Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem – VOLÓCHINOV (B-RED)

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, 373p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Poucos duvidam que há muito precisávamos da tradução de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (MFL), feita diretamente do original russo. E é suficiente a observação da referência bibliográfica completa, registrada acima, para constatar estarmos diante de um importante e competente trabalho, e não apenas de uma nova tradução daquela que é, possivelmente, a mais conhecida obra do Círculo de Bakhtin entre nós, brasileiros. Aliás, uma tradução realizada por pesquisadoras brasileiras comprometidas com o pensamento bakhtiniano, conhecidas e reconhecidas na área dos estudos do discurso.

O texto que temos agora responde ampla e muito especialmente a nosso tempo-espaço: são 39 anos depois da primeira edição de MFL, pouco mais de 40 anos que nós, brasileiros, temos contato com a obra do Círculo (Cf. Brait, 2012, p.219). E isso nos deu tempo para buscar compreendê-la em maior profundidade, estudá-la, buscar-lhe a contextualização, dialogar com pesquisadores daqui e de outros espaços que dela também se ocuparam, dialogar mais detidamente com ela e com algumas traduções dela no Ocidente. Tudo isso nos permite afirmar que a recepção de MFL, hoje, é bem diferente daquela da década de 70: não há mais a novidade e a surpresa, ou o impacto causado pelas obras do Círculo que aos poucos foram sendo descobertas pelos primeiros estudiosos brasileiros. Em nossa academia, há muitos pesquisadores que fundamentam seus estudos da linguagem e da literatura, ou mesmo de educação e em outras ciências humanas, no pensamento haurido em fontes bakhtinianas; diferentes grupos de pesquisa que estudam Bakhtin e o Círculo, de norte ao sul do país. Na área dos estudos da linguagem, a Análise Dialógica do Discurso/ADD (Cf. Brait, 2010, p.9-31), de inspiração no pensamento do Círculo, alcança muitos estudiosos, ajudando-nos a compreender o discurso responsivamente. Mais ainda: temos, aqui no Brasil, um periódico acadêmico, bilíngue, cujo foco são os estudos bakhtinianos, de forma específica e em seu diálogo com outras áreas do conhecimento: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Nosso tempo-espaço é outro, e esta tradução responde a muitas das questões que, ao longo dos anos, foram levantadas pela anterior. Não é possível tratar de tudo isso neste texto: escolhemos partir dos dados da referência bibliográfica e fazer algumas comparações entre esta e a anterior. Ao final, trataremos brevemente do Ensaio introdutório, de Sheila Grillo, sem dúvida um texto brilhante e alentado que emoldura1 esta tradução e, por meio dele, permite novas leituras de MFL.

Autoria. Várias questões nos chamam a atenção na referência. Em primeiro lugar, a autoria da obra. Se, na conhecida versão brasileira do francês para o português, cuja primeira edição é de 1979, constava a autoria de Mikhail Bakhtin (V. N. Volochínov), agora temos VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). As tradutoras nos esclarecem: nos originais russos que foram a fonte da tradução (primeira edição de 1929 e segunda de 1930), a autoria é de Valentin Nikoláievtch Volóchinov. Nos parênteses, o Círculo de Bakhtin sinaliza ao leitor o âmbito em que foi produzida a obra, o que ainda nos remete aos variados debates acerca da autoria, sobretudo no Ocidente, desde que os trabalhos bakhtinianos começaram a ser conhecidos na Europa e Américas. Aliás, muito contribuíram para esse debate os textos de Roman Jakobson (e de Marina Yaguello), autores do Prefácio e da Apresentação daquela primeira edição, especialmente a conhecida frase de Jakobson: “Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras … foram na verdade escritos por Bakhtin…” (1981, p.9). Atualmente conhecemos várias das obras e ensaios de Volóchinov, respeitado linguista do grupo, com quem Bakhtin, Medviédev e outros membros certamente dialogaram. A autoria de MFL, colocada dessa forma, parece fazer jus à realidade daquele momento. No final do livro, consta ainda um “Sobre o autor”, com dados biográficos de Volóchinov (1895-1936), que possibilitam ao leitor conhecer um pouco de sua trajetória de vida, na Universidade de Leningrado (atualmente Universidade Estatal de São Petersburgo), no Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV) e no Círculo de Bakhtin, como linguista, crítico de música, de arte e literatura.

Tradução. Voltando à referência inicial, observamos que a tradução, notas e glossário são de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Caso o leitor não as conheça, o livro traz, ao final, um “Sobre as tradutoras”. A primeira – Sheila Grillo, doutora em Linguística pela USP, professora associada da FFLH/USP, tendo realizado pesquisas em diferentes universidades francesas, no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou), em arquivos de Valentín Volóchinov em São Petesbrugo e na Biblioteca Lenin (Moscou); é ela a autora do primoroso Ensaio introdutório. A segunda – Ekaterina Vólkova Américo, também é doutora pela USP, em Língua e Literatura Russa e professora da Universidade Federal Fluminense/UFF. Além das publicações individuais, ambas assinam a tradução de outros trabalhos do Círculo: O método formal nos estudos literários, de Pável Medviédev, e Questões de estilística no ensino da língua, de Mikhail Bakhtin. Na realidade, conhecem profundamente o pensamento bakhtiniano, não apenas a língua russa; e o leitor brasileiro, do qual são parte. Em relação a ele, em artigo que comentam o trabalho de traduções brasileiras de autores do Círculo, Grillo e Américo (2014) reconhecem a tensão entre a fidelidade ao texto russo e o contexto de recepção na língua portuguesa e afirmam:

Temos em mente um leitor estudioso da obra do Círculo de Bakhtin, isto é, um leitor ávido por compreender conceitos produzidos em um contexto intelectual preciso, em um tempo e em uma cultura distantes” (p.82).

Pretendem, assim, uma tradução que evite a “aproximação indevida da teoria do autor com correntes semióticas ocidentais […]” (p.81), mas que esteja atenta ao distanciamento temporal e cultural da produção de MFL. Nessa busca, no cap.2 O problema da relação entre a base e a superestrutura, já observamos muito maior clareza em relação à questão dos gêneros discursivos, preocupação dos membros do Círculo desde a década de 20 e pouco explicitada na tradução anterior, o que se tornou alvo de críticas recorrentes. Se temos ali “A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos ‘atos de fala‘ de toda espécie […]” (1981, p.42), na nova tradução temos “[…] a psicologia social é justamente aquele universo de discursos verbais multiformes que abarca todas as formas […]” (2017, p.107). E adiante: “A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da ‘enunciação’ sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores” (1981, p.42). Na nova tradução: “Na maioria das vezes a psicologia social se realiza nas mais diversas formas de enunciados, sob o modo de pequenos gêneros discursivos, sejam eles internos ou externos, que até o presente momento não foram estudados em absoluto” (2017, p.107). Ou, ainda, o título do capítulo A interação verbal (1981, p.110) é substituído por A interação discursiva, com a justificativa de estar ali presente o mesmo adjetivo russo do famoso texto de Bakhtin – Os gêneros do discurso (2017, p.201). Todos esses cuidados, porém, também respondem a críticas e debates que se seguiram e continuam surgindo em relação aos textos e conceitos elaborados pelos membros do Círculo. Assim, se num primeiro momento, num contexto francês (e depois brasileiro), a obra respondeu às teorias linguísticas daquele momento, com elas dialogando, aquiescendo, complementando, concordando, discordando, agora o diálogo continua, sob novas bases. Como afirma Brait, na orelha da nova tradução, reiterando sua importância e pertinência:

No estágio atual dos estudos bakhtintinianos, as (re)traduções , no Brasil e no exterior, devem-se à consciência de que o pensamento dialógico exige o conhecimento dos contextos de produção e de reprodução, para melhor situar os trabalhos, sua originalidade, seu diálogo polêmico ou não com outras vertentes do conhecimento. Nessa busca, a acessibilidade das fontes russas, arquivos e bibliotecas, possibilita a descoberta de primeiras edições, trabalhos não publicados, esboços preparatórios, documentos que atestam a vida profissional e acadêmica dos autores. […] os (re)tradutores são especialistas que se debruçam sobre as fontes primárias não apenas para divulgar obras e autores, mas para esclarecer a gênese e o alcance do pensamento. E as leituras se ampliam, enveredando por novos caminhos.

Notas. As notas representam, a meu ver, um ganho precioso para o leitor. Fiéis aos originais consultados, são em número bem maior do que aquelas que conhecíamos na primeira tradução: na atual tradução, 163: 107 do autor e 56 das tradutoras; na tradução anterior, 107: 96 notas do autor, 05 trazidas do tradutor do russo para o francês e 06 dos tradutores do francês para o português. No Prólogo na versão anterior, tínhamos apenas uma explicação da tradutora para o francês do que seria o “Skaz”, a partir da tradução francesa de La poétique de Dostoïevski; na correspondente Introdução atual, temos a oportunidade de um rico diálogo com Volóchinov nos comentários que ele mesmo adiciona ao texto principal. Assim, conta-nos que MFL é o “único trabalho marxista sobre a linguagem” que havia até então (1929), na nota de rodapé 1 (p.83); ou nos conta como os “fundadores do marxismo definiram o lugar que a ideologia ocupa na unidade da vida social”, na nota de rodapé 2 (p.84); apresenta sua visão acerca do positivismo e “o culto do ‘fato’ […] como algo inabalável e firme” (p.84), na nota de rodapé 3; ou destaca a pertinência do estudo que propõe na terceira parte – “o problema do enunciado alheio”- como um diálogo com os teóricos da literatura, nota de rodapé 10 (p.88).

As notas de rodapé são ainda um lugar privilegiado de diálogo com as tradutoras, que nos fornecem informações valiosas à compreensão do texto, ora por meio de notas históricas: “Aqui o autor se refere à abolição da servidão que, apesar de ocorrida em 1861, expressa um processo em curso desde o final da primeira metade do séc. XIX […]” (nota de rodapé 8, p.105); literárias, como a nota 7 (p.104), sobre a personagem principal de um romance de Turguêniev, ou a nota 66, sobre a obra de Dostoiévski, na tradução em português, “Pequenos retratos” em Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito […] (p.235), entre outras. Ainda há aquelas que justificam a escolha de termos para a tradução, como a nota de rodapé 12 (p.117), a respeito do debatido/controvertido termo russo perejivánie, “tradução da palavra alemã Erlebnis, que pode significar ‘vivência’ ou ‘experiência'”. Nesse sentido, importante ressaltar um princípio que guiou as tradutoras, em contraposição às opções anteriores de diferentes traduções, expresso por Grillo e Américo: “As escolhas dos tradutores [das versões em francês – dialectologie sociale, e inglês – behavioral speech genres da expressão rietchevye jiznennye jánry] parecem revelar que eles estavam menos preocupados com os termos empregados em russo, do que em encontrar paralelos com o contexto intelectual da época em que realizaram as traduções” (2014, p.80). Princípio que, sem dúvida, responde a críticas realizadas ao longo dos anos a noções como intertextualidade, gêneros do discurso e outras, que tiveram seu entendimento prejudicado em virtude de traduções anteriores que obliteraram o sentido do termo em russo. Bem interessantes para nós, estudiosos da linguagem, são as notas de n.28 e 29 (p.166-7), em que as tradutoras comentam as “dificuldades” de Volóchinov na tradução dos termos saussureanos, já que o Curso de linguística geral foi traduzido na Rússia apenas em 1933, depois da publicação de MFL, portanto. É sempre o respeito ao leitor, a resposta antecipada a questões correntes entre os estudiosos, e a contextualização cuidadosa de termos, noções e obras.

Glossário. Considerando a ampla divulgação do pensamento bakhtiniano, o fato de que suas obras não foram conhecidas do público na ordem em que foram produzidas ou mesmo traduzidas nas várias línguas, o glossário é precioso, além de preciso e redigido por pesquisadoras que conhecem o conjunto das obras do Círculo. Nas palavras de Grillo e Américo (2014, p.81), sua elaboração: “[…] nos auxiliará na manutenção de uma coerência na tradução dos conceitos bem como na compreensão do núcleo conceitual de MFL pelo leitor brasileiro”. Assim, os verbetes primeiramente são apresentados no original russo (em transliteração), com as páginas em que apareceram na presente edição; a seguir, as autoras não só o definem, mas colocam em diálogo o conceito com a própria obra em questão, por vezes com o todo do Círculo e ainda com o contexto de sua produção. Três exemplos:

Ato discursivo individual e criativo ou ato individual de fala, ou ato discursivo (individuálno-tvórtcheski akt riétchi ou individuálni ákt govoriénia, p.140, 148, 153, 200, 225, ou retchevói akt, p. 200) – conceito que se origina na obra de Humboldt e é posteriormente desenvolvido na de Potebniá. A língua é um processo constante de criação individual por meio dos atos discursivos dos seus falantes, diferentemente da sua concepção como conjunto de regras gramaticais e de seu léxico, ideia que Humboldt associa ao resultado do trabalho do linguista. Em Marxismo e filosofia da linguagem (MFL), o enunciado ora é equiparado ao ato discursivo ora é concebido como um produto deste (p.200) (p.353).

Fundo de apercepção (appertseptívni fon, p.254) – também traduzido por “fundo aperceptivo”, termo proveniente da psicologia e da filosofia. O termo aparece em trabalhos posteriores de Bakhtin como O discurso no romance (Teoria do romance I) e Os gêneros do discurso, e compreende as vivências interiores em que o discurso alheio é percebido (p.359).

Signo ou signo ideológico (znak, p.91, ou ideologuítcheski znak, pp.92-4) – dividem-se em signo interior (vnútrenni znak) e signo exterior (vniéchni znak), sem traçar um limite preciso entre ambos. O signo interior é a vivência no contexto de um psiquismo individual, determinado por fatores biológicos e biográficos. O signo exterior existe em um sistema ideológico coletivo e surge no processo de interação entre indivíduos socialmente organizados. Suas formas são condicionadas pela organização social desses indivíduos, pelas condições mais próximas da sua interação, do horizonte social da época e de dado grupo social: ou seja, a existência determina e refrata-se no signo. O signo é a realidade material da ideologia. Os objetos que chamam a atenção da sociedade entram no mundo da ideologia, se formam e se fixam nele, tornando-se signos ideológicos ao adquirirem uma ênfase social. A realidade que se torna objeto do signo constitui o seu tema. Uma vez que as diferentes classes sociais compartilham os mesmos signos, neles se cruzam ênfases multidirecionadas e portanto um signo se torna o palco da luta de classes. O signo pode tanto refletir quanto distorcer a realidade (p.366-7).

Anexo. O trabalho de tradução revela não apenas os estudos profundos das tradutoras como também a pesquisa nos arquivos originais, sobretudo no arquivo pessoal de Valentin Nikoláievitch Volóchinov, preservado no Arquivo Estatal da Federação Russa, em Moscou. É assim que o leitor é brindado com um Anexo, não expresso na Referência bibliográfica, que apresenta o Plano de trabalho de Volóchinov para a elaboração de MFL, constituído pelo terceiro relatório que produziu no ILIAZV, entre janeiro de 1927 e maio de 1928. São 27 páginas valiosas, em que podemos verificar como foi projetada a escritura de MFL, comparar o projeto com sua realização, conferir alterações (poucas), etc., observar o método de trabalho investigativo/produtivo do autor.

Ensaio introdutório. É o derradeiro texto que emoldura esta tradução. Sem dúvida, o texto de uma pesquisadora séria e competente (admirável!), Sheila Grillo, o ensaio nos mostra que a obra é uma “resposta à ciência da linguagem do séc. XIX e início do século XX” na Rússia. Como o prefácio de Patrick Sériot3, que também acrescenta um profundo estudo à tradução francesa mais recente de MFL4, o ensaio destaca a importância de ler no contexto original da obra, mas não se detém na questão da existência ou não do Círculo de Bakhtin, foco daquele prefácio. Aqui, a autora vai reconstruir a “biblioteca virtual” de Volochínov, por meio dos textos citados por ele em MFL, com o generoso objetivo de dar “acesso a novas camadas de sentido” (GRILLO, 2017, p.8) ao leitor brasileiro. Para compreender a posição teórica que ocuparam aquele tempo-espaço da linguística russa, a autora envereda por dois caminhos: (1) a leitura de manuais de linguística e de história da linguística contemporâneos russos (como os linguistas russos interpretam o período); (2) a observação do diálogo entre tais autores, os textos citados em MFL e a posição de Volóchinov. Desse modo, só podemos lhe agradecer por ter ajudado a nós, brasileiros, a preencher a lacuna que tínhamos em relação àquele fecundo período da linguística russa. É um texto obrigatório para todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos bakhtinianos.

Enfim, esta resenha não pôde disfarçar o tom apreciativo entusiasmado e altamente positivo em relação à nova (e tão esperada, necessária) tradução. Nós, os leitores, certamente acrescentaremos novas “contrapalavras” (1981, p.132) em nosso diálogo com o enunciado concreto que temos em mãos; ou buscaremos “antipalavras” (2017, p.232) às palavras da nova tradução. No grande tempo que nos separa da época da(s) primeira(s) publicação(s) – 1929/1979, ainda que não tão grande, os sentidos renascem e se renovam5, no novo cronotopo, este espaço-tempo que é o Brasil do início do séc. XXI.

1Compreendemos o texto-moldura “como parte constituinte de um enunciado concreto, no sentido bakhtiniano, o que implica, para a produção de sentidos, tanto o texto principal quanto o conjunto de textos que o apresentam, que o cercam verbal e/ou visualmente” (BRAIT; PISTORI, 2016, s.p).

2Grillo utiliza a tradução para o português nas citações de Saussure (tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, São Paulo: Cultrix).

3Recentemente traduzido para o português: SÉRIOT, P. Vološinov e a filosofia da linguagem. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. Sobre o Prefácio, cf. SOBRAL. A.; Giacomelli, K. MFL em contexto: algumas questões, in: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, 11 (3), p.154-173, Set./Dez. 2016.

4SÉRIOT, P. Préface. In: VOLOSINOV (Vološinov) Valentin Nikolaevic. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Édition bilingue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowkski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas, 2010.

5BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas / Mikhail Bakhtin; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017.

Referências

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BRAIT, B. & PISTORI, M. H. C. Recepção de Bakhtin e o Círculo: modos de ler. Comunicação oral em Encontro Anual Nacional GT/ANPOLL/Estudos Bakhtinianos – XI Jornada do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória. 29 de junho a 01 de julho de 2016. Universidade de Campinas/UNICAMP. [ Links ]

GRILLO, S. V. Ensaio Introdutório. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, p.7-80. [ Links ]

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Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, São Paulo; Brasil. Editora Associada de Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso; mhcpist@uol.com.br.

O método formal nos estudos literários – MENDVIÉDEV (B-RED)

BRAIT B Bakhtin e o círculo e1594255712189
MEDVIÉDEV P N O método formal nos estudos literáriosDetalhe da capa de Bakhtin e o círculo, de Beth Brait.

MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológicaTradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. 269 p. Resenha de: FARACO, Carlos Alberto. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2 São Paulo July/Dec. 2012.

Há muito tempo esperávamos a tradução para o português desse extraordinário livro de Pável N. Medviédev. Por que demorou tanto é difícil de explicar. Talvez o prestígio que o formalismo russo teve nos estudos literários brasileiros nas décadas de 1970 e 80 e a persistência de um certo substrato formalista nas décadas posteriores tenham inibido a vontade de traduzir uma obra crítica – radical e consistentemente crítica – do pensamento daqueles teóricos.

Mas, qualquer que tenham sido os motivos da demora, valeu a pena esperar porque o trabalho cuidadoso e criterioso das duas tradutoras nos legou um texto de altíssima qualidade. Tratou-se de uma feliz conjunção de competências: Ekaterina Vólkova Américo, falante nativa de russo, professora ministrante do curso de russo na Universidade de São Paulo (USP), é também tradutora e doutora em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo; Sheila Camargo Grillo é uma das mais destacadas estudiosas brasileiras das ideias do chamado Círculo de Bakhtin. Atua como professora na Universidade de São Paulo e foi pesquisadora no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou).

Para sua tradução, partiram do original russo Formálnyi miétod v literaturoviédenii: kritítcheskoe vvediénie v sociologuítcheskuiu poétiku, publicado na então Leningrado, em 1928. Não se trata, portanto, de uma tradução indireta. Nesse sentido, as tradutoras dão uma contribuição muito valiosa ao mundo acadêmico brasileiro.

Informam também ao leitor que tiveram a preocupação de cotejar seu trabalho com as versões em inglês, espanhol, francês e italiano que – como diz Sheila C. Grillo no Prefácio – “permitiram, tanto em momentos de consonância como de dissonância, balizar nossas escolhas, tornando-as mais conscientes” (p.21). Algumas dessas escolhas estão comentadas numa Nota das Tradutoras (p.39-40), na qual também esclarecem os critérios de transliteração. Por fim, destaque-se que as tradutoras tiveram ainda o cuidado de rechear o livro com Notas (N.T.) em que dão informações sobre autores e obras citadas no texto, facilitando a vida do leitor.

O livro ora publicado pela Contexto vem enriquecido de uma Apresentação, escrita por Beth Brait; de um Prefácio, assinado por Sheila Camargo Grillo; de uma Nota Biográfica, redigida por Iuri P. Medviédev (filho do autor), acrescida de uma lista com a extensa produção bibliográfica de Pável N. Medviédev, com textos que vão de 1911 a 1937.

Beth Brait, em sua Apresentação, dá destaque à importância do livro seja em seu próprio tempo, seja para os leitores de hoje. É uma obra que responde a importantes pensadores da linguagem, “cujos traços fundamentais são recuperados e problematizados a partir de uma nova visão sobre o tema” (p.14). Dentre os muitos pontos abordados no livro, Beth Brait chama nossa atenção especialmente para a fina e sofisticada discussão teórica e metodológica que o autor desenvolve sobre os gêneros do discurso.

Em seu Prefácio, Sheila C. Grillo apresenta o livro e a tradução, e analisa o “espinhoso” problema da autoria do livro. Pessoalmente, considero esse problema altamente irrelevante. Reconheço a autoria pela assinatura. Assim, não tenho dúvidas de que Pável N. Medviédev é o autor deste livro. Isso tem sido heuristicamente muito produtivo porque facilita a percepção das muitas semelhanças, mas também das diferenças que há entre as várias obras dessa “coletividade de pensadores” (para usar a expressão de Iuri P. Medviédev na Nota Biográfica, p.249) que conviveram na década de 1920 e que, por vicissitudes da história de sua recepção posterior, foram agrupados sob o rótulo de “Círculo de Bakhtin”.

No entanto, como todos bem sabemos, há uma espécie de indústria acadêmica que vive de explorar o problema da autoria e, nesse afã, chega, muitas vezes, aos limites do escândalo e do nonsense. Sheila Grillo não podia, portanto, escapar de tratar do assunto. E o fez exemplarmente: buscou informações em múltiplas fontes e escreveu uma exposição desapaixonada, ou seja, ética e academicamente responsável.

Na Nota Biográfica, Iuri P. Medviédev traça um retrato de seu pai que nos permite conhecer mais de perto a vida de um intelectual ativo e apaixonado por seu trabalho naqueles anos fatídicos em que a cultura russa alcançou níveis altíssimos de efervescência e criatividade para, logo em seguida, ser sufocada pela mesmice mediocrizante imposta pelo terror totalitário. Nesse curto espaço de tempo, vemos o brilhante intelectual que nos legou uma obra instigante e que participou ativamente da efervescência de seu tempo ser declarado “inimigo do povo” e fuzilado em 1938.

Indo agora ao texto de P. N. Medviédev, cabe mencionar que ele tem quatro partes e nove capítulos, além de uma Conclusão. Na Primeira Parte (Objeto e tarefas dos estudos literários marxistas), acompanhamos a formulação dos fundamentos do que o autor chama de “a ciência das ideologias”, ou seja, de uma teoria de inspiração marxiana sobre a criação ideológica – entendidos os termos “ideologias” e “ideológico” em seu sentido amplo (e positivo), isto é, como fazendo referência, nos termos de Marx, aos “produtos do espírito humano” (ou ao universo das superestruturas) e não no sentido estrito (e negativo) do falseamento da realidade.

A poética sociológica proposta por Medviédev, no Capítulo Segundo desta Primeira Parte, é, assim, a teoria da “ciência das ideologias” que vai tratar especificamente da criação literária.

Depois dessa discussão geral, o autor, na Segunda Parte do livro (Uma contribuição à história do método formal), faz uma revisão histórica do pensamento formalista nos estudos da arte primeiro na Europa Ocidental e, em seguida, na Rússia, delineando suas diferenças.

A Terceira Parte (O método formal na poética) é uma detalhada discussão dos principais conceitos e pressupostos do Formalismo Russo: apresenta-os e, em seguida, submete-os à crítica sistemática, o que lhe permite expor suas próprias ideias sobre cada um dos temas. Encontramos aqui, nessa metodologia de trabalho, uma das características da “coletividade de pensadores” a que Medviédev pertenceu: o autor aproxima-se do outro criticamente, mas primeiro apresenta-o demorada e respeitosamente. É assim que Voloshinov, por exemplo, discute o freudismo e é também assim que Bakhtin discute a fortuna crítica sobre Dostoiévski.

Dentre os vários temas discutidos criticamente por Medviédev nesta Terceira Parte, merece especial destaque a sua longa argumentação contrária a um dos pilares do método formal: o conceito de linguagem poética que se contraporia à linguagem prática.

Essa argumentação é, sem dúvida, um dos pontos altos do livro por mostrar que a poeticidade não está no linguístico em si, mas decorre do processo de apropriação do elemento linguístico (qualquer que ele seja) por determinados modos de construção poética. Em outros termos, “a linguagem poética adquire as características poéticas apenas em uma construção poética concreta. Essas características não pertencem à língua na sua qualidade linguística, mas justamente à construção, seja ela qual for” (p.142).

Por fim, a Quarta Parte (O método formal na história da literatura) é destinada a uma apresentação crítica do modo como o método formal tratou os temas da história da literatura.

Na discussão crítica da teoria formalista da linguagem poética, Medviédev revisita a concepção de linguagem que ele, Bakhtin e Voloshinov vinham construindo ao longo da década de 1920. Mais do que isso: é nesta discussão que se reiteram também as bases da estética geral elaborada por esta “coletividade de pensadores”. Precisamente por isso é que este livro tem de ser lido juntamente com dois textos assinados por Bakhtin: “O autor e o herói na atividade estética” e “O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal” (conforme já sugeri em Faraco, 2009). É esse conjunto de textos que explicita a teoria estética desse grupo de pensadores.

A primeira observação que se pode fazer sobre essa estética é que ela é muito afinada com as discussões estéticas próprias do início do século 20. Como nos mostra Medviédev, na Segunda Parte desse seu livro (p.87-127), o discurso teórico sobre a arte – que vivia sob o impacto das transformações do fazer artístico que ocorreram nos fins do século 19 e início do 20 – começou a assumir o caráter construtivo da arte em detrimento das concepções da arte como imitação, representação ou expressão. Punha-se, então, como tarefa para o estudioso revelar a unidade construtiva da obra e as funções puramente construtivas de cada um de seus elementos.

É precisamente nessa direção que vai o discurso bakhtiniano. Em seu texto “O autor e o herói na atividade estética”, Bakhtin (1990, p.9) critica, entre outras, as abordagens biográficas e sociológicas da arte. Ele diz que falta a elas a compreensão estético-formal do princípio criativo fundamental da relação do autor com o herói. Seu foco de atenção é, portanto, declaradamente o estético-formal.

Nesse sentido, ele se afina com as concepções formais, construtivistas da arte, que Medviédev vai resumir no capítulo primeiro da Segunda Parte desse seu livro – resumo que se conclui com a afirmação (p.101) de que o problema formulado por essas concepções (ou seja, a atenção que despertaram para o caráter construtivo da atividade estética) e as tendências fundamentais em direção à sua solução eram, no geral, aceitáveis para ele e seus pares. Acrescenta, porém, a observação: “O que resulta inadmissível é somente o terreno filosófico no qual se dá sua solução concreta” (p. 101).

No correr do livro, Medviédev vai explicitando esse terreno filosófico a que ele se refere de modo crítico. Bakhtin e seus pares não podiam concordar, basicamente, com a ideia de que o estético-formal exclui necessariamente o social, o histórico, o cultural. Ou seja, com a ideia de que o social, o histórico, o cultural são estranhos ao específico da arte.

O que é considerado externo pelo pensamento formal se torna, para Bakhtin e seus pares, interno, imanente ao objeto estético. E isso se faz pelo engenhoso modo como eles concebem o princípio construtivo fundamental da atividade estética, ou seja, a dupla refração. Nada entra na arte diretamente (como se fosse apenas um registro estenográfico). No ato artístico, a realidade vivida (já em si refratada, ou seja, atravessada por diferentes valorações sociais porque a vida se dá numa complexa atmosfera axiológica) é transposta para um outro plano axiológico (o plano da obra) – o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos sistemas de valores.

Precisamente por isso é que Medviédev retoma, com insistência, nesse seu livro a defesa de um método sociológico único para o estudo das artes e da literatura em particular, opondo-se a uma tradição que assume o pressuposto da necessidade de se separar o estudo imanente das artes do estudo de sua história e de sua inserção social e cultural.

Haveria, nas artes, segundo essa tradição, uma especificidade absoluta, um em-si estético (livre de qualquer interferência do social, do cultural e do histórico) que deveria ser o efetivo objeto de atenção e análise. O estudo da história da arte e da sua inserção sociocultural não deveria ser misturado com o estudo da especificidade da arte, do em-si estético.

Essa perspectiva metodológica do corte radical nos estudos estéticos já tinha sido abordada por Medviédev no texto que publicou em 1926, intitulado “Sociologismo sem sociologia” (MEDVIÉDEV, 1983). Nele, o autor nos lembra que P. N. Sakulin – o teórico russo de literatura que tentou, na década de 1920, reconciliar, numa obra enciclopédica, o saber literário tradicional, a poética formalista e o marxismo – defendia pura e simplesmente dois métodos distintos para o estudo da literatura: o método formal para o estudo imanente e o método sociológico para o estudo histórico, causal da arte.

Medviédev faz uma extensa crítica desse posicionamento dicotômico (voltando a fazê-la nesse seu livro) em que os métodos não conhecem nenhuma conexão interna, nenhuma unidade sistemática. E é precisamente essa conexão interna, essa unidade sistemática que Medviédev e seus pares de Círculo perseguem em suas formulações teórico-filosóficas sobre a atividade estética: um método único que não ignora nem o específico das artes, nem o fato de que as artes, como qualquer produto do espírito humano, são sociais do começo ao fim.

É, por sua engenhosidade, uma bela estética geral que ainda não repercutiu devidamente (cf. discussão em Faraco, 2011). Esperemos que a tradução do livro do Medviédev motive, entre nós, uma retomada desse pensamento heuristicamente tão poderoso.

Referências

BAKHTIN, M. Author and hero in aesthetic activity. In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M. M. Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p.4-256.         [ Links ]

_______. The problem of content, material, and form in verbal art.  In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M.M.Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p. 257-325.         [ Links ]

FARACO, C. A. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin – dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009, p.95-111.         [ Links ]

_______. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares.  Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p.21-26, jan./mar. 2011.         [ Links ]

MEDVIÉDEV, P. N. Sociologism without Sociology: on the methodological works of P. N. Sakulin. In: SHUKMAN, Ann (ed.). Bakhtin School Papers. Oxford: RPT, 1983, p.67-74.         [ Links ]

Carlos Alberto Faraco – Professor da Universidade do Paraná – UFPR; Paraná, Curitiba, Brasil; carlosfaraco@onda.com.br.