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O Setecentos luso e hispânico nas Américas: perspectivas e aproximações / Revista Maracanan / 2016
Não seria fácil reunir em um dossiê uma amostra ainda que limitada da copiosa produção historiográfica atual sobre as Américas lusa e hispânica no período colonial. A diversidade temática ou mesmo a maior concentração de trabalhos em determinada temporalidade poderiam causar certo desequilíbrio na distribuição das contribuições. Daí a opção dos organizadores por privilegiar um século XVIII alargado esperando que disso resultasse uma seleção de textos mais condizente com a atualidade dos estudos sobre a colonização ibérica na Época Moderna, no que diz respeito à América portuguesa ou à busca de aproximações com experiências relativas à América espanhola, ainda menos frequente na historiografia brasileira.
O artigo de Francisco Carlos Cosentino abre o Dossiê e investe nesta perspectiva ao abordar comparativamente os ritos de transmissão e de exercício do poder régio aos governadores-gerais do Estado do Brasil e aos vice-reis da Nova Espanha. Apoiado em parâmetros teórico-metodológicos de uma história política renovada, o trabalho de Cosentino traz uma discussão aprofundada sobre o governo nos domínios ultramarinos ibéricos, amparada em consistente debate historiográfico e análise documental, em que se destaca a abordagem do pensamento político e do discurso de juristas castelhanos sobre a natureza do poder régio.
Seguindo a linha dos estudos recentes sobre a história da administração colonial, Antonio Filipe Pereira Caetano apresenta resultados de suas investigações sobre a Justiça e seus agentes nas comarcas de Pernambuco e capitanias anexas, na virada do século XVIII para o XIX. O foco na ação de ouvidores e nas intrincadas demandas judiciais naquelas partes da América lusa ilustra uma tendência da historiografia de privilegiar as dinâmicas administrativas, a definição dos espaços de exercício do poder e as jurisdições delegadas pelo rei, questões que também se fazem presentes no artigo de Cosentino.
Na conjuntura de transformações que perpassa o Setecentos, no que se refere à realidade portuguesa, o início do reinado de d. José I, em 1750, pode ser visto como um marco fundamental. Ainda que as mudanças ocorridas após essa data devam ser compreendidas dentro de uma chave argumentativa que ressalte algumas continuidades, não podemos nos esquecer da importância da atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, como precursor de um conjunto de ações que levariam a alterações estruturais, com repercussões nas diferentes regiões do Império. O texto de Mônica da Silva Ribeiro abre uma parte do Dossiê cuja tônica é o exame de questões essencialmente ligadas à ação governativa de Carvalho e Melo. Nesse aspecto, seu artigo realiza uma discussão sobre o “Pombalismo”, trazendo ao leitor uma análise historiográfica e da prática administrativa do secretário de Estado, sobretudo no que concerne à América portuguesa.
Uma das preocupações de Pombal para essa parcela fundamental do Império ultramarino no século XVIII foi a defesa e a militarização das fronteiras, tema do artigo de Christiane Figueiredo Pagano de Mello. A autora investiga questões relativas ao projeto defensivo pombalino para o Estado do Grão-Pará e para o centro-sul. Tendo como foco uma análise comparativa, tenciona observar a situação militar na área fronteiriça com as colônias espanholas e francesas.
A temática das fronteiras no Setecentos tem sido fonte de preocupação historiográfica nos últimos anos. A ampliação da produção de pesquisas sobre a Amazônia e o Grão-Pará está, de certo modo, associada ao aumento de cursos de pós-graduação nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Vale destacar, entretanto, que essas abordagens trazem como características não apenas uma preocupação com questões políticas. Cada vez mais os enfoques tendem a dialogar com o conceito de espaço: formas de ocupação, atores sociais, exploração dos recursos naturais, momentos de expansão e de imposição de limites pelas autoridades metropolitanas são assuntos que percorrem os estudos sobre essa região.
No rescaldo da saída do marquês de Pombal do centro do poder político em Portugal, novos arranjos territoriais acordados no plano teórico das negociações diplomáticas começaram a se materializar no cotidiano colonial. O Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1º de outubro de 1777, colocou nas fronteiras que ligavam as Américas portuguesa e espanhola, cartógrafos, engenheiros, geógrafos, entre outros especialistas, irmanados na produção do conhecimento sobre o território americano. Mas, se por um lado, as demarcações aproximavam homens e suas práticas, por outro, estavam longe de ser experiências pacíficas. As abstrações presentes no conteúdo dos acordos diplomáticos davam ampla margem a interpretações subjetivas, provocando confusões por vezes convenientes a ambas as partes.
Assunto dos mais delicados da pauta geopolítica das monarquias europeias, o estabelecimento de fronteiras passava por três etapas: definição, delimitação e demarcação. Em sua contribuição ao Dossiê, Simei Maria de Souza Torres analisa a fase da demarcação do Tratado Preliminar de Limites de Santo Ildefonso (1777). Com o objetivo de interpretar e colocar em prática as diretrizes expressas no acordo, os demarcadores defrontaram-se com o cotidiano colonial. Como afirma a autora, a fronteira deixava de lado a esfera das abstrações políticas, confrontando o que foi concebido e o que era possível de ser executado.
A troca de informações de cunho político nas fronteiras conviveu com outras formas de circulação de saberes e de mercadorias pelas vastas possessões dos impérios ibéricos. Em outra chave interpretativa, Marcia Amantino e Eliane Cristina Deckmann Fleck analisam, em perspectiva comparada, as redes de comércio e de saberes desenvolvidas pela Companhia de Jesus no Rio de Janeiro e em Córdoba. Dedicando atenção aos inventários dos colégios produzidos após a expulsão dos inacianos, as autoras discutem não só a participação dos religiosos nas disputas pelos poderes locais, mas também a atuação dos missionários como agentes de trocas comerciais e culturais na América e no Oriente.
A produção do conhecimento científico sob as Luzes setecentistas foi intensa. Para governar áreas tão vastas e tão distantes, os reis europeus compreenderam a importância de enviar funcionários especializados na observação da natureza, da geografia, das potencialidades agrárias e mineralógicas de seus territórios. Estabeleceu-se, assim, uma burocracia treinada nas principais universidades europeias e orientada a elaborar inventários minuciosos, descrições etnográficas, planos militares, mapas cartográficos e de população, documentos fundamentais à elaboração de políticas coloniais, mas que também contribuíram para a formulação de conceitos (e preconceitos!) sobre os habitantes das Américas.
Márcia Eliane Alves de Souza e Mello e Daniel Barroso revelam como os mapas populacionais desenvolvidos no último quartel do século XVIII foram fundamentais à elaboração de uma nova arte de governar. Demanda recorrente na correspondência entre o poder central e as autoridades coloniais, tais registros caracterizam as práticas governativas de caráter reformista-ilustrado. Atentos ao contexto de produção dessas estatísticas no Estado do Grão-Pará e Rio Negro, os autores analisam alguns casos específicos, com o intuito de compreender a dinâmica demográfica da região, particularmente o uso da mão de obra de indígenas e de africanos.
Os relatos de viagens sobre o mundo ultramarino produzidos no Setecentos são objetos da análise de Bruno Silva. As descrições etnográficas sobre os habitantes do Novo Mundo inspiraram reflexões na Europa acerca da construção da imagem do homem americano. Lidas à luz das teorias desenvolvidas pelos filósofos europeus, os escritos sobre a América no século das Luzes contribuíram para a formulação do conceito de raça baseada nos aspectos físicos, antecipando o debate sobre o tema no século XIX.
O estudo de Juliana Gesuelli Meirelles analisa o papel da Real Academia Militar do Rio de Janeiro, criada em 1810, no contexto da implantação da nova sede da monarquia portuguesa na América. A despeito de sua atuação principal (a reestruturação militar e defesa do novo império em tempos de graves disputas diplomáticas), a Real Academia se apresentou como um locus de produção científica e divulgação cultural, abrigando os letrados que absorveram as Luzes em Portugal, tanto na Universidade de Coimbra como em outras instituições de saber criadas durante o reinado Mariano. Herdeira dos estudos científicos desenvolvidos ao longo do Setecentos, a Real Academia Militar do Rio de Janeiro atuou vinculada aos interesses do Estado, uma vez que diplomou importantes figuras que comporiam o quadro político-administrativo do Brasil na primeira metade do século XIX.
A convite dos editores, os historiadores Ronald Raminelli e Rafael Chambouleyron contribuíram para a seção Depoimentos, compartilhando experiências de pesquisa e apresentando seus pontos de vista sobre o tema do Dossiê. Raminelli revisita os estudos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Richard Morse, lembrando certa tradição em se pensar sobre as Américas em perspectiva comparada. Reconhecendo os aspectos superados de tais teses, aponta o caráter inovador de uma metodologia preocupada em pensar contrastes e similitudes, uma fonte inesgotável de inspiração para estudos acerca da administração, da cultura e da economia nas Américas.
Seguindo os passos de Holanda, mas também os ensinamentos de Marc Bloch, Raminelli nos conta aspectos de sua carreira, particularmente a forma inovadora com a qual escolheu seus temas de pesquisa e o uso da perspectiva comparada. O estudo sobre as cidades coloniais, o uso das gravuras europeias como fonte documental, do qual resultou a obra Imagens da colonização, cuja originalidade metodológica no entrecruzamento de fontes iconográficas, relatos de viagens e documentos de caráter administrativo permitiram o desvendamento do lugar ocupado pelos tupis no imaginário cristão quinhentista e seiscentista. Nos últimos anos, em suas investigações acerca das nobrezas no Novo Mundo – Brasil, Peru e Nova Espanha – percebe-se a síntese e o aprofundamento dos estudos realizados ao longo de sua carreira.
Já Chambouleyron nos revela sua leitura acerca do adensamento dos estudos sobre a região amazônica nas últimas décadas. Esse interesse, tanto no Brasil quanto no exterior, resulta da expansão dos cursos de pós-graduação em História do Brasil e da descentralização, ainda lenta, da produção acadêmica de História no país. Olhando criticamente para essa nova historiografia, identifica a concentração dos trabalhos em torno de dois momentos principais: na presença do padre Antônio Vieira no Maranhão e Grão-Pará (1653-1661) e no período pombalino (1750-1777).
Frente a essa percepção, Chambouleyron apresenta alguns percursos historiográficos que, nos últimos anos, têm despertado a atenção dos pesquisadores, particularmente, a conjuntura da chamada “Amazônia joanina” (1707-1750), quando tem início a expansão dessa região. O autor elege em sua análise dois temas candentes: a concessão de terras e o avanço em direção às fronteiras. Outros, permanecem pouco explorados, como o tema da pecuária e sua relação tanto com a guerra contra os índios quanto com a doação de terras pelos governadores; ou ainda, o da existência de uma “ruralidade invisível” composta de roças de índios, mestiços, desertores, sem que houvesse necessariamente doação de terras. O depoimento aponta para muitos aspectos que podem ser pensados em perspectiva comparada, como as missões jesuíticas castelhanas, a exploração de drogas e o trabalho indígena. Temas caros à historiografia sobre a formação territorial do Brasil, como o da oposição entre o litoral e o sertão, já podem ser relativizados.
O Dossiê se encerra com a resenha de Francisca Nogueira de Azevedo do livro Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem, de Eliane Garcindo de Sá. Polêmico e atual, o tema da mestiçagem, especialmente dos deslocamentos, encontros e confrontos culturais, acompanha os estudos de Eliane Garcindo, como lembra Francisca de Azevedo. Bem escrita e fartamente amparada por pesquisa documental e bibliográfica, a obra é, sem dúvida, uma contribuição essencial às análises sobre mestiçagem na América Ibérica. De igual maneira, o livro relembra a tradição do pensamento social latino-americano, ao abordar as relações da cultura mestiça com a construção da nacionalidade.
Nesta edição, a seção Artigos é aberta pela contribuição de Rodrigo Ceballos. Seu estudo trata das redes mercantis e sociais entre a Bahia e a cidade de Trinidad y Puerto de Buenos Aires na primeira metade do século XVII, durante a União Ibérica. Apesar das restrições régias, as duas regiões praticaram um lucrativo comércio de contrabando, que incluía escravos africanos e metais preciosos. O autor persegue os rastros e as estratégias utilizadas pelos negociantes portugueses para atuar em Buenos Aires e revela uma rede de privilégios que envolvia oficiais camarários, funcionários régios e governadores.
A “retórica da imagem”, conforme a entendeu Roland Barthes, no ensaio escrito em 1964, e os estudos contemporâneos em torno da argumentação fornecem o eixo da reflexão proposta por Fernando Aparecido Ferreira e Fabíola Gonçalves Giraldi no artigo “O objeto artístico e o contexto histórico: a retórica de Inserções em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles”. Destacando, na obra, as estratégias retóricas de ressignificação de um objeto cotidiano, o artigo explora a voltagem crítica de Inserções no contexto da ditadura brasileira nos anos 70. O questionamento da dominação cultural e política norte-americana através de um de seus maiores símbolos – a garrafa de Coca-Cola – e a aproximação irônica entre circuito da arte e circuito de objetos de consumo sobressaem nesse exame da inscrição política da obra de Cildo sob a chave da argumentação.
Joana de Moraes Monteleone analisa o papel da moda na movimentação da economia do Rio de Janeiro no século XIX. Novos hábitos de sociabilidade e padrões de consumo alimentavam um mercado de importação de tecidos de luxo, que eram transformados em roupas em ateliês chiques da rua do Ouvidor. No artigo, se entrelaçam a análise sobre o estabelecimento da moda e do consumo na Corte com a leitura explicativa das estatísticas de importação de tecidos que entravam pelo porto do Rio de Janeiro.
Duas notas de pesquisa fecham esta edição. Na primeira, André Rocha Carneiro revisita um tema clássico da historiografia, a Revolta Liberal de 1842, e analisa seus impactos na província do Rio de Janeiro, particularmente no município de Barra Mansa, no Vale do Paraíba Fluminense. Marissa Gorberg, por sua vez, investiga as mudanças nas formas de abordar o feminino nas caricaturas de Belmonte e a contribuição dos seus traços para a compreensão de práticas ligadas tanto ao alargamento de fronteiras morais quanto à modernidade da segunda década do século XX.
Fabiano Vilaça dos Santos – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, é professor adjunto de História Moderna e Contemporânea da UERJ. É pesquisador do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais e dos Grupos de Pesquisa: História da Amazônia Colonial (UFPA), História Colonial da Amazônia (UFAM) e Impérios ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura (UFV).
Marieta Pinheiro de Carvalho – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é professora do Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira, vinculada à linha de pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho.
Nívia Pombo – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, é professora adjunta de História Moderna e Contemporânea da UERJ.
SANTOS, Fabiano Vilaça dos; CARVALHO, Marieta Pinheiro de; POMBO, Nívia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]
Presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola / História e Cultura / 2014
A revista História e Cultura, atenta às pesquisas e ao debate acadêmico desenvolvido na História e em áreas afins, traz neste número um dossiê voltado ao estudo da presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola.
As pesquisas acerca das ações desenvolvidas pelos missionários desta Ordem vêm ganhando destaque crescente entre a pluralidade de temáticas de estudos no Brasil e no exterior. Dessa forma, essas investigações reúnem problemáticas, metodologias, discussões historiográficas e estudos de caso ímpares que demonstram as especificidades dessas áreas de pesquisa. Considerando essas características, o dossiê se apresenta como um espaço de reflexão dos temas que abordam o recorte cronológico e espacial inerente à instalação dos inacianos em zonas distintas dos centros de poder dos impérios português e espanhol.
O tema “Presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola” determina o fio condutor da abordagem dos trabalhos de pesquisa contemplados neste dossiê. A ideia de presença se apresenta a partir da compreensão da organização dessa Ordem, fundamentada em seus textos fundadores, isto é, os Exercícios Espirituais, propostos por Inácio de Loyola, e as Constituições da Companhia de Jesus. A presença jesuítica em outros espaços, orientada por uma forma específica de ser, se faria presente entre conversos, gentios e infiéis. Desta maneira, este dossiê pretende contribuir para o entendimento das ações propostas por estes religiosos em consonância com os projetos português e espanhol de expansão de seus respectivos domínios coloniais.
Os trabalhos aqui apresentados – artigos que abordam a temática elencada para este número e uma resenha de livro – foram, gentilmente, analisados pela comissão de pareceristas, conforme sua relevância historiográfica e sua pertinência acadêmica. Desta maneira, agradecemos aos professores que se dispuseram a empreender tal tarefa, contribuindo, igualmente, para a realização deste dossiê.
Nosso objetivo não é somente possibilitar o debate intelectual acerca do tema, mas também fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no Brasil e no exterior. Dessa forma, organizamos este dossiê em duas partes: artigos e resenha.
Os vinte textos que compõem o dossiê abordam uma pluralidade de discussões historiográficas sobre a presença jesuíticas nas Américas portuguesa e espanhola. Passível de percepção, os textos aqui selecionados compreendem a perspectiva de diferentes olhares sobre a chamada história Moderna e a importância dos estudos acerca das práticas desenvolvidas por estes missionários em diferentes áreas, na medida em que concentram intelectuais de diversas tendências acadêmicas em uma mesma obra, incluindo professores e alunos de pós-graduação de universidades brasileiras e estrangeiras. Nossa intenção foi exatamente essa: a de apresentar diferentes percepções e entendimentos de História, mais propriamente no campo dos estudos relativos à Companhia de Jesus e sua presença em dois lócus específicos.
De acordo com nossa proposta, informamos que os trabalhos que compreendem o presente dossiê foram elaborados por professores doutores de diferentes instituições públicas e privadas brasileiras, doutorandos, mestrandos e graduandos vinculados a instituições também nacionais, bem como investigadores ligados a instituições estrangeiras. Nesse sentido, cabe destacarmos que recebemos contribuições de pesquisadores vinculados às seguintes instituições brasileiras, a saber: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS); Universidade de São Paulo (USP); Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade de Passo Fundo (UPF); Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Pará (UFPA); Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN); Instituto Federal de Educação do Maranhão (IFE-MA); Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); (Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade São Judas Tadeu (USJT-SP); Universidade Salgado Oliveira (USO-RJ)). Do exterior, recebemos contribuições da Universidade de Sevilha (US-Espanha), Universidade de Évora (EU-Portugal) e da Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina).
Agradecemos em nome de todos os membros do Conselho Editorial o constante apoio do Conselho do Programa de Pós-graduação em História no qual está locada a História e Cultura.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Ana Raquel da Cunha Martins Portugal – Professora doutora. Docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Franca. E-mail: miauq@hotmail.com
Fábio Eduardo Cressoni – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Franca. E-mail: cressoni@uniararas.br
Organizadores do dossiê
PORTUGAL, Ana Raquel da Cunha Martins; CRESSONI, Fábio Eduardo. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]
A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII – RAMINELLI (S-RH)
RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, 180 p. Resenha de: CHAVES JUNIOR, José Inaldo. Uma era revisitada: a América Espnahola em Tempos de conquistas. sÆculum – REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [30] jan./jun. 2014.
É eclética e volumosa a produção de saberes sobre a América desde a chegada dos europeus nos estertores do século XV, com notícias sobre as suas potencialidades, suas gentes, matas, rios, minérios e, principalmente, os caminhos para acessálos.
Em tempos de expansão marítima, uma cartografia do lugar foi desde cedo valorizada pela Monarquia católica e recompensados com mercês e honras foram aqueles que se dispuseram a produzi-la. Doravante, uma controvertida literatura de viagem, produzida por religiosos, conquistadores e aventureiros das mais variadas origens geográficas e sociais, dedicou-se à narrativa da conquista ibérica sobre o Novo Mundo. Plenamente inseridos no contexto de consolidação das monarquias europeias, estes relatos demonstraram a intrínseca relação mantida entre homens e mulheres de cá e d’além-mar, desde quando os primeiros pés castelhanos pisaram o chão do Eldorado. Desde o século XVI, o Novo Mundo jamais conseguiu ser tão distante e ausente como alguns relatos faziam crer, e, a despeito da imensidão oceânica e das intempéries das rotas marítimas, suas histórias entrecruzaram-se com as do velho continente, integrando-se aos cenários renascentista e de formação dos estados modernos.
O contato inicial entre ameríndios e europeus foi copiosamente narrado e ilustrado, asseverado em descrições barrocas acerca da violência étnica, da guerra e da consequente ruína demográfica indígena, resultados últimos da desapropriação de seus bens e das doenças trazidas pelo homem branco. Um discurso de vitimização das populações indígenas da América hispânica caracterizou parte significativa dos relatos da conquista, assinalando, por outro lado, a crueldade colonizadora e sua sanha pelo sangue autóctone, pelo ouro e por suas terras. Em larga medida, este imaginário da violência, produzido, em sua maioria, pelos opositores da hegemonia ibérica sobre o Atlântico ou por religiosos protestantes e católicos que questionavam os propósitos da conquista, contagiou uma cultura histórica subsequente.
A era das conquistas, de Ronald Raminelli, dedica-se generosamente a este e outros temas, passando por frutíferas searas, como o governo imperial de Carlos V e Felipe II, as elites coloniais e o acirrado relacionamento entre a Coroa, os conquistadores e as populações indígenas entre os séculos XVI e XVII. Realizando um importante balanço historiográfico e problematizando tradicionais jargões de uma vasta e qualificada historiografia sobre a América espanhola, esse livro integra o arrojado editorial da coleção de bolso da Editora FGV, que já lançou outros títulos de igual relevância, defendendo a proposta de livros de síntese escritos pelos melhores especialistas, mas prezando por uma linguagem acessível ao grande público, e não apenas aos iniciados2.
Neste sentido, é ocioso acrescentar que o tema do livro resenhado não constitui novidade para Raminelli, experiente professor de História da América na Universidade Federal Fluminense. Não somente suas aulas, mas sua produção acadêmica tem se voltado para o campo da História da América há algum tempo, o que faz do autor uma reconhecida referência. Seguindo a trilha inaugurada por Sergio Buarque de Holanda, sobretudo no seu Visão do Paraíso (1959), o autor localiza muitos de seus livros e artigos na intersecção entre as histórias das Américas portuguesa e hispânica, buscando, a partir de sólidas e refinadas investigações sobre as elites coloniais, as hierarquias sociais e a produção de saberes no Novo Mundo, um caminho comparativo autêntico e rigoroso, não afeito aos modismos, sem com isso descuidar do diálogo com os pares, como atesta este novo livro3.
Em sua introdução, A era das conquistas destaca as Grands Voyages, do impressor e gravador calvinista Theodore de Bry, obra publicada em 1590 e que marcou significativamente as representações do Novo Mundo produzidas a partir de então, uma vez que abriu espaço às coleções de narrativas em vernáculos, acompanhadas por iconografias que somente alcançaram o grande público depois do referido título. Os treze volumes reunindo relatos das primeiras viagens à América popularizaram-se, sobretudo, por conter centenas de xilogravuras que impunham uma visão aterradora do Novo Mundo e de seus habitantes aos europeus em sua maioria iletrados. No entanto, os gravuristas e cronistas que passaram pela América ou dela ouviram falar registraram suas impressões do outro, do novo, a partir de um conjunto rico de lembranças e memórias próprio das culturas europeias.
Neste sentido, o esforço de absorção do estranho, desse exótico Novo Mundo, se deu graças ao uso de códigos e padrões estéticos forjados em associações e experiências anteriores, aproximações (como na fórmula de Merleau-Ponty, “perceber é recordar”)4 que integraram o americano ao imaginário europeu enquanto selvagem, bárbaro, canibal e satânico. Como nos lembra Lucien Febvre, os homens de Quinhentos, tanto os frequentadores dos círculos letrados quanto o humilde camponês analfabeto, enxergavam um universo povoado de e imagéticos que eles registraram seu contato com a América e os povos que por cá viviam.
Esta percepção do outro enquanto “reconhecimento” e “projeção de lembranças” valeu inclusive para fundamentar as críticas produzidas contra a própria ação conquistadora, como ilustrou Theodore de Bry, nascido em Liège em 1528. De Bry era filho de uma abastada família, mas perdera tudo ao converter-se ao calvinismo durante a perseguição religiosa promovida pelos espanhóis católicos nos Países Baixos. Refugiando-se em Estrasburgo, cidade de relativa liberdade religiosa e política e com um florescente mercado editorial, aprimorou sua arte e pôs em gravuras a conquista da América, tendo como referencial político as guerras de religião e a aversão à idolatria e ao papismo dos espanhóis6. Numa Europa dividida pelas guerras religiosas e apavorada pela expectativa da Parúsia, as visões escatológicas do Novo Mundo oscilaram entre a descrição do Paraíso – um ponto originário e redentor onde os homens viviam despidos do pecado – e o lugar da depravação moral, prenunciadora do fim dos tempos7. Nas suas imagens, a crueldade dos espanhóis na conquista era vista como emblema de uma monarquia decadente e perniciosa, sendo sua destruição anunciada pelo desvio do propósito evangelizador.
Dentre os relatos utilizados por De Bry estava o do frei Bartolomé De Las Casas, em sua Brevíssima relación de la destrucción de las Indias, de 1552. O cronista e religioso católico era um conhecido crítico da conquista espanhola e registrou particularmente “as guerras, a exploração dos nativos, e os desvios do projeto de conversão e salvação das almas americanas”8. Ronald Raminelli relata que a ilustração de De Bry, de 1598, “agravou ainda mais as denúncias de Las Casas” e endossou a leyenda negra – uma história em que uns poucos espanhóis armados a cavalo conseguiram ardilosamente roubar a vida, as terras e as riquezas de milhares de ameríndios9.
Entretanto, como nos mostra Raminelli, as imagens de Theodore de Bry, fundadas em cronistas como Las Casas, fizeram muito mais que difundir os horrores da conquista espanhola, descreveram também a inércia americana, sua incapacidade frente ao avanço europeu, estando, pois, na gênese de uma arraigada interpretação vitimizadora do lado indígena que, ao fim e ao cabo, tornou-se contraproducente na compreensão das estratégias de resistência, acomodação e sobrevivência não apenas física, mas política dos povos indígenas em situação colonial. Por sua vez, uma visão linear, determinista e excessivamente sectária (conquistadores versus ameríndios) obliterou as disputas existentes dentro dos próprios flancos espanhóis e as imprescindíveis alianças entre chefias indígenas e conquistadores que tiveram como propósito inicial a destruição de inimigos comuns. As próprias lógicas culturais da guerra ameríndia operaram alianças deste tipo desde muito antes da chegada dos europeus, de modo que a vitória hispânica sobre os impérios mexica e inca dependeu largamente da contribuição de povos indígenas insatisfeitos com o jugo anterior.
Não por menos, o autor trata de conquistas, buscando apresentar um panorama multifacetado de atores, empresas e diferentes estratégias que compuseram a construção do mundo colonial hispânico entre os séculos XVI e XVII, revendo, portanto, “uma visão simplista e imparcial da conquista da América”10. O percurso analítico escolhido faz a opção por integrar plenamente a conjuntura do assalto espanhol ao Novo Mundo aos processos estruturais de formação das monarquias ibéricas, sendo as guerras empreendidas em solo americano parte primordial da estratégia de fortalecimento da autoridade régia. Segundo o autor, Com a prata americana, os reis expandiram a burocracia, remuneraram aliados e armaram tropas. De fato, os ameríndios não foram os únicos a se submeter às leis monárquicas. Colombo, Cortés, Pizarro e os mais afamados conquistadores se enquadraram ou foram aniquilados pelos representantes de Sua Majestade.11 Neste novo trabalho, o historiador fluminense explora a afirmação do poder real diante do ímpeto de conquistadores que pretendiam afirmar-se como verdadeiros senhores feudais na América. Destarte, homens como Cortés e Pizarro “não dispunham dos mesmos trunfos empregados pela nobreza castelhana no momento da negociação de seus direitos”12 e, por conseguinte, a autoridade central terminou por controlar melhor as localidades distantes que os próprios reinos e ducados da Península, repletos de facções e partidos que dividiam as nobrezas e fragilizavam o poder régio13. Na verdade, reiterando a tese do renomado historiador inglês John Elliott, Raminelli acrescenta que, sob algum aspecto, “a administração hispânica da América era mais moderna que o próprio governo da Espanha e das monarquias da Europa quinhentista”14.
Isto ocorria porque a América estava menos sujeita às chantagens dos poderes locais e aos impasses da manutenção de uma ampla rede de aliados, problemas diuturnamente enfrentados pela Monarquia de Carlos V, espremida entre a cruz e a espada, entre a satisfação da expansão imperial sobre territórios político e culturalmente variados e o atendimento dos anseios da nobreza castelhana, ressentida com seu rei absenteísta e desinteressado15.
A era das conquistas divide-se em cinco capítulos, nos quais o autor testa, com habilidade, seu argumento de que diferentes frentes de conquista subsidiaram a produção dos territórios coloniais da Monarquia católica, da Espanha à América.
O artífice central (embora não exclusivo) das empresas de conquista foi a própria Coroa dos Habsburgo que, sob duras penas, afirmou seu poder em um processo de construção de centralidades com marchas e contramarchas na Europa e nas possessões ultramarinas. No primeiro capítulo, Raminelli narra as dificuldades da Monarquia em controlar a insatisfação dos nobres castelhanos, levantados em armas na Revolta dos Comuneros (1520-1522). Conservadores, os nobres saudavam a antiga Castela, anterior a união dos reinos de Isabel e Fernando de Aragão (1469); defendiam seus antigos privilégios, esquecidos desde então; e questionavam o peso tributário lançado pela Coroa e a sagração de Carlos V como imperador do Sacro Império. Um rei ausente e mais preocupado com as suas batalhas travadas no norte da Europa, contra a Inglaterra e o avanço protestante, desprestigiara a nobreza castelhana, embora precisasse mais que nunca de seus préstimos para manter sua política imperial belicosa. Todavia, para os nobres castelhanos, mais importava a Espanha que o Império.
Como a história nos conta, a revolta da fidalguia de Castela foi debelada por Carlos V ao levar-se ao limite a sua política de alianças, feito um “gigante inerte”, dependente do apoio financeiro e militar das nobrezas castelhana e estrangeira de seu vasto Império, e igualmente frágil diante da concessão de seu poder interventor sobre as localidades – um preço alto a ser pago na tentativa de conter os focos de resistência aristocrática. Este interessante capítulo segue com o debate acerca do Estado moderno, seu limites, conflitos de jurisdição bem como as principais interpretações historiográficas acerca de sua emergência. O pano de fundo continua sendo a Monarquia católica e seu complexo acerto imperial. A missão de governar na época moderna era partilhada e o rei dividia, ao menos, com a Igreja, a nobreza e as municipalidades as atribuições do governo dos povos – um governo indireto e polissinodal, caracterizado pela difusão dos centros de decisão política. Todavia, nestes primeiros tempos da modernidade, ainda que a instituição “Estado”, tal como nos é acessível hoje em dia, fosse desconhecida dos coevos, o autor relata que as monarquias reuniram as condições de sua posterior emergência a partir da ampliação da esfera jurisdicional, do crescimento do oficialato régio e da sistematização de leis e a territorialização do poder régio16.
A disseminação da autoridade do rei em cenários nos quais os poderes locais possuíam fortíssima proeminência, tanto na Europa quanto na América, proliferou os conflitos de jurisdição, motivados, na maioria das vezes, pela própria inserção dos oficiais da Coroa (vice-reis, magistrados, bispos dentre outros) nos jogos políticos locais. Embora a decisão final das querelas sempre dependesse do Conselho das Índias, criado entre 1523 e 1524, ou, em último caso, do rei, “a distância e a fugidia presença régia promoviam forças centrífugas e levavam, por vezes, para longe de Madri o governo do Novo Mundo”17. Diante da dispersão das decisões políticas, a venalidade dos altos oficiais de Sua Majestade, em especial dos vice-reis, tornouse um primoroso mecanismo político através da construção de lealdades que nem sempre significaram o incremento do poder real. Coube a Monarquia cercear estes desvios de autoridade, uma missão quase sempre realizada parcamente, mas para a qual dedicou-se conspícua atenção dos órgãos centrais.
Entretanto, se, por um lado, os conflitos de jurisdição e as venalidades foram fenômenos típicos dos modos de governar na época moderna, tanto na Europa quanto no ultramar, segundo Ronald Raminelli, as disputas entre poderes locais e poder central no Novo Mundo não tiveram as mesmas proporções daqueles desencadeadas na metrópole, isto porque por aqui “o governo sentia menos as interferências do legado feudal, dos senhorios, das jurisdições múltiplas, enfim do forte poder local, ainda determinante na Espanha”18. Além disso, como nos conta o autor:
Em princípio, na América colonial, os impedimentos contrários ao bom cumprimento das ordens régias eram atenuados, pois os poderes locais nativos foram dizimados nas guerras, nas epidemias e nas negociações empreendidas entre monarcas, conquistadores e chefes indígenas.19 Neste sentido, uma das principais contribuições trazidas por Ronald Raminelli é apontar que, se as guerras contra os indígenas e a crueldade colonial foram dimensões inegáveis da conquista, como apontaram os cronistas, não foram elas, contudo, monopolizadoras de um processo muito mais intricado. As conquistas do Novo Mundo implicaram, inclusive, no enquadramento dos interesses dos primeiros conquistadores e das chefias indígenas aliadas, segmentos sociais ambiciosos pelas benesses régias, os prêmios e honras da empresa colonial. Este é o assunto do 2º capítulo de A era das conquistas. Após um período de concessões e salvaguarda das vassalagens a partir de uma eficiente economia das mercês, a contínua redução da capacidade remuneratória da Coroa fez parte de uma “política de sufocamento” do poder dos conquistadores antigos, que contou ainda com a extinção da transmissão hereditária das encomiendas (Leis Novas) e com a supressão do controle do trabalho indígena por parte dos encomienderos (1549), que passaram a dispor legalmente apenas dos tributos pagos pelos nativos. Por sua vez, o incentivo régio à colonização produziu mais concorrência por terra e trabalho, ao passo que garantiu a formação de uma segunda geração de conquistadores fiel à Sua Majestade, sem os tradicionais vícios da leva que trouxe Colombo, Pizarro e Cortés ao Novo Mundo.
Cabe-nos destacar, na esteira da reflexão encetada por Raminelli, que, ao inviabilizar a concentração de poder, tanto entre os conquistadores quanto entre vice-reis, ouvidores governadores e bispos, a Coroa hispânica elevou o fenômeno dos conflitos de jurisdição ao patamar de estratégia primaz do exercício de sua autoridade na América, pois, ao jogar com as parcialidades e promover uma contínua redistribuição dos poderes, conseguia neutralizar a autonomia de seus agentes e garantir a vigilância contínua diante de possíveis focos de contestação (system of checks and balance). Aquilo que aparentemente representava irracionalidade administrativa e erosão política transformou-se num poderoso mecanismo de controle sobre as municipalidades coloniais, ainda que houvesse sensíveis limites a plena ação do poder real, dadas as sempre precárias condições da governabilidade no ultramar.
Aliás, o 3º capítulo dedica-se à discussão de conceitos-chave da recente historiografia política da época moderna, em especial das conquistas coloniais, a exemplo da aplicação da categoria elites nas investigações sobre segmentos sociais privilegiados no Novo Mundo. Neste sentido, o autor apresenta uma caracterização do cabildo enquanto locus do poder local na América hispânica, considerando as formas de enriquecimento e ascensão, as práticas sociais, como o descaminho e a ilicitude, os perfis regionais, as condições de ingresso e as tentativas da Coroa de limitar os seus poderes na localidade, inclusive através dos conflitos de jurisdição com órgãos como as audiências.
De acordo com Raminelli, para resistir às investidas da Coroa e de seus agentes, sobretudo dos governadores e das Audiências, as elites locais encasteladas nos cabildos tradicionalmente recorreram à máxima da administração castelhana, “obedezo pero no cumplo”, repetindo no ultramar os valores de uma cultura política própria do Antigo Regime, ainda que desta mantivesse sensíveis distanciamentos.
Seja como for e dadas as contumazes interferências régias, o fato é que os cabildos do Novo Mundo perderam gradativamente sua capacidade de representar os interesses locais e negociar com a Coroa e, pelos idos de 1650, “entraram em franca decadência”, recobrando alguma proeminência apenas no século XVIII, em meio às decorrências das reformas bourbônicas20.
Doutra feita, uma relevante problematização de conceitos como “sociedade estamental” e “Estado absolutista” é realizada pelo autor, que afirma que os novos estudos acerca das hierarquias e da mobilidade social no Antigo Regime ibérico questionaram abertamente a suposta rigidez das classificações sociais na Europa moderna e, mais ainda, no Novo Mundo, haja vista a permissividade de sociedades onde a norma e a prática não possuíam limites claros, nem mesmo para os representantes do poder constituído. Considerando o caso espanhol, Raminelli resgata a tese do historiador Enrique Soria, para quem “a ascensão social era o importante motor do poder régio, ou seja, que em busca de honra e enriquecimento os vassalos prestavam serviços e demonstravam lealdade ao soberano. Portanto, aos poucos, as ordens (nobreza, clero, povo) tiveram suas fronteiras enfraquecidas”21.
Por conseguinte, mais do que preocupar-se em encontrar as razões de um suposto Estado absoluto e onipresente, o problema historiográfico atual tem se voltado para a compreensão dos corpos políticos periféricos e de seu primordial papel na afirmação da centralidade régia ao longo da época moderna – uma verdadeira inversão analítica, das macroestruturas aos micro-poderes –, tendo em consideração que “o poder local nem sempre se situava no plano da lei e do direito oficial, mas à margem dessa lei e desse direito”22.
Os capítulos que encerram esta contribuição historiográfica de Ronald Raminelli dirigem a análise a um outro palco desta era de conquista no plural pois, se, em sua primeira parte, o autor concentrou-se em discorrer sobre as tentativas e efetividade do controle régio sobre as forças colonizadoras – conquistadores e oficiais da Coroa –, integrando a colonização da América ao contexto de afirmação da Monarquia católica; neste último momento, seu interesse se voltará para os colonizados. A questão central dos capítulos 4º e 5º é, pois, a superação, nos estudos coloniais, de uma interpretação que considerou a conquista do Novo Mundo enquanto aculturação. Segundo o autor, o conceito aculturação ganhou relevo nos anos 1980 e seu uso visou investigar “as transformações culturais provocadas pela conquista, pelo confronto entre a tradição ibérica e as várias etnias encontradas na América”, porém, compreendendo-as como perdas das tradições indígenas originárias23.
Resgatando clássicos estudos que utilizaram o conceito, o autor cita, por exemplo, as tipologias propostas por Wachtel. Algumas delas foram as categorias de “processo de integração” e “processo de assimilação” para dar conta das modificações nos padrões culturais e socioeconômicos das sociedades indígenas em situação colonial. De acordo com Raminelli, por “processo de integração” Wachtel definia a “incorporação de valores e costumes estranhos, mas que adquiriam novo sentido entre os autóctones”; já “processo de assimilação” era caracterizado pela “transformação cultural imposta pelos colonizadores”24. Outro renomado autor, Todorov, também recebeu a atenção de Raminelli, justamente por, tal como Wachtel, dedicar-se à análise dos mecanismos de dominação espanhola tendo como premissa o conceito de aculturação. Na perspectiva de Todorov, a grande artimanha de colonizadores como Cortés foi justamente aprender a manipular os valores e símbolos ameríndios, revertendo em seu favor às estruturas de poder e dominação de uma época pré-hispânica. Além disso, para Todorov, uma superioridade técnica (armas e mobilidade) teriam completado a equação que garantiu uma vitória inexorável aos espanhóis.
Atualmente, perspectivas interpretativas como as Wecthel e Todorov encontramse em desuso e uma leva de estudos tem proposto uma nova abordagem da conquista, resgatando a agency indígena e contestando uma participação meramente figurativa ou pálida. Como vimos no início deste breve comentário à obra de Raminelli, desde os cronistas coloniais, as populações indígenas foram tradicionalmente condenadas ao desaparecimento pela violência devastadora da conquista, não lhes restando mais que a morte ou a assimilação. A irredutibilidade do trágico devir indígena, tantas vezes narrado nas tristes cenas das crônicas coloniais, contagiou boa parte da historiografia e estudos sociais dedicados à conquista da América. Destarte, uma New Indian History e as aproximações entre história e antropologia, sobretudo a partir de um redimensionamento da noção de grupo étnico, não mais visto como portador de uma essência cultural atemporal, promoveu uma mudança qualitativa nas análises sobre as interações sociais da época da conquista, não mais entendidas necessariamente como “perdas culturais”, mas retratadas a partir de conceitos como “etnogênese” e “mestiçagem”25.
As investigações acerca da importância da participação indígena nas empresas de conquista, bem como o papel dos cacicazgos na mediação do contato com o mundo colonial, tem relevado relações sociais que sobreviveram “sem as dicotomias cristalizadas pela história tradicional, sem a oposição rígida entre os interesses espanhóis e indígenas, sem a superioridade inconteste dos exércitos espanhóis, sem a debilidade inerente às sociedades indígenas”26. Num situação colonial, quase sempre tangenciada pela violência, os indígenas traçaram suas próprias estratégias de adaptação (resistência adaptativa), que poderiam representar também objetivos pragmáticos de redução de perdas27. Destarte, as chefias indígenas que apropriaram-se dos códigos aristocráticos da cultura ibérica, recebendo da Coroa ofícios e honras militares, tornaram-se mediadoras fundamentais na execução da administração colonial, que não pôde abrir mão das heranças pré-hispânicas de governo e teve que fazer concessões para tornar a conquista efetiva. Não se trata, pois, de negar a agressividade da ordem colonial, mas de explorar interpretações que destaquem as possibilidades de reação indígena, não restrita à tradicional dicotomia “morrer ou aculturar-se”28. Tal como conclui o autor da obra resenhada, Em sua suma, os povos não estavam submersos na tradição imemorial, congelados no tempo e incapazes de reagir. Por vezes a conquista e a colonização promoviam identidades novas, transformações socioculturais para sobreviver em meios adversos. O conflito e a violência eram promotores de novos arranjos políticos, culturais e sociais. A mestiçagem e a etnogênese são conceitos fartamente empregados para analisar a reação das comunidades indígenas frente aos conquistadores.29 Se é a reflexão historiográfica e o diálogo com os pares uma reconhecida dimensão de nosso ofício, em A era das conquistas Ronald Raminelli realiza com maestria um exercício próprio dos grandes historiadores, unindo erudição e originalidade em um caminho crítico que apresenta riquíssima e larga literatura especializada, sem, contudo, ceder à exposição enfadonha e despropositada. Ao final da obra, sua tese de uma conquista multifacetada – conquista no plural – que atuou não somente sobre indígenas, mas também sobre conquistadores e encomienderos, compondo, deste modo, a conjuntura de afirmação da autoridade régia na Europa e no Novo Mundo, é fartamente defendida. Contudo, o autor não deixa de considerar que os custos de manutenção da Monarquia católica, entre os séculos XVI e XVII, eram enormes. Um acerto imperial que reunia díspares interesses e possuía a guerra como seu principal mote, não tardou até demonstrar sinais de esgotamento. Doutra feita, julgamos excessivo o papel atribuído à capacidade interventiva da Coroa espanhola sobre os territórios coloniais, de modo que nos parece mais prudente pensar que a construção da centralidade régia processou-se, diacronicamente, a partir de uma forte dependência das forças políticas e sociais periféricas, como propôs Xavier Gil Punjol30. Seja como for, este é um tema em aberto e A era das conquistas lança-se como uma importante contribuição.
Notas
2 Da série História, destacamos, em especial, MALERBA, Jurandir. A história na América Latina:
ensaio de crítica historiográfica Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto & KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
3 Cf. notavelmente: RAMINELLLI, Ronald. “A monarquia católica e os poderes locais no Novo Mundo”. In: AZEVEDO, Cecília & RAMINELLI, Ronald (orgs.). História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011; RAMINELLI, Ronald. “Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico setecentista”. Revista de Historia (USP), vol. 169, p. 83-110, 2013. RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do Índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
4 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
5 FEBVRE, Lucien. Problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
6 BAUMANN, Thereza B. “Notícia de uma coleção: as ‘Grandes Viagens’ da família De Bry”. Paper avulso. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ, s.d. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0036.htm>.
7 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lúcia Machado; tradução de notas de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. A esse respeito, cf. também: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Pasado: para una semântica de los tempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993, sobretudo a primeira parte.
8 RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2013, p. 09.
9 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 10.
10 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 11.
11 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.
12 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.
13 Vale ressaltar que a ideia de uma inversão administrativa colonial das monarquias ibéricas esteve presente na obra de Sergio Buarque de Holanda, que já em Raízes do Brasil aventou a tese de que uma administração colonial mais centralizada e dominadora foi levada a cabo justamente pela Monarquia hispânica, habituada com a contumaz descentralização de seus territórios continentais, acentuadamente divididos política e culturalmente e, nalguns casos, rebeldes, como era a Catalunha. Em Portugal, entretanto, onde a centralização régia havia sido operada muito antes, já nos estertores do medievo, o desleixo e o desinteresse ditaram a tom do governo ultramarino, sobrelevando, a esse respeito, a própria precariedade das formas urbanas do Brasil colonial, assimétricas, desordenadas e feitas ao acaso, quase sem contradizer a natureza, quando comparadas com a regularidade arquitetônica da América hispânica. A esse respeito, ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110. Para uma crítica ao primado da irracionalidade do urbanismo colonial português, ver: MOURA FILHA, Maria Berthilde de Barros Lima e. De Filipéia à Paraíba: uma cidade na estratégia de colonização do Brasil (séculos XVI-XVIII).Tese (Doutorado em História da Arte). Universidade do Porto. Porto, 2004 (introdução).
14 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.
15 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 13.
16 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 21.
17 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 43.
18 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.
19 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.
20 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 105.
21 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 73.
22 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 72.
23 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 108.
24 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 110.
25 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 115. Para uma síntese das recentes contribuições à história indígena, cf. a importante reflexão presente em: BOCCARA, Guillaume. “Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo”. Nuevo Mundo Mundos Nuevos – Débats [On Line], 08 fev. 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/426>. Acesso em: 15 jan. 2014. Segundo o autor, uma tendência recente da historiografia indígena (New Western History e New Indian History) considerou a “re-inscripción de las realidades indígenas en su contexto histórico por un lado y el nuevo interés por las estratégias y los discursos elaborados por los nativos por el outro, han conducido a romper con un conjunto de dicotomías discutibles (mito/ historia, naturaliza/ cultura, pureza originaria/ contaminación cultural, sociedades frías/ sociedades cálidas) para buscar en las narrativas y en los rituales indígenas así como también en las reconfiguraciones étnicas y en las reformulaciones identitarias, los elementos que permitan dar cuenta tanto de las conceptualizaciones nativas relativas al tremendo choque que representaron la conquista y colonización de América como de las capacidades de adaptación y reformulación de las ‘tradiciones’ que desembocaron en la formación de Mundos Nuevos en el Nuevo Mundo”. BOCCARA, “Mundos nuevos en las fronteras…”, p. 03.
26 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 118.
27 ALMEIDA, Os índios na História do Brasil…, p. 23.
28 Neste sentido, cabe-nos ressaltar a importância da categoria de “índio colonial”, proposta por Karel Spalding e magistralmente discuta por John Monteiro. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese (Livre Docência). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.
29 MONTEIRO, Tupis, Tapuias e Historiadores…, p. 115.
30 PUNJOL, Xavier Gil. “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII”. Penélope – Fazer e desfazer a história, n. 6, Lisboa, 1991, p. 129-130.
José Inaldo Chaves Júnior – Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela mesma instituição, Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Assistente de História do Brasil na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em História Cultural da UFF (NUPEHC/UFF). Bolsista de Doutorado do CNPq. E-Mail: <inaldochavesjr@gmail.com>.
[MLPDB]Historiografia na América Espanhola / História da Historiografia / 2011
O dossiê Historiografia na América Espanhola pretende diminuir a distância entre os pesquisadores de história da América brasileiros e as áreas dedicadas aos estudos historiográficos no país. Esta distância já vem sendo superada em alguns países americanos de fala espanhola, com destaque para a Argentina e o México, onde os estudos de historiografia e cultura histórica hispano- -americanas ganharam grande desenvolvimento nas últimas décadas graças aos trabalhos de Elias José Palti, Enrique Florescano, Fabio Wasserman, Natalio Botana, entre muitos outros. No Brasil ainda precisamos investir bastante na consolidação dessa área de pesquisa. Estudos comparativos entre a historiografia brasileira e a hispano-americana ainda são raros. Ainda mais incomuns são as aproximações destas com a produção norte-americana. No entanto, acreditamos que tal diálogo traria novas e interessantes perspectivas sobre a própria historiografia brasileira, vista agora no quadro de um contexto continental que enfrenta muitas questões e dilemas em comum. Os trabalhos aqui reunidos são um passo para essa aproximação, trazendo para um periódico não especializado em história da América um conjunto de problemáticas que vem sendo discutido nos países hispano-americanos.
Em entrevista concedida durante uma passagem pelo Brasil, o historiador equatoriano Jorge Cañizares-Esguerra, que vem se destacando nos últimos anos com um erudito e original conjunto de trabalhos sobre a história cultural da América Colonial, fala sobre uma série de possibilidades de redefinição de nossa compreensão da experiência colonial hispano-americana e propõe alternativas para estudos comparativos com a da América do Norte, como o realizado por ele no livro Puritan conquistadors. Cañizares-Esguerra defende, entre outras sugestões, a necessidade de repensar certas visões da história latino-americana que oscilam entre o quase exclusivamente trágico e o folclórico, visões que marcaram muito a visão dos públicos norte-americano e europeu sobre o continente. No mesmo sentido, questiona a oposição centro-periferia, defendendo a originalidade da produção intelectual hispano-americana do período colonial, como no caso dos debates sobre a escrita da história no século XVIII, estudadas no seu livro How to write the history of the New World. Leia Mais