, política – objeto de nuestra reseña – continúa a la vez que renueva esta senda investigativa. La continúa en tanto se ocupa de algunas de las más relevantes problemáticas del campo antropológico de las últimas décadas, como la migración de las minorías a las grandes ciudades, sus formas de inserción en el espacio y la vida urbana multicultural, la reproducción de procesos de identificación étnica en espacios lejanos y culturalmente no afines con el de los migrantes. Y también la renueva en tanto compila en un volumen los avances de proyectos que han conformado y conforman la línea de investigación Identidad, etnicidad, interculturalidad, desarrollada en el Laboratorio de Investigaciones en Antropología Social (LIAS), perteneciente a la Facultad de Ciencias Naturales y Museo de la Universidad Nacional de La Plata (UNLP).

En este sentido, el libro reúne diversas investigaciones: algunas desarrolladas por Liliana Tamagno en los últimos años; otras, expresan las preocupaciones, de larga data, de académicos de reconocida trayectoria en el medio argentino, como Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich, o las recientes producciones de jóvenes becarios y doctorandos. Los proyectos han tenido y tienen como objetivo analizar la diversidad y el pluralismo en contextos nacionales, incluyendo la refl exión acerca de los modos en que la estructura de clase se articula con las relaciones interétnicas e interpretando las presencias actuales de los pueblos indígenas, en contextos neocoloniales, como el resultado de complejos y polifacéticos procesos de aceptación/ rechazo de los modelos impuestos o que se pretenden imponer desde lo hegemónico; sintetizan además el resultado de la relación con distintos referentes empíricos y en diferentes momentos de trabajo etnográfico, privilegiando la observación de las dinámicas en lo que tienen de creativo, de insospechado e incluso de asombroso.

Igualmente, los artículos que conforman este volumen se fundan en analizar situaciones particulares, referidas tanto al pueblo toba, como al mapuche, al huarpe y al mbya guaraní, en las que se ponen en evidencia las tensiones entre el discurso hegemónico sobre la interculturalidad y las prácticas que devienen de políticas concretas en los campos de la educación, la salud, la cultural, el patrimonio y el turismo. Demuestran además que el carácter crítico y propositivo que anima al término “interculturalidad” desde lo conceptual, se ve limitado por intereses de clase y por obstáculos epistemológicos que limitan la posibilidad de construir modos de relacionamiento exentos de racismo. De manera que lo que surge de las diferentes colaboraciones del libro no se limita a la mera comprensión y análisis de casos particulares, sino que procuran proyectarse al debate académico actual de las ciencias sociales, en especial a la discusión acerca de la sociedad argentina, sus tensiones, sus indefiniciones, sus crisis.

El prólogo de la obra, a cargo del reconocido antropólogo Miguel Alberto Bartolomé, subraya justamente este aspecto, enmarcando las producciones particulares en una profunda y esclarecedora refl exión sobre la pluralidad y fundamentalmente sobre la propia antropología argentina y latinoamericana.

Así, algunos de sus pasajes objetivan en palabras las preocupaciones que aquejan a sus autores cuando observan la realidad junto con miles de varones, mujeres y niños que sobreviven en condiciones de pobreza, violencia, discriminación, subestimación y racismo; cuando se encuentran frente a la criminalización de la miseria, frente a expresiones y actitudes que asocian la lucha contra la inseguridad con la lucha contra los pobres, frente a la limpieza de clase, ante los muros y las barreras que se levantan cerrando espacios habitacionales o líneas de fuga de posibles delincuentes, ante el recrudecimiento de la segregación y la desigualdad, ante el modo en que el ideario hegemónico gestado en los procesos de conquista y colonización se proyecta a nuestros días en un pensamiento que continúa siendo colonial. Otros párrafos, sin embargo, ponen en evidencia que, en tanto la historia es transformación, las demandas y los reclamos, los sueños y las utopías de los pueblos indígenas – y a pesar de ello incluso las diferencias que tensan sus organizaciones – se levantan como subversiones cotidianas que cuestionan la voracidad del sistema capitalista; un orden fundado en la competencia y contradicción entre unos bienes que son escasos y unas necesidades que se suponen infinitas. Ejemplo de ello es la lucha de los pueblos indígenas en defensa del territorio y de la naturaleza oponiéndose a explotaciones mineras, madereras, agrícolas y turísticas que atentan contra la biodiversidad y contaminan los suelos, el aire y el agua en grados impensados desde la lógica de la reciprocidad y desde el concepto de “ser en el mundo” que animó las tradiciones indígenas y que aún hoy está presente en la memoria de muchos de ellos, como se ha expresado dramáticamente, desde hace bastante tiempo y en diferentes regiones de Argentina, en los enfrentamientos entre los pueblos originarios, las políticas gubernamentales y los megaproyectos económicos.

La primera parte del libro, Territorios y memorias, contiene seis artículos. La sección se abre con un trabajo de Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich intitulado Turismo y etnicidad…, donde se indaga el impacto del turismo en la población mapuche localizada en el sur del territorio argentino como continuidad de las preocupaciones que, desde 1987, condujeron a estos autores a analizar la incidencia de los denominados proyectos de gran escala en la vida de los pueblos originarios. El artículo focaliza en los procesos identitarios y las luchas indígenas en el contexto de los procesos de inversión y desinversión de capital en la región de norpatagonia y sus relaciones con las disputas territoriales de pequeños productores criollos e indígenas.

El segundo artículo, Volver a la tierra…, de Carolina Mai dana, presenta la relación entre parentesco, migración y procesos de territorialización expresada en la conformción de los denominados “barrios tobas”, repensando el espacio físico y social en la superación de las dicotomías rural/urbano y local/global para así indagar y comprender la dinámica sociocultural de la población indígena toba en tanto integrante del pueblo qom. El tercer artículo, El mestizaje como dispositivo biopolítico, de Leticia Katzser, evisa críticamente censos, historiografías y monografías etnográficas y los interpreta como textos constitutivos y constituyentes de un régimen político específico, fundado en declarar la “extinción” del pueblo huarpe, una refl exión crítica que se proyecta a su vez al concepto contemporáneo de “indios emergentes”.

En el cuarto trabajo de esta sección, Las luchas por el territorio…, a cargo de Ana Cristina Ottenheimer, Bernarda Zubrzycki, Stella Maris García y Liliana Tamagno, se discute la tensión entre la población mbya guaraní del Cuña Pirú, localidad ubicada en la provincia de Misiones (Argentina), y la Universidad Nacional de La Plata, propietaria por donación de la Empresa Celulosa Argentina desde 1991 de las tierras habitadas por estos grupos indígenas. A lo largo del trabajo, los modos en que se ha ido estableciendo la relación y las concepciones que animan el tratamiento de la cuestión por parte de las autoridades de esta Universidad son analizados a la luz de una serie de consideraciones respecto de la identidad étnica, la interculturalidad, los derechos sobre el territorio, la concepción de la propiedad privada, lo legal y lo legítimo.

El quinto trabajo, Imágenes del ‘tiempo de los antiguos’… de Alejandro Martínez, discute el rol de la fotografía en la construcción de la memoria y la historia de los pueblos indígenas del Chaco argentino.

Las fotografías permiten al autor reconstruir la cotidianeidad de los trabajadores indígenas en los ingenios azucareros, las relaciones entre los indígenas y no indígenas y las condiciones de trabajo en esos establecimientos, presentando a los pueblos originarios como sujetos activos en la historia. En diálogo con los anteriores, el último trabajo de la sección, Saberes, ética y política…, de Liliana Tamagno, estudia el reclamo y la restitución de restos humanos por parte del Museo de La Plata, revisando críticamente algunas ideas fuerza que ordenaron el surgimiento, la constitución, el desarrollo y el afianzamiento de la identidad nacional y que aún perdura en el imaginario actual de una sociedad que se pensó sin indios y una modernidad que se imaginó sin diversidades, contradicciones y/o desigualdades.

La segunda parte del libro, Salud y Educación, que reúne cuatro estudios, se inicia con un artículo de María Adelaida Colangelo, La salud infantil en contexto de diversidad sociocultural, cuyo objeto central es recuperar el concepto de “interculturalidad” en su sentido crítico. La autora describe los modos en que el cuidado de la salud de los niños tobas pone en juego diferentes articulaciones entre la medicina tradicional-popular, la medicina oficial y los aspectos terapéuticos presentes en el ritual de la iglesia pentescostal. Por su parte, en Políticas públicas y prácticas educativas, María Amalia Ibánez Caselli se detiene en el examen de situaciones referidas a propuestas de educación intercultural bilingüe referidas al pueblo toba, preguntándose si la interculturalidad se practica y planteando que el concepto de interculturalidad se impuso en Argentina más como una moda a seguir que como el producto de las refexiones críticas y las sistematizaciones que supone toda planificación cuando de políticas de Estado se trata.

El tercer artículo, La interculturalidad desde la etnografía escolar, de Mariel Cremonesi y Mariel Cappannini, se detiene en los avances legislativos que proponen una “educación intercultural”. Desde una “etnografía del aula”, las autoras refl exionan sobre los modos de abordaje de la “diversidad” y la “identidad”, señalando contradicciones entre el discurso sobre la interculturalidad y las prácticas escolares. En Investigar en la escuela, Stella Maris García y Verónica Solari Paz describen el recorrido de una investigación antropológica guiada por la cuestión de si la escuela conseguirá poner en marcha una educación intercultural para atender a una población culturalmente heterogénea y con profundas desigualdades sociales. Frente a este interrogante, las autoras proponen entonces un modelo en el que el docente mismo se asuma en su identidad, un modelo que vincule diversidad y derechos y que, reconociendo la heterogeneidad de la comunidad a la que la escuela atiende, historice los procesos socioculturales que le dieron origen.

Se trata en definitiva de un libro intrépido a la vez que necesario, en tanto se atreve a problematizar y proseguir – más allá de lo establecido y sin ningún tipo de tapujo – un debate considerable para Argentina y, en una escala más amplia, para todos los países latinoamericanos: los sentidos de la diversidad y el pluralismo en relación al diseño y aplicación de políticas gubernamentales en diferentes campos y áreas. Libro aún más importante cuando, como en esta ocasión, posee el mérito de convertir la aparente insensibilidad de la más rigurosa investigación etnográfica en sentidas y afables situaciones de diálogo con aquellos hombres que nos relatan sus historias de dolor y alegrías, contenidas en la permanente resistencia a los dispositivos de poder en diferentes momentos de la gestación, la consolidación y el desarrollo del Estado-Nación.

Horacio Miguel Hernán ZapataEscuela de Historia – Centro Interdisciplinario de Estudios Sociales (CIESo), Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario (UNR)/ Sección de Etnohistoria, Instituto de Ciencias Antropológicas (ICA), Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: horazapatajotinsky@ hotmail.com.

Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio – SILVA (AN)

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p. Resenha de: ELMIR, Cláudio Pereira. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 273-279, jul. 2011.

Em agosto de 2011, completaram-se 50 anos desde a renúncia de Jânio Quadros da presidência da República. Este ato fundador, se assim podemos designá-lo, foi responsável, em parte, por estarmos comemorando, na sequência, os 50 anos da campanha liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, pela garantia da investidura constitucional do vice-presidente João Goulart no cargo deixado vago por Quadros. A campanha, ou movimento, da legalidade é definitivamente um levante gaúcho; o último, talvez (para aqui parafrasear o subtítulo do livro de Joaquim Felizardo, publicado pela Editora da UFRGS, em 1988). Este entendimento pode levar a crer — não como corolário necessário – que o patriotismo dos sulrio- grandenses, notadamente o de suas lideranças políticas, forjou o sentido do cumprimento da lei naquela circunstância, chamando a atenção da nação brasileira para, agora sim, uma necessidade inescapável.

A “coragem quase provocativa” de Leonel Brizola fez um presidente (SILVA, 2011, p. 11).

O livro de Juremir Machado da Silva dá voz às tantas vozes que ressoam essa história desde o momento em que o evento se fez acontecimento, no já longínquo inverno do ano de 1961. O autor, “[…] historiador, doutor em sociologia, jornalista, tradutor, romancista, professor universitário, colunista do Correio do Povo e apresentador da Rádio Guaíba” (SILVA, 2011, segunda aba do livro), traz em sua narrativa a polifonia do acontecimento. Por vezes, contudo, as vozes sobrepõem-se, e ao leitor fica difícil bem discriminar a origem exata da vocalização. De resto, dificuldade que alcança, com frequência, aos historiadores mais experimentados. A estrutura da narrativa — em parte determinada pelo critério cronológico, em parte subjugada às ações de Leonel Brizola – desdobra-se conforme o sabor da evocação errática do autor, não seguindo, portanto, um roteiro expositivo anunciado ao leitor. Este navega sem norte, porém, sem grandes surpresas.

Escrito no calor das comemorações do cinquentenário – atendendo, quem sabe, a “[…] essa estranha obsessão dos homens por datas chamadas de redondas” (SILVA, 2011, p. 218) –, o livro cumpre o desígnio de se interpor, na babel da história, como mais uma voz a compor o emaranhado discursivo que acompanha as efemérides no trabalho de construção da memória.1 Os “feitos” e os “fatos” nele encontram guarida e se imiscuem caprichosamente na narrativa. Neste trabalho de trazer à tona a “muita história” que a cronologia estrita requer, não é difícil encontrar as petites histoires (por exemplo, p. 118, 150, 170 e 214) que não cabem em trabalhos convencionais produzidos por historiadores acadêmicos já faz algum tempo. Nas palavras do autor: “Jornalistas sempre adoram anedotas sobre fatos históricos e fatos históricos como anedotas” (SILVA, 2011, p. 119). Se estas pequenas histórias que se conta – e se as conta muito no livro – não puderem ser verificadas ou demonstradas suficientemente, isso não importa.

Afinal, “[…] as lendas são sempre mais rápidas do que a verdade e quase sempre mais interessantes” (SILVA, 2011, p. 169). O império da voz do povo, quem sabe, pode nos eximir de nossas responsabilidades profissionais com o tratamento ponderado das versões urdidas, eliminando, inclusive, a necessidade de citar discriminadamente, no corpo do texto, as 55 obras lidas e as 25 pessoas com as quais o autor teve a oportunidade de “[…] conversar sobre os episódios”, ao longo de “um ano de trabalho” (SILVA, 2011, p. 223).

A escolha pelo método heterodoxo de inquérito aos documentos (entrevistas, jornais, programas de rádio, textos de memória) e à bibliografia reverbera em uma narrativa de justaposição, na qual a diferenciação do lugar de origem das fontes e o escrutínio das mesmas pelo autor não são capazes de produzir um exercício interpretativo nos moldes daquele que é feito usualmente no âmbito da crítica historiográfica. Ao citar, por exemplo, as memórias produzidas pelo Marechal Machado Lopes no final dos anos 1970 (ver capítulo 21) (SILVA, 2011, p. 189-198), o autor chama a atenção para erros de grafia de um sobrenome cometidos pelo militar em seu livro (Morgen, no lugar de Moojen); (SILVA, 2011, p. 194), embora não os localize expressamente, e ao fato de que “O narrador altera ligeiramente os fatos”; “Inventa outros fatos”; “Colore o passado”; “[…] comete […] anacronismo”2 (SILVA, 2011, p. 197). Entretanto, a resenha do livro do marechal, condensado este no referido capítulo, não contrapõe diretamente aos equívocos da memória – se assim pudermos entender – os fatos (segundo estabelecidos pela historiografia) ou outras memórias, mais exatas quem sabe. Um segundo exemplo diz respeito a uma conversa havida entre o autor e o Coronel Emílio Neme. O fato de o octogenário membro da Brigada Militar não se lembrar, em certo ponto do diálogo, em que ano teria ocorrido a Legalidade (SILVA, 2011, p. 147), deveria, desde o ponto de vista de um historiador habituado ao trabalho com fontes orais, ter demandado o estabelecimento de relações complexas no ato da interpretação da fala. De outra sorte, o princípio da alusão reina sobre o princípio da demonstração (por exemplo, p. 51). E, com isso, ficamos, novamente, com a etérea conclusão circular dita e redita intermitentemente no decorrer da narrativa: “Conta-se que tudo sempre depende de quem conta” (SILVA, 2011, p. 173). Aliás, “conta-se” excessivamente no livro.

Entretanto, não há apenas uma única ocasião em que o autor sugere captar o sentimento íntimo dos agentes sociais. Quando menciona um dos discursos proferidos por Brizola dos porões do Palácio Piratini, Silva estabelece uma analogia entre o então inquilino daquela casa e o governador que liderou a Revolução de 1930: “Talvez sinta a presença espiritual de Vargas enquanto sobe o tom do seu discurso” (SILVA, 2011, p. 65). Da mesma forma, mais adiante, quando diz: “Brizola comporta-se como uma mistura de esfinge e oráculo. Às vezes, tem o olhar perdido. Outras [sic], ordena maquiavelicamente isto e aquilo […]” (SILVA, 2011, p. 89). As conjecturas acerca do que passa na cabeça do jovem governador nas diferentes circunstâncias daqueles dias de tensão entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart continuam alimentando a imaginação do autor: “Em que pensa?” (SILVA, 2011, p. 132). Depois de algumas alternativas levantadas, assevera finalmente: “É mais provável que não pense em coisa alguma grandiosa, que siga sua intuição, sem metafísica nem grande arte, apenas com a determinação de um guerreiro, disposto a ser, se necessário, o último homem” (SILVA, 2011, p. 133). Aqui, como em outras – várias — passagens, insinuase o Brizola candidato a herói.

Não obstante algumas simulações de ironia no correr do texto acerca da biografia de Leonel Brizola, de maneira geral percebe-se que o tom da narrativa direciona-se no caminho de manter uma certa imagem difusa do líder político no Rio Grande do Sul, segundo a qual Brizola encarna alguns dos valores positivos do povo gaúcho. “Se fosse encostado na parede [pelo General Machado Lopes], cuspiria fogo pelas ventas. Afinal, [Brizola] era um gaúcho. E os gaúchos gostam de ver-se como indomáveis” (SILVA, 2011, p. 83). Caráter forjado na dificuldade da vida, órfão prematuro, Brizola responderia, nas ações de sua trajetória pessoal – e, especialmente, política – a um destino anunciado desde sempre. O governador do Rio Grande do Sul, na hora difícil da campanha pela posse de Jango, traria consigo, e fundiria em si mesmo, a imagem do pai que ele, a rigor, nunca conheceu. “Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola […] pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder” (SILVA, 2011, p. 9-10). De fato não é fácil medir a distância que separa a retórica política das intenções mais íntimas de um homem. Mas é possível reconhecer nele, desde cedo, desde menino, “olhos cheios de determinação” (p. 16, 19 e 32). Nas palavras graves do autor:

[…] há homens que crescem na adversidade e fazem do risco a oportunidade de um salto para o futuro, homens como Leonel Brizola, saído dos confins do Rio Grande do Sul para escrever sua história em paralelo com a do Brasil, fundindo-se, por vezes, com ela, seguindo-a de perto, intuindo, quem sabe, que certas ações marcam para sempre uma vida e delas depende uma biografia (SILVA, 2011, p. 132).

O começo e o fim. O fim no começo. O destino predestinado.

A ilusão biográfica? No livro Vozes da legalidade, é possível reconhecer a opção por uma dicção francamente regional. Esta escolha se faz perceber tanto pela abordagem empreendida quanto pelas referências documentais e bibliográficas que a sustentam. No primeiro caso, a ênfase na figura de Leonel Brizola – sem ser uma biografia propriamente – ofusca o estabelecimento de relações em âmbito nacional que são fundamentais para compreender o processo histórico do qual se quer tratar. No segundo caso, o autor sustenta seus argumentos em bibliografia flagrantemente desatualizada e pouco especializada. Por outro lado, dedica-se um capítulo à Maria Teresa Goulart, esposa de Jango, atribuindo a ela uma importância questionável, ao dizer: “Maria Teresa não tem currículo. Tem biografia. Falta-lhe um biógrafo” (SILVA, 2011, p. 206).

O texto expressa o propósito de ser uma espécie de “conversa com o leitor”. É como se tivéssemos, pelo livro, mais uma voz a contar a história. As marcas de oralidade nele presentes são muitas.

É quase uma memória. A decisão de contar a história é mais intensa, no meu juízo, que a articulação sistemática das razões que explicam a mesma. Consoante com esse esforço, os lugares-comuns proliferam (2011, p. 185) e a narrativa precipita-se em interjeições (2011, p. 212) e em longas frases, com dezenas de linhas sem ponto (por exemplo, o início do capítulo 20). Não se sabe ao certo se, nesse caso, faltou um cuidado maior no processo de editoração, ou se, na verdade, trata-se de “escolha estilística” do autor.

O primeiro e o último capítulo remetem-se mutuamente. Em ambos, a discussão sobre o nome assume a centralidade da narrativa; mais no capítulo inicial do que no derradeiro. Contudo, é na última folha do livro que a decifração se dá. Tanto a do nome que sua mãe quis para Brizola, “Itagiba”, quanto aos outros, os quais ele efetivamente carregou pela vida: Leonel de Moura Brizola. Diz o autor: “Conta-se que a palavra indígena Itagiba significa braço forte e duro como a mais dura das pedras. Conta-se que o nome Leonel vem do latim e quer dizer pequeno leão (SILVA, 2011, p. 218). Sobre o nome do meio, Moura, faz-se uma digressão mais longa, associando o mesmo a uma localidade de igual nome em Portugal vinculada aos mouros: “Conta-se que o portador desse sobrenome é dotado de muita energia, como dona Oniva [mãe de Brizola], e tem espírito aguerrido” (SILVA, 2011, p. 219). Por fim, resta a menção ao sobrenome que o tornou conhecido: “Conta-se que o nome Brizola, de origem italiana, significa grisalho e que quem o carrega já nasce maduro” (SILVA, 2011, p. 219). Na inscrição do nome, o caráter. No nome, o destino. Novamente, o princípio determinando o desfecho.

Para concluir, algumas palavras sobre o nome do livro: Vozes da legalidade. Política e imaginário na era do rádio. Embora o título e a ficha catalográfica elaborada pela editora possam fazer supor, o “rádio” não é um personagem (tampouco um objeto de investigação) importante da narrativa. O “imaginário” é um termo que não se sustenta como articulador da abordagem empreendida. Já a expressão “era do rádio”, não obstante o fundamental papel desempenhado por esse meio de comunicação ainda no início dos anos 1960 e, notadamente, no evento em questão, é um designativo que faz justiça, a bem da verdade, às décadas de 1940 e 1950.

Notas

1 Vale dizer que esta não é a primeira vez que o autor se dedica a escrever sobre temas relacionados a efemérides. No cinquentenário da morte de Getúlio Vargas, o autor publicou um livro (romance) sobre o político (SILVA, Juremir Machado da. Getúlio. Rio de Janeiro: Record, 2004) e, em 2010 – passados oitenta anos do levante que levou Vargas ao poder – Silva publicou, pela mesma editora carioca, um romance sobre a Revolução de 1930 (SILVA, Juremir Machado da. 1930. Águas da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2010). Note-se que, nestes dois casos citados, diferentemente do livro em exame, não se verifica uma opção editorial pelo gênero histórico ou historiográfico.

2 A tentação do cometimento de anacronismo parece rondar a todos quando tempos inconciliáveis se encarregam, segundo nossa particular vontade, de se fazerem unos: “Naquele agosto gelado de 1961, em Porto Alegre, ninguém podia imaginar que quase 30 anos depois haveria um Jânio sem o mesmo português, mas com a mesma megalomania moralista, o ‘caçador de marajás’, Fernando Collor, que com apoio das mesmas e outras elites, tentaria varrer a sujeira nacional, jogando-a para baixo do tapete, até ser enxotado por não ter tido, como Jânio, a sabedoria de cair fora” (SILVA, 2011, p. 53). Nas páginas 96 e 97, encontra-se, novamente, um comentário anacrônico, identificado pela narrativa como “nota de rodapé”, ainda que as referidas “digressões” ocupem lugar no corpo do texto, e não na parte inferior da página, como seria de se esperar de um texto acadêmico.

Referências

FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade. Último levante gaúcho. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.

LOPES, José Machado. O III exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p.

Cláudio Pereira Elmir Professor do PPG-História da Unisinos. E-mail: elmir@unisinos.br.

João Goulart. Uma biografia – FERREIRA (AN)

FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713p. Resenha de: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 281-285, jul. 2011.

“Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos.” Jorge Ferreira

Para que serve a biografia de um ex-presidente do Brasil? Para esquadrinhar a história de vida de um personagem importante do século XX brasileiro, conhecer suas motivações, sua vida pessoal, suas dúvidas ocultas e suas realizações palpáveis. Neste trabalho, Jorge Ferreira gastou dez anos de sua vida profissional, pesquisando, explorando e indagando sobre João Goulart. Os outros tantos anos que Ferreira tem de estrada no ofício de historiador serviram como bagagem cognitiva para que a biografia de Jango não fosse apenas o retrato do personagem, mas também se configurasse como uma análise aguçada sobre nossa história contemporânea.

O livro desenrola-se em ordem cronológica, desde antes do nascimento de Janguinho, em 1919, até sua morte, em 1976, sem deixar de examinar os desdobramentos decorrentes das investigações sobre a hipótese de assassinato, concluídas com o arquivamento do processo de averiguação em 2010.

A tendência de construir uma ilusão biográfica, identificada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (A Ilusão Biográfica, 1996), não se confirma para a biografia construída por Jorge Ferreira, ainda que o autor de Jango: uma biografia tenha recorrido à “sucessão cronológica, às sequências ordenadas e às relações inteligíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Essas, no entanto, não cedem à “ilusão retórica” (p.76), porque foram desenhadas a partir de pesquisa minuciosa, que deixa entrever “a estrutura da rede” (p. 81).

Mesmo fiel à diacronia, Ferreira rejeita os conceitos de unidade e coerência do sujeito, fornecendo ao leitor suficientes elementos para compreender que João Goulart teve uma sinuosa trajetória, perpassada pelo mutável panorama da sociedade brasileira: “[…] não procurei montar um quebra-cabeças para, ao final, encontrar um quadro de coerências. Também evitei, o equívoco, tão comum ao relatar a vida de um personagem, de apontar suas diversas incoerências.” (p. 18). Em outras palavras, Jorge Ferreira conseguiu driblar a “ilusão biográfica”. Para tanto, valeu-se de infl uências teóricas consistentes – entre as quais ele menciona Jean-René Pendaries, Phillipe Levillain, Giovanni Levi, Chrisopher Lloyd, Vavy Pacheco Borges – e do quase infalível procedimento de “[…] recorrer a uma multiplicidade de fontes” (p. 16-17).

O controle da técnica, a consistência teórica e a profusão de fontes não fazem do volume um compêndio enfadonho com centenas de citações. O livro tem uma linguagem propositadamente fl uida, mas não peca pelo excesso de empiria. Ao contrário, seu primeiro mérito é realçar duas polêmicas, presentes, nem sempre tão evidenciadas, na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, a respeito da ausência/quase-supressão de João Goulart dos estudos históricos do nosso país e, em segundo lugar, sobre a personalidade dessa personagem e sua suposta vacilação diante do golpe de 1964.

Ao realçar esses dois pontos, Ferreira evidencia sua admiração pela personagem. Mas o que poderia parecer falta de objetividade, merece ser investigado. Ferreira consegue, com habilidade indisfarçável, compreender a origem dessas características da historiografia brasileira em relação a Jango. Explica – a partir da noção de “[…] usos políticos do passado” – porque e por quais grupos sociais Jango foi acusado de covarde, bem como que setores da sociedade se interessaram, ao longo da história recente, por esquecer/eclipsar a sua passagem pela presidência da república. Com isso, apesar da aparente admiração pelo biografado, o que Ferreira procura é despersonalizar a história, evitando recair sobre o indivíduo todo o peso do passado.

Ao longo do livro, Jorge Ferreira vai mostrando que a construção da personalidade de Jango não estava definida a priori, mas que foi sendo moldada a partir de infl uências, de lealdades e até mesmo, fruto da ingenuidade e da inconsistência política que caracterizaram seus primeiros passos na vida pública. A profusão de outras personagens da história do Brasil, algumas altamente estudadas pela historiografia e outras desconhecidas, obscurecidas pelo tempo e pelas omissões propositais, é um mérito adicional do livro. Nesse aspecto, o livro também aborda instituições – algumas delas igualmente pouco estudadas pela historiografia brasileira – como a trajetória do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lugar privilegiado de militância ao qual Jango dedicou sua vida inteira; o sindicalismo brasileiro, que cresceu enormemente na década de 1950, acompanhado de perto pelo percurso do político João Goulart. A imprensa, as forças armadas, o parlamento são algumas outras instituições brasileiras abordadas no livro. Foram evidenciados também processos, tais como a industrialização e o capitalismo brasileiros, oscilantes entre os ideólogos do nacional-desenvolvimentismo e do desenvolvimento integrado ao capital monopólico.

Os capítulos oito e nove, respectivamente, De março a março: rumo à radicalização e Rumo ao desastre, são eletrizantes. Ferreira utiliza grande parte da bibliografia disponível a respeito do golpe civilmilitar e narra o desenrolar daquele processo através da figura presidencial, de seu apreço pela democracia e pela conciliação. O título do capítulo dez, Dois dias finais sugere o início de uma narrativa linear dos fatos que se sucederam entre os dias trinta de março e primeiro de abril de 1964, mas o capítulo surpreende com um intenso debate historiográfico, motivação principal do livro e de toda a pesquisa.

De um lado, Ferreira não aceita que políticos, cientistas sociais e historiadores tenham responsabilizado Jango pelo golpe, ou que tenham atribuído o desfecho trágico daqueles dias à clara indisposição do presidente em resistir ao golpe. Para corroborar sua perspectiva e explicar os motivos desse uso abusivo do passado, o autor da biografia de Jango ressalta a personalidade conciliadora do presidente, ressaltando que “Conciliação, aliás, era o termo mais insultoso entre as esquerdas naquele momento. Em uma conjuntura política de crescente radicalização, aquele que não fosse radical era considerado conservador ou, mesmo, reacionário” (FERREIRA, 2011, p. 292).

Acompanhando o raciocínio de Ferreira: o Brasil vivia um dos períodos mais democráticos de toda a sua história. A participação e as reivindicações das classes subalternas, antes ignoradas e/ou mantidas sob rígido controle coercitivo, somente aumentavam em ritmo alucinante. Um dos horizontes desses grupos sociais era o socialismo que, segundo eles próprios, e a partir do exemplo cubano, deveria ser desencadeado a partir de uma revolução.

Neste contexto, as propostas de conciliação só poderiam soar como um obstáculo concreto ao seu projeto e, portanto, como adesão velada ao projeto antagonista. Sendo que os antagonistas da transição ao socialismo e da revolução brasileira também não confiavam que a postura conciliadora de Jango pudesse garantir a continuidade do sistema econômico, político e social por eles defendido.

Por isso, a postura conciliadora do presidente João Goulart foi tão veementemente contestada. Porque ser conciliador, em meio ao contexto de polarização, não significava ficar em cima do muro, mas adquiria sentido de um firme posicionamento político, nesse caso, contrário às transformações sistêmicas.

Restaria discutir criticamente esse termo tão difuso para nosso campo da história e tão caro aos cientistas políticos: o conceito de conciliação. Buscar o entendimento entre as partes, procurar fazer acordos e compromissos políticos é um comportamento louvável nos homens públicos, que pode impedir graves crises políticas.

Mas, até onde pode ir o acordo, o entendimento e a conciliação? Até onde se pode abrir mão das próprias convicções? Diante de projetos antagônicos de sociedade e de nação, as convicções devem ser abandonadas pelos homens públicos em nome da conciliação?

Por outro lado, Ferreira tem razão, não foi efetivamente essa personalidade conciliadora de Jango que provocou o golpe nem uma atitude mais consistente poderia ter impedido o desfecho, mas isso também não vem ao caso. A história não é mestra da vida, certamente não teremos uma repetição desses episódios que possam desmentir uma ou outra interpretação.

Fato emblemático e, ao mesmo tempo, curioso, no entanto, é que o apelo à conciliação e à boa acolhida a essa postura de negociação pacífica dos confl itos sociais, harmonização das relações etc.

esteve presente nos dois momentos mais polarizados da nossa história contemporânea: o período pré-64 e a luta pela redemocratizado por volta dos anos 80. No primeiro período, a posição conciliatória não impediu o golpe de morte à democracia e, no segundo, essa harmonização impediu que a sociedade brasileira soubesse de verdade quem foram os responsáveis por esse atentado.

A pesquisa sobre o exílio do presidente Goulart foi primorosa, ajuda a compreender as relações entre exilados, os ambientes dos países de acolhida, as relações entre os militares dos países assolados por ditaduras e as tentativas de articulação política para o retorno ao país. Jango voltou morto ao Brasil em 1976, para ser enterrado em São Borja, segundo Ferreira, uma concessão do governo militar; não sabemos como ele agiria politicamente caso tivesse sido anistiado em 1979. Mas sabemos o que disse Leonel Brizola ao chegar ao país, o mesmo Brizola impaciente que tanto criticou a “falta de atitude” do cunhado presidente. Entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência”. Um indício de que a ideia da conciliação voltaria a assombrar a história recente do país.

Claudia Wasserman – Professora do PPG-História da UFRGS. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.

A Queda de Roma e o Fim da Civilização – WARD-PERKINS (AN)

WARD-PERKINS, Bryan. A Queda de Roma e o Fim da Civilização. Tradução de Inês Castro. Lisboa: Alêtheia Editores, 2006. Resenha de: DEGAN, Alex. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 321-326, dez. 2010.

Originalmente publicado em língua inglesa em 2005 (The Fall of Rome and the End of Civilization), a tradução portuguesa do polêmico livro do professor de Oxford Bryan Ward-Perkins deve ser recebida com grande entusiasmo, particularmente porque cresce entre os estudiosos brasileiros o interesse pelo período investigado no livro.

A contribuição de Ward-Perkins se dá na abordagem original e clara de um tema clássico entre historiadores: a queda do Império Romano. Questão polêmica e controversa, destacada desde o Renascimento com a noção de inclination desenvolvida pelo pensador italiano Flavio Biondo e que recebeu o tratamento clássico de Edward Gibbon em Decline and Fall of the Roman Empire, nunca abandonou o horizonte dos historiadores que se dedicaram a estudar a transição da civilização romana para o Medievo Europeu Ocidental. É neste riquíssimo debate que Ward-Perkins se insere, destacando as contribuições da documentação arqueológica com uma leitura voltada ao universo das trocas, produção e consumo de bens materiais nos anos finais do Império.

O livro pode ser dividido entre duas discussões contemporâneas sustentadas pela historiografia, ambas entrelaçadas. A primeira contenda se dá com o historiador canadense Walter Goffart (Barbarians and Romans), defensor de uma leitura mais integradora das relações entre romanos e germanos. Para Goffart, as várias populações germanas que habitavam as fronteiras ocidentais do Norte se beneficiaram de uma modificação na política militar romana, que deixou de repelir as invasões para construir um complexo sistema de acomodação destas levas migratórias germânicas. Segundo o historiador canadense, aos germanos foram concedidas benesses, como o direito de se fixarem em terras dentro dos limites do Império e a possibilidade de receberem parte da tributação destas áreas, em troca de uma aliança militar e de uma trégua. De ameaçadores invasores os germanos se converteram em sócios na defesa do Império.

A segunda interpretação do período com qual Ward-Perkins debate foi desenvolvida pelo historiador irlandês Peter Brown (The World of Late Antiquity). Brown, juntamente com o francês Henri- Irénée Marrou (Décadence Romaine ou Antiquité Tardive?), foi o grande divulgador da idéia de uma Antiguidade Tardia, solapando a tradicional periodização do Baixo Império e recusando a caracterização do período como uma síntese de decadência e confusão. Embora Brown não negue o desmonte institucional de uma ordem romana, sua atenção se volta ao universo cultural visto como profundamente criativo e original, caracterizado por um furioso debate religioso e intelectual embalado pelo Cristianismo. Assim, a antiga percepção de declínio foi substituída por uma visão positiva do período, claramente marcada por revoluções criativas nos campos da cultura, das artes e da religiosidade. Neste sentido, é importante notar a crescente aceitação da interpretação de Brown entre os medievalistas franceses contemporâneos, militantes de uma periodização mais alargada e colorida da Idade Média. Tal periodização defendida por Jacques Le Goff (Pour un long Moyen Âge), investe numa antropologia histórica que dialogando com o conceito braudeliano de “longa duração” joga luzes nos estudos das lentas transformações nos hábitos, costumes, estruturas e representações culturais do Ocidente Medieval, formulando-se uma “Longa Idade Média” nascida da Antiguidade Tardia e esgotada no século XIX, fruto das convulsões revolucionárias e da Revolução Industrial.

A tese defendida por Bryan Ward-Perkins não enveredou exclusivamente pelos domínios de uma História Social da Cultura. Pelo contrário, sua concepção da civilização romana e da sua extensão é muito material, o que torna seu livro interessante por considerar questões que hoje não estão entre as mais populares na historiografia.

Como arqueólogo e historiador econômico, Ward-Perkins entende que a experiência romana conferiu unidades política e econômica às sociedades que habitavam o Império. Neste sentido, seu livro observa os processos de integração e acomodação promovidos pelo Império e a perda destas unidades com a derrocada da ordem mantida por Roma.

Em sua interpretação, a ação política de Roma produziu, em larga escala, uma economia integrada pelo Estado. Talvez seja esta a maior contribuição interpretativa e documental do texto de Ward- Perkins: seu Império Romano se caracteriza pela grandiosidade qualitativa e quantitativa das trocas materiais. Como arqueólogo, observou o colossal volume de peças de cerâmicas de uso quotidiano produzidas, consumidas e descartadas durante o Império Romano.

Vai além, notando que este consumo transbordou a “casca mediterrânea”, se consolidando em regiões como a distante Britânia, que também produziu e consumiu cerâmica banal, mas de alta qualidade.

Em outras palavras, a grande estabilidade produzida pela Pax Romana se encontrava na economia, que aproveitou os benefícios de uma ordem imperial para atingir um nível sofisticado e especializado na produção, circulação e consumo. Antes de tudo, o Império Romano consolidou uma espécie de civilização do conforto que disseminou e vulgarizou o consumo de louças para uso diário, ânforas preenchidas com vinho e azeite, moedas, tijolos e telhas.

Com uma visão altamente modernizante da economia antiga, Ward- Perkins assinalou que a estabilidade romana promoveu o auge desta sofisticada cultura material.

Bryan Ward-Perkins entende que a destruição provocada pelas guerras contra os germanos desestruturou de forma tão profunda a ordem romana que esfacelou as unidades política e econômica do Império, impossibilitando a sociedade de se recompor. Ao contrário de Walter Goffart, que insiste em uma leitura voltada ao longo processo de acomodação e integração entre germanos e romanos, Ward-Perkins demonstrou que este encontro se deu em torno de ciclos de violência sofridos por ambos os lados. Por mais que a longa convivência entre romanos e germanos tenha levado à integração, não podemos deixar de notar a violência deste processo.

Não adotando uma leitura simplista do momento, que insiste no contraponto entre selvagens bárbaros e angustiados romanos, Ward- Perkins revelou como a documentação escrita e material registrou um longo fracionamento do equilíbrio político e militar romano, importando as agruras dos limites do Império para seu interior.

Esta fragmentação política, seguida do caos militar, liquidou a unidade econômica e, progressivamente, detonou a sofisticação e a especialização da cultura material, dando lugar a uma simplicidade muito maior. A sociedade romana, acostumada com um conforto e com um padrão de consumo, não conseguiu se recuperar das destruições dos germanos e da perda de sua unidade. Neste sentido, concordamos com Bryan Ward-Perkins quando este afirma que uma civilização antiga, marcada pela sofisticação econômica, entrou em colapso e submergiu.

Ainda atento ao sofisticado patamar da economia romana antiga, Ward-Perkins refl etiu também sobre a difusão da cultura escrita, denominada como Literacia, registrando suas várias dimensões com especial atenção aos usos populares. A diferença com Peter Brown aqui se torna evidente. O historiador irlandês conferiu muita energia a esta questão, apontando para uma pujante e original produção literária embalada pelo Cristianismo. Ward-Perkins não discorda totalmente de Brown, mas aponta que as análises do irlandês registraram muito mais o que ocorreu entre as aristocracias políticas e religiosas do Baixo Império, com grande destaque aos documentos da porção Oriental de Roma, exatamente aquela que sofreu menos com as destruições germânicas.

Na leitura proposta por Bryan interessa mais observar os padrões de consumo material e de conhecimento da escrita entre as classes médias e baixas do que se ater aos documentos produzidos pelas aristocracias. Mesmo quando ele pensa a existência de uma cultura escrita em suas várias dimensões, sua preocupação se volta aos padrões disseminados de consumo desta Literacia. Sem desprezar a impressionante literatura produzida no período, sobretudo entre os membros da Igreja, Ward-Perkins observou que usos populares da escrita, como os recibos de impostos encontrados no Egito, os grafites em paredes de cidades e os rabiscos em cerâmicas, progressivamente se extinguiram após a perda da unidade romana. A cultura escrita não desapareceu do Ocidente pós-romano, mas perdeu seu uso corriqueiro, elementar e banal que gozava no Império.

Novamente a importância das unidades política e econômica da experiência romana foi analisada. A unidade política permitiu uma enorme organização burocrática do exército em todas as áreas do mundo romano. A escrita era o suporte que permitia a circulação de tropas, de mercadorias e estratégias. Mais que um instrumento de debate teológico e filosófico restrito à elite, tinha seu uso consagrado enquanto ferramenta de logística. A própria sofisticação econômica defendida pelo autor utilizou de noções elementares de escrita como fundamentos de sua organização, registrando a ação fiscal e administrativa do Estado, como também técnica e comercial dos centros produtores de cerâmica. Tais usos populares da escrita, segundo o arqueólogo inglês, desapareceram no Ocidente pós-romano.

Por fim, sem medo de utilizar termos controversos, como “declínio”, “crise” e “civilização”, mas preocupado em defini-los com precisão, Ward-Perkins se afastou das armadilhas morais que estes termos sugerem e traçou uma análise bastante dinâmica do Ocidente pós-romano. Ao contrário das interpretações postuladas por Goffart e Brown, de grande sucesso entre historiadores franceses, estadunidenses e brasileiros, Bryan conferiu destaque a todas as complicações, desafios e dificuldades do período. Seus séculos pós-romanos experimentaram um agudo declínio na sofisticação e prosperidade econômicas, repercutindo em todas as sociedades que compunham o mosaico imperial romano. Aceitar isto não significa ler o período como um momento maldito e negativo da história da Europa Ocidental, mas reconhecer suas contradições e impasses mais profundos. Em sua interpretação, o maior equívoco dos entusiastas da Antiguidade Tardia se encontra exatamente neste ponto: ao amortizar e suavizar os impactos que os choques entre romanos e germanos produziram na antiga ordem imperial, as perdas sofridas e as originais respostas produzidas pela sociedade pós-romana acabam por perder parte significativa de seu brilho. Reconhecer que o século V assistiu uma profunda crise econômica, política e militar, provocada pela violenta tomada de poder e de muita riqueza pelos germanos não é o mesmo que aprisionar o período em uma espécie de Index Librorum Prohibitorum histórico.

Alex DeganProfessor Assistente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestre em História Econômica e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: alexdegan@yahoo.com.br Avenida Dr. Odilon Fernades, n.420, Apto 501, Bloco B Uberaba – MG. CEP: 38017-030.

Soldados da Pátria – História do Exército Brasi leiro (1889-1937) – McCANN (AN)

McCANN, Frank D. Soldados da Pátria – História do Exército Brasi leiro (1889-1937). Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Resenha de: FERREIRA, Bruno Torquato. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 327-333, dez. 2010.

Frank D. McCann é professor do Departamento de História da Universidade de New Hampshire e, nos anos 1960, como oficial da reserva do Exército americano, foi professor na Academia Militar de West Point. É autor de livros como Aliança Brasil-Estados Unidos (1937-1945) e A Nação Armada: ensaios sobre a história do Exército brasileiro.

Teve passagens por universidades brasileiras como professor visitante, tendo sido também agraciado pelo governo brasileiro com alguns títulos. McCann vem se debruçando sobre os problemas concernentes à atuação política dos militares há mais de trinta anos e a sua produção acadêmica nesse período, ao que tudo indica, também se concentra nessa temática. Ultimamente vem se engajando em um projeto de desenvolvimento de uma base de dados biográficos sobre os oficiais do Exército brasileiro no século XX (Brazilian Army Officers Project) e na elaboração de uma biografia de Pedro Aurélio de Góes Monteiro (p. 621). Soldados da Pátria faz parte de um projeto maior cuja intenção é investigar a história da instituição militar terrestre brasileira até o começo da década de 1990 (p. 10).

Dois aspectos importantes da obra, no tocante ao processo de pesquisa e redação, merecem ser mencionados. A primeira diz respeito ao uso abundante e original dos registros burocráticos produzidos pelo comando militar no período, já que, no seu modo de ver, um estudo sobre a formação da oficialidade do Exército deveria incluir a estrutura, a doutrina, os equipamentos e o treinamento dos homens dessa instituição como objetos de análise1, material este ainda pouco explorado pelos pesquisadores brasileiros. Sobre os estudos relacionadas à década de 1920 no Brasil, o próprio McCann é quem alerta aos interessados: A história de um Exército, dada a complexidade da instituição, requer um enfoque amplo. Além disso, não deve se ocupar apenas dos vencedores; precisa também falar de quem perdeu e por quê. Apesar da importância das rebeliões, há mais na história do Exército (p. 290) As rebeliões em si revelam muito das características culturais dos brasileiros naquela época; as amizades foram fatores não desprezíveis para a aderência ou não a um lado (revoltado) ou outro (legalista) nas vésperas dos sucessivos movimentos. Muitas vezes, era o posicionamento da maioria da guarnição o que determinava o comportamento dos oficiais (p. 361-362). Por outro lado, mesmo os legalistas, não delatavam os seus colegas conspiradores quando convidados a tomar parte nos movimentos (p. 622). Portanto, “conversar, escrever e até mesmo tramar eram tolerados até que alguma ação ocorresse” (p. 410). Além disso, muitos simpatizantes das conspirações deixavam de tomar parte nos movimentos sediciosos por lealdade aos seus comandantes legalistas: “Cabe ressaltar que os oficiais brasileiros não juravam obediência à Constituição, e sim a seus superiores, de modo que os laços pessoais tinham papel importante na manutenção da disciplina” pois tratava-se de um sistema “acentuadamente paternalista, influenciado pelas ligações pessoais de amizade” (p. 373). De fato, a pátria estava acima da Constituição, do Gabinete, do imperador ou do presidente: “O Exército brasileiro foi e ainda é, um baluarte contra as forças centrífugas regionalistas” (p. 11).

Talvez refletindo sobre suas próprias limitações analíticas a esse respeito o autor comentou: “Muitos estrangeiros tinham dificuldade para perceber, e ainda mais para aceitar, a importância da amizade na vida política pública brasileira” (p. 649). Contudo, essa tradição de conciliação chegou ao fim a partir da segunda metade da década de 1930, sobretudo após 1935, quando os sargentos e demais praças passaram a ser alvo de brutal repressão, sem falar dos constantes expurgos e ameaças de expurgos tornados constantes a partir de 1937, utilizados para chantagear e manter na linha os ocupantes da base hierárquica da instituição.

Alguns comentários são reveladores acerca da maneira como alguns americanos compreendem a realidade brasileira, em que pesem os incômodos que podem causar aos brasileiros mais ciosos ou mesmo aos padrões nacionais de cientificidade no tocante às humanidades. O episódio de 15 de Novembro, por ser pouco conhecido e investigado, foi descrito como um dos “aspectos bizarros da história brasileira moderna” (p. 28) ou “A história do Exército brasileiro é mais bem compreendida como um refl exo da complexa, intrincada e às vezes contraditória cultura nacional” (p. 9). O autor parece supor que não existe cultura “contraditória”2.

Em segundo lugar, chama a atenção do leitor mais atento a bibliografia utilizada, que demonstra existir nos Estados Unidos uma historiografia brasileira à parte, com a qual, diga-se de passagem e salvo exceções, a historiografia produzida no Brasil parece manter muito pouco contato, embora a recíproca não seja verdadeira. Temas como a proclamação da República, o conflito de Canudos, a Revolta da Vacina, o conflito do Contestado, a Revolução de 1930, a economia brasileira nas primeiras décadas do século XX entre outros assuntos foram e são largamente debatidos em universidades americanas e, em alguns casos, as pesquisas resultantes desses debates apresentam dados inteiramente originais3.

O autor, desde o começo, anuncia seu rompimento com as análises que interpretam as rebeliões militares como reflexos da política civil ou mesmo de determinismos classistas. Nesse sentido segue a trilha já palmilhada por autores brasileiros e brasilianistas como Edmundo Campos Coelho, José Murilo de Carvalho, John Schulz e Alfred Stepan. Seguindo os rastros desses mesmos autores também indica, que seu intuito inicial de entender o comportamento dos militares brasileiros no período de 1964-1985 levou-o “constantemente” de volta ao período 1889-1937, o qual começou a ver como “a sementeira de acontecimentos posteriores” (p. 10).

Não concorda, por outro lado, com a tese do “poder moderador” de Alfred Stepan (p. 14-15) e, neste ponto, se aproxima mais uma vez das abordagens de Carvalho e Coelho. Conclusão do autor: “O Exército não se tornou o moderador na década de 1890; seu poder era muito precário e muito cooptado. Antes da década de 1930, o Exército não possuía vontade institucional, a doutrina ou a capacidade para tal papel” (p. 14). A unidade doutrinária na formação dos oficiais seria alcançada apenas décadas depois, com a homogeneização da sua formação (p. 251). Acontece que na década de 1920, muitos sargentos foram comissionados em postos de oficiais, o que parece ter dificultado essa propalada unificação doutrinária. Sem unificação doutrinária como esperar que agissem de forma ordenada, coesa e coerente? Nesse sentido, o autor aponta a importância da ESAO e da ECEME4 na unificação doutrinária do Exército nos escalões médios e altos da organização no decorrer do século XX (p. 270). Por outro lado, na década de 1920 essa unidade ainda era incipiente, razão pela qual o autor atribui à falta de unidade doutrinária uma das principais causas da “disposição [dos jovens oficiais] de desrespeitar a hierarquia e rebelar-se (p. 276). Para McCann o Exército começou a se tornar moderador apenas a partir de 1937: “Vargas abriu a porta, e os generais entraram” (p. 547).

O grande caráter instrumental do Exército se revelou quando ele foi acionado para “manter na linha as massas, ou pessoas comuns” (p. 19). Assim podem ser compreendidos episódios como Canudos e Contestado, além da própria repressão aos comunistas e esquerdistas na década de 1930. Além disso, foi o principal instrumento de projeção política do Estado-nacional brasileiro. Esta leitura se estende para além dos limites cronológicos do Estado Novo, não obstante a autonomia institucional alcançada pelo Exército, que lhe potencializou um intervencionismo mais atuante (p. 552-553).

O Exército brasileiro, nesse último período, trilhou um caminho institucional que o transformou, de uma força miliciana, em uma organização de caráter nacional e relativamente ramificada pelo território brasileiro. Desempenhou importante papel civilizador – no sentido eliasiano – e constituiu uma espécie de ponta-de-lança do Estado no que diz respeito às necessidades de integração territorial e desenvolvimento de valores identitários relacionados a esse espaço, principalmente após o advento do serviço militar obrigatório. A esse respeito destaca-se a importância de intelectuais militares da estirpe de Alfredo Taunay e Euclides da Cunha como grandes formuladores da identidade nacional.

Do etno-historiador (?) Anthony F. C. Wallace McCann incorporou as categorias analíticas política dos apetites e política da identidade para se referir aos dois pólos que basilaram a conduta política da oficialidade brasileira nos 30 primeiros anos da República (p. 17).

A última se refere aos movimentos sociais e suas reivindicações, que podem colocar em xeque o domínio oligárquico e a primeira, por sua tonalidade clientelística, contribuía para a manutenção do status quo (p. 17-18). Nem mesmo o eterno legalista Estevão Leitão de Carvalho teria se mostrado imune aos apetites (p. 373). Com efeito, de acordo com McCann, o tenentismo foi um misto de política das identidades e dos apetites (p. 18). No entanto, reconhece que a principal luta dos tenentes nos anos 1920 era mais pelo controle do Exército do que por qualquer outro motivo (p. 339).

Foi uma época de fortes dissensões internas: clivagens horizontais e verticais opunham oficiais entre si e contra praças. Desse modo, o autor se propõe a explicar as razões internas das explosões de violência corriqueiras na evolução institucional do Exército, sobre tudo nas décadas de 1910, 1920 e 1930. São acontecimentos que revelam profundidades estruturais e, por isso, sua explicação não é auto-evidente, como foi o episódio das cartas atribuídas a Arthur Bernardes contra Hermes da Fonseca (p. 279). Entre as razões do descontentamento da oficialidade estavam questões profissionais vinculadas à insatisfação com a organização política do país, como promoções atrasadas, atrasos nos soldos, falta de equipamentos, inade quação dos armamentos, a estrutura política excludente, confl itos latentes com os membros da Missão Militar Francesa entre outros.

Assim sendo, McCann demonstra percepção acurada ao relacionar a explosão das rebeliões no período focado por suas investigações aos conflitos e problemas intra-organizacionais, alguns por razões comezinhas. Nesse sentido, reconhece, por exemplo, que a principal luta dos tenentes nos anos 1920 era mais pelo controle do Exército do que por qualquer outro motivo (p. 339)5. Tratava-se de um confl ito geracional, que tinha seus fundamentos nos bloqueios à progressão profissional dos mais jovens e nas diferenças de formação. Dessa maneira consegue iluminar e oferecer uma explicação plausível acerca da linha de experiência política que se iniciou com a crise conhecida como Questão Militar e que atravessou todo o primeiro terço do século XX até a crise dos anos 1930, que redundou na inauguração do Estado Novo em 1937. Ao mesmo tempo, a análise da experiência política da oficialidade do Exército nas décadas de 1920 e 1930 é usada como fator explicativo das condições que levaram ao regime de 1964-1985 (p. 12).

Muito ainda precisa ser respondido sobre o envolvimento militar na política brasileira, mas essa obra se revela salutar, instigante e incontornável para quem se interessa pelo entendimento do papel desempenhado pela oficialidade do Exército na construção do Estado nacional e da própria nacionalidade, entre outros aspectos. Sua obra merece atenção dos historiadores brasileiros, sobretudo porque, em que pesem as irresponsabilidades dos relativismos atual mente em voga, essa obra constitui um alento motivador para aqueles que ainda se ocupam com a história de verdade, e não com representações oníricas.

Notas

1 Ainda resta saber até que ponto o Exército foi uma instituição controlada de alto a baixo pela oficialidade. Chama atenção também o uso expressivo e constante de relatórios diplomáticos e de adidos militares para alcançar compreensão a respeito de aspectos da socialização, das condições de vida, da profissionalização e do ambiente político no interior do Exército.

2 Do mesmo modo, McCann revelou inocência metodológica ao expor sua intuição de que Vargas pretendia reconstitucionalizar o país em 1932 e só não colocou em prática esse projeto em função do movimento paulista ocorrido em julho daquele mesmo ano baseado unicamente nas evidências contidas no diário “secreto” do político brasileiro, publicado apenas em 1995, pois, de acordo com o Autor, “agora sabemos o que ele estava dizendo a si mesmo naquela época” (p. 419).

3 A respeito do conflito ocorrido em Canudos no final do século XIX merece destaque a informação de que o beato Antônio Conselheiro mantinha estreitas relações clientelísticas com alguns coronéis locais, membros do clero e inclusive com o próprio governador da Bahia na época (p. 64, verificar especialmente a nota 66).

4 Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e Escola de Comando e Estado-Maior do Exército respectivamente. Atualmente constituem cursos de pós-graduação equiparados aos níveis de mestrado e doutorado pelo Ministério da Educação.

5 O Autor parece acompanhar, nesse aspecto, a diferenciação proposta por Edmundo Campos Coelho que admitia a existência de um tenentismo político nas décadas de 1920 e 1930 em oposição ao tenentismo profissional, protagonizado pelos jovens turcos na década de 1910. O primeiro apresentava uma maior disposição para a luta contra a cúpula do Exército e a camada dirigente da República do que o segundo.

Bruno Torquato FerreiraAtualmente é discente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná em nível de doutorado e professor do Ensino Fundamental no Colégio Militar de Campo Grande (CMCG). E-mail: brunotferreira@ig.com.br.

História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) – SILVA (AN)

SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, 222p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Os usos e abusos do passado na França durante o regime de Vichy. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 30, p. 301-309, dez. 2009.

[…] todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vêzes […] a primeira como tragédia, a segunda como farsa (MARX, 1969, p. 17).

Nestes termos, Karl Marx (1818-1883), na década de 1850, resumiria sua análise de uma das obras de Hegel. Ao expor o que definiu como a ‘farsa’ (do Dezoito Brumário) de Napoleão III, Marx constataria que: Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram os espíritos do passado, tomando- lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de [se] apresentar[em] e nessa linguagem emprestada (1969, p. 17-8).

Sob circunstâncias diferentes, mas com idéias semelhantes, Jean Chesneaux (1995) destacaria, na década de 1970, em sua análise da história e dos historiadores, tomando de empréstimo o debate do Le Monde de 26 de julho de 1974, que: “Tem-se sempre necessidade de ancestrais quando o presente vai mal” (1995, p.23). Ainda na década de 1970, Georges Duby (1993), com seu livro O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214 (de 1973), demonstraria como aquela batalha seria recriada e adequada às circunstâncias de cada momento histórico, ao ponto de indicar os ‘choques franco-prussianos’. “Em outras palavras, o autor trabalha como um fato concreto, o enfrentamento entre Filipe Augusto da França e o Imperador Oto IV, a 27 de julho de 1214, foi adaptado a novas situações políticas” (2007, p. 15), dirá Leandro Karnal, ao apresentar a obra de Glaydson José da Silva, História Antiga e usos do passado.

Nos anos 80, Raoul Girardet, ao estudar os mitos e as mitologias políticas, lembrará que: “(…) a cada momento de sensibilidade (…) corresponde (…) uma leitura da História, com seus esquecimentos, suas rejeições e suas lacunas, mas também com suas fidelidades e suas devoções” (1987, p. 98). Neste mesmo período, Eric Hobsbawm (1997), ao enfatizar a maneira pela qual são ‘inventadas certas tradições’, ressaltará que:

(…) por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (…). Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. (1997, p. 9-10)

Discordando de tais argumentos, Stephen Bann (1994) propôs pensar as representações que foram (e são) criadas sobre o passado (europeu do século XIX), com vistas a enfatizar o papel exercido pelos historiadores e pelos lugares de produção da ‘memória social’ como os museus, os arquivos e as universidades, ao serem elaboradas certas leituras sobre o passado.

Usar o ‘passado’ para dar ‘sentido’ às ações no ‘presente’, desse modo, não é algo novo nem na História (dos homens e das mulheres do passado), nem na historiografia (HARTOG, 2003).

Mas a maneira com que o passado é usado para demarcar as ações e as reflexões no presente, de cada momento histórico, senão é ‘nova’ em todos os instantes, ao menos é múltipla. Foi esta direção que os trabalhos de François Hartog acabaram seguindo desde os anos de 1980, quando demonstrou em seu livro O espelho de Heródoto (1999) as diferentes formas de apropriação deste autor ao longo do tempo. Nesse sentido, com seu conceito de ‘regimes de historicidade’, Hartog se preocupou em teorizar de que modo os grupos e as sociedades do passado se apropriavam da história para fazerem diferentes usos do tempo e da relação passado-presente- futuro.

Foi tendo em vista essas questões que Glaydson José da Silva, em seu livro História Antiga e usos do passado (que é uma versão revista de sua tese de doutorado, intitulada Antiguidade, Arqueologia e a França de Vichy: usos do passado, defendida em 14 de março de 2005, no programa de pós-graduação em História da Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari), preocupou-se em apresentar uma análise pormenorizada das formas com que a Antiguidade e o passado gaulês, romano e galo-romano haviam sido apropriadas na França durante o Regime de Vichy, que durou entre 1940 e 1944.

Para demonstrar essa questão, o autor estudou e evidenciou a relação de diferentes temporalidades (a da Antiguidade, a do regime de Vichy na década de 1940, e a ação da direita francesa nos anos 80 e 90), para circunstanciar de que modo os passados gauleses, romanos e galo-romano estavam sendo apropriados e usados politicamente, em diferentes momentos, para justificar a ação de grupos e partidos políticos na França durante o século XX. Com isso, o autor revela, de modo didático e inovador, as relações, nem sempre lineares, entre passado e presente, e a maneira pela qual o passado é apropriado para justificar as ações de grupos e indivíduos no presente histórico. Mais detidamente, tenta descortinar a importância da Antiguidade Clássica, para se elaborar um conhecimento mais balizado sobre a História Contemporânea. Em suas palavras: O saber histórico é tomado mais como um espaço de desconstruções que de construções e reconstruções. Busca- se neste trabalho uma compreensão dos meandros, dos escaninhos de um domínio em que a memória e a sua destruição são recorrentes na reconstrução dos acontecimentos históricos, em que memória e esquecimento se ligam e tomam forma atendendo a imperativos circunscritos do tempo presente. (p. 17-8) Com isso, a obra foi dividida em quatro capítulos. Em cada um deles o autor escreveu um pequeno prólogo para apresentar ao leitor o que discutiria no capítulo. Cada capítulo foi dividido em duas partes.

No primeiro capítulo, O caráter moderno da Antiguidade: considerações teóricas e análises documentais acerca da instrumentalização do passado, há uma descrição de como a Antiguidade foi pesquisada nos anos 80 e 90, e a maneira com que o passado é usado em diferentes momentos. Detém-se na forma pela qual o Fascismo e o Nazismo se apropriaram da Antiguidade para justificarem seus projetos nacionais e suas propostas políticas para a Europa nos anos 30 e 40 do século passado.

Essas diferentes antiguidades, ou melhor, essas diferentes leituras da Antiguidade, apontam sempre para o presentismo do pensamento antigo na elaboração das práticas políticas, das doutrinas, dos jogos identitários, enfim, das visões de homem e de mundo no Ocidente. (p. 30) Nesse sentido, evidencia como o regime Vichy, nesse mesmo período, se apoiou no passado gaulês, romano e galoromano, e, em especial, na figura de Vercingetórix, para empreender suas ações políticas. Vale notar que a França não foi o único país Europeu que sucumbiu às ações do Nazismo e do Fascismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e se apoiou no passado para justificar suas ações no presente. Mesmo fora da Europa, esses regimes tiveram forte influência sobre a maneira com que o passado era usado e estudado, e a propaganda política era uma das estratégias para impor o consenso. No Brasil, Getúlio Vargas é um exemplo emblemático de como o Fascismo e o Nazismo serviram de base para que este desenvolvesse estratégias semelhantes de usar o passado e a propaganda política como formas de construir o consenso (GOMES, 1996).

No segundo capítulo, A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História na França dominada (1940- 1944), o autor demonstra como a História e a Arqueologia romana e galo-romana francesas se moveram e foram usadas durante o período de ocupação alemã no país. Ao discutir a historiografia sobre o Regime de Vichy, o autor mostra como o período é pouco conhecido, mesmo em parte significativa do povo francês. Além disso, ao se ocupar da questão nacional, enfatiza como após a Revolução Francesa os usos do passado romano, gaulês e galoromano foram cada vez mais frequentes na história francesa contemporânea. A partir da análise de manuais de História, artigos de jornal e discursos, o autor reconstitui os diferentes usos que foram feitos, durantes esse período, da figura de Vercingetórix e dos gauleses “pela Révolution National – termo designado pelo Marechal Philipe Pétain para referir-se à retomada à ordem no país após a derrota militar” (p. 20). Destaca ainda como a História e a Arqueologia serviram de base na construção de um consenso, ao serem utilizadas como instrumentos de afirmação e legitimação, quando o regime procurou declaradamente romper com as tradições republicanas do passado francês.

No terceiro capítulo, Jérôme Carcopino – um historiador da Antiguidade sob Vichy, indica a importância deste intelectual com sua obra, e seus estudos sobre a Antiguidade e a maneira com que foi legada à posteridade, em função de sua participação direta no regime de Vichy como ministro da educação. “Durante o Regime Vichy, no período compreendido entre 23 de fevereiro de 1941 e 16 de abril de 1942, Jérôme Carcopino, já à época consagrado historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, exerce a função de secretário de Estado, com estatuto de ministro na área de Educação” (p. 127). Para evidenciar essa questão, o autor reconstitui a participação de Jérôme Carcopino no interior do regime e a forma como os estudos clássicos eram produzidos durante esse período.

Ministro de Vichy, Carcopino é o intelectual chamado à ação. Suas posturas face ao Regime se inscrevem na sua trajetória acadêmica, nas interfaces de múltiplas e contraditórias ideologias, diante das quais sempre teve claras as suas opções. Desejoso de ser visto como intelectual e não como político (…), é o intelectual a serviço da política. Sua atuação política não se dissocia de sua obra acadêmica; esta possibilita a compreensão daquela e se apresenta, a um só tempo, como continuidade e ruptura da mesma. O estudo do Regime de Vichy e do papel de Carcopino no mesmo período conduz, inelutavelmente, à atestação do envolvimento do historiador com o colaboracionismo de Estado, com tudo que implica esse colaboracionismo. Mas conduz, também, à necessidade de reflexão acerca da História e do papel do historiador, bem como à irrefutável relação que este mantém com os poderes. (p. 151) Por esse motivo, mesmo os estudos recentes sobre esse importante romanista, na França, levam em consideração, antes de ser analisada sua produção, a sua participação no Regime.

No quarto capítulo, História da Antiguidade e as extremas direitas francesas, a pesada herança de Vichy, revela-se que não apenas as obras de Carcopino foram lidas e interpretadas pela posteridade, de acordo com a sua participação no Regime de Vichy, mas o próprio regime deixou suas marcas na produção histórica francesa, em especial nas extremas direitas. O autor demonstra como os grupos que surgiram no imediato pós-guerra na França, a Nouvelle Droite, a Europe Acton, o GRECE e o Club de l’Horloge, acabaram sendo as matrizes ideológicas dos grupos de direita que foram se formando a partir da década de 1970. Nesse sentido, ressalta-se a participação do Front National na luta contra a imigração, os imigrantes e a Gália, e o papel exercido pela Antiguidade em Terre et Peuple para demarcar e justificar a ‘guerra étnica’, pois a “Antiguidade é, aqui, mais uma vez, um dos principais veículos da ideologia direitista” (p. 21). E: É na França de Vichy, com suas leis racistas que retiram direitos tendo como pretexto a origem dos cidadãos (…) que se inspira o F. N. [o Front National]. (…) A identidade nacional ancorada no mito gaulês permite, assim, o reencontro com o passado ideal, distante e que tem na tradição gaulesa, em sua longevidade, a resposta para os dramas atuais da sociedade francesa. (p. 178-9)

Assim, nessa mesma linha, ainda que com suas peculiaridades, defensor “de uma espécie de enraizamento cultural e de uma fidelidade identitária, o circulo T. P. [de Terre et Peuple] tem a História, desde os gregos e romanos, como testemunha dos fracassos e das derrocadas das sociedades multiculturais” (p. 190). E sobre esse aspecto, o grupo procuraria justificar sua ‘guerra total’, com ênfase nas questões étnicas.

Por suas qualidades, essa obra traz uma bela contribuição para um melhor entendimento de como a História, e certos grupos e sociedades do passado, são utilizados, em diferentes momentos, para justificar as ações no presente. Demonstrando como se utilizou, e também se abusou, do passado gaulês, romano e galo-romano na França durante o Regime de Vichy, e a herança que essas estratégias políticas e intelectuais deixaram para os partidos e grupos de extrema direita no país nos anos 80 e 90, o autor apresenta pormenorizadamente as relações entre História Antiga e História Contemporânea, e destaca que nem sempre as relações entre passado e presente são somente (ou completamente) ‘lineares’, mas sim dependem diretamente das especificidades e circunstâncias de cada momento histórico.

Referências

BANN, S. As invenções da História: ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Vilas Boas. São Paulo: Edunesp, 1994.

CHESNEAUX, J. Devemos fazer tabula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores.

Tradução de Marcos A. da Silva. São Paulo: Ática, 1995.

DUBY, G. O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214. Tradução de Maria Cristina Frias.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

GIRARDET, R. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GOMES, A. C. História e historiadores. A política cultural do estado novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

HARTOG, F. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le Seuil, 2003.

___________. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

HOBSBAWM, E. & RANGER, T. (org.) A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante – 2ª edição – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MARX, K. O Dezoito Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Movimientos y poder indígena em Bolivia, Ecuador y Peru – ALBÓ (AN)

ALBÓ, Xavier. Movimientos y poder indígena em Bolivia, Ecuador y Peru. La Paz: CIPCA, 2008, 294 p. Resenha de: CHAVES, Daniel Santiago. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 365-369, jul. 2009.

Linguista e antropólogo espanhol, Xavier Albó é radicado na Bolívia desde os anos ’70, quando co-fundou o Centro de Investigación y promoción del Campesinado (CIPCA), uma instituição que se tornou bastante influente no país e em toda a região andina no tratamento sofisticado à questão indígeno-camponesa, tanto na sua essência teórico-analítica, quanto no próprio acompanhamento do desenvolvimento histórico do conceito.

Mas qual é o ponto central do trabalho de Albó? Ao historicizar os movimentos sociais (sejam autônomos ou ligados aos partidos políticos), relacionando-os com a questão indígena no Peru, Bolívia e Equador, Albó age como um topógrafo e faz um mapeamento detalhado destes movimentos, captando as suas semelhanças, regularidades e dessemelhanças. A sua chave de compreensão enfatiza as transições históricas das bases – outrora esquecidas, sendo hoje o motor das transformações no chamado “arco andino” – através de uma avançada e sofisticada análise política, cultural e sociológica, sem esquecer as relações com as diversas turbulências econômicas dos três países.

E o que há de relevante nessa obra? Albó entende que os indígenas – ou melhor, pueblos originarios (“povos originais”) – representam a maioria pujante da população nestes países, não só em termos quantitativos, como na sua relação diversa com os processos nacionais e continentais e, consequentemente, na sua luta por uma posição que represente a sua importância nestes termos. O autor elabora um crescendo que toma referências históricas da conquista espanhola, passando pela repartição da sua forma de organização política autóctone (o Tawantinsuyu, “Império Inca”) e pela submissão aparentemente completa ao jugo do colonizador para explicar que o indígena originário não pode ser considerado somente mais um elemento dessas sociedades. Pelo contrário, ele representa o pilar central desse desenrolar de fatos, cuja trajetória nos últimos 500 anos deve estar diretamente relacionada ao tempo presente e aos próximos anos.

Apesar disso, Albó retrata um passado recente de sofrimento, paúra, pobreza e esquecimento nos três países, cada qual revelando uma dinâmica diferenciada. Enquanto o Equador é notado como a matriz das atuais formas de organização dos chamados movimentos sociais, o Peru se encontra em um lento despertar após anos de Sendero Luminoso e a Bolívia despontou com a sua diversidade pujante para a conquista do poder instituído. Nos três países, igualmente, a busca por maior participação e representação política está diretamente relacionada a uma repressão (ou omissão) histórica aos direitos destes grupos identitários, por vezes locais, mas que emergem no século XXI sobre o processo da glocalização, termo que ele toma emprestado do sociólogo Roland Robertson (1995) para definir a ascensão e relação mútua entre pequenos núcleos/ instâncias locais e a dinâmica global. Ou seja, a comunidade local começa a pensar – e agir – em escalas diferenciadas e entrepostas sobre termos globais, transcendendo por vias diferenciadas a sua condição restrita. Think global, act local, para “outro mundo possível”.

Dessa maneira, emerge uma intensa identidade regional, assumindo francos tons anti-imperialistas (clara resposta aos extremos dos ‘ajustes estruturais’ dos últimos 20 anos) e nacionalistas de esquerda, optando pela defesa integral da soberania nacional no Pós-Guerra Fria. Porém, mais profundo que isso, subsiste uma franca liberação irrompendo-se nas bases destas sociedades: dos povos indígenas a uma condição de índio alzado (índio alçado), não mais convivendo e agindo como o índio permitido. Ou seja, a rigor, a maioria não seria mais tutelada por instituições, leis e lideranças brancas (ou brancóides), mas legitimamente identificadas e nascidas no seio deste enorme caldeirão cultural, político e societário.

O autóctone, assim, emancipa-se paulatinamente na atualidade da sua busca pelo poder instituído. Evidentemente, deixando de lado formas ocidentalizadas de organização sociopolíticas como Partidos Políticos clássicos, verticais e hierarquizados que, em grande medida, são incompatíveis com esse mosaico dinâmico. É possível relacionar essa transformação com um caráter reticular inovador, objetivamente assumido nessa nova dinâmica organizacional: estes partidos têm grande aderência junto a estes grupos identitários justamente por possibilitarem a sua participação mais ampliada, e mais, por se relacionarem com as entranhas do comunitário sem negar o nacional e o regional. Mas voltemos ao Peru, Equador e Bolívia, ou melhor, ao núcleo duro deste Arco Andino, visto que o verdadeiramente interessante é acompanhar o desenrolar dos fatos nestes países através de um nexo conjunto, não de forma separada.

É imperioso relatar que Albó trata esses movimentos sociais andinos de forma muito delicada, sem encará-los de forma monolítica e inflexível; pelo contrário, lança mão de precisa apreciação para compreender a diversidade específica de cada localidade nas novas reivindicações políticas (gênero, recursos naturais, participação política, autoidentificação e afirmação cultural, entre outras diversas) dos povos se afirmando na unidade paulatina das “nações originarias”, última etapa do deslocamento histórico-existencial destes grupos. E é precisamente nesse ponto em que nos detemos, em um presente sacudido pela emersão dessas nacionalidades como elementos centrais para a definição do futuro regional, quiçá da Integração Sul-Americana como processo maior.

Se levarmos em consideração que a conquista desse poder instituído – sejam congressos, assembleias constituintes ou cargos de alto poder decisório – pela via democrática foi forjado por uma longa experiência histórica e assim solidificou a hegemonia destes grupos nos países relacionados a esse arco andino, e mais, que essa ascensão tem fortes conteúdos nacionalistas pan-andinos, é impossível não situar os discursos fraternais como um impulso comum, ensejando a reunificação em alguns casos.

Deve-se comentar, entretanto, que esta não se especula na leitura do autor por vias de um só corpo jurídico-legal constitucionalizado, cuja expectativa de ligação estreita entre nação e estado – e assim, reunificação territorial – é advertida inclusive por Albó como uma limitação analítica dos cientistas políticos. Sem comungar da mesma leitura que Albó, é possível entrever questões por um prisma pragmático, posicionado sobre os temas mais sensíveis da integração regional sul-americana, relacionados à região que aferrolha geopoliticamente a Amazônia Brasileira.

A parcela do referido “Arco Andino”, tratada por Albó O que resta como substrato são a pertinência e a potencialidade destes conteúdos (anti-imperialismo, nacionalismo pan-andino de esquerda, questões energéticas comuns, reação antirracista, entre outros) derivando em mais um comportamento nacional/regional influente e decisivo sobre um projeto de Integração Sul-Americana, que possivelmente concorre na esteira do processo de regionalização em curso. Na medida em que este projeto não se encontra mais em um campo meramente seminal, persiste uma série de demandas significantes ainda a serem tratadas pelos países unidos em torno da América do Sul – seguridade jurídica, planejamento energético regional, monitoramento de fluxos ilícitos e migratórios, defesa e segurança militar, entre outros – que são fundamentais para a solução das controvérsias regionais que porventura surjam. Em tempo: já é possível nomear alguns casos: Petrobrás (Bolívia, 2006), Odebrecht/ Furnas (Equador, 2008), brasileiros proprietários de terra no Paraguai, os ‘Brasiguaios’, além da questão tarifária em Itaipu (Paraguai, 2008).

Nesse sentido, é imperioso considerar pragmaticamente os tons multifacetados dessas conjunturas nacionais andinas, na medida em que com elas coexiste a ascensão de lideranças nacionalistas inclinadas à esquerda. A pluralidade de tais conjunturas – por vezes conflitivas – faz com que elas se revelem determinantes processos para o futuro das suas nações devido à própria integração multilateral destas com projeções sólidas de hegemonia para gerar desenvolvimento nas suas economias nacionais e transformação política do ordenamento jurídico, democrático e estatutário dos Estados – ainda que essa transformação não necessariamente objetive estabilidade. Um discurso pan-andino comum baseado em identidade, oposição antissistêmica ao capitalismo e a toda potência “imperialista” (incluindo-se aí o Brasil, por vezes) tem suas raízes e forças-motrizes perfeitamente assinaladas por Albó, que ata os seus cabos em um raio-X preciso da constelação milenar constitutiva do “homem andino”.

Daniel Santiago ChavesÉ pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada. E-mail: daniel@tempopresente.org.

Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos – FUNES et. al (AN)

FUNES, Patricia. Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006, 440 p. Resenha de: MANSILLA, María Liz; ZAPATAT, M. H.; SIMONETTA, Leonardo C. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 357-364, jul. 2009.

La década abierta en 1920 es sumamente rica en lo que respecta a procesos y problemas de singular relevancia que no sólo merecen ser estudiados por su importancia coyuntural sino también porque su fuerte impronta repercutirá en etapas posteriores a lo largo de la centuria. Es esta, además, una década prolífica en lo que a debates y generación de nuevas propuestas se refiere. Así, la doctora Patricia Funes ha decidido transitar estos diez años eligiendo uno de los tantos senderos posibles.

Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos es fruto de una ardua y profunda labor investigativa concebida inicialmente bajo las características y el formato propio de una tesis de doctorado, desarrollado en la Universidad Nacional de La Plata. Ahora, devenido en libro, tienen la posibilidad de circular con mayor libertad y de invitar a sus potenciales lectores a centrar la atención en torno a los contenidos e intenciones que adoptó la reflexión acerca de la Nación entre los intelectuales latinoamericanos por aquellas épocas.

En la primera parte de las tres secciones que componen la obra, la autora asienta las premisas de su trabajo, sus ejes problemáticos y el modo de abordar los mismos, mientras se va introduciendo en el análisis de los elementos y categorías generales a partir de los cuales gravita la investigación: años veinte, intelectuales y nación.

De acuerdo a Funes, se trata de una coyuntura que, comúnmente, ha quedado subsumida e invisibilizada en periodizaciones más amplias del tipo clásico como “1880-1930” o “período de entreguerras” – que invalidan cualquier reflexión de los procesos de cambios y continuidades – pero que, no obstante, posee una entidad propia que permite dotarla de nuevos significados que hacen posible individualizarla. Desde su perspectiva, los años 20 poseen un carácter coloidal y fundacional, en el que se originan múltiples tradiciones de pensamiento culturales y políticas que atravesarían el siglo XX latinoamericano.

La segunda parte del libro se detiene en el tratamiento y desarrollo de los argumentos centrales. Y un tercer apartado contempla las reflexiones finales. El libro también cuenta con un apartado con bibliografía seleccionada que evidencia un intento de síntesis de lo producido acerca del período y de incorporación de diversos enfoques y disciplinas que tienen por objeto de estudio a la sociedad latinoamericana del siglo XX – con especial referencia a la década de 1920 –, lo que permite proseguir con el estudio en profundidad de las problemáticas planteadas.

En efecto, la crisis de la Gran Guerra, la relativización de Europa como faro de la cultura y la creciente oposición a las agresivas políticas militares de Estados Unidos sobre la región fueron generando dudas, rumbos significativos y un novel continente de sentidos en el mundo de las representaciones, recortando la silueta de problemas e inquietudes comunes a un grupo de hombres de distintos países de América Latina que comenzaban a construir el colectivo específico de los intelectuales. La revolución, el socialismo, el comunismo, el antiimperialismo, el corporativismo, la democracia y la ubicación de esta parte del orbe en la cartografía de la modernidad fueron tópicos que recorrieron la reflexión de estos actores que se ubicaron desde el campo de la cultura y la sociedad. Pero, especialmente, recayó sobre ellos la tarea de pensar y crear interpretaciones y lecturas en torno a la Nación, entidad de sentido conformada desde múltiples visiones y ambivalentes significados al calor de una discusión que atravesaba tanto el plano filosófico-cultural como el político.

Apelando a un registro de análisis que podría caracterizarse como político-cultural, la historiadora entrelaza con soltura y fluidez la reflexión en función de dos grandes universos semánticos. Por un lado, los contenidos y significados inherentes de los discursos y representaciones que pujan por definir qué es la nación en la arena filosófica-cultural. Y por otra parte, se hace presente la intención en el plano político de los intelectuales de cristalizar solidaridades colectivas y (re)crear una “comunidad imaginada” vinculada a la determinación de precisar inclusiones y exclusiones. A ello se suman los enfoques específicos de la historia social, incorporando sobresalientes aproximaciones sobre las sociedades y los contextos que sostienen el accionar de dichos agentes.

En concordancia con su propuesta de análisis, no se contemplan sólo la producción de los intelectuales que se autodefinen abiertamente como pertenecientes a los diversos nacionalismos y como productores de acepciones más o menos felices sobre la Nación.

Por el contrario, el elenco de hombres visitados se amplia de manera sorprendente y, a la vez, sus postulados van siendo cruzados y confrontados no en función de países o de biografías sino a partir de un conjunto de problemas que permitan un acercamiento más explicativo al conjunto de debates antes aludido. En este sentido, la ponderación hermenéutica y metodológica de tres ámbitos específicos (México, Perú y Argentina) y de los personajes escogidos (Víctor A. Belaúnde, Jorge Luis Borges, Manuel Gálvez, Manuel Gamio, Francisco García Calderón, Manuel González Prada, Víctor Raúl Haya de la Torre, Pedro Henríquez Ureña, José Ingenieros, Vicente Lombardo Toledano, Leopoldo Lugones, José Carlos Mariátegui, Andrés Molina Enríquez, Alfonso Reyes, José E. Rodó, Ricardo Rojas, Luis Alberto Sánchez, Manuel Ugarte, Luis Valcárcel, José Vasconcelos, Alberto Zum Felde, entre otros), no sólo ofrece la oportunidad para tensar al máximo las dificultades para pensar América Latina en clave regional y brindar el andamiaje necesario para ver cómo cada uno de estos tópicos son tratados en realidades nacionales bien disímiles, sino también permite romper con aquellas visiones endógenas, ufanistas y cerradamente nacionalistas que coadyuvaron a configurar los imaginarios y resortes sobre los que reposaban las historiografías nacionales y abrir canales de diálogo entre distintas tradiciones. Cabe aclarar que la preeminencia dada a estos tres espacios dominantes, que se subordinan a los ejes sobre los que se ha configurado la interpretación, no obtura la peripecia de hacer referencia a otras realidades a lo largo de la obra, recurriendo a un método comparativo que enriquece de forma significativa los planteos a través del muestreo de diferentes tramas de producción intelectual.

La segunda parte del libro se detiene en el tratamiento y desarrollo pormenorizado de los nudos centrales, desplegados en torno a cinco acápites temáticos. En un primer momento se indagan las disímiles y complejas relaciones entre Nación, crisis y modernidad. Bajo el rótulo de “Salvar la Nación” – frase que emerge con insistencia en las más heterogéneas interpretaciones de comienzos de la década –, se piensa en los ejes de cada una de las interpretaciones de la Nación (el Inkario, las mayorías nacionales, la vida civil, la fuerza o la potencia, la religión católica, la historia en común) en función de dos tradiciones clásicas de los tiempos modernos: una idiosincrásica, y la otra constructivista. La hipótesis fuerte de Funes es que la Nación ya no es considerada como un atributo o un perímetro que acompaña o completa al Estado, sino que es tomada como el espacio de condensación de las complejidades y contradicciones sociales en el contexto de una modernidad esquiva y ecléctica pero advertible a todas luces.

En “La Nación y sus otros”, se pone de manifiesto el desplazamiento de una concepción intelectual de nación a partir de las categorías que imponían la tradición liberal (cuyo énfasis recaía en la noción de ciudadanía) y la tradición positivista (acentuando la idea de morfología racial) a una concepción que abrevaba en las consideraciones sociales y culturales. La tesis central de esta sección es que en esta década, el pensamiento latinoamericano buscó una hermenéutica que no clausurara ni el pasado ni el futuro y que contuviera fórmulas para ensanchar la Nación a partir de dos variables: en el tiempo (apelando al pasado, a las tradiciones y a los orígenes) y en el volumen social (al considerar al “otro” antes excluido, encarnado en las figuras del indígena y del inmigrante).

Por ende, el desafío radicó en conciliar en el proceso de incorporación a un conjunto de alteridades complejas y de distinta entidad: étnicas, culturales, religiosas, sociales y regionales.

En tercer lugar, la autora remarca la importancia que el pensamiento antiimperialista de posguerra tuvo en la medida en que constituyó un dilema que configuró un perímetro inclusivo a escala regional y señaló destinos y estrategias comunes para América Latina. Ya no sólo eran las otredades internas los “problemas” a resolver, sino que se sumaron las fronteras culturales y económicas que se recortaron frente al “otro” externo que obligaba a tomar posiciones frente o contra la dominación imperialista pergeñada desde Estados Unidos. A lo largo de “Antiimperialismo, latinoamericanismo y Nación”, se analiza el modo en que categorías como autonomía, autodeterminación, soberanía, independencia, patriotismo y nacionalismo eran puestas en jaque al tiempo que incitaban a reforzar el pensamiento de los intelectuales frente a los desafíos de un “afuera” imperialista.

En el capítulo “Lengua y Literatura: arcanos de la Nación”, se examinan las polémicas en torno del idioma, la presencia de la literatura nacional y la edificación de un canon literario, temas que muestran los sentidos que se imprimieron sobre la Nación. En esta línea, la consideración en los años veinte de los binomios culto/popular, moral/escrito, español (o castellano)/lenguas indígenas, entrelazados con la reevaluación del canon literario, la designación de precursores de la literatura nacional, la ampliación de autoridades y precedencias, las formas de datar y compendiar las historias se conjugan en implícitos y fuertes pilares sobre los que se apoya el discurso y los fundacionales imaginarios nacionales de la década.

Finalmente, en el quinto apartado, “Ser salvados por la Nación. Las búsquedas de una nueva legitimidad”, las protagonistas del debate son las ideologías políticas. Para Funes, la problemática de la definición de la Nación se consolida en el terreno intelectual paralelamente al proceso de debilitamiento o superación del orden oligárquico como correlato de la creciente complejización social y la aparición de actores sociales en la escena pública. Esto condujo a repensar los vínculos entre Sociedad y Estado, en una línea donde nociones como república, democracia, revolución, socialismo, corporativismo son leídos en otra clave, para hallar nuevos y alternativos principios de legitimidad bajo premisa de que es posible “ser salvados” por la misma Nación que se está discutiendo.

Más allá de la unidad en la coherencia y rigurosidad desplegadas para tratar cada problema, se suma otro elemento del orden metodológico que atraviesa los capítulos reseñados: la forma de organización interna. Invirtiendo el orden clásico de la exposición, cada apartado inicia con una clara explicitación de las conclusiones para luego desandar el camino que llevó a ellas. De igual modo, cada capítulo se halla encuadrado en el abordaje de distintos materiales: históricos propiamente dichos, que sirven de soporte material para rescatar la información empírica que configura, en criterios cronológicos, un proceso; teóricos, que colaboran para la comprensión, delimitación y evaluación de los problemas presentados; y fuentes, que son de gran utilidad puesto que permiten una aproximación más estrecha a lo producido por los diferentes actores y posibilitan contar con cierto número de documentos que ofrecen un margen de evidencia de las visiones y perspectivas en la coyuntura. El libro también cuenta con un apartado con bibliografía seleccionada que evidencia un intento de síntesis de lo producido acerca del período y de incorporación de diversos enfoques y disciplinas que tienen por objeto de estudio a la sociedad latinoamericana del siglo XX – con especial referencia a la década de 1920 –, lo que permite proseguir con el estudio en profundidad de las problemáticas planteadas.

La cuidadosa reconstrucción sistemática de las lógicas de configuración de los imaginarios nacionales en América latina durante los años 20 ha sido un desafío y al afrontarlo, la autora ha realizado una muy importante contribución al conocimiento de nuestra historia latinoamericana, manifiesta en una prosa ágil y bajo un tono que es capaz de ir y venir con soltura entre los diferentes aspectos del debate intelectual sin contradecir la lógica narrativa que pretende. Convergencias e integraciones de este tenor son, por cierto, estimulantes y una vez más, se ponen de manifiesto en la aplicación del método comparativo, estableciendo similitudes y diferencias que ese proceso global presenta cuando se lo aborda a escala de cada sociedad nacional. La tarea de repensar nuestros intelectuales ha operado aquí como una excusa para desandar las peripecias de la construcción compleja de la Nación. En este sentido, otra virtud que reviste el trabajo es que ha logrado superar por un lado, los postulados esencialistas y las naturalizaciones ahistóricas y, por otro, las interpretaciones funcionales y fatalistas.

En síntesis, se trata de una obra que se escribe desde la pluma de la innovación y de la imperiosa necesidad de transitar nuevos caminos y formas de escritura histórica acordes a los tiempos que corren, conjugando en su prosa la rigurosidad científica en el sentido “tradicional” – la utilización de la documentación más diver sa y exhaustiva posible, la severidad de la crítica, la teorización apropiada y operativa y la sólida claridad interpretativa, producto de años de investigaciones en historia latinoamericana del siglo XX – y la lectura amena – propia de quien domina el oficio de escribir de manera atractiva, seductora y provocadora –, con el laudable objetivo de “repensar” cuestiones que refieren a nuestros problemas más actuales, como el hecho de que “(…) la historia no sólo no finaliza sino que en nuestros países, hace mucho que recién comienza”. Y en ese transitar, es necesario sentarse a discutir a Latinoamérica y a la Nación sin tapujos y encorsetamientos, en diálogo abierto y plural, como balance y como proyecto.

María Liz Mansilla, Horacio M. H. Zapata e Leonardo C. SimonettaEscuela de Historia – Centro Interdisciplinarios de Estudios Sociales (CIESo) – Facultad de Humanidades y Artes – Universidad Nacional de Rosario, Argentina.

A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos – FERES JR (AN)

FERES JR., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005, 317 p. Resenha de: BOVO, Cláudia Regina. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 351-355, jul. 2009.

Nos últimos dois séculos, os debates em torno do significado de ser americano não possibilitaram a edificação de uma definição comum que fosse aceita e partilhada pelas três partes do continente Americano. A partir de uma mesma origem cultural ibérica, as porções centro e sul desenvolveram uma complexa relação de aproximação que, ao cabo, legou-lhes a designação integradora e, às vezes, generalizante de latino-americanos. Enquanto isso, devido a uma maior aproximação com os referenciais do velho mundo, a porção norte construiu sua autodefinição, tolhendo-se de qualquer vinculação identificadora com o centro-sul americano.

Diante deste quadro, a obra A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos, do cientista político João Feres Jr., traz à cena um exercício laborioso de reflexão sobre a construção histórica do conceito de Latin America. A partir da tentativa de entender os contornos apreciativos e pejorativos que Latin America adquire nos Estados Unidos, o autor dedica-se à pesquisa dos contornos semânticos que o conceito adquiriu tanto entre os textos acadêmicos, quanto no uso da linguagem cotidiana. Feres parte do princípio que a expressão

Latin America empregada pelos norte-americanos foi, e continua sendo, definida como uma imagem antagônica da America do Norte gloriosa.

Neste exercício histórico e também filosófico, Feres Jr. retoma ícones da Teoria do Reconhecimento, como Hegel, Charles Taylor e Axel Honneth, na tentativa de encontrar respaldo entre as ideias de constituição reflexiva da identidade e a negação radical do reconhecimento, promovida pelos norte-americanos, quando se comparam aos americanos do centro-sul. De acordo com as palavras do próprio Feres Jr., sua obra define-se por um “paradigma hegeliano de etnicidade em direção a uma moral negativa, quase kantiana”.

A divergência entre Feres Jr. e os teóricos do Reconhecimento reside no seu interesse pelo estudo das expressões linguísticas e, substancialmente, por conceber que a construção conceitual da expressão Latin America nega qualquer possibilidade de reconhecimento entre o “Eu” americano e o “Outro” latino-americano.

Atento à questão metodológica, Feres Jr. dialoga com outras referências a fim de evitar a sobreposição pura e simples de teorias.

Neste sentido, a partir da crítica à tipologia das formas de desrespeito de Axel Honneth e, com o auxílio da teoria semântica dos contraconceitos assimétricos de Reinhart Koselleck, Feres Jr. desenvolve uma nova categoria de análise que tipifica as formas de desrespeito praticadas pelos usos linguísticos norte-americanos.

Posto isso, torna-se possível a identificação de uma mesma expressão linguística, como Latin America, com os vários tipos de oposições assimétricas usadas no cotidiano. “O termo rural, ou mesmo o termo católico, dependendo do contexto onde é usado pode sugerir atraso” (oposição assimétrica temporal) “e inferioridade” (oposição assimétrica cultural ou até racial). Como a intenção de Feres Jr. é verificar as consequências ético-morais da linguagem de identificação praticada pelos americanos no ato de designar os latino-americanos, ele precisa resguardar a pluralidade de formas de denegrir a imagem do outro, as quais se encontram presentes nesses usos linguísticos.

Ao longo do capítulo dois, Feres demonstra que as referências pejorativas destinadas à identificação dos americanos das porções centro-sul aparecem em dicionários, jornais e até em discursos presidenciais desde o final do século XIX. Tais menções apresentam a expressão Latin America como herdeira de um conjunto de características que os norte-americanos julgavam negativas, como a religião católica, a mestiçagem étnica, o tradicionalismo das instituições político-sociais, o machismo, a acomodação em relação ao trabalho, entre outras. Latin America sedimenta-se como um território sem organização e ordem, seja esta cultural, política ou mesmo econômica.

A produção acadêmica do Latin American Studies também não se eximiu de colaborar com a extensão e a divulgação de visões pré-concebidas sobre a Latin America. Dialogando com as obras de Samuel Huntington, Lyle Maclister e Teodore Wyckoff, Feres apresenta no terceiro e quarto capítulos as análises acadêmicas sobre a modernização da Latin America e a literatura da estabilidade política latino-americana, reconhecendo-a como promotora dos interesses da política externa norte-americana durante os anos 60.

De acordo com Feres, estes cientistas sociais colaboraram para justificar, junto à opinião pública dos EUA, a intervenção e o treinamento militares em projetos de coibição do desenvolvimento do comunismo no continente. Atrás do discurso da estabilidade política e da modernização latino-americana, eles sustentaram a fraqueza política, militar e econômica da região. Segundo o argumento de Feres, “salvar a Latin America do comunismo representava também um meio de garantir a continuação da influência e rentabilidade do capitalismo na região”. É importante destacar que, muitas vezes, devido a interesses econômicos e territoriais na região centrosul americana, os norte-americanos supervalorizavam as depreciações como forma de justificar o seu domínio natural na condução do progresso continental.

Até mesmo a produção de livros-textos para a introdução ao estudo de Latin America nas universidades dos EUA, ainda hoje, contribuem com a reprodução de estereótipos negativos sobre a cultura latino-americana. Feres finaliza sua construção argumentativa, apresentando alguns best-sellers utilizados nas graduações americanas: dentre os principais estão Modern Latin America, History of Latin America, Latin America: a concise interpretative history e Latin American politics and development. O que se percebe, ao longo da leitura do sétimo capítulo, é a preocupação de Feres em destacar, por meio das capas das referidas obras, a questão da depreciação racial que aparece velada no texto escrito. Em tais capas, obras de artistas sul-americanos são apresentadas fora do seu contexto de produção, sendo utilizadas para corroborar duas visões bem preocupantes sobre a Latin America: “um objeto a ser apropriado ou usado, ou um perigo a ser gerenciado ou evitado”.

Ao longo de mais de trezentas páginas, Feres Jr. nos conduz a um universo de hostilidade justificada, que nos choca num primeiro momento, enfurece-nos em seguida e, finalmente, sensibiliza- nos. Choca-nos, pois, diante da construção conceitual de mais de um século, fomos diminuídos e identificados, sob os mais diversos aspectos, como homens fora do tempo da prosperidade do Novo Mundo. Enfurece-nos, porque, através da medida de valor norte-americana, incorporamos uma incapacidade natural de superar nossos próprios desafios, deixando aparentar que nascemos e crescemos tortos por nos desviarmos da ajuda e, principalmente por invejarmos o estilo de vida americano (American way of life). E, finalmente, sensibiliza-nos, pois não queremos ter para com eles a mesma atitude de desprezo, receio ou preconceito.

Porém, o trabalho de Feres merece duas ressalvas. A primeira diz respeito à ideia de que os Estados Unidos manipularam o continente Americano livremente, como se agissem isoladamente, sem o apoio e mesmo a cumplicidade das autoridades políticas latinoamericanas.

Na realidade, muitos eventos se desenrolaram seguindo interesses de grupos políticos e financeiros pertencentes aos próprios países latino-americanos.

A segunda ressalva refere-se ao perigo do leitor, munido das análises oferecidas por Feres Jr., tornar os Estados Unidos o algoz latino-americano, como o Caliban de Rodó, culpando-o por nossos próprios tropeços.

Apesar dessas observações, não podemos deixar de salientar o cuidado de João Feres Jr. em situar claramente suas referências teóricas, desenvolvendo seus argumentos de modo a não tornar absoluto o discurso da alteridade, justificando o enaltecimento do “outro” americano (latino-americanos). Além disso, A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos nos permite mais uma indagação a respeito de como concebemos nossa própria identidade e o pertencimento ao continente Americano.

Em certa medida, o norte construiu sua identificação como americanos, enquanto ao centro-sul coube, ora de forma imposta, ora de maneira endógena, a designação de latino-americanos. Fica difícil não reconhecer que o norte soube construir sua herança derivada diretamente do nome continental; ao passo que o centro-sul recebeu um nome adjetivado a partir do designativo étnico “latino”, cuja procedência é externa ao continente Americano. Dentro dessa perspectiva, eles seriam os americanos, “filhos legítimos” do Novo Mundo, enquanto os outros povos que vivem no continente se transformariam em “filhos bastardos”, frutos de uma mistura mal identificada e, portanto, mal resolvida.

Assim, enquanto a América Latina não conseguir estabelecer sua identidade a partir do que ela realmente quer ser, continuará sendo alvo de estereótipos e definições generalizantes como aqueles apresentados pela obra de João Feres Jr.

Cláudia Regina BovoProfessora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: claubovo@yahoo.com.

Izquierdas y derechas en la mundialización – RUBIO (AN)

RUBIO, Enrique. Izquierdas y derechas en la mundialización. Montevideo: Banda Oriental, 2006. 142p. Resenha de: CABRAL, José Pedro Cabrera. Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.27, p.407-410, jul. 2008.

Sob o título Izquierdas y Derechas en la Mundialización, o historiador e político uruguaio Enrique Rubio apresenta um ensaio que centra sua temática nas novas esquerdas ou as esquerdas progressistas que, a partir dos anos 2000, irromperam em vários governos nacionais do Cone Sul. O livro foca os desafios para essas esquerdas perante o processo de globalização e a necessidade de alternativas para enfrentar o modelo neoliberal representado pelas direitas na América Latina. Com esse objetivo, a obra se divide em seis capítulos.

No primeiro capítulo, Rubio analisa as implicações que a globalização apresenta para a esquerda latino-americana. O que se propõe, essencialmente, é discutir uma alternativa democrática ao processo de globalização. Para tal, parte do pressuposto de que a globalização é irreversível e, portanto, as estratégias de enfrentamento devem passar necessariamente pelo fortalecimento da democracia. Utiliza-se do conceito de altermundismo, de forma a identificar um movimento antiglobalização que, na sua concepção, implica um avanço, visto que esse conceito ultrapassa a mera oposição pelas vias da inovação em todos os terrenos.

Rubio aponta para a necessidade de se pensar uma nova ordem econômica mundial, que implicaria a transformação das instituições. nacionais e supranacionais, procurando seu pleno desenvolvimento, fortalecimento e uma efetiva democratização (isto tomaria mais envergadura nos organismos internacionais). A proposta tem como base a formação de uma articulação progressista internacional, que encontraria seu ponto de apoio no desenvolvimento de macrorregiões, como seria o caso do Mercosul. Dessa forma, segundo o autor, se articulariam iniciativas em redes que poderiam ter um alcance mundial.

No segundo capítulo, intitulado Estado de guerra y guerras culturales, o autor aborda a temática desencadeada (ou atualizada) a partir dos acontecimentos do 11 de setembro, no qual o Estado de Guerra contra o terrorismo trouxe, dos elementos fundantes da política exterior norte-americana, por um lado, a substituição do inimigo ideológico: do comunismo pelo terrorismo, associado ao islamismo, como a principal ameaça para a paz mundial. E, por outro lado, a justificativa dos inúmeros ataques e invasões aos países islâmicos.

Assim, o fundamentalismo, principalmente de base religiosa, tornou-se o alvo das atenções, legitimando a teoria do choque de civilizações. Rubio salienta que o fundamentalismo de cunho religioso é um dos grandes desafios para a esquerda progressista, na medida em que dificulta os processos de afirmação e consolidação da democracia.

Na terceira parte do livro, o autor analisa as crises ideológicas das esquerdas no mundo, com principal foco na América Latina. Rubio observa a vigência de uma nova agenda para a esquerda, que incorporou temáticas emergentes como as questões relacionadas ao multiculturalismo, ao multilateralismo, aos processos de integração regional, às guerras e às lutas pela paz, aos problemas críticos em matéria ambiental e ao enfraquecimento dos Estados nacionais, entre outros.

Essa nova agenda teria como base incontestável e central a questão democrática, entendida como a necessidade de aprofundamento da democracia em todas as relações sociais, como construção social ampla, como legitimação de direitos individuais e coletivos, e como aspiração de normas de convivência social eqüitativas e libertadoras.

Assim, o autor caracteriza o que, em sua opinião, se reflete no pensamento progressista: a democracia pela via da socialização do poder.

Dessa forma, o progressismo seria a única. opção política dentro da esquerda para efetivar essas aspirações democráticas, e também a única que pode combater a direita neoliberal no mundo globalizado.

Na quarta parte da obra, discute-se a questão do patrimônio comum, aludindo, assim, à parte substancial dos novos paradigmas da esquerda. Em primeiro lugar, a questão dos recursos naturais, seguida do conhecimento e das comunicações. Estes associados, por sua vez, como condições sine qua non para o aprofundamento da democracia. O que o autor parece esquecer é que precisamente esses em diversas formas e momentos . foram fatores determinantes de dominação e de dependência para os países latino-americanos.

Rubio considera que, a partir dos governos progressistas, se poderão democratizar essas problemáticas em favor das desigualdades sociais e econômicas.

Como quinto capítulo do livro, Rubio traz a temática da sociedade do conhecimento e pontua os novos desafios que essa apresenta para a esquerda. A mudança de paradigma é inquestionável, e o autor assinala, como a principal força produtiva, a questão do conhecimento. Conjuntamente com o conhecimento, a informação, a educação e a inovação passaram a ser as chaves para o desenvolvimento dos países do terceiro mundo. Esses temas tomaram um lugar privilegiado na nova agenda da esquerda latino-americana e, particularmente, na uruguaia, de onde Rubio fala, ocupando uma posição de destaque nas plataformas programáticas progressistas.

O último capítulo, intitulado La cuestión política, discorre sobre o papel do progressismo (como partido político de massas) como articulador. com a sociedade civil. Apresenta-se, por um lado, como a única. opção democrática conflitante com o neoliberalismo, induzindo a uma nova bipolaridade no cenário político uruguaio: a direita, representante das oligarquias e do neoliberalismo, e o progressismo, representante da democracia, da esquerda e dos setores democráticos e progressistas. Por outro lado, a articulação com a sociedade civil se produziria no âmbito dos movimentos sociais, os quais, independentemente de suas características próprias (gênero, etnia etc.), confluiriam com o progressismo na ampliação da democracia, fundamentalmente a partir da criação, implementação e colocação em prática de políticas públicas de inclusão social. Portanto, o papel dos novos movimentos sociais estaria atrelado à defesa dos paradigmas da nova esquerda: os paradigmas da liberdade, da eqüidade, da solidariedade e dos direitos cidadãos.

A obra de Rubio tem seu foco no progressismo uruguaio em particular, que o autor generaliza para o âmbito da América Latina.

As particularidades do continente fogem à obra, e ficaram postergadas na análise de Rubio, deixando uma lacuna a respeito do que o título do livro apresenta. Sua contribuição oferece uma visão do que essa nova esquerda progressista. uruguaia entende por desafios e também uma definida postura ideológica que diz respeito a essa nova realidade política do país. O progressismo uruguaio (e, da mesma forma Rubio) elabora um discurso híbrido que possibilita a interlocução dos atores sociais e políticos, confluindo permanentemente com o progressismo., tentando, assim, legitimar a agenda da nova esquerda.

José Pedro Cabrera Cabral – Doutor em História. Docente do Departamento de História da Universidade Federal do Tocantins. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq. E-mail: jpcabreracabral@yahoo.com.br.

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Haiti: Fenomenologia de uma barbárie – SCARAMAL (AN)

SCARAMAL, Eliesse dos Santos Teixeira. Haiti: Fenomenologia de uma barbárie. Coleção: Etnicidade, Região e Nação. Goiânia: Cânone Editorial, 2006. 144p. Resenha de: FREIRE, Gildeneide dos Passos. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 411-417, 2008.

A obra supra é fruto da Tese de Doutorado de Eliesse dos Santos Teixeira Scaramal, em História, pela Universidade de Brasília, em 2004. Está dividida em Introdução e três capítulos assim distribuídos: 1. O Caos; 2. O Horror; 3. A Repulsa.

Na Introdução, Scaramal aponta o sentimento de abjeção de outros povos ao migrante haitiano como aspecto fundamental para justificar a barbárie empreendida contra a nação objeto desse trabalho. Conforme a autora, os relatórios técnico-científicos produzidos por políticos, viajantes ou estudiosos da cultura haitiana são os responsáveis por criar conceitos negativos acerca da cultura do povo haitiano, uma vez que se deslocavam dos seus países, na Europa, para estudar a cultura subserviente e primitiva, munidos de conceitos pré-concebidos, muitos dos quais retratando o haitiano como sujo, feio, bruxo, repugnante, canibal, necrofágico, profanadores de túmulos, fétidos e seres de raça inferior. É possível afirmar que quase 100% do povo têm a pele negra e uma história cristalizada na negação de sua identidade por parte dos povos que o subjugaram/ exploraram. Scaramal relatou a esta resenhista que fora, por diversas vezes, ao Haiti, para compreender e constatar detalhes da cultura do povo sobre a qual a maioria dos livros, escritos por europeus, traziam, de forma (re)torcida, a imagem e a identidade cultural do povo negro haitiano. Na obra O que é Direito? Lyra Filho, em que o direito, quando visto sob uma óptica deformada ou (des)focada, não proporcionará a entrega da justiça na medida correta, gerando, para a sociedade, danos irreparáveis e irreversíveis. É assim que Scaramal abstrai as percepções do(a) escritor(a) Europeu em relação à cultura áfricohaitiana: até os dias de hoje, o povo está sofrendo muito com relatórios construídos a partir de um olhar da cultura branca e européia, e um dos responsáveis por isso foram os Relatórios parciais emitidos pelos europeus quando tinham de ir até a subjugada colônia haitiana para .observar. o povo culturalmente subjugado.

Scaramal resgata e critica os relatos de autores que escreveram sobre o Haiti, dizendo que os mesmos reproduzem ideologia, entorpecidas/ entorpecedoras da capacidade crítica de leitores(as) preparados( as) para (re)ler somente uma literatura ocidental/ocidentalizada, que não vê a identidade dos habitantes das terras do Aytí como parte de sua cultura intrínseca, senão como seres humanos canibais e despidos de quaisquer competências para viver em sociedade. Conforme a obra em tela, utilizam-se de expressões e posicionamentos que não traduzem, ou traduzem (de)formadamente/(des)focadamente, elementos da realidade espacial e temporal dos mesmos. A Autora utiliza-se da palavra epifenômeno, de origem grega, para dizer que as obras escritas sobre o povo haitiano são revestidas de uma consciência acessória, secundária, de simples reflexo e sem uma influência real e concreta sobre os fatos do pensamento e das atitudes e condutas de nações que expurgam haitianos como raças e seres abjetos/ desumanizados.

O CAOS, na opinião desta resenhista, é o retrato pintado com riscos precisos de imagens, cores, signos, significados e significantes em que resgata a memória do Haiti – como disse Maurice Halbacks – para refazer, reconstruir e repensar com imagens e idéias de hoje as experiências do passado, uma vez que, para ele, a memória do lugar é um fato social transcendente. O cenário da obra trazido pela autora se passa na América Central e, em diferentes momentos da história, a ilha recebe nomenclatura diversa que não se encontra reunida em outras obras, como nesta escrita por Scaramal. São: 1. La Española: refere-se à alcunha que Cristóvão Colombo deu à ilha Hispañiola . utilizada em referências cartográficas.  2. São Domingos: utilizada por historiadores ingleses, norte-americanos e franceses. Justifica-se pelo Tratado de Ryswick, 1697, em que a Espanha cedeu 1/3 da Ilha à França. 3. Saint Domingue francesa: compreende 1/3 da Ilha determinado por França e Espanha, em 1777, pelo Tratado de Aranjuez, que demarcou os limites geográficos entre as duas nações e onde se encontra o Haiti, que detém 27.750Km². 4.Santo Domingo Espanhola: geograficamente é a República Dominicana que ocupa 48.442 km². É uma ilha para duas nações e, neste caso, Scaramal faz um relato antropológico/historiográfico da ilha e do Haiti, que nos leva a supor estarmos mirando uma obra da época renascentista, tal é a forma como se imagina o modo como o sistema político, social, religioso, familiar e econômico do povo se construiu e foi construído. A autora argumenta o fato de desde a gênese da história das Américas as mesmas não terem sido inventadas antes mesmo de serem descobertas.? Em 1492, como um espaço de canibais pré-colombianos? Para ela, o espaço anterior a 1791 foi o prenúncio do Caos, pelo qual os haitianos passam até os dias atuais. Tudo começou com os grands blancs: fazendeiros, burocratas coloniais e profissionais liberais que reivindicaram certa autonomia em relação à metrópole francesa. Foi essa insurreição que desencadeou a situação político-administrativa do Haiti desde aquela época até a atualidade. Aproveitando-se da instabilidade gerada, os escravizados haitianos insurgiram-se na cena política, para eliminar, submeter e escravizar brancos, tornando-se imperadores, reis e governadores, e elevando o Haiti à condição de primeiro país das Américas a conquistar a independência promovida por escravos (1791-1804). Com essa ação política, percebe-se que os ideais franceses de liberdade, igualdade e fraternidade chegaram à ilha colonizada. Para Scaramal, a ordem estabelecida, nesse momento se .quebrava., porque negros escravizaram brancos. Isso nos remete a Paul Thompson em a Voz do Passado: História Oral (1992:188-189), em que aponta a reflexão sobre o passado pessoal e a aceitação de mudanças como essenciais para a preservação da auto-identidade diante de certas transformações consideradas violentas, pois .as vidas dos profetas africanos, por exemplo, podem transformar-se em mitos, no prazo de três anos”.

O HORROR, para a doutora/historiadora, foi estabelecido com o governo e com a morte do negro Dessalines que, despoticamente, subjugou brancos e negros. Para esta resenhista, Dessalines abriu uma cova ao subjugar negros, porque ele era negro. Com isso, escavou o caos e lançou todos os seus liderados no limbo do horror. O Hades e o Seol eram, ali mesmo, no Haiti e na República Dominicana, até que em 17 de outubro de 1806, o sanguinário foi emboscado e destroçado à semelhança de Trujillo, em 1961, na República Dominicana, pelos atos cometidos contra o seu povo e, em especí- fico, contra Las Mariposas; à semelhança de Hamã, que foi enforcado e destroçado no 5º Séc. a. C, Império Medo-Persa, porque marcou dia e hora para exterminar pessoas inocentes: crianças, jovens, idosos(as), homens e mulheres inocentes. Scaramal resgata a história dizendo que, aos revoltosos, foi permitido profanar tumbas, para rasgar os restos mortais de governantes que foram déspotas. A partir daí, a história dos haitianos fora escrita com nuances impregnadas de suor, dor, imundície, sangue, podridão, necrofagia, magia negra, envenenamentos, zumbificação e canibalismo, na visão dos escritores europeus. Por fim, com esse novo fenômeno instalado, rompeu-se a fronteira entre o Sagrado e o Profano, é o que pode-se abstrair a partir da obra de Mircea Eliade. Para a autora, a idéia de horror está sempre atrelada à idéia de impureza, sujeira, imundície e fedor, sendo o horror um fenômeno e não um processo, como o terror que permite ação formalizada de projetos que são gerados a partir de uma ação política esquematizada. O horror, por outro lado, consiste na cristalização de um sentimento do absurdo e do inexorável, em que o seu elemento de análise principal é o abjeto que causa todo o sentimento de abjeção, e é como se a pessoa humana estivesse imersa no próprio seol, no limbo do hades. Já o terror poderá produzir objetos que despertem o sentimento de horror e, por conseguinte, o de abjeção. Para os intelectuais haitianos foi Saint John, diplomata britânico no Haiti, que em sua obra Haiti or the Black Republic, de 1884, disseminou a semente maldita de que o povo haitiano carregava em sua natureza e era imanente a eles a barbárie, o canibalismo e a feitiçaria traduzidos por atos como sacrifícios humanos, reuniões em cerimônias nos hounfors templos vodus com o objetivo de punir e sangrar aqueles que desobedecessem as normas impostas pela Sociedade Secreta conhecida como Sect Rouge, Vinbrindingue ou Cochons Gris. Estes são delineados como grupo humano de última categoria e raça inferior, por serem descendentes de Caim, uma interpretação bíblica, observe-se, equivocada, porque os descendentes de Caim habitaram em tendas, possuíram gado, foram mestres e pioneiros na arte da harpa e do órgão, pioneiros e mestres na arte da fabricação do cobre e do ferro e jamais podem ser considerados seres de última categoria, como querem alguns pseudo-hermeneutas bíblicos. Essa ferida está aberta até hoje, conforme Scaramal. O horror é marcado pela ação política dos meios de comunicação em não (des)construir o mito de que os haitianos violaram o túmulo de François Duvalier, fortalecendo a idéia de liame dos epifenômenos entre poder, horror e abjeção pelos quais são marcados os migrantes haitianos pelo Caribe e mundo afora.

A REPULSA consiste no modo como os países se comportam em relação aos migrantes haitianos, tratando-os como personas non gratas, mesmo que não tenham infringido nenhuma norma e feito absolutamente nada. Querem, apenas, o direito de ir e vir, se estabelecer, procurar o meio de sobrevivência que melhor condiga com os seus anseios humanos para morar, se alimentar, manter e adquirir bens materiais e imaterias, em tempo de paz, conforme rezam as Convenções, os Tratados e os Acordos Internacionais de proteção à pessoa humana. Haiti: fenomenologia de uma barbárie aponta a República Dominicana como um dos países que expurgam os haitianos por todos os meios, apesar de serem países assentados na mesma ilha e de possuírem traços de raça e etnia quase iguais. Observo que o povo da República Dominicana não aceita imigrantes advindos do Haiti.

Participando de um trabalho jurídico/cultural promovido, por concurso público, pela Ordem dos Advogados do Brasil-OAB/Colégio de Abogados de la República Dominicana-CARD, realizado em RD, no ano de 2006, observei o fato de os Dominicanos não aceitarem a denominação de negros(as) em seus registros de identidades, senão a classificação de índios ou blancos. Percebi que quase 100% da população é negra. Naquela ocasião, indaguei, em visita ao Museu as Las Mariposas, o motivo pelo qual Rafael Trujillo, mesmo sanguinário, manteve-se no poder por tanto tempo. Não me deram uma resposta satisfatória. Mas foi na Obra de Scaramal que compreendi o porquê.

Trujillo – República Dominicana, negociou, por ter relações amistosas, com Stenio Vincent. República do Haiti, sem arbitragem de outros países, a fronteira geográfica e cultural que vige, na atualidade, entre os dois donos da ilha: República Dominicana e Haiti.

A autora propõe em sua tese que os haitianos não são bem-vindos e, quando vão, não são bem recebidos em países da América do Norte e do próprio Caribe. Palavras como repatriação, interceptação e expulsão fazem parte do cotidiano dos haitianos no círculo migratório Estados Unidos/Caribe. São classificados no Documento Blanco como migrantes forçados repentinos, econômicos, boat people e refugiados.

Nenhuma dessas categorias de análise recebe a atenção da legislação internacional de proteção aos direitos humanos como realmente é proposto. O povo haitiano é triplamente violentado: pelo próprio governo, que não supre as suas necessidades básicas; pelos países que escolhem para migrar e pelos organismos supranacionais de proteção aos direitos humanos fundamentais. Na obra, a autora resgata e cita leis e provas documentais em que são relatados casos de afronta aos direitos humanos das pessoas que buscam se proteger de instabilidades econômico-financeiras em seu país e que sofrem toda a espécie de repulsa e abjeção por parte daqueles que as detêm, ferindo, com esses atos, a consciência da humanidade. A resenhista lembra-se de Hanna Arendt, na obra A Condição Humana, em que enfatiza a importância da política como ação e como processo, dirigida à conquista da liberdade. Scaramal traz, no Capítulo 3, A Repulsa com uma tabela com os principais acontecimentos geopolíticos e históricos na demarcação fronteiriça entre o Haiti e a República Dominicana, traçando um registro de fatos de 1629-1936. Os relatórios do governo na Ciudad de Trujillo classificam os haitianos como decaídos de um estado de barbárie para um de selvageria: seres repugnáveis, fedorentos, excrementos de tribos e outros graves adjetivos. Construções literárias como essas causam sentimentos abjetos de repulsa, horror, caos e medo. A obra de Scaramal traz notas tão importantes que serviriam para escrever outro livro rico em detalhes, como o que está sendo analisado. A obra não possui uma conclusão como capítulo à parte. Possui Uma Última Palavra composta por trinta linhas, dentro do capítulo 3. Finalmente, pode-se deduzir que os Direitos Humanos do Povo Haitiano estão sendo violados, porque todo o esforço político que está sendo realizado, na atualidade, é pouco, diante das necessidades de ações mais efetivas de proteção à pessoa humana com base no que já está garantido na Legisla ção de Direito Público Internacional. Constata-se a existência de violência institucional praticada por Estados – partes hipersuficientes.

Gildeneide dos Passos Freire – Doutoranda em Direito Internacional Público e Relações Internacionais pela Universidade Pública de Extremadura – Espanha; Pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas da Universidade Estadual de Goiás (CieAA-GO); Membro da Comissão de Direitos Humanos, Acesso à Justiça e a Direitos Sociais da OAB; Missionária CONAMAD; Advogada Honorária da República Dominicana. Professora de Direitos Humanos, Constitucional e Administrativo do Ministério da Justiça/Secretaria de Segurança Pública – GO.

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Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 272p. Resenha de: TEIXEIRA, Wagner da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.28, p.279-287, 2008.

de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Angela de Castro Gomes é pesquisadora do CPDOC/FGV e autora de diversos livros, entre eles Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1979), A invenção do trabalhismo (1988) e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo (1996). Doutor em História pela USP, Jorge Ferreira é pesquisador do CNPq e já publicou uma série de livros, tais como Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1997), Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (2002) e O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (2005).1 Escrever uma biografia certamente não é tarefa fácil, descrever uma vida inteira já é complexo, ainda mais analisar todo o período de uma existência, levando em conta seu contexto, suas especificidades, seus meandros, as visões que outras pessoas têm do mesmo personagem.

Uma biografia pode tender a contar a história de uma vida de forma linear, os fatos parecem encadeados, numa seqüência que pode dar a idéia de ser imutável, como se a vida das pessoas não pudesse ser alterada, como se não houvesse alternativas possíveis, escolhas a serem feitas. Nesse sentido, Giovanni Levi afirma que, muitas vezes, “seguindo uma tradição biográfica estabelecida e a própria retórica de nossa disciplina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas” (LEVI, 1989, p.169). Sobre isso, vale lembrar a advertência de Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica: “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou” (BOURDIEU, 1986, p. 190).

O livro de Angela e Jorge escapa a essa cilada, com uma linguagem objetiva e direta, que diz claramente o que pretende. Os autores realizaram um trabalho que mostra diversas visões e diferentes opiniões sobre João Goulart. Sua trajetória é contada de forma que parece muito mais o sujeito da história do que um objeto de análise.

O livro é composto por sete capítulos, organizados de forma que cada capítulo é dividido em duas partes, uma primeira escrita pelos autores, na qual se apresenta o contexto político do período abordado e a trajetória de Jango, e uma segunda formada por entrevistas e documentos. Os relatos dos entrevistados dão vida à narrativa, é a fala de quem conviveu com Jango, quem o viu de perto e teve contato com ele, pessoas que estavam ao seu lado ou contra ele, que trabalharam em seu governo ou que articularam a sua queda. Os documentos também são outra fonte de vitalidade para o livro, demonstram as preocupações, as decisões e as escolhas que foram realizadas no momento em que foram escritos. A obra compreende a trajetória de Jango, de seu nascimento em São Borja em 1919, até sua morte em uma de suas fazendas na Argentina, na fronteira com o Brasil em 1976.

No primeiro capítulo, Jango em pessoa nos é apresentado sua infância no campo entre a estância e a escola, a convivência com os peões e o gado. A adolescência marcada pela expulsão da escola e pela conquista do campeonato gaúcho juvenil de futebol pelo Internacional.

A realização do curso de Direito, a preocupação com os negócios particulares da família e, no final de 1945, o contato cada vez maior com Getúlio Vargas, exilado dentro de suas fazendas em São Borja. Seguindo conselho de Vargas, entrou no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e se elegeu deputado estadual em 1947; em 1950 participou da Campanha de Getúlio para a Presidência e se elegeu deputado federal; em 1952, foi definitivamente para o Rio de Janeiro onde teve um escritório político dentro do Palácio do Catete: estava pronto “para novas funções no PTB e no governo” (p.19).

No segundo capítulo, Tempos de formação, são exatamente as atuações de Goulart na presidência do PTB e depois no Ministério do Trabalho que passam a ser analisadas. Em 1950, o partido aumentou sua bancada federal de 22 para 51 deputados, neste mesmo período, consolidaram-se novas lideranças no interior da legenda, nomes como o do próprio Jango, Leonel Brizola e Fernando Ferrari passaram a representar uma nova postura do partido, orientada pelo nacionalismo e pelo reformismo. Em 1952, passou a ocupar a presidência nacional do PTB e, em sua gestão, procurou reduzir as disputas internas e promover o crescimento do partido entre a classe operária. Em 1953, assumiu o Ministério do Trabalho e inovou ao retirar duas das principais amarras dos sindicatos – a necessidade de atestado ideológico e as intervenções quando alguma chapa de oposição era eleita. De acordo com o depoimento transcrito de Hugo de Faria, “foi a época de maior liberdade sindical” (p. 63).

O terceiro capítulo aborda a relação entre Jango, o movimento sindical e as esquerdas. A atuação de Jango no Ministério do Trabalho e na presidência do PTB propiciou uma aproximação com as esquerdas, principalmente o Partido Comunista do Brasil (PCB), mas também com as esquerdas de forma geral, em especial as que atuavam no movimento sindical. Naquele momento, o movimento sindical estava cada vez mais ativo, com um forte discurso nacionalista, reivindicativo e reformista. João Goulart foi se tornando um elo entre sindicalistas e governo. De acordo ainda com Hugo de Faria, Jango era um ministro que sempre dialogava com os sindicalistas, independente do seu grupo político: “tinha abertura política para discutir com um dirigente sindical sem se preocupar se aquele dirigente era comunista, socialista, trabalhista, petebista ou o que fosse” (p. 93).

O quarto capítulo, Jango vice-presidente, trata de sua ascensão à vice-presidência da República em 1955 e sua reeleição em 1960. Naquele período, o vice era eleito de forma direta e independente, isso implicava ter um projeto político e partidário próprio. Sua campanha tinha vida própria na disputa dos votos dos eleitores. O vicepresidente exercia ainda a presidência do Senado e tinha funções diplomáticas, isso “significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos politicamente” (p. 111). Como vice de Juscelino Kubitschek, exerceu uma função de mediação entre governo e sindicatos. Nas eleições de 1960, presidente e vice foram eleitos por chapas diferentes. Com a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de golpe dos ministros militares, teve início um forte movimento de resistência ao golpe, liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Depois do acordo parlamentarista que pôs fim à crise, “João Goulart e seu partido, o PTB, chegavam ao poder; um poder esvaziado e conquistado de forma muito tensa” (p. 117).

Jango presidente da República é o título do quinto capítulo, que mostra a conjuntura crítica na qual Jango assumiu a presidência e governou o país entre 1961 e 1964. Sua posse, nas palavras de Raul Ryff, deu-se diante de uma “situação completamente adversa, com crise política, crise militar, crise econômica, inflação em marcha, tudo isso” (p. 158). Nessa situação, suas primeiras medidas foram no sentido de garantir sua permanência no poder. Na fase parlamentarista, uma postura de “conciliação nacional” foi aos poucos sendo substituída por uma estratégia de enfraquecimento do parlamentarismo.

Após o plebiscito de janeiro de 1963 e o retorno ao presidencialismo, as esquerdas deram início a uma luta cada vez mais radical pelas reformas. De outro lado, a conspiração civil/militar para derrubá-lo ganhava cada vez mais espaço. As iniciativas de San Thiago Dantas de tirar Goulart do isolamento político depois da tentativa de decretação do Estado de Sítio em setembro de 1963 se viram frustradas. A opção de João Goulart foi de se reaproximar das esquerdas.

O tema do sexto capítulo é Jango e o golpe de 1964. Os autores destacam o papel que os vários grupos políticos e militares envolvidos tiveram naquele momento, evitando assim colocar somente sobre João Goulart a responsabilidade sobre aquele evento. De um lado, o alinhamento político de Goulart com o movimento sindical e as esquerdas radicais em defesa das reformas de base. De outro, a postura agressiva da oposição ao governo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo. O impacto da Revolta dos Marinheiros nas Forças Armadas, a quebra da hierarquia e a anistia significaram “um golpe profundo em sua integridade profissional, sustentada pelos valores de disciplina e hierarquia militar” (p.193). No dia 31 de Março, o jornal Correio da Manhã publicou o editorial “Fora”; Auro de Moura Andrade manifestou o rompimento do Senado com o governo; o General Mourão Filho partiu de Juiz de Fora ruma à Guanabara. No dia 1º de abril, Jango foi do Rio para Brasília e de lá para Porto Alegre. O Congresso decretou a vacância do cargo. O presidente estava deposto e chegava ao fim aquele período democrático.

O isolamento final de Goulart no país e sua saída para o Uruguai são os temas do último capítulo Jango no Exílio. Para os autores, seu exílio teve início logo no dia 2 de abril quando foi para uma de suas fazendas em São Borja. Tentou permanecer no Brasil até o dia 4 quando o cerco militar apertou e, “sem alternativas, pediu asilo ao governo uruguaio” (p. 229). Após uma expectativa de retorno imediato, viu aos poucos os militares se consolidarem no poder.

Do ponto de vista pessoal, a estadia no Uruguai permitiu a Jango uma recuperação financeira. Houve tentativas de retorno à ação polí tica, uma reaproximação com Brizola e depois a formação da Frente Ampla com JK e Carlos Lacerda. O aumento da vigilância e das perseguições a ele e a sua família após o golpe militar, em 1973, no Uruguai, forçaram a mudança para Buenos Aires. Em 1975, diante das ameaças da Operação Condor, foi para Londres, onde realizou vários exames, pois sua saúde física e psicológica estava muito debilitada.

Foram várias as tentativas de retorno ao Brasil, todas elas sem sucesso. Em dezembro de 1976, às vésperas de uma nova tentativa de atravessar a fronteira, sofreu um infarto fulminante.

Uma das grandes contribuições do livro é jogar luzes sobre a vida de João Goulart, já que alguns trabalhos anteriores sobre Jango cometiam um equívoco indicado por Norbert Elias em sua biografia sobre Mozart. Segundo Elias, tal equívoco ocorre quando “o interesse é apenas por sua obra, e não pelo ser humano que a criou” (ELIAS, 1995, p. 10). No livro, aparece o João Goulart político: deputado, líder partidário, ministro, vice-presidente e presidente; mas também o gaúcho de São Borja: filho de estancieiro, estudante, jogador de futebol, pecuarista, pai e avô. A obra também não foge ao debate de assuntos polêmicos, como a crise que culmina com o golpe em 1964. Evita o caminho percorrido por outros trabalhos, nos quais a imagem de Jango aparece quase sempre de forma negativa, definindo-o como o único responsável por aquele desfecho. Prefere resgatar a participação de outros personagens políticos: os militares, as direitas, as esquerdas e as forças estrangeiras, enfatizando que todos eles tiveram sua parcela de responsabilidade nos acontecimentos de março e abril de 1964 que resultaram na instauração da ditadura militar.

O texto é muito bem escrito, com uma linguagem direta e explicativa. Sua originalidade fica por conta da forma como foram usados os depoimentos, do grande número de entrevistados e da transcrição de diversos documentos da época. O livro cumpre o seu objetivo ao permitir o encontro do leitor com as múltiplas faces do ex-presidente João Goulart. As diversas falas, algumas de pessoas de seu convívio pessoal, como sua esposa Maria Theresa; auxiliares diretos, como Hugo de Faria; aliados, como o comunista Hércules Correia e o trabalhista Almino Afonso; ou inimigos políticos, como os militares Ernesto Geisel e Antonio Carlos Muricy.

O livro conta ainda com a inclusão inovadora de um CD com discurso de Jango pronunciado na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG), em 31 de maio de 1963, no qual pode-se ouvir, entre outras coisas, a defesa da Reforma Agrária.

Outros elementos que enriqueceram o livro são as fotografias e notas explicativas. Ambas auxiliam o leitor na visualização e compreensão de diversos fatos e personagens citados pelos autores ou pelos depoentes ao longo da obra. Sobre as notas, vale ressaltar que os autores poderiam ter aproveitado melhor este recurso, inserindo- as também para apresentar os dados biográficos dos entrevistados, possibilitando ao leitor elementos para um melhor entendimento das opiniões expostas sobre Goulart e sobre o contexto político de sua trajetória. A lista de depoentes colocada ao final do livro permite essa contextualização, porém se os dados biográficos estivessem distribuídos ao longo do texto tornariam mais fácil a leitura da obra.

Essa é a primeira biografia escrita pelos autores, ambos com uma larga experiência no trabalho historiográfico, especialmente na temática do trabalhismo. O livro foi lançado num momento muito importante, em que se refletiam ainda as discussões em torno dos 30 anos da morte de João Goulart. Sem dúvida nenhuma, o livro dos historiadores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira constitui um marco na historiografia sobre o passado recente do Brasil, tocando em feridas ainda não cicatrizadas. Para isso, utilizam a trajetória de um dos principais personagens daquele período. Uma leitura que se torna indispensável para quem pretende conhecer ou pesquisar a história política brasileira do tempo presente.

Notas

1FERREIRA, Jorge. O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil. Niterói/Rio de Janeiro: Eduff/ Mauad, 2002. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988. GOMES, Angela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores: a política cultura do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio.Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

Wagner da Silva Teixeira – Tem graduação e mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FRANCA) e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: wagnersteixeira@yahoo.com.br

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La historia cultural – SERNA (AN)

SERNA, Justo; PONS, Anaclet. La historia cultural. Madrid: Ediciones Akal, 2005. 249p. Resenha de: MALATIAN, Teresa. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.25, p.223-227, 2007.

Brasil nas últimas décadas e alcançou o estatuto de área das mais promissoras da pesquisa histórica, a ponto de se tornar área de concentração de diversos programas de estudos de pós-graduação.

Nada mais oportuno, pois, que a leitura de um livro como o de Justo Serna e Anaclet Pons, professores especialistas em História Social e Cultural da Universidade de Valencia, Espanha. Entre suas obras, destacam-se o estudo La ciudad extensa (1992) sobre os burgueses no século XIX, e diversos ensaios de historiografia, a exemplo de Cómo se escribe la microhistoria (2000).

La historia cultural: autores, obras, lugares, publicado em 2005, aborda as diferentes possibilidades desse campo historiográfico e contribui para a compreensão da metodologia que vem sendo utilizada pelos pesquisadores que percorrem essa vertente potencialmente inovadora da Historiografia. Para isso, os autores partem em busca da interdisciplinar entre História e Antropologia, e voltado para a distinção entre a natureza e a criação humana que lhes permite afirmar ser a cultura “dispositivo que nos aleja de la naturaleza” (p. 6).

Conceptualização feita, abre-se um amplo leque de possibilidades de construção de objetos da história cultural, a se ocupar de códigos e convenções, instrumentos e regras, significados e prescrições, que permitem ao historiador um manancial riquíssimo de temas a serem trabalhados com as ferramentas de um método que se constrói na interface da disciplina com as ciências humanas.

Idêntico percurso, também em perspectiva historiográfica, permite aos autores desvendar, na pletora de obras que abordam a história cultural, temas e métodos mais significativos que caracterizam o campo na segunda metade do século XX. Melhor dizendo, o fio condutor desse livro é dado pela “genealogia do campo”, a qual permite a percepção da vitalidade do recorte analítico e as inumeráveis dimensões de possibilidades de construção do objeto. Para alcançá-la, é rastreado o “colégio invisível” dos autores que se sobressaem nos estudos de história cultural, num percurso de filiações e interdependências convergentes para a construção de um campo metodológico tramado em dimensões intercontinentais e muito distante de um paradigma unitário.

Os anos 1970 constituem, nessa perspectiva, um marco na formação de uma rede textual que agrega Roger Chartier, Carlo Guinzburg, Peter Burke e Robert Darnton, e tem como figura central Natalie Zemon Davis. As práticas acadêmicas de interlocução entre pares são esmiuçadas pelos autores desse livro em busca dos fios da trama da rede nem sempre totalmente invisível, porém agregadora de perspectivas analíticas e temáticas inovadoras desse “modo de fazer” que compartilha a fragmentação da História com os herdeiros divididos de Braudel.

Constitui excelente contribuição o tratamento historiográfico desse colégio e seus desdobramentos na busca de modos de construção extensas obras, centradas num único tema, no formato de tese acadêmica, e sim ensaios e fragmentos reunidos em volume, autônomos porém entrelaçados e que, em relação dialógica, constituem a característica textual de disseminação do objeto, fraturado em operação historiográfica devedora de Walter Benjamin e Wittgenstein. A complexidade sucessiva da abordagem, a multiplicação de referências a interlocutores internos, a reescrita contínua em resposta a múltiplos auditórios permitem a conexão entre os textos através de uma idéia mais geral que lhes serve de vínculo secreto e iluminação. Estratégia que reforça o conceito de cultura como código, marco, repertório de possibilidades.

Ao desvendar o colégio invisível dos autores e obras relevantes para a História cultural, o livro detém-se na identidade acadêmica e experiência de vida que constituiria o elemento forte de ligação entre os historiadores. Para isso, importância decisiva é atribuída aos anos de formação desses pesquisadores no pós-Segunda Guerra Mundial e à maturidade por eles alcançada na década de 1960, período marcado pela “americanização” da cultura e pela difusão do materialismo histórico no mundo acadêmico europeu. Com esse pressuposto, foi possível aos autores da obra em análise construir uma rede, tendo como epicentro a figura aglutinadora de Natalie Zemon Davis, situada na intersecção entre os expoentes da historiografia marxista britânica em sua vertente cultural e a historiografia francesa.

Serna e Pons apresentam um recorte da vertente do marxismo britânico de R. Hoggart, R. Williams, E. P. Thompson e E. Hobsbawm, ressaltando sua contribuição para o “novo materialismo cultural”, centrado na história from below e na cultura popular, nas experiências e tradições do povo comum que ocuparam os pesquisadores da universidade de Oxford.

Em Natalie Z. Davis essa proposta encontra ressonância no estudo do menu peuple e das mulheres, que alcança, em suas pesquisas, dimensão inovadora também pela leitura de M. Bakhtin e seus aportes cultura na França moderna (1975). Entusiastas admiradores de Davis, os autores reservam a esta autora um lugar destacado no colégio invisível dos historiadores da cultura, vistos em perspectiva européia.

Da historiografia vinculada aos Analles, sobressai no percurso a valorização de Os reis taumaturgos (1924), de Marc Bloch, na medida em que lhe é atribuído o papel de antecessor dos estudos de cultura, conceito que seria progressivamente dilatado em decorrência das relações estabelecidas pelos historiadores entre História e Antropologia, especialmente na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS). Ao percorrer a historiografia francesa, Serna e Pons não escondem seu entusiasmo pelo impacto causado pela vida e obra de Marc Bloch, que vem sendo, nos dias atuais, cada vez mais valorizado, e pelo “atelier parisiense”, no qual rastreiam a construção dos alicerces da antropologia histórica que permitiu o florescer da História cultural, desde os “pais fundadores” da Nova História até Roger Chartier, passando das mentalidades à história sociocultural.

O largo alcance territorial do colégio invisível da História cultural, pulverizado entre o Velho e o Novo Mundo, inclui também a universidade de Princeton, nos Estados Unidos, considerado o “laboratório” que acolheu Roger Chartier, Peter Burke, Natalie Z. Davis e Carlo Guinzburg, em torno da liderança de Lawrence Stone.

A este coube papel destacado pela reflexão de balanço do estatuto epistemológico da História que clareou os avanços da disciplina em direção aos estudos de cultura, na qual o estilo narrativo e o viés etnográfico permitem evocar no leitor um “efeito presencial”.

Melhor dizendo, por tratar-se de uma História vivamente construída, sugere ter sido o historiador testemunho presencial dos fatos e interlocutor direto de seus personagens. Muito contribuiu para tal efeito o retorno da narrativa no discurso histórico, inovador porque tornado complexo com a alternância de descrição e análise que permitem configurar a cultura em perspectiva histórica, e alcançar substituição da Sociologia e da Economia pela Etnologia, como referente dominante nas ciências sociais.

Não deixam de assinalar a figura destacada que Clifford Geertz ocupou na virada antropológica da História ao propor, em A interpretação das culturas (1987) e em O antropólogo como autor (1989), a construção de miniaturas etnográficas ricas em significado e iluminadoras de comportamentos e códigos reguladores das grandes paisagens culturais. Seu modelo interpretativo apropriado pelos historiadores permite a leitura da cultura como texto no qual o evento constituiria um signo, em micro-dimensão, cujo sentido está à espera de interpretação pelo observador externo, a exemplo do enfoque micro-analítico realizado por R. Darnton em O grande massacre dos gatos (1984).

Com tais marcos de referência, Serna e Pons percorrem ainda as mais recentes tendências historiográficas como o linguistic turn e a virada auto-reflexiva que resulta na análise da obra histórica como objeto cultural que finaliza o longo percurso historiográfico iniciado na fundação dos Annales, e construído em conexões transnacionais.

Vale a pena salientar o aspecto didático da obra que faz dela um sólido instrumento para os praticantes do gênero. A lamentar-se, apenas, a ausência de referências ao desenvolvimento dos estudos do campo no país de origem dos autores.

Teresa Malatian – Prof. Adjunto do Departamento de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP, Campos de Franca. E-mail: tmalatian@uol.com.br.  Acessar publicação original

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A escrita da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) – GATTI JÚNIOR (AN)

GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990). Bauru: EdUSC; Belo Horizonte: Editora da UFU, 2004. 252p. Resenha de ROIZ, Diogo da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.25, p.229-235, 2007.

A escrita da história nos livros didáticos de ensino fundamental (e médio) no Brasil é tema que vem despertando a atenção de estudiosos de Educação, Ciências Sociais e História desde, pelo menos, os anos de 1980. Evidentemente, encontram-se estudos pioneiros antes desse período, muito embora fossem esparsos. Com o desenvolvimento dos programas de pós-graduação no país, a partir dos anos de 1970, avançou-se consideravelmente no número, densidade e discussões da historiografia brasileira sobre a história dos livros didáticos no país. A tese de Circe Bittencourt, Livro didático e conhecimento histórico, que foi defendida em 1993 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, é um bom exemplo da forma como as pesquisas sobre a produção, divulgação e usos dos livros didáticos de história se desenvolveram de lá para cá. Foi seguindo os passos dessa historiografia que, em 1998, Décio Gatti Júnior defendeu, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, sua tese Livro didático e ensino de história: dos anos sessenta aos nossos dias.

Edusc, em co-edição com a Edufu. Uma alteração substancial do texto, ora publicado, foi a exclusão das entrevistas que o autor fez em 1997 com autores de livros didáticos e editores, provavelmente em função da quantidade de páginas do material. O livro permaneceu dividido em três capítulos.

Na apresentação assinada pela professora Ester Buffa, orientadora do trabalho, desenvolvido entre 1994 e 1998, esta já esclarece as características do texto para o leitor, dando ênfase às suas contribuições para o tema. Para ela:

Ao buscar uma explicação, depois de analisar toda uma enorme coleção de livros didáticos de História, o autor, apoiado num referencial teórico-metodológico adequado, empreende uma análise do livro didático que passa pela sua escrita e confecção. Mostra como se passou, quanto à escrita, do autor individual à equipe técnica responsável (cap. 1) e quanto à confecção, da produção artesanal à indústria editorial (cap. 2).

Finalmente, focaliza as transformações ocorridas na escola e na sociedade brasileiras que fizeram com que o livro didático se tornasse definidor do processo de ensino-aprendizagem (cap. 3).(Gatti Júnior, 2004, p. 12-3).

Indica ainda que, por seu recorte inédito e suas análises, a leitura do livro é recomendada para os alunos de cursos de graduação em História, Ciências Sociais e Pedagogia, e ainda para os estudiosos da História da Educação e das Teorias do Currículo de História do Ensino Fundamental e Médio das escolas publicas do país.

Na introdução, o autor indica o que o levou a fazer essa pesquisa (além da questão formal do título de doutor na área de Educação), quais foram seus questionamentos e suas hipóteses. Segundo ele, “part[iu]-se da idéia de que, a partir da década de 1960, quando teve início o ainda inconcluso processo de massificação do ensino brasileiro, tenha ocorrido: a transformação dos antigos manuais individual à equipe técnica responsável pela elaboração dos produtos editoriais voltados para o mercado escolar; e a evolução de uma produção editorial quase artesanal para a formação de uma poderosa e moderna indústria editorial” (Idem, p. 16). Cada uma daquelas características correspondeu a cada um dos três capítulos do livro, tal como, acima, Ester Buffa já havia referido. Ressalta ainda que “a delimitação espacial foi se solidificando concomitantemente ao avanço do desenvolvimento da investigação, na qual os sujeitos envolvidos encontravam-se nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte e João Pessoa, bem como os empreendimentos editoriais enfocados concentravam-se na região sudeste do Brasil” (Idem, p. 17). Para atingir seus objetivos, pautou-se metodologicamente nos procedimentos de André Chervel sintetizados no texto História das disciplinas escolares, traduzido no Brasil em 1990. Observa que:

[…] a partir dos relatos feitos pelos autores e editores de diversas coleções didáticas, foi possível perceber que a constituição dos conteúdos disciplinares, expressos nos livros didáticos, não era a transposição dos saberes produzidos na pesquisa científica, mas sim, resultado de um leque amplo de fatores, tais como: as novidades produzidas no âmbito das ciências, que são selecionadas conforme as opções teóricometodológicas dos autores e, por vezes, dos editores; as mudanças curriculares e programáticas provenientes dos diversos órgãos que legislam sobre a educação escolar; a sociedade civil, especialmente a mídia que por vezes conduz o aparecimento ou a valorização de certas temáticas em detrimento de outras. (Idem, p. 18).

Assim, ao destacar a escolha do período, do recorte do tema e das fontes, o autor preocupou-se em expor a procedência dos livros didáticos que pesquisou e onde pesquisou. Por outro lado, o tema e as fontes para a pesquisa justificavam-se ainda, segundo ele, porque além “de desempenhar esse papel central no cotidiano mencionar, no exercício profissional dos educadores dos mais diferentes níveis, os livros didáticos desde há muito são ainda o produto mais vendido pelas editoras nacionais” (Idem, p. 26).

E desde que surgiram, “os livros didáticos ganhavam, em pleno século XVII, uma função que conservam até os dias de hoje, a de portadores dos caracteres das ciências. De fato, durante os séculos subseqüentes, a palavra impressa, principalmente aquela registrada na forma de livros científicos, ganharia um estatuto de verdade que ainda hoje se dissemina em grande parte dos bancos escolares e da vida cotidiana das pessoas” (Idem, 36).

Como estariam caracterizados os processos de editoração e distribuição dos manuais escolares e dos livros didáticos no Brasil? Como definir a sua periodização? Essas questões foram fundamentais para o autor definir precisamente o seu recorte, e ao mesmo tempo pensar a história dos livros didáticos de ensino fundamental (e médio) no Brasil. Nas suas palavras:

O período compreendido entre as décadas de 1930 e 1960 caracterizou-se, no que diz respeito aos manuais escolares, da seguinte forma: foram livros que permaneceram por longo período no mercado sem sofrer grandes alterações; livros que possuíam autores provenientes de lugares tidos, naquela época, como de alta cultura, como o Colégio D. Pedro II [fundado em 1838]; livros publicados por poucas editoras que, muitas vezes, não os tinham como mercadoria principal e, por fim, livros que não apresentavam um processo de didatização e adaptação de linguagem consoante as faixas etárias às quais se destinavam. Nesse sentido, a década de 1960 foi o momento da transição desses manuais escolares para os livros didáticos do final da década de 1990, pois todas as características mencionadas foram paulatinamente sendo transformadas e adaptadas a uma nova realidade escolar […]. (Idem, p. 37).

A proposta do autor no livro começava, nesse sentido, por estudar, no primeiro capítulo, o lento e gradual processo de transição do autor individual para a equipe técnica responsável pela produção, diagramação e editoração dos livros didáticos de História de ensino fundamental (e médio) (e médio). Para demonstrar essa passagem, o autor contou com a contribuição da professora Joana Neves, que escreve livros didáticos desde 1975, do professor José Jobson de Andrade Arruda, autor de livros didáticos desde 1976, e dos professores Ricardo de Moura Faria, que escreve desde 1975, e Flávio Costa Berutti, que começou em 1986. Todos eles, a partir de entrevistas, permitiram que o autor fosse historiando as mudanças na linguagem, na adaptação ao público, na profissionalização do processo de editoração e na distribuição dos livros didáticos, a partir da década de 1970. O autor, demonstrando as diferenças e proximidades, compara as trajetórias acadêmicas de cada um dos entrevistados. Finaliza a análise do capítulo discutindo questões como a formação da memória nacional, da verdade no discurso histórico, da periodização em história, a rotina de trabalho, a relação com os editores e a maneira como cada um deles percebeu as mudanças que foram ocorrendo na escrita e na editoração dos livros didáticos.

No segundo capítulo, volta-se para a forma como ocorreu a passagem de uma produção tipicamente artesanal, para uma verdadeira indústria editorial especializada na produção de livros didáticos de História (e outras áreas do saber) de ensino fundamental (e médio) no país. Para contribuir com essa demonstração, também como no capítulo anterior, o autor se pautou em entrevistas realizadas em 1997 com os editores Alexandre Faccioli, da Saraiva, Lino Fruet, também da Saraiva, José Orlando Cunha, da Editora Lê, e João Guizzo, na época diretor da Ática. Também procurou indicar as semelhanças e diferenças entre cada um deles, como viram o desenrolar do processo nas suas editoras e no mercado editorial brasileiro, e como se relacionavam com os autores de livros didáticos durante esse período.

No terceiro capítulo, procurou evidenciar a passagem da escola voltada para as elites, para uma escola de massas, na qual o produto central passava a ser o livro didático. Nesse capítulo, o autor mescla as contribuições dos autores de livros didáticos e dos editores entrevistados, para melhor demonstrar essa passagem e como ela foi recebida pelo mercado editorial brasileiro. Evidencia como autores e editores passaram a se preocupar com o currículo, os programas oficiais, a diversidade regional, e em conseqüência disso melhorar o serviço de distribuição e editoração de livros didáticos e paradidáticos.

Nesse processo, o autor mostra a importância que os livros didáticos passaram a ter na veiculação de conteúdos escolares, no processo de ensino-aprendizagem, norteado por procedimentos metodológicos que incluíam o uso de letras de música, filmes e imagens no trabalho dos professores com seus alunos. Finaliza o capítulo evidenciando como os livros didáticos passaram a ser o produto central de várias editoras, que, para melhor distribuírem seus títulos no mercado, definiam sofisticadas estratégias de divulgação e publicidade perante a sociedade, as escolas e os professores do ensino fundamental (e médio) no país.

A leitura desse livro, nesse sentido, oferece ao leitor um conhecimento pormenorizado de como os livros didáticos de história de ensino fundamental (e médio) foram escritos e produzidos nas últimas décadas, com destaque para a passagem do autor individual para a equipe técnica especializada, da produção artesanal à indústria editorial de confecção de livros didáticos e paradidáticos e, finalmente, das mudanças da escola voltada para a elite se ampliar e abranger as massas. Nas suas palavras:

O governo federal, maior comprador de livros didáticos das editoras privadas, passava a observar com mais atenção aquilo que adquiria para distribuir à população carente [em função da inflação do mercado editorial de livros didáticos no país e da definição, pelo MEC, de formas mais eficientes de avaliação dos livros didáticos produzidos e distribuídos massas, que suplantou o de elite do início do século XX, ganhava em qualidade, ainda que faltassem livros aos alunos do ensino médio e verbas suficientes para a aquisição de livros pelas bibliotecas escolares. (Idem, p. 238).

De modo que o texto é uma bela contribuição para o tema, e certamente será um convite para novas pesquisas sobre o assunto

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP, Campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campos de Amanbaí.

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PINSKY Carla Bassanezi (Org), Fontes históricas (T), Contexto (E), ROIZ Diogo da Silva (Res), Anos 90, Fonte histórica, Ensino de História, Metodologia da História, Pesquisa histórica

PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 302p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.227-233, 2007.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP, Campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campos de Amanbaí.

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Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007. 272p. Resenha de: RODEGHERO, Carla Simone. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.235-242, 2007.

Jango: as múltiplas faces, de Ângela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira, é um livro que foi pensado a partir do reconhecimento de que a memória e a história sobre João Goulart se concentram no período da presidência da República e a partir da percepção de que, ainda hoje, esse personagem histórico continua suscitando paixão e polêmica. Para mostrar que a atuação política de Jango foi muito mais longa do que seu mandato presidencial, os autores optaram por produzir uma narrativa biográfica acompanhando a trajetória de Jango e contemplando tanto sua dimensão política quanto a pessoal. (p. 9). Optaram também por mostrar que essa trajetória foi multifacetada. Segundo Gomes e Ferreira, as múltiplas faces de Jango vão além da pluralidade constitutiva do homem moderno., já que Goulart pode ser caracterizado, por excelência, como um personagem assinalado pelo contraditório, sendo, por isso, um desafio para interpretações que se queiram unívocas e lineares. (p. 9).

Essa percepção ganha corpo, a cada capítulo do livro, com a apresentação de um vasto conjunto de depoimentos e de alguns pessoal de Jango aí retratado. Assim, após uma exposição elabora- da pelos autores e acompanhada por imagens, são transcritos os depoimentos e os demais documentos, que possibilitam que o leitor se confronte com a diversidade dos pontos de vista a respeito de João Goulart. Com esta estratégia, os autores buscaram escrever uma biografia aberta à interpretação dos leitores., (p. 10) sem, no entanto, descartar o auxílio e a mediação dos historiadores.

A maior parte das entrevistas foi recolhida no acervo de depoimentos do Setor de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. São entrevistas realizadas no contexto de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos desde a década de 1970. Outras, mais recentes e relacionadas à trajetória pessoal de Jango, foram recolhidas pelos autores. Entre os depoentes estão familiares e pessoas próximas da família, como a esposa, Maria Thereza; a filha, Denise; o procurador Bijuja. Outro grupo é formado por membros do PTB e do governo deposto, como Abelardo Jurema, Ministro da Justiça entre 1963-1964; Almino Afonso, Ministro do Trabalho e da Previdência Social, em 1963; Evandro Lins e Silva, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República e Ministro das Relações Exteriores, em 1963; Hugo de Faria, Ministro do Trabalho em 1954, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República em 1963 e Presidente do Banco do Brasil em 1964; Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul entre 1958 e 1962 e deputado federal pela Guanabara, eleito em 1962; Raul Ryff, Secretário de Imprensa da Presidência da República entre 1961 e 1964; e Wilson Fadul, Ministro da Saúde, entre 1963 e 1964. Também são apresentados depoimentos de apoiadores e de opositores políticos, que revelam os diferentes níveis de apoio e de oposição que se fizeram sentir ao longo da trajetória política de Jango. No primeiro caso, têm-se, entre outros, Francisco Julião, Deputado federal e líder das Ligas Camponesas, e Hércules Correia, ser citados Afonso Arinos de Mello Franco, da UDN, e os milita- res ligados ao golpe, Antônio Carlos Muricy e Ernesto Geisel.

Os depoimentos são apresentados ao final de cada capítulo, aprofundando, exemplificando, complexificando e enriquecendo a narrativa dos autores. No final do livro, o leitor encontra um quadro com a relação dos depoentes, com um breve currículo dos mesmos, a data da entrevista e o nome dos entrevistadores. Porém, como boa parte dos entrevistados não é automaticamente reconhecida pelo leitor comum e mesmo pelo especializado, fica faltando, no momento em que cada depoimento é apresentado, a remissão a uma nota de rodapé que permita situar, com rapidez, quem está falando, qual sua relação com os fatos em discussão, para quem está falando e quando concedeu a entrevista. Este de- talhe técnico beneficiaria o leitor, já que a consulta ao quadro final quebra o ritmo da leitura e prejudica a avaliação sobre as escolhas feitas pelos autores quando da seleção dos depoimentos. Por outro lado, várias notas explicativas acompanham os capítulos, mas elas se referem a personagens, fatos, instituições, leis que são, muitas vezes, de maior conhecimento público do que a trajetória ou filiação política dos depoentes.

Feita esta breve apresentação da obra, antes de entrar no relato das múltiplas faces de Jango., é preciso lembrar que a trajetória de pesquisa de Gomes e Ferreira sobre os temas do getulismo e do trabalhismo torna-os altamente qualificados para escrever sobre João Goulart. Ao longo das últimas décadas, seus trabalhos têm contribuído para repensar fenômenos da história brasileira pós- 1930, especialmente no que diz respeito ao período que é inaugurado com a redemocratização de 1945 e com a Constituição de 1946.

Boa parte das manifestações políticas e sindicais desse período havia sido alvo de severas avaliações e críticas, construídas a partir do conceito de populismo, ao longo dos anos 1960 e 1970.

Gomes e Ferreira têm realizado trabalhos pioneiros que permitem repensar tais interpretações. Além disso, o próprio personagem João Goulart já foi alvo de atenção direta de ambos os autores, em diversas oportunidades.

Ao longo do primeiro capítulo, o leitor acompanha João Goulart desde seu nascimento, em 1919, até sua entrada no mundo da política. Fica sabendo a respeito das posses da família em São Borja, do curso de Direito realizado em Porto Alegre e da posterior volta à terra natal para assumir os negócios, após a mor- te do pai. Acompanha, em São Borja, a rotina do jovem Jango transformada com a chegada de Getúlio Vargas, no final de 1945, seu posterior envolvimento com a criação do PTB e sua eleição para a Assembléia Legislativa gaúcha em 1947. É informado sobre o aprofundamento da sua atuação política nas articulações para a eleição de Vargas em 1950, ano em que Goulart também é eleito deputado federal. Neste capítulo, ainda é descrito o período de 13 meses, durante o qual Jango se afastou do mandato para atuar como Secretário do Interior e da Justiça no Governo de Ernesto Dornelles, no Rio Grande do Sul. Sabe-se, finalmente, que ao reassumir o cargo, no Rio de Janeiro, Vargas lhe concedeu um gabinete de trabalho no Palácio do Catete. Lá, Jango seria muito mais visto do que no Congresso Nacional.

Essa trajetória de envolvimento na política se consolidou com a passagem de Jango pelo Ministério do Trabalho, em 1953, o que é tratado no segundo capítulo da obra. Neste momento, teria se revelado a capacidade de negociação de Goulart, mediando questões entre empresários e trabalhadores, como aconteceu na greve dos marítimos. Medidas como a abolição do atestado ideológico para dirigentes sindicais permitiram a atuação em conjunto de lideranças trabalhistas e comunistas. A informalidade com que Jango se dirigia a essas lideranças aceitando, inclusive, convites para churrascos em final de semana para discutir demandas sindicais de trabalhadores, segundo relatam os autores, chocou setores da sociedade brasileira. A estada no Ministério culminou com militares com ampla repercussão levou à saída de Goulart da pasta do Trabalho.

Antes da entrada no Ministério, porém, Jango havia assumi- do a Presidência do PTB. O terceiro capítulo trata do sindicalismo no período entre 1945 e o começo da década de 1960, mostrando as aproximações entre os trabalhistas e o PCB. Em parte desse período, Jango viria a ocupar a vice-presidência da República (nos governos Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros). Naquela época, como se lê no quarto capítulo da obra, ser vice-presidente exigia fazer uma campanha à parte e, depois de eleito, assumir, entre outros encargos, a presidência do Senado. Segundo os autores, ser vice-presidente significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos. (p. 111). A junção das possibilidades oferecidas pelo cargo com a prévia experiência de diálogo de Jango. que mantinha forte influência sobre o Ministério do Trabalho com o movimento sindical, teria contribuído para a estabilidade política do governo JK. O relacionamento com Jânio, todavia, teria sido mais difícil, já que o presidente fazia questão de demonstrar seu distanciamento em relação ao vice, eleito pela chapa oposta. O episódio da renúncia de Jango e a campanha da Legalidade também são narrados neste capítulo.

No capítulo seguinte, os autores se debruçam sobre o período em que Jango esteve na Presidência da República. Nesta parte, são enfatizados, entre outros aspectos, o seu programa nacionalista mínimo; as dificuldades com os credores internacionais; a falta de apoio no Congresso, onde PSD e PTB divergiam sobre questões essenciais do programa de governo; o afastamento das forças reformistas da estratégia da luta parlamentar; as substituições de gabinetes e o plebiscito que aprovou a volta do presidencialismo.

A partir dessa fase, é apresentado o Plano Trienal, com suas metas e a conjuntura que levou ao seu abandono. O capítulo é concluído com o tratamento da crescente radicalização política que atingiu optativas de negociação, aproximando-se das organizações que, ao longo do tempo, mais abertamente o sustentaram: o movimento sindical e as esquerdas radicais. (p. 144).

O golpe de 1964 é tratado no penúltimo capítulo do livro, que narra os acontecimentos que se seguiram ao comício de 13 de março: a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, o compareci- mento do presidente à solenidade de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, no Automóvel Clube, o levante em Minas Gerais e a movimentação de Goulart até sua saída para o Uruguai. O não-apelo à resistência estaria ligado à percepção do Presidente de que havia um alto risco de guerra civil. (p. 196).

Jango no exílio. é o capítulo que encerra a biografia. Aí é tratado o rompimento definitivo entre Goulart e Brizola, depois de uma curta aproximação. Fica-se sabendo que após um ano de exílio, Jango passou a se dedicar a investimentos agropecuários no Uruguai. Por conta disso, além de engordar bois, tornou-se um dos maiores fornecedores de arroz daquele país. São brevemente descritas as articulações em torno da Frente Ampla, logo tornada ilegal. Vigiado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o ex-presidente afastou-se de qualquer atividade política, voltando a se dedicar exclusivamente a seus negócios pessoais. (p. 231). Sofreu um enfarte em 1969, viu a sua situação e a da família se com- plicarem com o golpe de 1973, no Uruguai. Em 1974, passou a residir em Buenos Aires. Na Argentina, continuou com seus negócios agropecuários e comprou propriedades. Sua saúde, no entanto, estava debilitada: Jango alimentava-se mal, fumava e bebia muito, sofrendo de bruscas quedas de pressão arterial, desmaios e dores no peito. (p. 232). Em 1976, após receber ameaças de que seus dois filhos seriam seqüestrados, Goulart os enviou para Londres. Fez gestões para voltar ao Brasil. Em 6 de dezembro daquele ano, morreu no exílio, vítima de um enfarto fulminante.

para os autores do livro, o conjunto dos depoimentos e documentos apresentados instiga o leitor a tirar suas próprias conclusões, dialogando com a narrativa dos capítulos. Os autores resgataram também a própria voz de João Goulart, apresentando alguns discursos por ele proferidos, um dos quais no formato de CD. Tal material permite empreender uma série de comparações e de questionamentos. Avaliações absolutamente contrastantes sobre Jango convivem, em tais documentos, com diferentes valorações atribuídas a certas características pessoais ou políticas de João Goulart. A leitura dos depoimentos suscita questionamentos sobre como era visto e como foi descrito o preparo (ou a falta de preparo) de Jango para o cargo de Presidente da República; sobre as avaliações a respeito da consistência do seu programa de reformas de base e sobre a sinceridade no propósito de realizá-las; sobre o paradoxo de o rico proprietário de terras propor uma reforma agrária; sobre a sua capacidade de dialogar e de construir consensos, em situações nas quais os interlocutores eram sindicalistas e quando o diálogo precisou ser feito com os setores mais conserva- dores da sociedade brasileira. O perfil que os autores apresentam de Jango, como um governante que queria dialogar e, ao mesmo tempo, fazer as reformas acontecerem, faz pensar sobre o papel da conciliação e da radicalização na política brasileira, dos anos 1960 aos dias atuais.

Finalmente, é preciso chamar a atenção, no livro de Gomes e Ferreira, para a importância do recurso à memória na escrita da história recente do Brasil e para as contribuições da História Oral nesta tarefa. Isso é particularmente fecundo no caso de Jango, um personagem polêmico que, apesar de ter uma longa trajetória política, ainda é associado quase exclusivamente à derrota representada pelo golpe de 1964. Isso se deve, creio, ao fato do golpe e do regime militar serem, ainda hoje, marcos fundamentais da nossa da ditadura ainda permeiam boa parte das discussões políticas no Brasil. Ao mesmo tempo, cada vez mais, instigam historiadores a se voltarem a este período e àquele que o antecedeu. Desta tendência fazem parte livros como Jango: as múltiplas faces.

Notas

1 Sobre outras publicações dos autores sobre o assunto ver: Ferreira, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: Jorge Ferreira; Lucília de Almeida Neves Delgado. (org.). O Brasil Republicano O tempo da experiência democrática – Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 1, p. 343-425; Ferreira, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 181-212, 2004. Ferreira, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005 (especialmente os capítulos: O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do trabalho; A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961 e O último ato: sexta-feira 13 na Central do Brasil). Ver ainda: Ferreira, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. No que se refere a Ângela de Castro Gomes, ver: GOMES, A. M. C. . O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói – RJ, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996; GOMES, A. M. C.  Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos Trabalhadores? In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) João Goulart entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006; e GOMES, A. M. C. O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Carla Simone Rodeghero – Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.

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Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa. 1850-2000 – ELEY (AN)

ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa. 1850-2000. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2005. Resenha de: AGGIO, Alberto. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.353-360, 2006.

Embora não integralmente identificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente incontestáveis. O socialismo foi um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas na Europa durante os séculos XIX e XX. Ele marcou profundamente a história da esquerda européia e é praticamente impossível referir-se a ela sem levá-lo em consideração. O socialismo foi, pelo menos até a década de 1990, a referência central da esquerda européia e os partidos socialistas e comunistas a hegemonizaram de maneira integral.

Pode-se argumentar que aquilo que se entende por socialismo também variou desde o século XIX e hoje o seu significado é, sem dúvida, bastante diferente daquele que se postulava no passado.

Nos últimos 20 anos, a hegemonia de comunistas e socialistas também se desvaneceu e hoje a esquerda européia vem buscando novos caminhos. Assim, narrar, analisar e refletir a respeito da história da esquerda e do socialismo europeu – uma tarefa cada vez mais monumental para qualquer investigador – implica mobilizar e estabelecer um domínio suficientemente claro tanto dessa dinâmica de largo prazo quanto das muitas outras referências que permeiam as históricas relações entre socialismo e esquerda na Europa.

É essa a trilha que segue Geoff Eley no seu livro Forjando a democracia, cujo propósito é o de explicar a potência, as virtudes, os caminhos e descaminhos, as vicissitudes e os desafios históricos e atuais que marcam a esquerda européia. Ainda hoje a palavra “socialismo” continua a ser empregada para se fazer referência ao conjunto de partidos políticos oriundos historicamente do movimento operário europeu que emergiu e ganhou força na segunda metade do século XIX, mesmo que se reconheça que esse conjunto seja formado mais por diferenciações de seus componentes do que por uma homogeneidade clara. Como Geoff Eley afirma logo no início do seu livro, o socialismo é antes de tudo um referente histórico da esquerda européia, na verdade, o “núcleo da esquerda européia”, ainda que esta tenha sido “sempre maior do que o socialismo” (p. 28-29).

Mas há uma referência maior em toda essa história e que Geoff Eley assume como central em seu trabalho. Procurando sintetizar o argumento nuclear do livro se poderia dizer que a democracia européia – e não um regime de tipo socialista – representa a grande construção histórica do socialismo e da esquerda naquele continente. A partir desse argumento central – que se expressa inclusive no título do livro –, Eley procura compreender o socialismo não como uma doutrina abstrata ou metafísica e sim como um movimento histórico que buscou permanentemente construir a democracia, tornando-a cada vez mais social e, portanto, ampliando seguidamente o seu escopo. Essa mesma perspectiva o faz analisar o papel da esquerda na luta e na construção de consensos democráticos nas diversas conjunturas que marcaram dramaticamente a história européia, especialmente no desenrolar do século XX. Eley evidencia uma visão precisa da situação histórica da democracia na Europa: ela não é uma “dádiva” e nem está “assegurada”. No passado e no presente, a democracia “exige conflito, a saber, o desafio corajoso da autoridade, a assunção de riscos e atos de coragem temerária, o testemunho ético, confrontações violentas e crises gerais em que se rompe a ordem políticosocial dada” (p. 24). Na Europa, o seu advento não representou, portanto, um fato natural nem derivou da prosperidade econômica, não sendo tampouco um “subproduto inevitável do individualismo ou do mercado”. Para Eley, a democracia estabeleceu-se e se consolidou “porque uma grande quantidade de pessoas se organizou coletivamente para reivindicá-la” (p. 24). Somente depois de 1945 é que a democracia na Europa conseguiu se sustentar com base em um consenso amplo e profundo capaz de garantir uma lealdade popular à ordem instituída no pós-guerra.

Forjando a democracia insere-se, portanto, na linha historiográfica que procura analisar as práticas e a cultura política do socialismo europeu a partir dos seus significados concretos, assumidos no embate político de cada momento. Essa linha historiográfica tem gerado contribuições significativas para a história do socialismo e da esquerda, sempre a partir de questionamentos que antes eram desprezados ou sequer levantados.

Forjando a democracia expressa, assim, uma espécie de visão reformista da história da esquerda, extremamente valorizadora da trajetória de conflitos e de lutas do socialismo europeu.

Nesse sentido, seria importante refletir brevemente aqui a partir do fato de que, na sua construção política, o socialismo não nasce como um ato teórico iluminado e sim como um movimento sociopolítico e cultural que assimilou concepções e valores de outros movimentos e concepções de mundo, além de ter desenvolvido uma concepção própria. O socialismo havia nascido com o capitalismo industrial e teve suas origens nos estratos mais profundos da sociedade européia. Compartilhou com liberais, radicais e cristãos conservadores a visão de que o proletariado industrial era o setor social mais prejudicado pelo capitalismo e que este lhe roubava a possibilidade de viver o que havia de positivo na existência humana. Como uma faceta já reconhecida por inúmeros historiadores, o socialismo obtém sua força motora espiritual tanto na razão do Iluminismo quanto na paixão do Romantismo.

Se este engendrava visões revolucionárias nascidas de um mundo cheio de energia, sentimento e liberdade, aquele trazia ao socialismo, além das idéias, dois exemplos concretos de revolução: a Revolução de Independência norte-americana e a Revolução Francesa de 1789. Desta última, os socialistas consideravamse os herdeiros mais legitimados por defenderem intransigentemente a consigna Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não apenas do ponto de vista coletivo e público como também do ponto de vista privado e cotidiano.

Como se sabe, o socialismo combinou uma concepção de liberdade nascida do Iluminismo com as demandas da igualdade nascidas do mundo do trabalhador pobre do século XIX, que pode ser traduzida pela idéia de emancipação presente tanto no seu discurso quanto nos seus movimentos sociais. Marx havia registrado, com imensa agudeza de raciocínio, que a Revolução Francesa havia criado um novo ser histórico expresso na figura do citoyen, e que caberia ao movimento operário a tarefa histórica de criar um novo homem. Esse viria a ser um desafio crítico ao socialismo. A Revolução Francesa havia estabelecido a luta frontal contra a loi civil vigente, tanto no plano de uma loi politique que dava base ao Antigo Regime absolutista quanto no de uma loi de famille que o sustentava no plano privado, perpetuando o domínio patriarcal. A enquanto a dimensão privada da família trazia à tona a questão da fraternidade entre os homens. No século XIX, essas duas dimensões distanciaram-se e se desencontraram. O socialismo do século XIX, de acordo com um outro autor (Doménech, 2004), não soube avançar pela trilha da fraternidade e isso acabou tolhendo a ampliação da sua perspectiva emancipadora. A avaliação de que entre a consigna da Revolução Francesa e o socialismo não existe apenas continuidade e desdobramentos evolutivos, mas também uma certa descontinuidade introduz um elemento crítico na análise que demandaria dos estudiosos uma “revisão republicana da tradição socialista”, para usarmos aqui uma expressão de Doménech. O que devemos registrar como altamente interessante é que, num certo sentido, há um reconhecimento implícito de Eley a respeito dessa ponderação no momento em que ele enfatiza que, no século XX, a fixação dos socialistas no terreno da “política de classes” parece ter mantido o problema nos mesmos termos, afastando parcelas importantes da população, especialmente as mulheres, da área de influência do socialismo (p. 29). Em outras palavras, o socialismo perdia sua integridade no sentido de um programa radicalmente moderno em troca de uma ação cada vez mais concentrada nos interesses do mundo do trabalho que encontravam ressonância especialmente na noção de igualdade social.

Não se tratou objetivamente de um “erro teórico”, mas sim de limites de uma prática contingente, de uma opção na ação que redundaria mais direta e facilmente em apoios para o movimento e eventualmente para os partidos do socialismo.

Este é apenas um dos planos que aqui lançamos mão para expressar que, além do livro de Eley, existe um conjunto de investigações que assume e justifica plenamente uma releitura crítica da história do socialismo, uma vez que os limites, as restrições e as exclusões conformavam-se como a outra face das opções estratégicas adotadas pelo socialismo europeu. Em outras palavras, a voltado para fins de poder e de transformação. Como afirma Eley, “se as transformações contemporâneas expuseram as fraquezas do socialismo no presente, especialmente as conseqüências excludentes de concentrar a estratégia democrática na ação progressista da classe operária, então essas idéias têm muito a nos ensinar sobre as limitações do socialismo também em épocas anteriores” (p. 28).

Contudo, a política não foi apenas negativa e ensinou algo de positivo aos socialistas. Eley confirma que estes, desde os primórdios, evitaram levar uma política de isolacionismo no interior das sociedades onde atuaram e encontraram, especialmente nos liberais e nos radicais de outros segmentos sociais, aliados para suas ações. Os socialistas sempre precisaram de aliados e nunca alcançaram seus objetivos por si mesmos quer fosse para difundir suas idéias publicamente, fazerem suas agitações, quer para se afirmarem institucionalmente, organizando greves, concorrendo às eleições ou mesmo formando governos. Em sua trajetória de afirmação política, o socialismo possibilitou às massas uma integração ao sistema da ordem que, após a grande guerra civil européia de 1914 a 1945, acabaria por produzir aquilo que certa vez J. Habermas chegou a qualificar como a grande construção da modernidade ocidental: o Estado de Bem-Estar social.

Muito já se escreveu sobre o Estado de Bem-Estar social e as críticas a este parecem respeitáveis. Contudo, é importante levar em conta que, apesar de não ter elaborado um projeto de emancipação coerente, o Estado de Bem-Estar social produziu, de fato, os cidadãos autônomos e críticos que o socialismo pretendia gerar.

Mais do que isso, foi a partir da sua construção que o socialismo vinculou-se direta e profundamente à democracia oferecendo à sociedade européia um sentido de futuro. Somente a partir desse momento, afirma Eley, “a democracia iria se tornar genuinamente universal, porque finalmente as mulheres teriam o direito de votar” (p. 560).

Entretanto, o tempo não passou em vão. As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do socialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra; um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo.

Essas mudanças, de acordo com Eley, proporcionariam a destruição do “entorno que a tradição socialista havia necessitado para crescer” (p. 560) e talvez tenham sido mais profundas e decisivas, assim como seus efeitos mais desmoralizantes, do que o colapso final do comunismo (p. 549).

O resultado foi o estabelecimento de uma situação crítica para o socialismo e para a esquerda, o que acabou por colocar em questionamento profundo alguns aspectos da sua tradição, dentre estes a própria concepção que os socialistas construíram da história.

Como um dileto filho do Ocidente – que levou ao paroxismo a busca de uma sociedade diferente que funcionasse com base no planejamento –, o socialismo se pensou como uma utopia. Hoje, resta muito pouca coisa a propósito da noção de que o socialismo poderia ser concebido como uma sociedade cujos fundamentos estariam assentados na direção que tomava o avanço progressista da história bem como na crença de que se poderia não apenas conhecer como controlar o mecanismo e a dinâmica dessa história.

Se, como afirma Eley, “o socialismo começou com a ambição de abolir o capitalismo, de construir uma democracia igualitária a partir da riqueza que o capitalismo oferecia”, no final do século XX, “o socialismo havia se transformado num ideal ainda mais difuso, numa ética política abstrata baseada na justiça social” (p.

549). Eley não considera o seu livro um epitáfio à esquerda e ao ponto crítico: “se o socialismo foi essencial para as melhores conquistas da democracia, insisto, o fato é que as possibilidades da democracia sempre superaram o alcance do socialismo” (p. 571- 2).

O capítulo conclusivo de Forjando a democracia tem como epígrafe um fragmento de um texto de Stuart Hall, de 1989, que vale a pena ser aqui reproduzido: “Gramsci disse: ‘volte violentamente o rosto na direção das coisas que existem hoje’. Não como você gostaria que elas fossem, nem como você imagina que elas eram dez anos atrás, não como são descritas nos textos sagrados, mas como realmente são: o terreno contraditório e pedregoso da conjuntura atual” (p. 559).

É cristalino o fato de que hoje o socialismo não se configura mais como um programa de ação revolucionária tal como pretendeu ser ou, de fato, foi nos séculos XIX e XX. Não se sustenta tampouco como uma tradição. Ao socialismo não parece haver futuro a ser buscado no passado. Resta a ele encontrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e real contaminação cultural que poderá lhe dar um novo sentido histórico. Ler criticamente o livro de Eley ajuda a refletir nessa direção.

Referências

DOMÉNECH, Antoni. El eclipse de la fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004.

Alberto Aggio – Professor Livre docente de História da UNESP/Franca.

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Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia – FEITOSA (AN)

FEITOSA, Lourdes Conde. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. 168p. Resenha de: SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

Herdeiros da tradição judaico-cristã recebemos a informação primeira de que o sentido da existência humana nos era dado por intermédio do Verbo Divino. Assim, aprendemos com os livros bíblicos o quanto a realidade poderia ser explicada pela palavra.

Então, sob a luz de teorias teológicas, inicia-se a disseminação da teoria hermenêutica, centrada em análises sintáticas e etimológicas, a fim de tornar o texto bíblico mais racional, leia-se, mais científico. Tal processo consumiu séculos de nossa história ensinando-nos a pensar a realidade a partir da escrita literária, empregando imagens apenas como ilustrações embelezadoras das edições.

Somente nas primeiras décadas do século XX, estudos de semiótica e de semiologia contribuíram para o deslocamento de nosso olhar, conformado ao que Derrida chamou de logocentrismo, para enxergarmos a colaboração da produção imagética. Com isso, despertamos para a possibilidade de interpretação dos valores sociais e do contexto histórico representados em inscrições parietais ou em relevos, pinturas em cerâmicas, estátuas e estatuetas, etc.

Nesse sentido, no livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, resultado de um longo trabalho de pesquisa de doutoramento, com dados recolhidos em várias bibliotecas do Brasil e do exterior, e ainda de visitas aos sítios de Pompéia, Lourdes Conde Feitosa dedica-se ao estudo crítico sobre as fontes materiais pompeianas, oferecendo ao leitor uma nova abordagem para as inscrições paradoxalmente preservadas pela grande erupção do Vesúvio em 79 d. C., e postas à tona somente no século XVIII.

A autora demonstra salutar ousadia em sua obra não apenas por trabalhar com um corpus pouco explorado pelos estudiosos, mas ainda por retirar análises criativas sobre a sexualidade popular em Pompéia. Outro aspecto interessante deste livro é a junção de fontes literárias com fontes materiais, sem que o entrelaçamento delas pareça complementar as informações apresentadas pela autora. Dividido em cinco capítulos, sua argumentação principia com o capítulo intitulado “Gênero, amor e sexualidade: olhares metodológicos”, em que Feitosa apresenta-nos um balanço historiográfico dos estudos realizados sobre gênero, amor e sexualidade.

Nesse capítulo, a autora questiona teorias e métodos selecionados pelos estudiosos, voltados para a leitura racional dos fatos, centrada na identificação da verdade histórica e, por esse motivo, geradora de uma narrativa histórica totalizante e unificadora. Assim, Feitosa afirma escrever uma “microhistória […] e destacar o heterogêneo, o local e o específico” (p. 24).

No segundo capítulo, denominado “Representações do amor e da sexualidade na literatura acadêmica”, a autora discorre sobre a complexidade semântica da palavra amor, que em sua definição, abarca sentimentos como affectus, dilectio, caritas e eros, como revelam os grafites pompeianos expressos em vocábulos ou em desenhos.

Feitosa delineia o quadro interpretativo dos estudiosos de tais expressões humanas, revelando insuficiências teóricas, constatando a predileção dos estudiosos por análises dirigidas às relações amorosas e sexuais aristocráticas. Nesse sentido, ao estudar as manifestações da sexualidade popular, a autora brinda-nos com uma nova safra de pensamentos descentrados do eixo habitual.

Reflexões sobre a antiga Pompéia Romana constituem a tônica do terceiro capítulo denominado “Pompéia: edificações de um cenário histórico”. Com essa escolha metodológica, a autora remete-nos a aspectos interessantes da vida cotidiana em Pompéia, realçando elementos constituintes da estrutura social e econômica da cidade. Para tanto, Feitosa realiza uma minuciosa leitura das fontes materiais, epigráficas e literárias disponíveis, relatando as particularidades das representações imagéticas dos grafites ou graphio inscripta pompeianos, uma vez que as inscrições podem ser vistas em quase todos os locais públicos e privados da cidade, ou seja, onde havia paredes.

Após a contextualização socioeconômica da sociedade pompeiana, realizada no terceiro capítulo, a autora aponta seus desdobramentos na vida cotidiana de Pompéia, cujas particularidades das práticas populares compõem a temática desenvolvida no capítulo seguinte, nomeado “A expressão popular nos grafites”.

Para distinguir o aristocrata do popular, a autora pautou-se nos conceitos de honestiores e humiliores, recorrentes na literatura latina. Feitosa salienta a origem e a significação social variadas desses vocábulos; em suas palavras: “A tradução literal de honestus (honor – honra, respeito) corresponde aquele que é ‘honrado’, ‘virtuoso’, ‘nobre’, e humilis, ‘o que está no chão’ (humus), ‘o de baixa condição’, ‘o comum’, ‘o modesto’; mas o interessante a ser observado é a conotação adquirida segundo o lugar em que é usado” (p.75).

Encerrando seu percurso, a autora apresenta as inscrições parietais dos populares no quinto capítulo de seu livro, o qual intitulou de “Amor e sexualidade em inscrições parietais”. A autora versa a respeito das constantes inscrições populares sobre suas venturas e desventuras amorosas; como pôde observar durante sua pesquisa nos sítios de Pompéia, Feitosa conclui: “O tema amoroso fazia parte das preocupações cotidianas desses ‘grafiteiros’ e é por meio de suas referências sexo-afetivas que penso na composição do feminino e do masculino, em uma articulação de gênero.

Para essa análise selecionei duas práticas sexuais que, em seu âmago, estão relacionadas à sexualidade masculina e à feminina: a ação de futuere [ter relação sexual com] e de cunnum lingere [praticar a cunilíngua]” (p. 97-98).

Não apenas no último capítulo de seu trabalho, mas ao longo de todas as páginas, Feitosa manifesta sua preocupação com a sexualidade humana. Portanto, o livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, de Lourdes Conde Feitosa, representa tanto um movimento de sedimentação dos estudos clássicos no Brasil como a inserção, no mundo das idéias, de um pensamento holístico no tocante à sexualidade dos antigos romanos. Mais um aspecto interessante de seu texto é o tratamento dado à sua temática: a sexualidade dos populares, esquivando-se de análises limitadas pelo olhar moralista bem como de repetições analíticas pautadas em relatos de Plínio, o jovem ou de Tácito, fazendo emergir relatos diversificados e contraditórios sobre a vida cotidiana em Pompéia.

Maria Aparecida Oliveira Silva – Doutoranda em História Social – FFLCH/USP. Bolsista Fapesp. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

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Pictorial narrative in ancient greek art – STANSBURY-O’DONNELL (AN)

STANSBURY-O’DONNELL, Mark D. Pictorial narrative in ancient greek art. Londres: Universidade de Cambridge, 1999. Resenha de: NÓLIBOS, Paulina Terra. Anos 90, Porto Alegre, v.10, n.17, p.3-7-310, 2003.

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Palavra de Presidente – WASSERMAN (AN)

WASSERMAN, Cláudia. Palavra de Presidente. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002. Resenha de: FERREIRA, Carla. Anos 90, Porto Alegre, n.10, n.18, p.161-162, 2003.

Carla Ferreira – Jornalista e Mestranda em História da UFRGS.

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Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina – MARTINS (

MARTINS, Maria Helena (org.). Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial; Prefeitura de Porto Alegre; Centro de Estudos de Lieteratura e Psicanálise Cyro Martins, 2002. Resenha de OLIVEIRA, Maria da Glória de. Anos 90, Porto Alegre, v.10, n.18, p.163-165, 2003.

Maria da Glória de Oliveira – Graduanda do Bacharelado em História UFRGS.

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O longo amanhecer – Ensaios sobre a formação do Brasil – FURTADO (AN)

FURTADO, Celso. O longo amanhecer – Ensaios sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. Resenha de: SANTOS, João Henrique dos. Anos 90, Porto Alegre, v.9, n.15, p.153-155, 2001.

João Henrique dos Santos – Pós-Graduando em História na UNESP/ASSIS.

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Rivalidades e solidariedades no movimento operário (porto Alegre 196-1911) – BILHÃO (AN)

BILHÃO, Isabel. Rivalidades e solidariedades no movimento operário (porto Alegre 196-1911). Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 1999. Resenha de: SCHMIDT, Benito Bisso. Anos 90, Porto Alegre, v.8, n.13, p.134-138, 2000.

Benito Bisso Schmidt – Professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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ociedade e política na Primeira República – JANOTTI (AN)

JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Sociedade e política na Primeira República. São Paulo: Atual, 1999. Resenha de: PACHECO, Ricardo de Aguiar. Anos 90, Porto Alegre, v.8, n.13, p.139-142, 2000.

Ricardo de Aguiar Pacheco – É mestre em História pelo Programa de Pós-Graduaão em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor na SMED/PMPA.

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Simpósio Internacional sobre Neonazismo, Revisionismo e Extremismo Político [MILMAN] (AN)

[MILMAN, Luis]. Simpósio Internacional sobre Neonazismo, Revisionismo e Extremismo Político. Porto Alegre: UFRGS, [2000]. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Anos 90, Porto Alegre, v.9, n.15, p.157-162, 2001.

João Fábio Bertonha – Doutor em História Social/Unicamp. Professor de História Contemporânea na Universidade Estadual de Maringá-PR.

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História social da criança abandonada – MARCÍLIO (AN)

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. Resenha de: FENELON, Déa. Anos 90, Porto alegre, v.7, n.11, p.186-193, 1999.

Déa Fenelon – Professora doutora em História pela Universidade Federal de Minas gerais.  Acesso apenas pelo link original

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A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial | Ronaldo Vainfas

VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Resenha de: BUENO, Clod0aldo. Anos 90, Porto Alegre, v.4, n.5, p.207-211, 1996.

José Rivair Macedo – Departamento de História – UFRGS Acesso apenas pelo link original

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Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a política externa independente (1951-1964) – VIZENTINI (AN)

VIZENTINI, Paulo G. F. Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a política externa independente (1951-1964). Petrópolis: Vozes, 1995. 325p. Resenha de: BUENO, Clodoaldo. Anos 90, Porto Alegre, v.4, n.5, p.212-215, 1996.

Clodoaldo Bueno – UNESP.

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O sertão prometido: o massacre de Canudos no Nordeste Brasileiro – LEVINE (AN)

LEVINE, Robert M. O sertão prometido: o massacre de Canudos no Nordeste Brasileiro. São Paulo: Editora da USP, 1995. 392p. Resenha de: MACEDO, José Rivair. Anos 90, Porto Alegre, v.4, n.6, p.193-198, 1996.

José Rivair Macedo – Departamento de História – UFRGS Acesso apenas pelo link original

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A vitória da Razão (?) – ANTONACCI (AN)

ANTONACCI, Maria Antonieta M. A vitória da Razão (?). São Paulo: Marco Zero; CNPq, 1993. Resenha de: FENELON, Déa Ribeiro. Anos 90, Porto Alegre, v.3, n.3, p.155-158, 1995.

Déa Ribeiro Fenelon – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP.

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Anos 90 | UFRGS | 1993

Anos 90 4 Anos 90

Anos 90 (Porto Alegre, 1993-) é o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). Tem por objetivo divulgar pesquisas avançadas e recentes da área da história e de áreas afins que contribuam para a produção do conhecimento histórico e estimular o debate e investigações nessas áreas. Seu conteúdo é de acesso livre, disponibilizado na internet.

A Anos 90 publica artigos inéditos em língua portuguesa, espanhola, inglesa e francesa, resultantes de pesquisas recentes realizadas por doutores em história e em áreas afins, que tenham sido aprovados no processo de avaliação cega por pares, conforme as normas da revista, em regime de fluxo contínuo ou para dossiês temáticos.

Anualmente a Anos 90 lança chamada para submissão de propostas de dossiês temáticos que são avaliadas pela Comissão Editorial Executiva e por especialistas externos. Os organizadores das propostas aprovadas são responsáveis por indicar à Comissão Editorial os doutores especialistas que serão avaliadores  dos artigos submetidos ao dossiê. Os artigos submetidos aos dossiês passam pelo mesmo processo de avaliação cega por pares pela qual passam os demais artigos e resenhas submetidos em regime de fluxo contínuo. Eventualmente, dependendo da avaliação realizada pela Comissão Editorial, pelos organizadores dos dossiês e pelo e Conselho Consultivo, a Anos 90 também pode publicar entrevistas, traduções e documentos históricos.

Periodicidade contínua

Acesso livre

ISSN 1983-201x

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