História da arquivologia no Brasil: instituições, atores e dinâmica social/Acervo/2021

Nas duas últimas décadas, a pesquisa em arquivologia no Brasil alcançou um crescimento significativo, traduzido em teses e dissertações produzidas em programas de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento. O amplo espectro de temas e abordagens, contudo, pouco contempla o que poderíamos nominar “história dos arquivos e da arquivologia”. Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz (R)

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.

Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos

Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.

É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.

Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.

Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.

Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.

Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.

O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.

Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.

Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.

A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.

Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.

A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.

Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.

Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.

Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.

Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.

É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.

Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: menezes.fs@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

O norte do Rio de Janeiro no século XVI: à luz da história mundial e da eco-história

O movimento histórico de estruturação e institucionalização da História Ambiental, iniciado em meados da década de 1970, traz transformações importantes no campo historiográfico. A abordagem ecológica insere no trabalho do historiador novos modelos interpretativos para o estudo dos comportamentos sociais, do local ao global. O Norte do Rio de Janeiro no Século XVI à luz da história mundial e da eco-história, apresenta-se como um exemplo de trabalho sobre as contribuições metodológicas que ambas as abordagens podem proporcionar para o estudo da História.

A leitura do texto mostra-se um exercício para a compreensão do que se propõe a história ambiental. O conhecimento sobre as produções humanas e os processos de territorialização abarcam as interações entre homem e natureza e a construção de ambientes equilibrados ou não entre eles. Os elementos que formam o meio em que os seres humanos se apropriam interferem em seus comportamentos, suas ações coletivas, suas produções materiais e culturais, atribuindo ao mundo natural influência significativa para o entendimento das civilizações. Leia Mais

Dicionário de Ensino de História | Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira

Composto de 38 verbetes, o Dicionário de Ensino de História é produto de um conjunto de profissionais que atuam junto aos programas de pós-graduação, em especial, do Mestrado Profissional de Ensino de História, o ProfHistória. Como destacado pelas coordenadoras, esse material foi “Elaborado visando subsidiar pesquisadores e professores nas suas variadas atuações de construção do conhecimento histórico” e acrescenta que ele “[…] objetiva chamar a atenção de pesquisadores de outros campos para as especificidades da historiografia, teóricos e áreas de diálogos do ensino de história” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2019, p. 10).

Tende-se a acreditar que o dicionário é um material cuja finalidade é expressar o sentido de determinados termos. Entretanto, a dimensão enciclopédica do mesmo, ao menos em algumas áreas, já não é o mesmo. Não é de hoje que a produção desse tipo de material caiu no gosto dos historiadores. Temos como exemplos, alguns emblemáticos, a produção de Jacques le Goff e Jean Claude Schmitt, Dictionnaire Raisonné de l’Occident medieval, o recente Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilian Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, ou ainda, o Dicionário Crítico de Gênero, organizado por Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi. O dicionário que é objeto dessa resenha, não se distancia dos que foram citados, a não ser por sua temática, o ensino de história. Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política a qual atravessamos reveste o livro de importância, uma forma de indicar as raízes históricas do autoritarismo que hoje paira sobre parte da consciência nacional e seu chefe de governo. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a expressão pública do conservadorismo, era urgente que um(a) historiador(a) propusesse algumas respostas para dar conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu métier especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, ou seja, mais acessíveis. Este é um importante valor do livro em questão. Leia Mais

Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil | Patricia de Santana Pinho

Alguns anos atrás, durante uma de minhas muitas viagens para Salvador, lembro de ter assistido a um programa na televisão que mencionava a chegada de turistas afro-americanos para a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, que sempre acontece em agosto na cidade de Cachoeira na Bahia. Como pesquisador soteropolitano radicado no exterior que tem interesses em estudos de raça, o tema imediatamente chamou minha atenção. Soube pouco tempo depois, através do guia de turismo Frederico Bomsucesso, que essas visitas estavam acontecendo regularmente. A notícia, de fato, não me surpreendeu. Tive a oportunidade de trazer alunos afro-americanos para fazer intercâmbio em Salvador e já sabia que a relação deles com a cidade é sempre especial. Imaginava que mais cedo ou mais tarde alguém descobriria esta fatia de mercado para o turismo baiano. Leia Mais

Marriage/Divorce and Distress in Northeast Brazil: Black Women’s Perspectives on Love/Respect and Kinship | Melanie A. Medeiros

Na rodoviária de Salvador, na Bahia, a antropóloga entrou no ônibus, percorreu dez horas por estradas sinuosas até a região da Chapada Diamantina e chegou a Brogodó. Ao longo de uma década, entre 2006 e 2015, ela voltou ali. De início, chegou de mansinho, passou umas semanas, sentiu o clima. Depois, foi encontrar financiamento para mais pesquisa e voltou para passar mais tempo, dedicando-se a entrevistas e grupos focais, observação participante mais apurada, perguntas mais argutas. E, a partir desse longo relacionamento, Melanie Medeiros, professora da State University of New York, produziu monografia de graduação, dissertação de mestrado e tese de doutorado, resultando no presente livro, publicado em 2018. Leia Mais

Manuel Querino: criador da culinária popular baiana | Carlos Alberto Dória, Jeferson Bacelar

Justamente, em uma tarde qualquer de abril, “começou na Bahia […] a glória de Pedro Archanjo”, personagem de Tenda dos Milagres, livro de Jorge Amado.1 Nesse romance, o mundo da cozinha baiana está presente. Nos dizeres de Paloma Amado, Pedro Archanjo era “um obá de Xangô, Ojuobá cheio de conhecimento e sabedoria”, que conhecia “o povo mestiço da Bahia […] seus hábitos, sua cultura”, portanto, através dele se podia ter “a noção exata da delicadeza e da força, da simplicidade e da sofisticação dessa culinária”.2 Até porque Jorge Amado construiu seu romance inspirado em personagens reais. Pedro Archanjo se espelhava em Manuel Querino. Jorge Amado disse então: “enquanto escrevi este livro, muitas vezes recordei […] Manuel Querino”.3 São temas do livro aqui resenhado, tanto a pessoa, Manuel Querino, como sua obra, A arte culinária na Bahia. 4 Leia Mais

Infância e educabilidades | Revista Nordestina de História do Brasil | 2020

A proposta de organizar o dossiê temático Infância e Educabilidades na Revista Nordestina de História do Brasil (RNHB) incide no interesse em divulgar este campo historiográfico e a sua produção na Bahia. Parte do interesse conjunto das organizadoras em apresentar as possibilidades de articulações e relações entre o campo de pesquisa histórica sobre a Infância com aquelas referentes às diversas formas de sua Educabilidade – na Escolarização ou Educabilidade Formal; nas Educabilidades Informais; e nas Educabilidades Não-Formais, na perspectiva daquelas que ocorrem em diversas relações socio-históricas. O âmbito espacial é o Brasil, contemplando qualquer período de sua história.

Por infância compreendemos como uma classe especial de pessoas qualitativamente e hierarquicamente diferentes dos adultos, cujos critérios para definir esta fase da vida humana são social e historicamente condicionados.

E como afirma Neil Postman:

Não devemos confundir, de início, fatos sociais com ideias sociais. A ideia de infância é uma das grandes invenções da Renascença (…) a infância, como estrutura social e como condição psicológica, surgiu por volta do século XVI e chegou refinada e fortalecida aos nossos dias.[1]

Dessa forma, alguns autores, como Postman, defendem que a ideia de infância surgiu associada diretamente ao desenvolvimento da prensa gráfica, que possibilitou a impressão de livros, e, consequentemente, o acesso democrático à leitura, alfabetização socializada. Surgindo, portanto, o fenômeno da escolarização que tinha como alvo a criança.

Outro historiador de grande destaque e um dos pioneiros em história da infância é Philippe Ariès, em seu livro História Social da Criança e da família [2]. Este autor, embora não discorde da importância da escolarização na construção da infância, enfatiza as mudanças nas relações familiares resultantes da economia capitalista e do surgimento de uma classe burguesa para explicar a origem da ideia de infância e as subsequentes práticas voltadas para promover a socialização deste grupo de forma diferenciada dos adultos. Ariès dialogou diretamente com a segunda geração da Escola dos Annales, dedicando-se à produção de uma história da infância através de uma história das mentalidades. É inegável a influência deste autor na história da família e da infância no Brasil, que, no início, recorre principalmente aos estudos demográficos para estudar estes campos historiográficos. Uma das pioneiras a estudar a história da infância foi a historiadora Maria Luiza Marcílio. Esta, a partir de pesquisas desenvolvidas no Centro de Estudos Demográficos e Históricos na América Latina (CEDHAL), publicou, em 1988, o livro História Social da Criança Abandonada. A autora demonstrou o universo da criança abandonada e sem família desde o período colonial até as primeiras décadas do século XX [3].

No final década de 1990, a história da infância no Brasil aproximou-se da história social da cultura, enfatizando os aspectos sociais, de gênero e de raça que definem e redefinem a infância, nos mais diferentes períodos históricos. Da mesma forma, a história da educação ampliou seu escopo para as questões de escolarizações e educabilidades. Incorporou também as proposições da História Cultural e da História Social. Acompanhando estas novas tendências da história da infância e da história da educação/escolarização/educabilidades, o nosso dossiê objetivou aglutinar pesquisas diferenciadas sobre estas interfaces historiográficas. Uma das propostas no dossiê temático foi a de que os artigos apresentassem pesquisas empíricas feitas para a Bahia/Brasil, espaço histórico-geográfico e sociopolítico da norma editorial da RNHB, nas suas múltiplas temporalidades, assim como, com usos de fontes históricas dos mais variados espectros.

Quanto aos recortes e problematizações, o interesse foi que estes enfoquem nas subtemáticas referentes às intersecções dos amplos campos temáticos entre Infância e Educabilidades, tais como os projetos institucionais de asilamento e proteção à infância; as infâncias, suas educabilidades e as relações de classe, gênero e raça; as propostas de instituições escolares para a infância; a infância presente nos impressos pedagógicos, livros e materiais didáticos para a educabilidade da infância: a infância nas reformas educacionais; as territorialidades e cartografias da infância e das suas educabilidades; categorizações e classificações de infância nas escolarizações e medicalizações, articuladas ou não: usos da mão de obra infantil articuladas à escravidão, liberdades, à formação de ofício e profissionalização nas suas articulações com educabilidades; resistências e táticas de sujeitos anônimos e subalternos em diversos espaços e formas de educabilidade e experiências de ou com a infância; infâncias e trabalho, bem como a idealização da infância e do amor materno e seu oposto, a negação da maternidade.

Assim, os artigos do dossiê Infância e Educabilidades apresentam algumas das atuais investigações sobre estas temáticas, no esforço de ampliar e divulgar o campo. São sete artigos, que, temporalmente, referem-se três à primeira República; um ao período do Segundo Império e sua sociedade escravista; um às lembranças e memórias deste período imperial e dois ao período mais recente do Brasil. Recobrem à Bahia, enquanto espaço geográfico e administrativo, ao enfocarem sujeitos da capital – Salvador –, dos “sertões” de Feira de Santana, Juazeiro, Caetité – do recôncavo –, São Gonçalo dos Campos, e do baixo Sul-Marau e Camamu.

São trabalhos realizados por pesquisadores (as) no âmbito de cursos de pós-graduação e graduação, assim como na pesquisa continuada de caráter profissional do (a) historiador (a). A ordem de apresentação escolhida pelas organizadoras foi a do recorte de ordem alfabética dos autores (as).

Andréa Barbosa e Camila Mota em Nem presa, nem morta: direitos reprodutivos no Brasil e o movimento feminista abordam o debate sobre a negação do mito do amor materno mediante a análise do aborto no Brasil e a associação entre a maternidade e a maternagem como atributo exclusivo da reprodução e do “destino biológico” dos corpos femininos. Para tanto, recorrem ao argumento de que a imposição da culpa e do pecado às mulheres que praticam o aborto é decorrente de uma mentalidade que impõe unicamente à mulher os cuidados e a socialização da criança. A naturalização da maternagem, ou seja, os cuidados e a educação de uma criança são atribuídos a uma suposta natureza feminina. Dessa forma, para investigar este processo de criminalização da negação da maternidade através do aborto, as autoras analisam a legislação penal brasileira que criminaliza esta prática, especificamente o Capítulo I do Código Penal de 1940 e a historicidade deste código. Da mesma forma, investigam o perfil das mulheres que abortam no Brasil mediante a análise da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada no ano de 2016, assim como a posição das teorias feministas acerca da reprodução. Por fim, as autoras concluem que transpor as desigualdades de classe e gênero e alcançar a equidade dentro da sociedade de classes é preciso para dar às mulheres o direito de escolher ou não ser mãe.

Em espaço interiorano, a cidade de Juazeiro, na Bahia, o artigo O Aprendizado Agrícola de Juazeiro e o ensino para pobres e negros (Bahia, 1909-1930) de Daiane Silva Oliveira e Maurício de Oliveira da Silva trata da experiência de educabilidade da criança rural, sertaneja, no Aprendizado Agrícola instalado nesta cidade, em 1910. Apresenta pesquisa empírica sobre esta instituição entre 1919-1930, e problematiza a sua criação como parte dos desdobramentos dos projetos civilizatórios republicanos e suas elites agrárias. Os autores destacam que estes aprendizados foram instalados em outros estados do país, de acordo com um critério de “tradição agrícola”. A escrita apresentada priorizou destacar nos aprendizes desta instituição – meninos e meninas – a evidência da presença de crianças pobres e negras a partir de um conjunto de fotografias de 1920, com a metodologia de heteroatribuição da classificação racial, conforme Maria Lúcia Muller [4]. Além desse registro fotográfico, foram utilizados documentos oficiais como as mensagens de Presidentes da República, Relatórios, mensagens e diversos Comunicados oriundos do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) do Brasil.

Ione Sousa e Bruna Santana da Silva trazem a primeira referência ao século XIX, ao Segundo Império e à sociedade escravista brasileira com Ingênuos (as) e seus serviços: estratégias de usos e modos de fuga (Bahia, 1874-1900). As autoras apresentam algumas experiências nos usos da mão de obra de ingênuos na Bahia, temática já percorrida pelas mesmas, pelo uso de dispositivos legais como a Tutoria e a Assoldada para a circunscrição do trabalho do (a) “ingênuo (a)” – o (a) filho (a) da mulher escrava nascido (a) livre por força da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. São educabilidades no trabalho do labor na lavoura, no qual mães-cativas e sua parentela deveriam preparar futuros trabalhadores (as) na mesma sujeição. Mas nem sempre esta estratégia deu certo pelas ações contrárias de mães, parentes e dos próprios (as) ingênuos (as). Lançando mão de uma rica documentação que registra as relações entre as crianças ingênuas, suas mães, proprietários e ex-proprietários escravistas, tutores, assoldadores, Curadores de Órfãos, Juízes de Órfãos, destacam sujeitos que protagonizaram experiências contundentes nas lutas pela liberdade no cativeiro que existiu no Brasil.

Jacson Lopes Caldas n’A infância negra e o aprendizado de saberes populares femininos: memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito em Feira de Santana – BA traz narrativas sobre a educabilidade do saber-fazer de práticas de artesanato familiar feminino e popular via as memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito. São saberes transmitidos por gerações de mulheres negras – em lugares de memória – destas sujeitas na cidade de Feira de Santana, que se entrelaçam, da infância à vida adulta, em aprendizados transmitidos no cotidiano de mães/avós/tias como táticas que possibilitaram o trabalho no comércio do artesanato popular como meio de sobrevivência durante a fase adulta.

Maria Cristina Machado de Carvalho em Tradições orais: memórias transgeracionais do trabalho de crianças escravizadas – São Gonçalo dos Campos (Bahia, 1880-1950) também trata dos aprendizados familiares no trabalho cotidiano, quanto às tensas experiências do trabalho da criança escrava. Enfoca as memórias familiares transgeracionais nas narrativas sobre experiências/conhecimentos/testemunhos relacionados à vida dos antepassados, transmitidos por meio das narrativas orais através das gerações no período de 1880 a 1950, em São Gonçalo dos Campos, local de intensa produção fumageira e de subsistência.

Ainda sobre o interior da Bahia, alto Sertão de Caetité e circunvizinhanças, Miléia Almeida em “O fructo de amores ilícitos”: Infanticídios na contramão do mito do amor materno (Alto Sertão da Bahia, 1890-1940) focaliza experiências de mulheres sertanejas pobres quanto à gravidez, aborto e infanticídio. Problematiza representações sobre a infância expressas em processos judiciais, artigos da imprensa, assim como ressaltadas nas práticas femininas costumeiras que estes registros permitem evidenciar. Considera que a concepção de infância “historicamente construída nas sociedades ocidentais”, assim como “o mito da maternidade inata”, serviram de base para a condenação de mulheres que vivenciavam outros valores socioculturais. Sob uma perspectiva da análise de gênero, o texto busca colocar as mulheres como sujeitos e provocar o debate de um “tabu histórico”.

O último texto deste dossiê, de Verônica de Jesus Brandão, O jardim de infância nas teses apresentadas pelos professores primários da educação pública do município de Salvador nas Conferências Pedagógicas (1913-1915) nos faz retornar à Salvador e à primeira República ao explorar a criação dos Jardins de Infância como espaços de educabilidade. Problematiza que embora esta forma de educabilidade não estivesse oficialmente elencada nos temas das referidas Conferências Pedagógicas, a importância das mesmas nos projetos de educadores a colocou em pauta, numa variedade de temas: currículo, espaços e reflexões dos docentes sobre o Jardim de Infância.

Assim, terminamos esta primeira tentativa de sistematização do campo, óbvio que com lacunas e omissões. Agradecemos à RNHB a iniciativa de submissão de propostas e o acolhimento da nossa.

Notas

1. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. p. 12.

2. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

3. MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1988.

4. MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. Professoras Negras na Primeira República. Cadernos PENESB, Niterói, v. 1, n. 1, p. 21-68, 1999.

Andréa da Rocha Rodrigues Pereira Barbosa –  Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: andrearocha66@hotmail.com  Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8376-1945

Ione Celeste Sousa –  Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Professora da UEFS Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: ionecjs@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9721-750X


BARBOSA, Andréa da Rocha Rodrigues Pereira; SOUSA, Ione Celeste. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.3, n.5, p.6-11, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

Um país historicamente caracterizado por uma cidadania incompleta e falha, marcado por políticas de mandonismo, patrimonialismo, várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência. Uma nação que, apesar de vivenciar o maior período de vigência do estado de direito democrático desde 1988, não conseguiu constituir uma cultura democrática efetiva e nem uma república plena, combater de fato suas desigualdades e a concentração de renda, a discriminação contra negros e indígenas, e eliminar as práticas de violência de gênero. Resultantes de contradições estruturais e históricas, esses problemas continuam basicamente inalterados e tendem a reaparecer – à semelhança de um fantasma para nos assombrar – em momentos de crise política, econômica e social, de polarização política e da ascensão de governantes autoritários eleitos com base no uso das mídias sociais.

É o Brasil do início do século XXI – seus males, problemas e raízes históricas – e o incontestável ressurgimento do conservadorismo e do autoritarismo com a eleição de Jair Messias Bolsonaro que a historiadora Lilia M. Schwartz discute em seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, em diálogo com as reflexões de seu livro anterior Brasil: Uma Biografia2 – escrito em conjunto com a historiadora Heloísa M. Starling – e inspirado nas reflexões sobre o Brasil contemporâneo em sua coluna quinzenal no Jornal Nexo. Leia Mais

Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

A obra Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade é o resultado de um projeto de pesquisa da autora, Caroline Silveira Bauer, “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2008-2014)”, sendo este apenas um dos muitos projetos envolvendo a ditadura civil-militar, os direitos humanos e a Comissão Nacional da Verdade nos quais a autora se envolveu. Antes da publicação deste livro, Bauer havia analisado comparativamente políticas de memória no Brasil e na Argentina, e mais recentemente integra um projeto de pesquisa sobre os usos políticos do passado. Além disso, entre 2011 e 2013 foi consultora na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Portanto, dado o domínio da autora sobre o tema e sua familiaridade com tantas questões que o tangenciam, não é de surpreender que se trate de uma leitura tão interessante e instigante.

Segundo afirmado pela historiadora na introdução do livro, seu objetivo era o de “fomentar o debate sobre fazeres e práticas dos historiadores comprometidos com uma escrita da história que fundamenta suas análises no pensaras possibilidades de intervenção no mundo”1 , que considero ser seguro afirmar, a obra cumpre com maestria, trazendo à luz questionamentos sobre o papel de organizações como a CNV no estudo de história, bem como o papel de historiadores e historiadoras no que diz respeito à estes órgãos. A autora admite, contudo, que o livro pode ser considerado “inoportuno, insistente ou rancoroso”2 por quem critica o anacronismo da Comissão da Verdade, que deveria ter existido em outro momento, mas é justamente este um dos pontos da obra: compreender se esta comissão foi capaz de apaziguar os ânimos no que diz respeito a memória da ditadura civil-militar. Leia Mais

Educação Escolar Indígena | Abatirá | 2020

A Revista Abatirá encerra o ano de 2020 brindando a comunidade e seus leitores com o generoso dossiê, intitulado “Educação escolar indígena no século XXI”: desafios, especificidades e perspectivas”. Trata-se de um número organizado por especialistas na temática educação indígena, contendo artigos que abordam as histórias, os desafios e os avanços de um tema tão caro e necessário, o qual precisa ganhar visibilidade nos espaços universitários, escolares e populares, especialmente nesse momento em que atravessamos uma conjuntura difícil, caracterizada pela crise generalizada e pelo avanço do autoritarismo e da política antiindigena orquestrada pelo Estado brasileiro.

No percurso de contato dos colonizadores portugueses e do Estado brasileiro com os povos originários, identificamos ações detratoras que promoveram e promovem o etnocídio, o epistemicídio e o desaparecimento de saberes, línguas e cosmologias. Políticas de Estado que prometiam salvar almas e que se diziam promotoras da civilização e da cidadania, por trás da ideia de progresso, vilipendiaram os povos originários com opressão e violência sistemáticas. Leia Mais

Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência | Patrícia Daniela Maciel

Um livro traz reflexão e novas compreensões sobre uma temática. Diante da necessidade de dar voz e visibilidade para a questão da lesbianidade na escola, Patricia Maciel escreveu o livro intitulado como “Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência” por ora resenhado.

A 1ª edição foi lançada em Curitiba, no ano de 2017 pela editora Appris. Suas 197 páginas destacam as questões que fogem a norma com o intuito de compreender as relações dos sistemas discursivos hegemônicos dentro da escola. O interesse da autora é romper com sistemas de controle e de assujeitamento dos corpos diante das questões que envolvem a sexualidade, assim, têm como ponto de análise as falas do ser docente lésbico e como rompem com o discurso heteronormativo em sua vida pessoal e profissional, e como confrontam e avaliam essas experiências em torno dos padrões de gênero ao longo da sua carreira profissional.

A forma de subjetivação e de enfrentamento dos padrões patriarcais na atuação profissional das lésbicas é o foco central do livro. Nesse aspecto, os cinco capítulos discorrem sobre atitudes de resistência contra os processos de subordinação heteronormativos e para embasamento, é utilizado Tereza de Lauretis, Judith Butler, Monique Wittig e Margareth Rago visando refletir sobre a representação social do corpo feminino lésbico no ambiente escolar e sua multiplicidade de atuação contra a heteronormatividade.

Para delimitar o objeto da pesquisa, a autora realizou a busca por docentes que se encaixavam no perfil da temática via email por um período de duas semanas. Nove docentes demonstram interesse em participar, contudo, a investigação ocorreu somente com sete que aceitaram realizar as entrevistas. Assim, o ponto inicial do livro visa a autocompreensão subjetiva das docentes lésbicas em torno da relação da escola e gênero. Para isso, destaca a multiplicidade de definições acerca da diversidade e o autorreconhecimento da sexualidade que foi encontrado, entendendo que, ser docente e lésbica não homogeneíza a visão das entrevistadas. Ao conceituar os resultados concomitante as ideias de Jorge Larossa, a autora do texto ora resenhado, discorre que a prática de conhecimento é uma condição de ascese para a experiência de existência.

Como resultado, é destacado três grupos de análise: O primeiro, as docentes podiam falar de si como lésbicas nas escolas. O segundo tem como foco a evidencia das lutas e os enfrentamentos contra os processos de condutas patriarcais no ambiente escolar e a valorização de suas experiências como lésbicas. Por fim, o último grupo de análise destaca como docentes reconstroem a feminilidade fora do padrão heteronormativo no ambiente escolar.

Para reconhecer a heterogeneidade das entrevistadas, a pesquisadora destaca no primeiro capítulo o perfil de cada através da autodescrição. O segundo capítulo descreve o efeito dos discursos de gênero na construção docente. Vale ressaltar que a autora ao se basear nos estudos de Michel Foucault, Judith Butler, Tereza de Lauretis, Linda Nickolson, Paul Beatriz Preciado e Guacira Lopes Louro, os conceitos de sexo/gênero utilizados ultrapassam os conceitos binários e tem como ideia central o dispositivo da sexualidade para descrever os discursos, enfatizando assim, as singularidades dos relatos e experiências sobre gênero de cada docente lésbica.

Tendo como referência as ideias de Foucault, o livro destaca o entendimento sobre o sexo como um poder que ganha legitimidade pela linguagem e práticas e leva o indivíduo a pensar de acordo com determinados domínios do saber. Entender o sexo/gênero como uma tecnologia discursiva que controla o campo das significações sociais e que produzem no sujeito algumas significações é destacado no decorrer da obra a ideia que, a partir das tecnologias dos discursos, se forma uma ideia do “eu” que se conhece e se controla através da sexualidade.

Cabe salientar que a autora respaldada em Louro (2008), descreve a forma que as professoras falam de si mesmas como uma forma de atravessar limites e fazer seu próprio obstáculo para penetrá-los, superá-los e transpô-los e assim, pensar fora da lógica imposta e viverem a sexualidade. Nesse aspecto, incita uma reflexão sobre a instabilidade profissional e pessoal causada pela escola por utilizar a heterossexualidade compulsória como normalizador das condutas sociais do ambiente escolar que reprime as professoras lésbicas para exercerem sua profissão.

Outra singularidade observada é sobre o significado que a escola atribui ao gênero e a forma que influi na relação das professoras com seus alunos. O tom e o sentido que as entrevistadas dão às suas trajetórias como professoras interferem no seu reconhecimento como lésbica. Mesmo que as entrevistadas não falem de forma explicita na escola sobre sua sexualidade elas garantem através do enfrentamento das normas sexistas, a defesa dos alunos gays e das alunas lésbicas, mas isto não garante que a escola fale de forma aberta sobre gênero.

Através dos relatos das professoras é notório que a hegemonia patriarcal no ambiente escolar ainda vigora de forma impositiva e normalizadora. Fugir à regra hegemônica é resistência, desafiar as regras de controle dos corpos é dar voz aos sujeitos em formação que são inferiorizados e marginalizados pelas estruturas sexistas dominantes tão enraizadas e que podem acarretar em danos irreversíveis na vida dos estudantes LGBTQIA+.

Nesse sentido, o cap. 3 descreve sobre os efeitos das experiências de si e do ser docente dentro da perspectiva da multiplicidade do discurso de gênero que dá forma ao sujeito. É destacado que as professoras pesquisadas ressignificam a docência e produzem uma ética de si para ser usada no campo educativo, assim, a forma que conduzem suas experiências como mulheres e a forma que vivem a sua sexualidade são vista como um ascese, uma episteme para pensar a partir da singularização e no modo como elas se relacionam com o mundo e com os seus alunos. Através dessas experiências elas tentaram introduzir novos espaços e novos modos de mudanças na cultura e na sociedade.

O penúltimo capítulo descreve sobre a produção dos femininos na escola mediante os discursos performativos e como as entrevistadas se auto afirmam individualmente como mulheres, professoras e lésbicas. A reflexão baseia-se nas relações de poder em torno dos discursos entre o ideal de mulher e os discursos flexibilizadores das suas escolhas.

Ao descrever como são produzidos os femininos e corrobar com os estudos de Hall (2000), o livro mostra que as identidades não são iguais, nem mesmo em meio a uma cultura histórica do povo. Assim, ao mostrar como se produz os femininos nas falas das professoras, a autora destacou os processos políticos universais que visam construir os discursos com o intuito de criar as desigualdades. Dessa forma, é observado nas entrevistas como funcionam os discursos de gênero e como estes constroem a si por meio da diferença. As falas das docentes demonstram que muitas vezes as estruturas de poder não dão às professoras lésbicas um essencialismo identitário aceitável, pois estas estruturas estão sempre em alerta em relação ao gênero da mulher e o que é visto como aceitável em relação à prática da feminilidade no mundo heteronormativo, mas mesmo diante de tantos obstáculos, elas assumiram uma forma de desconstruir os discursos binários baseados na lesbianidade.

Cabe salientar que apesar das professoras problematizarem sobre gênero na escola a partir das suas experiências como seres engendrados, algumas apresentaram receio e insegurança no tratamento dos alunos na escola. Um exemplo é o discurso da professora Ana que relata a mudança no seu jeito de tratar os alunos da educação infantil dos alunos dos anos iniciais e fundamental por receio de ser mal interpretada, ou seja, ela deixa que o padrão heteronormativo influencie na sua relação interpessoal onde a homossexualidade não é aceita, pois a escola nega tais relações como um de seus rígidos referentes culturais. “Em relação a isso, posso afirmar que: 1) os alunos têm dificuldades para significar as estéticas, os comportamentos e as posturas das professoras pesquisadas; 2) a escola não lhes proporciona condições para que eles possam pensar em outros tipos de feminilidades” (p. 178).

No último capítulo a autora termina suas considerações sobre a pesquisa destacando o redimensionamento da sua experiência como pesquisadora que as narrativas das docentes lhe oportunizaram. Ao relembrar como as professoras são envoltas diariamente por relações de poder através do dispositivo de gênero e como elas precisam interpretar, negar, afirmar e transformar esses discursos em sua vida para continuar sua vida pessoal por serem corpos sociais, é o ponto de destaque do livro e que norteia toda a reflexão do livro.

Ao realizar a leitura, percebi que caminhar para um processo de normalização do gênero nas escolas é uma busca que ainda necessita de longos caminhos, principalmente nas escolas públicas onde os sujeitos são invisibilizados e envoltos por questões políticas e de controle tradicional dos corpos. Mas a potência dos discursos das professoras tem dado voz para a desconstrução dos padrões sexistas que envolve o ambiente de atuação profissional.

Através da utilização de seus corpos como impulso para subverter a ordem binária instituída no ambiente escolar, as docentes lésbicas veem em seu trabalho uma forma de reestruturar as percepções sociais, mesmo sendo muitas vezes oprimidas pela heteronormatividade. Desta forma é notória a emergência no apoio e multiplicação das lutas contra determinismos falocêntricos para um maior reconhecimento dos sujeitos LGBTQIA+, bem como a necessidade de pesquisas que envolvam a temática da lesbianidade no ambiente escolar, pois desta forma, conseguiremos voz e um novo olhar para debates sobre gênero e sexualidade que ainda é invisibilizados e vista como um tabu científico no meio social, mas principalmente, nas escolas.

Mayana Morbeck Coelho –  Pedagoga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – PPFREC/UESB/Jequié. https://orcid.org/0000-0003-2720-5930 Email: mmorbeckcoelho@gmail.com. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)


MACIEL, Patricia Daniela. Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência. Ed. Appris. 2018, p. 197. Resenha de: COELHO, Mayana Morbeck. Subvertendo padrões de gênero na docência. Abatirá. Eunápolis, v.1, n.2, p.150-154, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [IF]

História das crianças no Brasil meridional | CARDOZO José Carlos da Silva Cardozo, Jonathan Fachini da Silva, Tiago da Silva Cesar, Paulo Roberto Staudt Moreira e Ana Silva Volpi Scott

O livro História das crianças no Brasil meridional, organizado pelos historiadores José Carlos da Silva Cardozo, Jonathan Fachini da Silva, Tiago da Silva Cesar, Paulo Roberto Staudt Moreira e Ana Silva Volpi Scott, publicado há quatro anos pela Editora Oikos em parceria com a Editora da UNISINOS, teve destaque no Prêmio Açoriano de Literatura em 2016. Agora, as Editoras supracitadas brindam o público leitor no ano de 2020 com uma segunda edição do livro em formato e-book, possibilitando uma maior circulação do conhecimento. Frisa-se, ainda, que a obra em tela é indiscutivelmente um referencial bibliográfico fundamental e determinante no campo da história social.

A obra descortina as várias histórias de pequenos indivíduos, meninos e meninas que, até então, estavam escondidos e esquecidos em documentos produzidos por adultos de múltiplas temporalidades. Tais fontes encontram-se espalhadas em arquivos de muitas regiões do Brasil, com uma presença maior da região Sul. Assim, a coletânea apresenta textos que pavimentam e pavimentarão o processo de consolidação da história da criança na América Latina. Leia Mais

Sociabilidades e territorialidade: A construção de sociedades de afrodescendentes no sul de Santa Catarina (1903/1950) | Júlio César da Rosa

O passado de Santa Catarina, cunhado nos discursos oficiais e acadêmicos do século XX, foi atrelado a uma memória, pautada, exclusivamente no imigrante europeu. Memórias formuladas e manuseadas, através de coordenadas ideológicas hegemônicas da sociedade moderna ao longo do tempo, fixaram a imagem de uma Santa Catarina branca e civilizada, incipiente ou quase inexistente da presença outros sujeitos, experiências e culturas que enfrentavam o quotidiano das cidades e das zonas rurais, marcadamente por diversos modos de vida.

Ocorre que, apesar dos territórios da região sul do Brasil e em vários países da América, receberem um contingente significativo de africanos, suas memórias e dinâmicas sociais angariadas no mundo diaspórico, não foram levadas em conta nas narrativas das fundações e desenvolvimento de cidades catarinense, relegando-as uma invisibilidade histórica. Leia Mais

A Batalha do Atlântico na costa do Brasil | Navigator | 2020

De que maneira a Segunda Guerra Mundial se descortinou no horizonte oceânico dos brasileiros? Com o intuito de responder a esta e outras problemáticas, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM), por meio da revista Navigator, abriu a chamada de artigos para o dossiê temático “A Batalha do Atlântico na Costa do Brasil”. Os organizadores desta edição da Navigator estão vinculados ao Programa de Pós- -Graduação em História, da Universidade Federal da Bahia, onde desenvolvem pesquisas acadêmicas sobre a referida temática.

Convém assinalar que este trabalho começou a ganhar corpo, alma e sangue em meio ao sofrimento pandêmico de 2020 e diante das sequelas do confinamento impostas pelas medidas sanitárias do governo. Esta situação de anormalidade exigiu a prorrogação do prazo das submissões ao dossiê, visto que os pesquisadores tiveram o acesso interrompido aos arquivos, bibliotecas, memoriais, museus e universidades. Leia Mais

Bexiga em três tempos. Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável | Nadia Somekh e José Geraldo Simões Júnior

O Bexiga, coração da Bela Vista, se acomoda em um pequeno vale que acolhe as águas de chuva que descem da encosta da avenida Paulista e do Morro dos Ingleses para desembocar na avenida 9 de Julho, lugar de direito do pequeno rio Saracura. Com platibandas, arcos, frontões, varandas diminutas, paredes desgastadas pelo tempo ou pintadas em cores vibrantes e alegres, o casario alinha-se rente às calçadas das ruas pacatas (1).

Homens consertam automóveis estacionados no meio-fio, mulheres cultivam flores plantadas em vasos dispostos na calçada. Em cômodo da casa aberto para a rua, muitos trabalham: mecânicos, manicures, barbeiros, cabelereiras, sapateiros, carpinteiros, serralheiros, costureiras, alfaiates, ofícios extintos em outros lugares da cidade. Atividades mais afamadas – bares, restaurantes, cantinas e padarias – disputam o endereço com depósitos de material de construção e ferro-velho, frequentados por carroças que trafegam com anacrônica lentidão pelas ruas estreitas da localidade. Leia Mais

Libertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil | Ana Gabriea Mota e Kauan William dos Santos

Desde seu início, o veganismo adotou uma ideologia abolicionista, revolucionária e interseccional. Porém, a lógica do capitalismo fez com ele o que sempre fez com qualquer movimento social: se apropriou, retirou sua base revolucionária, elitizou através dos altos preços de produtos veganos industrializados (criados pela própria indústria de alimentos com origem animal), e o vendeu como uma dieta sofisticada que só pode ser comprada por uma classe social com alto poder aquisitivo, restando para as classes menos abastadas os resíduos de alimentos de origem animal danosos à saúde dos indivíduos e à do planeta.

Não há como falar de libertação animal sem falar também de libertação humana. Não há como falar em antiespecismo sem falar de feminismo, de lutas por direito a terra, de inacessibilidade às classes marginalizadas e do movimento negro. É isso que o livro organizado por Ana Gabriela Mota e Kauan William dos Santos se propõe a (re)colocar em discussão. Através de oito textos escritos por diversos autores, representantes das causas acima citadas, o livro faz as conexões entre especismo e feminismo, racismo e exclusão social e de terras, conexões essas que muitas vezes passam desapercebidas ao olhar menos atento de quem vê por fora o movimento vegano. Leia Mais

Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia/ diversidade e inclusão | James N. Green

James N. Green nasceu no ano de 1951 em Baltimore nos EUA e é atualmente professor de História Latino-Americana na Brown University, além de ativista de causas políticas e LGBTQ+. Green é diretor de um dos mais importantes centros de estudos sobre o Brasil no exterior, e está à frente do Projeto Opening Archives, programa que tem milhares de documentos sobre o período da ditadura militar brasileira. Green é homossexual e um dos maiores brasilianistas dos EUA, características que se refletem em suas obras.

O livro “Revolucionário e Gay: A vida extraordinária de Herbert Daniel – Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão”, lançado no ano de 2018, é uma obra biográfica sobre Herbert Eustáquio de Carvalho, mais conhecido como Herbert Daniel (Daniel era um de seus codinomes) – um complexo personagem da esquerda revolucionária no contexto político da década de 1960, falecido em 1992. Intelectual e guerrilheiro, Daniel fez parte de diversos grupos políticos, como Colina, VAR-Palmares, e VPR. Leia Mais

Celso Furtado | Intellèctus | 2020

Este Dossiê, composto por nove artigos que abordam o pensamento furtadiano, insere-se no projeto Celso Furtado 100 Anos. Um projeto iniciado em 2019 pelo Núcleo de Identidade Brasileira e História Contemporânea (NIBRAHC) com a realização de uma série de seminários sobre Celso Furtado em razão do seu centenário de nascimento que viria a ser comemorado neste ano de 2020. Os seminários, chamados de “PréCelso”, foram realizados através da parceria do NIBRAHC com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com o Centro Internacional Celso Furtado (CICEF), com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ (IFCH), com o Programa de Pós-graduação em História (PPGH) e com o Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Estado do Rio de Janeiro (SINTUPERJ).

A publicação do Dossiê Celso Furtado pela Revista Intellèctus se apresenta como o coroamento do centenário deste pensador, cujas justas homenagens foram realizadas com o Congresso Internacional Celso Furtado 100 Anos, organizado pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da UERJ (PR3), UERJ, NIBRAHC, IFCH, PPGH e SINTUPERJ. Foram cinco dias de conferências, abordando o pensamento furtadiano e proporcionando reflexões intelectuais sobre a atual situação econômica e social. Reflexões que prosseguirão através da leitura dos artigos deste Dossiê. Leia Mais

O Patrimônio Cultural em Belo Horizonte | Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte | 2020

O Patrimônio Cultural em Belo Horizonte. Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v7, dez. 2020. Acesso apenas pelo link original.

Campo de Poder dos grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte | Daniel M. de Freitas


Resenhista

Leonardo Gonçalves Ferreira


Referências desta resenha

FREITAS, Daniel M. de. Campo de Poder dos grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. São Paulo: Annablume, 2017.  Resenha de: FERREIRA, Leonardo Gonçalves. Uma análise bourdiana sobre os grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v.7, p.358-362, 2020. Disponível apenas pelo link original.

Flávio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984 | Bento B. Schmidt

Com o estudo a respeito da trajetória do militante revolucionário gaúcho Flávio Koutzii, o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Benito Schmidt consagra-se como uma referência importante na historiografia especializada no campo biográfico. Após 10 anos de pesquisas com consultas a sete arquivos, (além do acervo pessoal do biografado), a 20 periódicos e cerca de 60 entrevistas, Schmidt constrói a história de vida do seu personagem, até o seu quadragésimo primeiro ano de vida, quando Koutzii retornou definitivamente para o Brasil e reconstruiu sua vida pessoal e política na sua terra natal, Porto Alegre. Em 20 de março de 2020 Flávio Koutzii completou 77 anos e eventualmente opina sobre os grandes temas nacionais, a partir de um ponto de vista marxista que consolidou ao longo de sua vida.

O texto de Schmidt é dividido em cinco partes, contando ainda com uma introdução – onde faz uma discussão teórica sobre o gênero biográfico – uma conclusão e um posfácio escrito pelo próprio Koutzii. O livro traz, ainda, uma contribuição de Guilherme Cassel (ministro do Governo Lula e companheiro de partido de Koutzii) e uma lista das fontes consultadas e entrevistas realizadas, bem como a bibliografia. Todo o projeto de pesquisa foi financiado pela CNPQ-CAPES, FAPERGS e foi desenvolvido com apoio de bolsistas ligados à graduação e à pós-graduação do Departamento de história da UFRGS. Leia Mais

A Guerra da Tríplice Aliança, 150 anos depois  | Diálogos | 2020

Ao se completarem os 150 anos do fim da Guerra da Tríplice Aliança (Guerra Guasu, Guerra contra a Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai, entre as várias denominações que o conflito recebeu), as academias dos países envolvidos abriram suas portas para novas reflexões e debates em torno deste acontecimento que marcou a vida política, social, econômica, cultural e histórica da região do Prata.

Diferentes fatores têm contribuído para a renovação e a produção de novas leituras sobre a contenda. Sem dúvida, a disponibilidade de outras ferramentas teórico-metodológicas, surgidas nas últimas décadas, tem enriquecido com novos olhares as análises sobre o passado. Assim, foram deixados para trás os relatos engessados das histórias política e militar de outrora, em que o tom era colocado na ação dos “grandes homens” e na somatória de batalhas, sem dar margem às microhistórias, à história social ou à história cultural. Agora, estas se fazem presentes de maneira definitiva e em um diálogo interdisciplinar com as outras áreas das ciências humanas, transcendendo as fronteiras nacionais para construir uma história regional. Por sua vez, as histórias política e militar foram as grandes beneficiadas de estas mudanças que, longe de perderem espaço nas narrativas sobre o passado, ganharam um fôlego inusitado. Leia Mais

Iconografia da paisagem brasileira | Orlando Graeff

Classificar faz parte dos naturais anseios humanos. Em seu afã de entender a organização dos distintos mundos que compõem o mundo, o homem classifica animais, plantas, rochas. Classifica geoformas, solos e ambientes.

Com as paisagens não é diferente. Em seu esforço de definir – ou descobrir – como as paisagens podem ser distinguidas por algum perfil ou algum conjunto de características, em geral artificialmente estabelecido, ele busca critérios que possam trazer alguma coerência sistêmica. Na dinâmica que rege as correntes científicas, há propostas em evolução permanente para se poder definir o que é uma paisagem e o que é a outra! E, lógico, com o desenvolvimento científico-tecnológico, tais sistemas vão se tornando cada vez mais sofisticados. Existem formas antes impensáveis de se definir a taxonomia de uma determinada paisagem. Até mesmo a partir dos sons, bióticos e abióticos, que delas emanam. Sim, as paisagens têm uma assinatura sonora que as individualiza! Para nosso deleite, os novos métodos científicos não têm sido excludentes. Hoje, para um levantamento paisagístico se usa um drone altamente sofisticado, mas que pode ser considerado como uma câmera fotográfica convencional, só que voadora. Leia Mais

Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845) | João Paulo Peixoto Costa

O minado campo de disputas envolvendo o protagonismo da escrita e, consequentemente, as escolhas assumidas ao longo do percurso acadêmico, continua a colocar em “prova de fogo” a relevância histórica de diversas obras produzidas sobre os povos indígenas no Brasil, e, essencialmente, na Região Nordeste. O exotismo buscado por vários pesquisadores coloca em questão a legitimidade das mobilizações em busca de direitos, amparadas em legislações e vultosos eventos militares ocorridos entre os séculos XVIII e XIX, definidores do Estado nacional brasileiro.

Não faria sentido, pois, escrever uma história indígena ou tratar os índios na História, desvencilhando-a do presente, mesmo sendo remetida aos últimos dois séculos, diante da ausência de imparcialidade na escrita, em grande medida, utilizada como instrumento de denúncia às injustiças sociais ocorridas com os “silenciados” e “soterrados” pelas narrativas hegemônicas. A partir de “novas lentes”, o texto ora resenhado, procurou evidenciar a participação dos indígenas como protagonistas da/na história, através de um fecundo e frondoso caminho fragmentado, micro-histórico. Leia Mais

História, catolicismo e educação | Pedro Vilarinho Castelo Branco e Maria Dalva Fontenele Cerqueira

O entendimento de que vivemos em uma sociedade marcada por experiências culturais que atribuem múltiplos sentidos e significados às vivências humanas constitui-se em expressão de reconhecimento dos fenômenos sociais existentes. A noção de pensar sobre os processos educativos institucionalizados no contexto brasileiro se deu, inicialmente, a partir da criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), na década de 1930, junto ao movimento que ficou denominado como “Nova Escola” e como uma das primeiras tentativas de organização do sistema educacional brasileiro. A reflexão sobre as crenças, em especial as religiosas, adquire relevância, igualmente, a partir da ascensão desse tipo de estudos no campo da filosofia das religiões. O objetivo do presente texto é apresentar resenha da obra “História, catolicismo e educação”, escrita por muitas mãos de jovens e experientes pesquisadores e organizada pelos professores Pedro Vilarinho Castelo Branco e Maria Dalva Fontenele Cerqueira, publicada em 2019, pela Editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFPI). A obra está dividida em onze capítulos que dialogam entre si, a partir dos temas centrais da proposta: história, educação e catolicismo. É a partir das relações estabelecidas entre os campos da História, da Educação e da História da Educação, portanto, que a obra preocupa-se em dirigir sua mirada, em especial para as relações estabelecidas entre o catolicismo na educação escolar ao longo da historiografia brasileira. Leia Mais

Rio legal. Ensaios sobre uma cidade em movimento | David Cardeman e Rogerio Goldfeld Cardeman

Ao andar por cidades brasileiras, um observador atento perceberá edificações de diferentes épocas, formas, tamanhos e tipologias. Um urbanista poderá reconhecer que esta diversidade não é aleatória, mas sim resultado da sucessão de planos e regras vigentes em cada momento em cada região da cidade. E, na cidade do Rio de Janeiro, ninguém melhor do que David e Rogerio Cardeman para explicar os detalhes desta transformação ao longo do tempo, explicando a história do desenvolvimento urbano da cidade através das suas leis urbanísticas, arquitetônicas e construtivas.

O olhar apurado e o entendimento profundo dos autores sobre a evolução da regulação urbana na cidade do Rio de Janeiro nos permitem entender como a sucessão de planos e leis interferiram na forma edificada em todas suas nuances que, por sua vez, impactou retroativamente no desenvolvimento da cidade. Como surgiram os grandes embasamentos para automóveis? Os afastamentos frontais separando as edificações das calçadas? As varandas em balanço? As áreas de recreação nos condomínios? Ao contrário da imaginação popular, tais resultados formais não se devem necessariamente às decisões individuais de arquitetos ou incorporadores, e algumas das respostas são desvendadas no histórico legislativo da cidade. Leia Mais

Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020 | Abilio Guerra, Marcos Grinspum Ferraz e Silvana Romano Santos

Taí um livro que não carece de resenha. Dado que se constitui em si mesmo, sem necessária tradução ou reforço teórico, crítico ou explicativo; vamos começar pelo começo, por puro e respeitoso apreço e deleite.

É um lindo corpo físico – que bom poder sentir o peso do volume nas mãos e folheá-lo, percorrendo página a página, composta cada uma a sua vez de texto e imagem com medida apurada. Quase, mas não perfeitamente quadrado – a proporção nos atinge de primeiro, sem racionalização, não é mesmo? – e assim ele fica de pé, posto que tem um tantinho mais de altura do que largura. Mas se deita, também, sobre um plano qualquer e nos espera, ao expor seu rosto de chofre, claro, sincero. Um ser encarnado. Leia Mais

Rolê pela CEI. Um Guia Afetivo De Ceilândia. Primeiro Volume | Elane Ribeiro Peixoto e Julia Mazzutti Bastian Solé

Este é um guia atípico. Não foi feito pensando em turistas que desejam curtir um lugar em seu período de férias ou viajantes que pretendam aumentar seu nível cultural colecionando conhecimento de obras e monumentos já de reconhecido valor histórico ou artístico (que receberam o selo do tombamento patrimonial, por exemplo). É claro que tais turistas e viajantes com interesses culturais poderão aprender muito com o “rolê pela CEI”. Mas, propõe-se aqui algo distinto: revelar tanto um lugar usualmente não contemplado por guias como também vivências e percepções pouco conhecidas, provenientes de alunos e professores da Ceilândia. Leia Mais

Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares | Laurentino Gomes

Laurentino Gomes, autor de 1808, 1822 e 1889, lançou em 2019 seu novo trabalho: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia, fruto de uma pesquisa de seis anos que passou por três continentes (África, América e Europa). Seu objetivo é narrar a história da escravidão pelo viés de longa duração, apresentando diferentes perspectivas historiográficas, a pluralidade de sujeitos históricos e polêmicas. A narrativa de Gomes é marcada pela comunhão de revisão bibliográfica temática com escrita jornalística, conectando apontamentos fundamentais do tempo historiográfico à fluidez narrativa. O foco territorial passa pelas histórias do continente africano (enfatizando Angola), Brasil e Portugal. Seu ponto de partida é o primeiro leilão de escravos em Portugal, em 1444, e finaliza com a mudança de ênfase do trabalho escravo no Brasil no século XVIII, o qual passou do cenário da lida com cana-de-açúcar para a mineração de ouro. Leia Mais

Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile | Piero Brunello

O livro Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile, do historiador italiano Piero Brunello, publicado em 2020 pela Editora Cierre Edizione, tem muito a nos dizer sobre Santa Catarina, a imigração dos italianos no Sul de nosso estado (mais precisamente nas colônias de Urussanga, Grão-Pará, e Nova Veneza), o rapto de crianças indígenas e as expedições que massacraram a população dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng na região, durante o final do século XIX e início do século XX. Mas, essas não são afirmações genéricas do nosso passado, na tentativa de buscar responder ausências no que tange à região e que, muitas vezes, foram compartimentadas em temáticas pela nossa historiografia. A ideia aqui se apresenta muito mais do que fazer uma história da colonização, da imigração italiana ou da história de como os Botocudos/Laklãnõ-Xokleng foram perseguidos durante a colonização de Santa Catarina; já que é o encontro entre todas essas dinâmicas e temáticas que dá o tom do livro.

Piero Brunello é um historiador italiano e professor aposentado de História Social da Università Ca’ Foscari di Venezia. Durante sua trajetória profissional, pesquisou sobre diversos temas: emigração/imigração, escrita, história urbana, cultura popular, música e anarquismo. Entre as diferentes publicações de sua carreira, encontram- -se, principalmente, Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della fronteira (1994), Storie di anarchici e di spie: polizia e politica nell’Italia liberale (2009) e Colpi di scena: La rivoluzione del Quarantotto a Venezia (2018). Apesar de ter estudos sobre o Brasil e a emigração/imigração de italianos no nosso país, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. Por esta via, o interesse de um historiador italiano por Santa Catarina pode suscitar críticas, positivas ou desfavoráveis, uma vez que um olhar estrangeiro pode trazer tanto uma contribuição interessante às questões que não foram pensadas ou ditas pela historiografia catarinense, quanto assustar, por poder representar mais uma perspectiva europeia interessada no “excepcional”. Leia Mais

O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura | Elizabeth Cancelli

Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).

Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder. Leia Mais

História da Colonização em Terras Paulistas: Dinâmicas e Transformações (Séculos XVI a XX) | História (Unesp) | 2020

As monções representam, em realidade, uma das expressões nítidas daquela força expansiva que parece ter sido uma constante histórica da gente paulista e que se revelara, mais remotamente, nas bandeiras. Força que depois impeliria pelos caminhos do Sul os tropeiros de gado, e que, já em nossos dias, iria determinar o avanço progressivo da civilização do café. Tomadas no seu conjunto, o historiador de hoje poderia talvez reconhecer, nessas formas, uma só constelação. (HOLANDA, 1994, p. 135)

Pensado em perspectiva diacrônica e dentro do quadro de expansão e consolidação do capitalismo mundial, o dossiê História da colonização em terras paulistas: dinâmicas e transformações (séculos XVI a XX) tem como objetivo congregar estudos dedicados aos enlaces específicos entre as trocas comerciais, os mundos do trabalho, a organização do espaço produtivo e a ordenação dos movimentos de população como prática política e econômica no território paulista ao longo de cinco séculos. Processo responsável pela integração e ampliação dos laços entre São Paulo e o mercado mundial e pelo desenvolvimento do mercado interno, que configurou certa diversidade da produção agrícola, muitas vezes obscurecida posteriormente pela grande lavoura exportadora. Leia Mais

Ensino de História da África: possibilidades e estratégias | Abatirá | 2021

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa,

o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar.

Chimamanda Adichie (2015)

A década de 1990 constituiu um marco importante no que concerne o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras da rede pública. Embora de forma relativamente não sistematizada, a contribuição dos africanistas brasileiros tem-se demonstrado, ao longo das últimas duas décadas, relevante no que concerne o ensino da história e cultura africanas nas escolas da rede pública (LIMA, 2017, p. 117-140). Paralelamente, a promulgação da Lei Federal 10639/2003 definiu novos caminhos, favorecendo reflexões mais articuladas e propostas pedagógicas e didáticas mais eficazes no âmbito do ensino da História da África. De acordo com Anderson R. Oliva (2007, p. 143-173), a aprovação da Lei incentivou, embora de forma desigual e fragmentada, iniciativas importantes em termos de ensino, pesquisa e extensão, tendo sido implementados, a partir dos primeiros anos do novo milênio, cursos de especialização e levadas a cabo ações de formação de professores, congressos e seminários, bem como publicações científicas. A Lei constituiu um ponto de viragem fundamental no ensino, embora de um modo geral se tenham privilegiado temáticas relacionadas com a história e cultura afro-brasileira, em detrimento do ensino da história africana. É nesta linha de reflexão que o autor sublinha o fato de intelectuais africanos terem apontado para a necessidade de uma “inversão de foco histórico de matriz eurocêntrica para um foco conduzido por uma matriz afrocêntrica” (OLIVA, 2009, p. 155). No entanto, cabe interrogar em que medida tais reflexões e produções têm correspondido aos objetivos fixados pela lei federal referenciada e como esse percurso tem sido traçado e quais os principais desafios? Leia Mais

Empoderamento | Joice Berth

Para meu amigo Beto,

o Robert Santos Dias,

negro, de periferia,

consciente de si e do mundo,

empoderando-se a si e à sua comunidade.

Sob a coordenação de Djamila Ribeiro, a coleção “Feminismos Plurais” lançou em 2019, seu terceiro livro: “Empoderamento” de Joice Berth, arquiteta e urbanista, pós-graduada em Direito Urbanístico, Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista. Assessora parlamentar, dedica-se a pesquisas sobre gênero, raça e cidades. É colunista do site “Justificando”, especializado em Direitos Humanos e Política em geral, e da revista “Carta Capital”.

Ao longo dos cinco capítulos de “Empoderamento”, Berth traça um panorama histórico da palavra em tela, relaciona-a às opressões estruturais, aos mecanismos de participação social, discute sua ressignificação pelo Feminismo Negro e a insere no debate sobre estética e afetividade.

Sua análise sofisticada, contraria o capitalismo e as hierarquias do patriarcado, estimula o pensamento agudo e sério sobre o conceito “empoderamento”, no intuito de demover o status quo, a lógica racial segregacionista brasileira e a necropolítica em curso, haja vista que compreende “empoderamento” como instrumento de emancipação e erradicação das estruturas que oprimem.

Em seu livro a urbanista problematiza a utilização do neologismo “empoderamento” pelo senso comum, qual seja aquele que o entende como o ato de acumular dinheiro e angariar prestígio individual. Critica o processo de colonização das estruturas sociais de poder, dos corpos e da subjetividade, passando em revista a sanha branco-europeia sempre disposta a encobrir suas intencionalidades econômicas e políticas, as quais geram desigualdades para uns e patrocinam privilégios para outros.

É possível depreender do escrito por Berth que para além do empoderamento-show de “anittas” e a exposição de corpos supostamente senhores de suas regras, ser “malandra” não é sinônimo de ser empoderamento. Pois, ora, supostos ícones midiáticos podem não se empenhar contra as violências sofridas pela população negra, muito menos exercerem em sua arte e realidade concreta, uma práxis para a libertação sua e de grupos oprimidos. Logo, empoderamento será materializado na escrita de Berth como a condução articulada de indivíduos e grupos marcados por gênero, raça, sexualidade e outras categorias, ou seja, sujeitos reais, de carne e osso, que sofrem, que vivem e gozam, historicamente subalternizados para a autoafirmação, que pode ser financeira, estética, afetiva.

Não à toa, denuncia a autora que a inferiorizarão da aparência e da estética negra em detrimento da branca é um dos dispositivos que sustentam e justificam o sistema de opressão e exploração vigentes em nossa sociedade, e que a agressão aos corpos e subjetividades negras dificulta o desenvolvimento do amor, de parceiras e vínculos inclusive, entre si.

O estudo teórico de Barth nos faz refletir sobre representações sociais baseadas na articulação raça/gênero no cotidiano das pessoas, especialmente de mulheres negras, as quais estariam desde logo “fora do ‘mercado afetivo’ e naturalizadas no ‘mercado do sexo’, da erotização, do trabalho doméstico”, o que contrasta com a figura das mulheres brancas, “pertencentes ‘à cultura do afeto’, do casamento, da união estável” (BERTH, 2019, p. 146).

Como empoderamento não pode ser pensado ao largo das relações de poder que estruturam a sociedade, a autora feminista discutirá termos-chave como autovalorização, autorreconhecimento, autoconhecimento de si mesmo, afetividade e, especialmente, a necessidade de as sujeitas e os sujeitos desenvolverem uma conscientização quanto a sua posição social e política.

Apoiada em Paulo Freire, como se sabe, leitor de Guerreiro Ramos, bell hooks, Nelly Stromquist, Angela Davis, a autora é taxativa: mesmo que determinados sujeitos ascendam economicamente e contrariem as estáticas e o lócus reservado para sua coletividade, enquanto a comunidade marginalizada da qual faz parte não se empoderar, eles continuarão em constante fragilidade social, expostos às violências que atingem sua coletividade.

Aprende-se com a leitura de Berth que, a ideia clichê acerca do que seja empoderamento não colabora para a reversão de um histórico de legislações e artimanhas racistas cínicas que sustentam, desde o período colonial, o privilégio da classe dominante, leia-se branca. O rebaixamento discursivo em torno do empoderamento nubla o fato de que a emancipação representa um movimento dos subalternizados – todes2 – à erradicação de seus mais profundos problemas. Essa reflexão é uma das teses desenvolvidas por Berth e nos dá dimensão da importância do livro.

A “malandragem” do empoderamento na obra de Berth se aparta do stablishment, a saber, comprometida que está com a retificação de processos escravocratas impostos por meio da violência física, genocídio, memoricídio, epistemicído e alienação mental, capaz de estancar a opressão e as desigualdades, porque amplia a ideia de democracia e participação cidadã.

E como isso se produz na prática? Segundo o texto ora resenhado, por meio do auto empoderamento em quatro perspectivas distintas, mas não antitéticas ou hierárquicas: dimensão cognitiva, ou seja, desenvolver visão crítica da realidade; psicológica, fortalecendo o sentimento de autoestima; política, com vistas à problematizar a desigualdade de poder, aprender a se organizar e se mobilizar; e a econômica, capacidade de gerar renda independente.

A compreensão proposta sobre o que seja “empoderamento” é, portanto, ampla. Trata-se de uma Teoria do Empoderamento com vistas à decolonização política. Teoria que interpela à ação (e não o constante lamentar e arrastar de dores) de sujeitos não alinhados com os fetiches do liberalismo individualista, egocentrado, patriarcal e meritocrático.

Distantes desses pressupostos liberais, iluministas, assentados no patriarcado e no sexismo – formas de docilização dos sujeitos e subjugação –, coadunados com um autodirecionamento e ajuda mútua, responsabilizando-se por enfrentar as estruturas opressoras, sujeitas e sujeito empoderados devem promover métodos de cura e fortalecimento entre a população negra. Isso implica fortalecer a subjetividade de pessoas negras, descontruir imagens estereotipadas como a do homem negro perigoso, da mãe preta, da mulata fogosa, do malandro, as quais implicam um sentimento constante de distorção e não pertencimento, porque enfraquecem “sistematicamente suas possibilidades de desenvolver o amor por si mesmos e o reconhecimento de seus pontos positivos e até de sua humanidade” (BERTH, 2019, p.143). Em suas palavras,

Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de características culturais e estéticas herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente para que possa, devidamente munido de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo em volta, e, ainda, de suas habilidades e características próprias, criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade (BERTH, 2019. p.21).

Nas considerações finais, Berth retoma as/os teóricas/os por ela estudadas/os, lista que vai de Paulo Freire à Frantz Fanon, de Djamila Ribeiro à Grada Kilomba, de Sueli Carneiro à Jota Mombaça, defendendo a posição de que “os oprimidos devem empoderar-se entre si e o que muitos e muitas podem fazer para contribuir para isso é semear o terreno para tornar o empoderamento fértil” (BERTH, 2019, p.143).

O/a leitor/a atento deverá terminar a obra compreendendo que se empoderar é trabalho essencialmente político e que envolve a coletividade. Se ninguém ensina nada a ninguém, se aprendemos mediatizados pelo mundo, do mesmo modo, quando o modelo de poder vigente é questionado, devemos apreender que não é possível empoderar alguém, senão uma ação que se faz em conjunto, bem distante do “empoderamento pasteurizado, de fachada, paternalista, mais interessado em manter o estado atual das coisas” (BERTH, 2019, p. 154).

“Empoderamento” de Joice Berth estimula a ebulição de sujeites empoderados, cujas demandas ampliam o conceito de humanidade. Favorece o potencial transformador negro (e por que não branco-antirracista como eu), acolhedor da diferença; promove contatos com redes de empoderamento para a afirmação, a valorização e o reconhecimento do poder intrínseco a todes.

Deve ser lido por todes, simples assim, de qual área de conhecimento for, crianças e adultos, idosas e donas de casa (idosas ou não), moradores do Capão Redondo e do Morumbi, do Alto do Mundaí ou da Vila Valdete, até porque, na sociedade capitalista, panóptica e agressiva em que vivemos, quem estará sempre potencializado e completamente ileso, protegido, resguardado?

Empoderar-se implica na poética construção de outra sociedade e não no opaco mundinho de egos, prestígio, views, likes e biscoitos do Instagram. Há pandemia, pandemônios, poços profundos abertos em tempos de crises globais e capitalistas. Apenas sujeitas e sujeitos empoderadas/os poderão nos tirar do abismo no qual nos metemos e do distanciamento afetivo, ecológico, social.

Alexandre Osaniiyi (Alexandre de Oliveira Fernandes) – Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor do Instituto Federal de Educação da Bahia – IFBA / Porto Seguro. Professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – PPGREC/UESB/Jequié. Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Educação das Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB. Líder do Grupo de Pesquisas em Linguagens, Poder e Contemporaneidade – GELPOC. http://orcid.org/0000-0002-1556-4373. Email: alexandre.pro@gmail.com. Endereço: Instituto Federal de Educação da Bahia. Br: 367, Km: 57, 5. Bairro: Fontana I. Porto Seguro – BA, CEP: 45810-000.  Instituto Federal de Educação da Bahia, IFBA / Porto Seguro.


BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo. Polém Livros. 2019, p.184. Resenha de: OSANIIYI, Alexandre. Empoderamento e relações de poder: tornar-se um/a sujeito/a. Abatirá. Eunápolis, v.1, n.1, p.456-460, jan./jun, 2020. Acessar publicação original [IF]

As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero | I. P. H. George e Y. G. dos Santos

O que há de novo nas políticas sociais brasileiras? Em que a discussão de gênero pode contribuir para pensar essa novas políticas? Mercantilização da pobreza, privatização e terceirização dos serviços na saúde e na assistência? Em que medida a experiência paulistana contribui para pensarmos o contexto de emergência e popularização de políticas voltadas a programas de transferência condicionada de renda? Ao lermos o título e o sumário do livro, surgem essas questões, que nos fazem avidamente percorrer cada página em busca de novos olhares e discussões sobre o tema. E, de fato, as autoras conseguem discutir cada um desses pontos ao longo desta obra, que é resultado de uma extensa pesquisa de caráter etnográfico na periferia da maior cidade da América Latina.

A zona leste da cidade de São Paulo representa um lócus emblemático devido ao seu histórico de lutas por acesso a direitos sociais. Apesar disso, atualmente, a área é considerada uma das zonas mais socialmente vulneráveis da cidade. É nesse local, mais especificamente em três bairros periféricos da região, que as autoras buscam analisar a presença do Estado por meio de observações participantes e entrevistas semidiretivas com profissionais que atuam ao longo da cadeia dos serviços da saúde e da assistência, bem como com as usuárias destes. Leia Mais

Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020 | Abilio Guerra, Marcos Grinspum Ferraz e Silvana Romano Santos

Tempos difíceis estes que estamos vivendo. Especialmente difíceis para nós, ofendidos e maltratados brasileiros. Muito difíceis para terra e homens ressecados e silenciosos, apiloados pela marcha dura de botas e coturnos. Enquanto isso os espíritos xapiri continuam fugindo, os xamãs quase não conseguem mais fazê-los dançar para nos proteger e o céu que vem se aproximando cada vez mais da terra, não tendo mais ninguém que consiga sustenta-lo, corre sério risco de desabar de vez; assim profetizou Davi Kopenawa narrando uma lenda comum a vários povos indígenas (1). A proximidade cada vez maior do céu é que vai explicar esta sensação estranha de angústia e sufocamento. E porque os coqueiros e mamoeiros não dão mais conta sozinhos de suportar o céu, vamos fazendo exercícios diários para ajudar a segurá-lo, lembrando de brasis mais justos, ou mais alegres, ou mais serenos, ou mais criativos, ou mais tolerantes, ou mais singelos, ou tudo isso mais ou menos combinado. Saudades das aquarelas do Brasil… Leia Mais

Modelando Condutas: Educação católica em escolas masculinas | Roseli Boschilia

O livro Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018, é resultado de sua tese de doutoramento, defendida em 2002, na qual a autora analisa os modelos educacionais propostos por instituições católicas masculinas do Paraná, para perceber as formas e estratégias por elas utilizadas para educar jovens e crianças, conforme a tradição e moral cristã. A autora doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e também professora desta mesma universidade, tem focado suas pesquisas nos temas imigração, memória, autobiografia e relações de gênero.

Na obra composta por quatro capítulos, mais introdução e reflexões finais, a autora coloca em debate “os mecanismos utilizados pela Congregação Marista para a construção de um dispositivo organizacional, social e simbólico que possibilitasse a formação de uma elite modelada por um sistema único de pensamento” (BOSCHILIA, 2018, p.272). Apoiando-se em uma ampla lista de autores, tais como Michel Foucault, Roger Chartier, Eric Hobsbawm, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, etc. Roseli Boschilia analisa por meio de dispositivos de memória de ex-alunos do colégio marista Santa Maria, localizado no Paraná no período de 1920 a 1960. Boschilia analisa ainda as relações do colégio com a política e sociedade e propõe perceber as formas de controle e poder utilizados pela instituição católica para modelar as condutas dos alunos, e assim efetivar o projeto pedagógico religioso, além de conciliar as inovações da modernidade, com os valores tradicionais Católicos ultramontanos. Para destacar tais questões, o livro possui duas apresentações, a primeira escrita por Etelvina Trindade e a segunda pela própria Boschilia na qual apresenta o processo de produção da pesquisa, motivações e apoio bibliográfico. Leia Mais

Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras

O autor da obra é o historiador Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), do Programa de Pós-Graduação em História pela mesma instituição e do Programa de Pós-Graduação em História Pública da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). É graduado em História (2002), com mestrado (2006), e doutorado (2011) em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz.

Assim, o livro denominado Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras (2019), é dividido em quatro capítulos, sendo o prefácio da obra assinado pelo sociólogo Robert Wegner, professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ). Fazendo uma análise do processo metodológico instrumentalizado pelo autor, Robert Wegner afirma que “além de ser um livro bem escrito e embora denso, de agradável leitura, atinge uma técnica exemplo na articulação entre o desenvolvimento do argumento e a utilização das fontes” (p. 24-25). Leia Mais

Brasil em crise: o legado das jornadas de junho | David G. Borges e Victor Cei

A obra apresenta uma análise, sob a perspectiva de vários autores, do que se convencionou chamar de “as jornadas de junho de 2013”, fazendo referência aos protestos ocorridos no Brasil nesse mesmo período. Considerado como um dos maiores movimentos políticos da história, as manifestações deram início a uma crise política, que culminou na eleição presidencial mais acirrada do país.

A obra é composta dos seguintes autores e seus respectivos capítulos: Felipe de Aquino e Flávio Soeiro (Que país é este? Seminário sobre o pós junho de 2013), David G. Borges (As jornadas de junho de 2013: histórico e análise), Davis Alvim (“Destruir, para reconstruir”: a tática black bloc e a pedagogia das vidraças), Guilherme Moreira Pires (A palavra do poder que engole o poder das palavras), Marcelo Martins Barreira (Sem medo de ser… Megamanifestante feliz), Paulo Edgar da Rocha Resende (A tática black bloc e a liberação anárquica do dissenso) e Vitor Cei (Contra-isso-que-está-aí: o niilismo nas jornadas de junho), Leia Mais

Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos | Revista Ágora | 2020

No ano do bicentenário da Revolução de 1820, organizamos junto à Revista Ágora o dossiê “Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos”. O decênio de 1820 foi marcado por diversos movimentos revolucionários em Portugal e no Brasil. A Revolução do Porto inaugurou a agenda de sublevações no mundo português, configurando-se acontecimento que influenciaria nos rumos políticos nos dois lados do Atlântico.

Inspirada em princípios liberais, o movimento iniciado na cidade de Porto, em poucas semanas alcançaria Lisboa e não tardaria a ser notícia também no Brasil. Verdadeira guerra literária fora travada na imprensa no Brasil e em Portugal. Periódicos e folhetos difundiam nova pauta política, ressignificando conceitos e divulgando novo vocabulário constitucional. Leia Mais

¡Nunca más esclavos! Una historia comparada de los esclavos que se liberaron en las Américas | Aline Helg

Basado principalmente en bibliografía especializada producida en inglés, francés y español durante los últimos treinta años, este libro de la historiadora Aline Helg estudia la capacidad de acción política de quienes sufrieron la esclavitud en las Américas. Para ello, analiza los esfuerzos de los esclavos para alcanzar la libertad. La obra explora el periodo previo a la consolidación de las doctrinas y políticas abolicionistas del siglo XIX, llevando a los lectores por un recorrido de más de tres siglos entre 1492 y 1838. Si bien las sociedades esclavistas mejor conocidas (Cuba, Brasil, el Sur de Estados Unidos y Haití) cumplen papel protagónico, Helg entra también en detalle sobre las menos estudiadas (incluye a Colombia, Guadalupe, Barbados y Demerara). Se trata, por lo tanto, de una síntesis histórica comparada sobre hombres y mujeres cautivos que “por la fuerza, el sacrificio, la astucia, la paciencia o el azar, consiguieron obtener su libertad” (p. 10). Leia Mais

El ABC de una paz olvidada. Tiempo de mediación en Canadá/1914

A diez años de la publicación en inglés de The Forgoten Peace. Mediation in Niagara Falls, 1914, del embajador Michael Small aplaudimos el lanzamiento de su versión en español. Los editores de Huitzils para su tiraje en castellano acertadamente recuperan en el título el acrónimo del ABC, (Argentina, Brasil y Chile) y juegan con el estribillo usado en el mundo editorial para señalar un texto que introduce a un tema. Considero que el trabajo de Small cumple sobradamente el propósito de presentar una narración esclarecedora, al tiempo que encuentra un nuevo acercamiento a las conferencias de Niagara Falls.

Se trata de un libro que viene a contribuir a la historia diplomática de la Revolución Mexicana en uno de sus acontecimientos menos atendidos. Niagara Falls fue un pretendido espacio de diálogo, impulsado por Argentina, Brasil y Chile y avalado desde Washington, en un esfuerzo de mediar en el “conflicto internacional” entre México y Estados Unidos, que había desembocado en la ocupación del puerto de Veracruz por parte de la flota estadounidense la primavera de 1914. Leia Mais

La Guerra del Paraguay y la construcción de la identidad nacional | María Victoria Baratta

Resenhista

Silvina Sosa Vota – Universidad de Santiago de Chile. Estudiante de Doctorado en Historia. USACH


Referências desta Resenha

BARATTA, María Victoria. La Guerra del Paraguay y la construcción de la identidad nacional. Buenos Aires: SB, 2019. Resenha de: VOTA, Silvina Sosa. Historia y conflictos bélicos: nuevas formas de abordaje. Escrita da História, v.7, n.14, p.247-250, jul./dez. 2020. Acesso apenas pelo link original [DR]

Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras | Vanderlei Sebastião de Souza

O livro de Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto da Universidade Estadual do Centro-oeste (Unicentro-PR), consiste em um estudo sobre a atuação do médico Renato Kehl (1889-1974) como organizador do movimento eugênico brasileiro, entre 1917 e 1932. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, a pesquisa se baseou em amplo repertório de fontes bibliográficas e do arquivo pessoal de Kehl, incluindo atas e anais de congressos, artigos de periódicos e correspondências, contido no acervo do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Souza analisa os fatores que levaram a mudança nas concepções eugênicas de Kehl, a partir de finais da década de 1920. Conforme o argumento desenvolvido no livro, tal mudança se traduz pela passagem de um conceito amplo de eugenia e que esteve muito próximo dos ideais de reforma do ambiente social do movimento médico-sanitarista, para uma eugenia com fronteiras mais bem delimitadas e caracterizada por medidas radicais como o exame médico pré-nupcial obrigatório, a esterilização compulsória e a seleção dos imigrantes segundo critérios raciais. Leia Mais

Zé Dirceu Memórias. Vol.1 | José Dirceu

José Dirceu de Oliveira e Silva, nascido em 16 de março de 1946, na cidade mineira de Passa Quatro, graduado em Direito pela PUC-SP, ex-ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, é o autor da obra aqui resenhada, intitulada: Zé Dirceu memórias Volume I, que fora escrita ao longo de 2018, enquanto estivera preso no Complexo Médico-Penal, de Pinhais, em Região Metropolitana de Curitiba. Com efeito, por si só, seu nome atrai olhares curiosos e atenções midiáticas, sejam de simpatizantes à sua trajetória de vida, sejam de críticos.

José Dirceu, como um político e personagem social recente da vida política brasileira, atinge sua significância ao relatar em sua obra momentos marcantes de atuação, de particular relevância para compreensão de seu trajeto em momentos chave da história do Brasil, como por exemplo, sua luta no movimento estudantil no enfrentamento à ditadura civil-militar (1964 – 1985), seu exílio em Cuba (1969-1974) com direito a relatos dos encontros com Fidel Castro, a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980, a elaboração da Constituição entre os anos 1987 e 1988, o movimento “Fora Collor” em 1991, e a queda por impeachment do ex-presidente em 1992, a chegada do PT ao poder com Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) na presidência (2002-2010), o escândalo do mensalão em 2005 e a recepção do mesmo pela mídia. Leia Mais

As ruínas da tradição: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila/ família e propriedade no nordeste colonial | Ângelo Emílio da Silva Pessoa

O livro que ora se resenha em sua segunda edição é fruto da tese de doutoramento de Ângelo Emílio da Silva Pessoa defendida junto ao departamento de história da USP. Graduado em licenciatura Plena em história pela Universidade Federal da Paraíba (1988) e doutorado em história social pela Universidade de São Paulo (2003). Foi professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina entre (2006 e 2008). Atualmente é professor Associado I do Departamento de História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, estando vinculado ao quadro permanente do PPGHUFPB.

O trabalho está didaticamente bem dividido em três partes que o compõe e o interligam num diálogo dinâmico; tradição é o primeiro capítulo e nele explora a historicidade da Casa da Torre, “Propriedade” é o título que ilustra o segundo capítulo e estuda aspectos da geo-história ao delimitar a extensão da propriedade ou da sesmaria que, via de regra, era de “perder de vista” e, muitas vezes, incomensurável, sobretudo, porque os limites eram, em muitos casos, imaginários e ou simplesmente abstratos. Ainda neste capítulo ao se estudar a noção de propriedade o autor revela sua enorme capacidade de intelectual decolonial para analisar a situação e a relação do senhor de terras Garcia d’Ávila com os índios, ora de amizades, mas na maior parte das vezes de conflito chegando a revelar massacres cometidos pelo grande fazendeiro expansionista em busca de novos pastos para a sua boiada, que foi o grosso dos seus negócios. O terceiro e último capítulo fecha o livro e dá o desfecho no que foi estudado intitulando-se “família”, busca analisar questões de economia ao longo das gerações que carregam o sobrenome, especificamente a pecuária, carro chefe da Casa da Torre, mas também pequenos engenhos, exploração de salitre, prata, produção de couro, e demais artífices. Leia Mais

Trabalhadores e trabalhadoras rurais boias frias: exclusão/ imprensa e poder | Antonio Alvez Bezerra

Antonio Alves Bezerra é graduado em História pela UNESP, mestrado pela PUC/SP e doutorado em História pela mesma universidade. É professor do curso de graduação e pós-graduação em História pela UFAL, como também, coordenador do laboratório de Ensino de História e líder do Grupo de Estudos: História, Ensino de História e Docência.

A obra intitulada Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Boias Frias: exclusão, imprensa e poder é um estudo sobre o avanço do processo de modernização do setor sucroalcooleiro com o resultante aumento da exclusão social e econômica dos trabalhadores rurais. O prof. Rodrigo Costa escreve um breve prefácio sobre a obra e observa que ela “oferece uma visão sob um grupo social cuja presença se faz notar e sentir no cotidiano das grandes áreas rurais do país, os trabalhadores rurais boias-frias”, que também, estão presentes no agreste alagoano e no sertão pernambucano. Existência historicamente negada nos discursos do poder público, da mídia e do poder econômico. Leia Mais

Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 | Lucas Porto Marchesini Torres

Lançado pela EDUFBA, em 2017, o livro estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 é resultado de dissertação de mestrado defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA), por Lucas Porto Marchesini Torres. Este é bacharel e licenciado em História por esta mesma instituição e atualmente cursa o doutorado em História Social na Unicamp, se empenhando-se no estudo sobre comunismo e movimentos sociais na Bahia entre os anos de 1945 e 1964.

O livro apresenta uma pesquisa histórica e inédita sobre a tentativa frustrada de assalto ao Banco do Brasil, no Bairro do Canela, na capital baiana, Salvador, por cinco militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1986 (TORRES, 2017. p. 21). Após serem presos os cinco homens, com medo de ser confundidos e tratados como bandidos comuns, assumiram que eram petistas e que desejavam com o assalto levantar fundos em ajuda à Nicarágua Sandista (p. 21). Leia Mais

Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz

Creio ser desnecessário apresentar a renomada escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora de muitas obras no campo das ciências humanas. Iremos nos limitar a dizer que é uma pesquisadora com formação em História e Antropologia que, ao longo de suas pesquisas, tem contribuído sobremaneira com o debate acerca das relações raciais no Brasil. O livro O Espetáculo das Raças é um exemplo cabal do que estamos falando.

O objeto de nossa resenha, o livro Lima Barreto: Triste Visionário, publicado pela conceituada Editora Companhia das Letras, no ano de 2017, discorre sobre o escritor negro Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto. Leia Mais

Pan-Amazônia | Revista do IHGPA | 2021

Ilha do Combu Belem Para Pan-Amazônia

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará publica sua nova atual, com temas da realidade brasileira e amazônica, mantendo a continuidade de canal de expressão científica e cultural com a sociedade paraense. Na presente edição, além de textos com diferentes temas da realidade brasileira, um conjunto de artigos organizados em formato de dossiê sobre a Pan-Amazônia compõem este número.

A edição inicia com o artigo de Luís Pedro Dragão Jerônimo “Símbolos de riqueza e modernidade: teatros no Pará, Rio de Janeiro e São Paulo”, no qual reflete sobre o edifício teatral não apenas enquanto local de entretenimento, mas como símbolo econômico e de prestígio. Analisando aspectos materiais e simbólicos em cidades que viveram momentos de expansão econômica nos períodos de construção de seus palcos, o autor estabelece o contato entre as construções e os ideais cosmopolitas nas paisagens urbanas. Leia Mais

Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos | Adriana Pereira Campos, Kátia Sausen da Motta, Geisa Lourenço Ribeiro e Karullyny Silverol Siqueira

Organizado por Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro, Karulliny Silverol Siqueira e Kátia Sausen da Motta, a obra “Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos”1 traz consigo um relevante debate acerca da multiplicidade de relações existentes no Brasil oitocentista. A contribuição de dez autores para a realização do livro, objetivou diversificar a história política do Império, por meio da inclusão de províncias e atores políticos variados. Assim, trazendo novo sentido ao contexto imperial. O livro é resultado de debates entre pesquisadores que participaram do III Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2018.

Ao nos debruçarmos sobre a obra, percebemos a multiplicidade de relações políticas contidas no Brasil Império que formavam um todo na trajetória contextual. Retirar a lupa somente dos denominados “grandes acontecimentos” e dos principais atores políticos comumente ressaltados na historiografia é também traçar uma história política diversa em estrutura e significados. Neste sentido, a obra analisada percorre entre províncias distintas e personagens políticos ressignificados, promovendo assim, diversas participações para os acontecimentos do período, para além da Corte ou dos “grandes homens”. Leia Mais

Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca” | Mary Del Priore

Quem nunca ouviu falar e/ou leu sobre Maria I, a rainha louca? A memória e a historiografia de modo geral tenderam, durante muitos anos, a classificar a rainha portuguesa como louca e dotada de um fanatismo religioso sem limites. Diversos escritos, muitas vezes como forma de atrair público leitor e/ou inseridos em contextos historiográficos comprometidos em construir uma legenda negativa da monarquia portuguesa, encobriram uma multiplicidade de elementos históricos sobre uma mulher que vivenciou, entre os séculos XVIII e XIX, um dos momentos mais turbulentos da história moderna: a ruína do absolutismo monárquico.

Diante de tais aspectos, a obra Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”, da historiadora Mary Del Priore, autora de outras obras sobre a história das mulheres, demonstra que era preciso se debruçar para além de uma simples assertiva de loucura dada à Maria I pela memória e pela historiografia. Dividido em nove capítulos, o livro procura apresentar a trajetória de rainha, desde seu nascimento em 1734, momento em que, segundo a autora, “[…] Portugal vivia uma época esplendorosa” (DEL PRIORE, 2019, p. 13), aos seus últimos dias na cidade do Rio de Janeiro, em 1816, quando a corte portuguesa se encontrava no exílio. O objetivo de Del Priore (2019) é, ao percorrer a trajetória de D. Maria, buscar respostas para uma mudança comportamental na rainha a partir da década de 1780, sem incorrer em explicações automáticas e/ou simplistas. Leia Mais

Os antigos habitantes do Brasil | Pedro Paulo Abreu Funari

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Os antigos habitantes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Resenha de: SILVA, Filipe Noe da. Arqueologia para uma outra história do Brasil. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v. 2, n. 4, p. 243-247, jan./jun. 2020.

Mesmo se considerarmos o abismo provocado pela desigualdade social, ainda nos parece possível afirmar que o vastíssimo (e diverso) universo escolar brasileiro, nos dias atuais, funciona a partir de metodologias e ferramentas de ensino bastante variadas. Apesar da paulatina informatização do ensino, com o uso cada vez mais frequente de videoaulas, canais e redes sociais, as apostilas e livros didáticos de todas as disciplinas ainda constituem suportes informativos de ampla difusão no quotidiano das escolas brasileiras1. Em muitos casos, pode-se mesmo conjecturar que o material didático é o primeiro livro da vida de muitos de nossos estudantes, e permanece como “[…] o principal instrumento do qual se podem valer os professores” 2.

No ensino de História, em particular, os livros didáticos e paradidáticos coexistem com documentos que, a priori, não foram elaborados com finalidades pedagógicas, mas que são empregados na sala de aula para tal fim: filmes, músicas, imagens, fotografias, documentários, obras de arte, poemas e artefatos arqueológicos, com frequência, são convertidos em documentos de grande valia para o estudo da História3. Do mesmo modo, narrativas pessoais e memórias orais, igualmente convertidas em fontes históricas, têm revelado aos(às) jovens estudantes as percepções daqueles e daquelas que, em muitos casos, testemunharam as inúmeras transformações, invenções e rupturas que atingiram suas sociedades no último século4.

São muitas as investigações sobre os discursos históricos apresentados pelos livros didáticos do presente e do passado: além das tradicionais memórias nacionais, temas referentes às questões étnico-raciais, às relações de gênero e ao silenciamento das populações subalternas, em geral, têm colocado em evidência os propósitos políticos e identitários das publicações didáticas mundo afora5.

Como no caso do estudo da Antiguidade, cujos livros didáticos apresentam “[…] anacronismos, erros, simplificações, juízos de valor e, principalmente, falta de atualização dos assuntos tratados” 6, não é raro encontrarmos, em muitos materiais voltados ao ensino da História, narrativas eurocêntricas, elitistas e baseadas em uma perspectiva “civilizadora” dos colonizadores. Dentro dessa perspectiva histórica, como constatou Francisco Silva Noelli7, a experiência dos povos indígenas do Brasil, por vezes, figura de maneira apenas preambular nos livros escolares: “[…] se compararmos o status desses temas com os demais conteúdos do currículo básico de História do Brasil e das Histórias Regionais, facilmente constataremos que eles são irrisórios em termos quantitativos”8.

Apesar de não ser um livro didático stricto sensu9, a segunda edição d’Os antigos habitantes do Brasil, de Pedro Paulo Funari, docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), oferece uma alternativa valiosa para o atual ensino da História das populações indígenas do território brasileiro. Em consonância com as teorias sociais pós-colonialistas, sua narrativa constitui uma ferramenta pedagógica fundamental para a superação do senso comum e dos muitos estereótipos racistas e etnocêntricos associados a esses povos. Ao demonstrar, por exemplo, que a ocupação humana no Brasil extrapola os 10 mil anos, a referida publicação coloca em xeque a hipótese, ainda vigente em âmbito escolar, de que não existe História onde inexiste a escrita. Frente à escassez de documentos escritos, por sua vez, o autor recorre à Arqueologia, ao estudo da cultura material produzida de maneira espontânea e quotidiana pelos próprios indígenas.

Reconhecida no Brasil e em âmbito internacional, a trajetória acadêmica do professor Funari promove uma profícua (e original) amalgamação de estudos sobre História Antiga (com ênfase nas camadas populares sob uma perspectiva da História Cultural), Antropologia e Arqueologia: reflexo de uma formação híbrida e da abertura, por parte do autor, ao diálogo e à interdisciplinaridade. Ao converter tal erudição em uma linguagem acessível e agradável aos estudantes de nível Fundamental e Médio, Funari, em seu livro sobre Os antigos habitantes do Brasil, aproxima seus leitores e leitoras de temas particularmente complexos à História e à Arqueologia contemporâneas, tais como a origem das populações ameríndias e as transformações (territoriais, sociais e faunísticas) decorrentes das mudanças climáticas.

A relação entre os seres humanos e o meio-ambiente, fonte fundamental de sobrevivência às populações indígenas, não é apresentada de maneira determinista, como se as populações nativas fossem apenas submissas e passivas frente às imposições da natureza hostil. Ao contrário, com o intuito de evidenciar o protagonismo e a originalidade desses povos, o autor demonstra, de maneira sutil e didática, que atividades como a caça, a coleta e a pesca teriam coexistido com a agricultura no território brasileiro desde antes da chegada dos portugueses.

Devido às escolhas curriculares, é bastante usual nas escolas brasileiras que a agricultura seja apresentada enquanto um apanágio restrito às civilizações localizadas no Crescente Fértil mesopotâmico, e que dali teria se difundido a outros povos e lugares. Nas escolas do estado de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento da agricultura, outrora denominado por Vere Gordon Childe como “Revolução Neolítica”, ou simplesmente a “[…] progressiva utilização de técnicas para a produção de alimento (agricultura e criação de gado) em substituição das técnicas da simples exploração (caça e coleta) de tudo quanto já estava presente na natureza”10 tem integrado, ainda que de maneira subordinada ao tema do “Oriente Próximo”, o grupo de habilidades e competências previstas para o 4º e 6º anos do Ensino Fundamental e à 1ª série do Ensino Médio. Em nenhum dos currículos11 (2010 ou 2019), no entanto, há qualquer referência aos processos de desenvolvimento agrícola ocorridos de maneira independente no continente americano em períodos pré-coloniais, ou noutras localidades do planeta12.

Sobre a chegada dos primeiros seres humanos à América, em particular, o autor apresenta duas hipóteses principais: por um lado, os ameríndios seriam descendentes de asiáticos que teriam atravessado os noventa quilômetros do chamado Estreito de Bering em uma época em que o nível das águas teria sido mais baixo. Por outro lado, devido à presença de restos mortais de indivíduos oriundos da Oceania, outras possibilidades de povoamento, seus limites e incertezas, também são apresentadas de maneira didática e elucidativa. O uso de mapas e ilustrações na explicação das duas hipóteses também constitui uma boa opção pedagógica acerca do tema.

Por meio da cultura material produzida pelos indígenas, Funari demonstra toda a diversidade, autonomia e criatividade das etnias espalhadas pelo Brasil. Entre tupis e marajoaras, a cerâmica, as habitações, os sambaquis, os artefatos líticos e as pinturas, todos ilustrados pelos belíssimos traços de Isabel Voegeli Stever, aproximam alunos e alunas de civilizações complexas e cuja produção material, segundo o próprio autor, nada deixaria a desejar se comparada àquela dos gregos e egípcios da Antiguidade, por exemplo. Sem prescindir do rigor necessário às investigações sobre o passado, os inúmeros artefatos arqueológicos são apresentados em fotografias de alta resolução e suas descrições convidam os(as) estudantes a tecerem suas próprias interpretações sobre esses objetos.

Para além do eventual diálogo com as teorias pós-processualistas da Arqueologia13 e sua respectiva ênfase na subjetividade do conhecimento arqueológico, também julgamos pertinente uma aproximação às considerações do educador Paulo Freire sobre o respeito às formas de conhecimento trazidas pelos(as) discentes como forma de respeito e estímulo à autonomia intelectual:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária (…). Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm dos indivíduos?14

Temas contemporâneos, como a divisão social do trabalho e o protagonismo das mulheres nas sociedades indígenas, ajudam a compor um livro que, embora verse preponderantemente sobre o passado, fá-lo a partir das demandas e reivindicações sociais do tempo presente. Conforme consta na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a compreensão sobre “Os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais”15 constitui um objeto de estudo a ser explorado nas aulas de História do 6º Ano do Ensino Fundamental. Se for este, de fato, o documento fundamental que norteará os rumos da educação básica no Brasil durante os próximos anos, o livro Os antigos habitantes do Brasil, uma vez inserido nos currículos estaduais e municipais, parece-nos profundamente necessário e atual, principalmente porque apresenta uma perspectiva democrática e inclusiva sobre a História dos indígenas a todos os estudantes brasileiros.

Notas

1. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a12v30n3.pdf  Acesso em: 12 abr. 2020; BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História. Fundamentos e Métodos. São Paulo: Editora Cortez, 2005.

2. SILVA, Glaydson José. Os avanços da História Antiga no Brasil. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos […]. São Paulo: ANPUH, 2011.

3. BITTENCOURT, op. cit.

4. Sobre este tema, em particular, vide: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1979.

5. CHOPPIN, op. cit., p. 554.

6. SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil: algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, São Paulo, v. 1, p. 145-155, jan./jul. 2010. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/Aletheia/article/view/73/62. Acesso em: 12 abr. 2020.

7. NOELLI, Francisco Silva. Resenha: Os antigos habitantes do Brasil. Educ. Soc, Campinas, v. 24, n. 82, p. 341-342, abr. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302003000100027.  Acesso em: 12 abr. 2020.

8. Ibidem, p. 341.

9. De acordo com Circe Bittencourt, os livros didáticos convencionais estariam sujeitos a interesses editoriais e de mercado: “[…] Como produto cultural fabricado por técnicos que determinam seus aspectos materiais, o livro didático caracteriza-se, nessa dimensão material, por ser uma mercadoria ligada ao mundo editorial e à lógica da indústria cultural do sistema capitalista”. Ver: BITTENCOURT, op. cit., p. 301.

10. LIVERANI, Mario. Antigo Oriente. História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016. p. 71.

11. No antigo currículo (2010), o tema do “Oriente Próximo” integrava os estudos de História do 6º Ano do Ensino Fundamental e 1ª Série do Ensino Médio. Conferir: SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo. Ciências Humanas e suas tecnologias. São Paulo: Secretaria da Educação, 2010. Já o novo Currículo Paulista aborda o tema da Agricultura de maneira genérica por meio do objeto de conhecimento: “A ação das pessoas, grupos sociais e comunidades no tempo e no espaço: nomadismo, agricultura, escrita, navegações, indústrias, entre outras”. Cf.: SÃO PAULO. Currículo Paulista. São Paulo, 2019. p. 466.

12. Para uma síntese desses processos, vide: MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 66-67.

13. HODDER, Ian. Interpretación en Arqueología. Barcelona: Crítica, 1994. p. 195; TRIGGER, Bruce Graham. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Editora Odysseus, 2004. p. 373.

14. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2011. p. 21-22.

15. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2018.

Filipe Noe da Silva –  Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Professor das Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI) Mogi Guaçu, SP, Brasil. E-mail: filipe.hadrian@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5075-0131

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História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas | Kauan William dos Santos e Rafael Viana da Silva

Não raro o anarquismo fora apresentado como uma planta exótica importada para o Brasil; como um movimento pré-político fadado ao fracasso, caótico, essencialmente individualista e pequeno burguês; e de modo mais pejorativo, seus adeptos foram descritos como terroristas e assassinos insanos. De alguma maneira esses pontos, somados a diversos outros, foram compartilhados entre a academia e o senso comum forjando um conhecimento sobre o anarquismo, tomando como verdade narrativas que confirmam visões depreciativas, fazendo vista grossa às evidências empíricas, e contribuindo para mantê-lo no limbo da história, enclausurando a possibilidade de um conhecimento histórico construído sobre bases sólidas.

No entanto, esforços contrários (o qual o livro que apresento aqui é um exemplo) veem contribuindo para romper esse cerco, fazendo, a partir de novas perspectivas, a sua história e de suas estratégias, ou vetores sociais, como o sindicalismo de intenção revolucionária. O livro, uma coletânea, foi organizado pelos historiadores Rafael Viana da Silva, doutor pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Kauan Willian dos Santos, doutorando pela Universidade de São Paulo (USP), membros do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA) [1]. Além do prefácio, a obra conta com quinze capítulos de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes lugares e universidades do país. Os artigos, em sua maioria, são parte de resultados de teses e dissertações recentes, “pesquisas que abordam a história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no país e suas conexões com outras regiões” (SANTOS; SILVA, prefácio, p. 9) e abarca um largo período histórico. Para além de uma contribuição acadêmica, a obra é também um esforço político de responsabilidade com o que representa o anarquismo. Leia Mais

De rochedo a arquipélago: a emergência de São Pedro e São Paulo na pesquisa científica brasileira | Raimundo Arrais

Raimundo Arrais nos traz à tona um lado da história de uma das ilhas oceânicas brasileiras pouco conhecida da maioria. A sua obra retrata a importância de se analisar, do ponto de vista historiográfico, de como se deu a ocupação e permanência do Brasil neste ponto tão distante do continente.

A extensa área marítima brasileira de importância inquestionável para o desenvolvimento de uma nação já se tornou amplamente conhecida pelo conceito de Amazônia Azul, pois possui uma área equivalente a 52% do espaço terrestre, com dimensões e biodiversidades semelhantes à já tradicional Amazônia Verde. Ciente desta importância iniciou-se no País o despertar para as pesquisas científicas nas ilhas oceânicas, a saber: Ilha da Trindade e o Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Cada uma dessas ilhas possui mais de 1.000 km de distância do continente. No entanto, o desenvolvimento de pesquisas e atividades in loco nestas regiões tem sido propiciado pelo apoio logístico da Marinha do Brasil, proporcionando uma abordagem multidisciplinar dos diversos campos da ciência e, no caso desta obra, sobre a história, importância e ocupação do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Leia Mais

Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977) | Robson Pereira da Silva

As sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido. O sentimento faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, em sua capacidade tanto mimética como criativa, está presente no processo de tradução da experiência humana.

SANDRA JATAHY PESAVENTO.

Tão importante quanto analisar as letras dos compositores da Música Popular Brasileira (MPB) e contextualizá-las historicamente, se faz extremamente necessário não perder de vista o trabalho dos intérpretes que além de ressignificar as canções, ainda possuem um árduo trabalho criativo e corporal que corrobora para que essas canções ganhem sentidos que são intrínsecos as questões do seu próprio tempo. Leia Mais

Práticas e processos socioculturais na Amazônia | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2020

O dossiê “Práticas e processos socioculturais na Amazônia” é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa em Estudos Interdisciplinares em Cultura e Políticas Públicas da Universidade Federal do Amapá e do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cidade da Universidade Federal de Mato Grosso.

O objetivo da proposta foi apresentar resultados de investigação, no âmbito de programas de pós-graduação stricto sensu e de grupos de pesquisa, no país e no exterior, que se propõem a descrever, analisar e refletir sobre fenômenos, práticas e processos sociais que atravessam ou são atravessados pelo campo cultural. A proposta considera a apropriação de dispositivos e artefatos tecnológicos/comunicacionais, artísticos e literários em suas mais diversas linguagens para produção, circulação e reconhecimento de sentidos sobre e a partir da Amazônia. Leia Mais

Brasília, leitores e leituras. Arquitetura, história e política 1957-1973 | Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Este livro sobre Brasília traz uma ampla visão da cidade, apresentando manifestações, relatos e materiais relativos à difusão de seu projeto, de sua construção e das narrativas de 1957 a 1973.

Todos os capítulos repousam sobre o fenômeno Brasília, apoiados em uma extensa investigação bibliográfica do citado recorte temporal. Embora na época e desde então muito se tenha publicado sobre a nova capital, várias manifestações e publicações acabaram não sendo organizadas – ou até foram esquecidas –, e este texto se propõe retomá-las. Leia Mais

No fim da infância | Arrigo Barnabé

Cinzeiros arrancados dos braços das poltronas, voando pelo teatro até o palco, objetos diversos arremessados nas vocalistas, vaias, muitas vaias mesmo. E então Itamar Assumpção, o baixista, pergunta no microfone: “Sabor de quê?”. Só para ouvir a resposta segura da plateia que exclama nervosa: “Mer-da!”.

Se o fim da infância tem a ver com frustrar as expectativas dos outros, se a juventude é marcada pela afirmação de algo particular e genuíno, distante dos projetos concebidos por aqueles que podem conduzir a vida alheia, então podemos dizer que esse episódio dos cinzeiros arremessados foi um dos que assinalaram o fim da infância de Arrigo Barnabé. A recepção agressiva no Festival da MPB da TV Tupi, em 1979, o fez conhecido por uma audiência maior e tornou pública uma escolha sem volta: a de ser uma figura dissonante, destoante, um criador avesso às expectativas. “Estava destinando a ser um novo Chico Buarque de Holanda – um compositor querido das famílias. Mas algo nele fracassa” (1). Leia Mais

Paulinho da Viola e o elogio do amor | Eliete Eça Negreiros

Paulinho da Viola e o elogio do amor (1) é uma reflexão sobre a lírica amorosa das composições de Paulinho, cujo eixo é a separação dos amantes. Neste livro, Eliete Negreiros reavê o mito fundador do amor romântico, formulado pela primeira vez no Banquete de Platão. De início, cada um era um ser por inteiro que, por uma punição divina, é dividido em duas partes. A nostalgia da fusão originária e a busca da unidade perdida constituem uma inquietação permanente, a procurar no Outro o que completa e dá vida.

Conhecido nos tratados médicos antigos como “mal de amor”, a poética de Paulinho, mostra Eliete, revela seus sintomas, suas causas, seus efeitos e remédios. Ou não: “meu mal é um mal de amor / não há remédio que cure a minha dor”. Se paixão é desejo e falta, ele é “intratável”. Tal como no amor proustiano, o amor é uma doença irremediável. Diferem o intratável e o incurável, pois se este é um mal de que ainda não se encontrou remédio e tratamento, o intratável é um mal sem medicação eficaz ou cura vislumbrada, invulnerável a tratamentos ou às luzes da razão. Leia Mais

Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero. A segregação urbana da prostituição em Campinas | Diana Helene

O livro Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas, de Diana Helene Ramos (1), é o primeiro livro escrito por uma arquiteta e urbanista brasileira discutindo a relação entre prostituição e cidade. Publicado em 2019 pela editora Annablume, esse livro é resultado de tese de doutorado da autora em Planejamento Urbano e Regional, desenvolvida no Ippur UFRJ, pela qual recebeu o Prêmio Capes de Tese 2016 da área de Planejamento Regional/Demografia (2). O livro está dividido em três partes, com um total de seis capítulos que, em linhas gerais, discutem a presença das prostitutas na cidade de Campinas e sua participação enquanto agente na produção do espaço urbano, seu cotidiano e os deslocamentos ocorridos no contexto urbano e laboral dessas trabalhadoras. Leia Mais

Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas | Bruno de Menezes

O texto Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas, de Bruno de Menezes, é um dos estudos clássicos sobre a cozinha paraense. Ao lado do Panorama da Alimentação Indígena, de Nunes Pereira, e da Cozinha Amazônica, de Osvaldo Orico, é marco referencial na abordagem da temática da alimentação, no século XX.

Foi feito sob encomenda de Câmara Cascudo, para compor a Antologia da Alimentação Brasileira. Finalizado em fevereiro de 1963, foi um dos últimos trabalhos realizados pelo poeta, autor de Batuque, que morreu em Manaus, em 2 de julho desse mesmo ano. Leia Mais

O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX) | Vanicléia Silva Santos, Eduardo França Paiva e René Lommez Gomes

Lançada em 2018 pela Clio Gestão Cultural e Editora, a obra O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX) integra o sétimo volume da série Estudos Africanos, promovido pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (Diretoria de Relações Internacionais). A proposta da série é fomentar um pensamento multidisciplinar e etnicamente diverso ao criar e fortalecer parcerias entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros em diferentes áreas de atuação. Sônia Queiroz, professora do departamento de Letras da UFMG e membra do Centro de Estudos Africanos (CEA), na apresentação da série, afirma ser pretensão do volume “dar materialidade à cooperação Brasil-África” (SANTOS; PAIVA; GOMES, 2018, p. 10).

O livro faz parte de uma consistente parceria de pesquisa entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Lisboa (UL), que objetiva realizar o levantamento de novas fontes e dados sobre a produção, circulação e usos do marfim no contexto atlântico. Tal parceria foi criada em 2013 e reafirmada em 2015 no projeto Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) de Portugal. A intenção do projeto, e das produções acadêmicas financiadas por ele, como o volume em questão, é compreender a circulação atlântica dos marfins africanos e suas articulações com o Índico; investigar a diversidade de centros produtores de objetos de marfim na África e suas linguagens artísticas; complexificar os estudos do marfim africano em seus aspectos cultural, intelectual e material; e trazer novas informações a respeito da multiplicidade de intercâmbios culturais estabelecidos em diversas áreas do Atlântico e do Índico. Os pesquisadores buscam, assim, preencher a lacuna historiográfica sobre o tema em relação ao Brasil, à África em suas diversidades culturais e econômicas e às rotas atlânticas. Leia Mais

Vilanova Artigas. Casas paulistas 1967-1981 | Marcio Cotrim

Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memoria é quanto temos,
Lembrar muito que pouco,
E se o muito no pouco te é possível,
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis (1)

Existe um difundido gênero da história da arquitetura moderna cuja obsessão fundamental consiste em esforçar-se em descobrir as dívidas, as filiações, as heranças, enfim, tudo o quanto há na obra de seus protagonistas daqueles que viveram antes. Quem participa dele se pergunta quanto há de classicismo em Le Corbusier ou Mies, quanto de neoclassicismo nas arquiteturas modernas latino-americanas, quanto de Gunnar Asplund em Alvar Aalto, quanto de Louis Sullivan em Frank Lloyd Wright, quanto de Wright no primeiro Vilanova Artigas, quanto de Le Corbusier no segundo, e assim sucessivamente. Geralmente, essa estratégia não decepciona seus autores: permite ancorar personagens e objetos em uma história de aparência sólida, satisfazendo estes historiadores, que desfrutam felizes do resultado. Nessa maneira de fazer história, mais próxima da comprovação superficial do que da verdadeira genealogia e recordação respeitosa, os personagens não parecem ser arremessados, como o Angelus Novus de Walter Benjamin, em direção a um futuro incerto, voltando seus olhares para a catástrofe da qual fogem, mas nos são apresentados como lentos caminhantes, incapazes de perder de vista esse passado. Tal modo implacável de ver o que alguma vez foi novo ou inovador como projeção de alguma epopeia pretérita nos furta a outra importante metade, a que nos permite perguntarmos quanto ha via de porvir nessas propostas que a alguns incomodava e a outros preenchia de vertiginoso prazer. Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

Vinte e seis anos depois da publicação de um artigo no dossiê na Revista USP intitulado “A greve negra de 1857 na Bahia”, o historiador baiano João José Reis lançou resultados mais amplos desta ambiciosa pesquisa em “Ganhadores”, livro de subtítulo homônimo ao texto do dossiê. No próprio artigo da década de 1990 foi pontuado que aquele era só parte de “um estudo mais amplo” (REIS, 1993, p.8) que ele estava realizando. Portanto, o livro é o produto deste esforço quase trintenário do historiador, que revela o aprimoramento da análise das fontes ao longo deste intervalo, além do enriquecimento da perspectiva acerca do seu objeto, seja pelas outras contribuições historiográficas que acompanharam o processo desta pesquisa até a conclusão da obra, seja pela adição de novas fontes ao trabalho iniciado anteriormente.

O exercício do ganho entre os escravizados e libertos era comum desde o século XVIII e em outras áreas além da Bahia. Ele consistia na prática de venda, por parte do proprietário ou do próprio liberto ou livre, do seu serviço para variadas atividades na cidade, como carregamentos, transportes de palanquins, venda de alimentos, entre outras atividades. Nesta lógica, mesmo o escravizado receberia uma remuneração pela função de ganho desempenhada. João José Reis outras especificidades desta dinâmica laboral fronteiriça entre a escravidão e a liberdade no espaço de Salvador oitocentista, onde há a particularidade dos “cantos de trabalho”. Eles consistiam em agrupamentos de trabalhadores, além de constituir também mais um espaço associativo negro. Inicialmente, se compunham exclusivamente de africanos que se reuniam em locais definidos onde ofereceriam seus serviços. Tal organização seguia critérios de gênero, etnicidade, normas internas e públicas, definidas por posturas. Leia Mais

Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal | Cybelle Salvador Miranda

Por um vasto oceano uniram-se dois continentes, com uma língua e um passado partilhados. Entre as viagens, sobreveio um profícuo e interessante linguajar oitocentista entre vários actores e instituições portugueses e brasileiros. Essas “conversas”, influenciadas por uma Europa de referência elitista, por um maior poder económico e um rápido incremento de estatuto social, foram cruciais para a apropriação e a utilização de conceitos na arquitetura da época. Cybelle Salvador Miranda e Renato da Gama-Rosa Costa, no livro Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal , publicado em 2018, pela Editora Fiocruz, organizam relatos históricos de uma viagem icónica entre esses dois mundos que, aparentemente diferentes, beberam da mesma fonte.

Os diversos poderes imperiais e não imperiais que, nesse arco cronológico, sofreram metamorfoses são, também, agentes produtores de registos cruciais, pois, em última análise, a decisão é um poder executivo. Nessa obra, não são apenas os detalhes históricos centrados em sistemas governativos, mas também as visões dos doentes para com os seus decisores, invertendo a narrativa para ilustrar a importância da doença e do tratamento – o relato pelas elites resulta, normalmente, numa linha histórica rapidamente solúvel. As diversas peças do puzzle são extensivamente analisadas nos textos, entre as quais a questão da mudança da direcção médica das instituições, a consolidação científica, a título de exemplo. A arquitetura é um “espelho de Alice” que, além de refletir imagens da sua realidade, revela, por detrás, um mundo desconhecido de premissas e locuções – as mesmas que, também, o livro desvenda. Leia Mais

Mandarin Brazil: race, representation, and memory. | Ana Paulina Lee

A obra Mandarin Brazil , premiada como melhor livro em humanidades na seção Brasil pela Latin American Studies Association, é uma leitura importante para a compreensão das representações dos chineses na cultura popular brasileira. O livro remonta a construção e ressignificação dos estereótipos raciais associados ao imigrante chinês na literatura, na música e no teatro nos séculos XIX e XX. A obra extrapola o enfoque da historiografia nacional sobre os debates e as construções raciais em torno da imigração chinesa entre 1850 e 1890. Ana Paulina Lee (2018) priorizou a elaboração, reprodução e apropriação da chinesness , expressões culturais que elaboram conceitos e estigmas raciais referentes à China e aos seus habitantes. Essas imagens foram concebidas e apropriadas em meio a um intenso diálogo global fortalecido após a abolição do tráfico negreiro. Tais representações circulam dentro de uma memória circum-oceânica, um processo criativo por meio do qual a cultura da modernidade se inventa ao transmitir um passado que pode ser esquecido, recriado ou transformado em uma memória coletiva. Leia Mais

Cooperação Sul-Sul/ Democracia e Decolonialidade: estudos sobre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2020

O presente Dossiê surgiu a partir do contato dos organizadores com a discussão sobre a realidade social, cultural, econômica e política dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, os PALOPs, no âmbito da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que completou dez anos em 2020, e cujo projeto se relaciona à cooperação solidária para o desenvolvimento entre o Brasil países de África e Ásia através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A pluralidade cultural e social destes países, suas trajetórias políticas de independência e transição democrática, somada aos laços históricos e políticos de cooperação cultural, educacional e econômica com a sociedade brasileira vem alimentando uma rede de estudos, de pesquisas e de mobilidade que consolidam o destaque destas sociedades na área de Estudos Africanos no Brasil.

Com base nesta experiência, pautamos a necessidade de congregar reflexões teóricas e estudos empíricos considerando dois aspectos: 1. as diversas disciplinas das Humanidades (Antropologia, Ciência Política, História, Relações Internacionais e Sociologia, Geografia, Filosofia), em uma perspectiva que relacione Cooperação Sul-Sul, Democracia e Decolonialidade, no sentido de um fazer acadêmico crítico e de qualidade, tendo em vista um desenvolvimento emancipatório; 2. a maior diversidade possível de nacionalidade, etnia/raça e gênero nas contribuições recebidas. Nesse sentido, embora não tenhamos conseguido contemplar todos os PALOPs, o presente número reúne reflexões e estudos de brasileiros(as) e africanos(as) de/sobre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, sem perder de vista possibilidades de comparações com o Brasil e visadas mais amplas sobre o conhecimento produzido sobre África. Leia Mais

A História (quase) secreta: sexualidade infanto-juvenil e crimes sexuais na cidade de Salvador (1940- 1970) | Andréa da Rocha Rodrigues Barbosa

Em que pese o recente crescimento de uma perseguição desenfreada aos estudos sobre mulheres, relações de gênero, sexualidade, etc., é com muito entusiasmo que nós historiadoras/res recebemos o livro A História (quase) secreta, fruto originalmente de uma tese de doutoramento junto ao programa em História Social da Universidade Federal da Bahia e que foi defendida há mais de uma década, em 2007. O livro que ora resenhamos foi apresentado pelo historiador Renato Venâncio (UFMG), especialista em história da infância. Além disso, teve o prefácio assinado pela antropóloga feminista Cecília Sardenberg (UFBA), uma das fundadoras do Neim – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher e gênero, da Bahia.

Atualmente, Andréa Barbosa é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, dedicando-se, desde o início de sua carreira, aos estudos históricos sobre a infância pobre, mulheres, relações de gênero, corpo e sexualidade infanto-juvenil. É autora do já clássico A Infância Esquecida, Salvador, 1900-1940, 2 assim como, mais recentemente, organizou uma coletânea intitulada Revisitando Clio: estudos sobre mulheres e as relações de gênero na Bahia3 que, além de seu próprio trabalho, reuniu pesquisas feitas por outras historiadoras da área. Além disso, é coordenadora de um grupo de pesquisa e extensão, criado recentemente juntamente a um grupo de jovens historiadores, intitulado Nina Simone, com o objetivo de propiciar debates e pesquisas históricas e áreas afins sobre as relações de gênero, sexualidade etc. Leia Mais

Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20 | Ruy Castro

Terminei de ler Metrópole à beira-mar – o Rio moderno dos anos 20, de Ruy Castro, publicado pela editora Cia. das Letras em 2019.

Posso estar enganado, mas a impressão que o livro traz é a de que Castro se adiantou a provar que o Rio de Janeiro já era moderno antes de São Paulo e da Semana de Arte Moderna de 1922, antecipando-se, assim, às homenagens pelos 100 anos da dita Semana (para os distraídos, ocorrida em São Paulo em 1922). Leia Mais

Vacina antivariólica: ciência/ técnica e o poder dos homens (1808-1920) | Tania Maria Fernandes

O livro de Tânia Fernandes, recentemente lançado pela Editora Fiocruz, é produto de sua dissertação de mestrado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Aqueles que apenas passarem os olhos pelo título do livro e o tema tratado com certeza se lembrarão do também recente trabalho de Sidney Chalhoub, que aborda a questão da vacina antivariólica (Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996). Entretanto, as semelhanças entre os dois livros terminam aí. As diferentes abordagens escolhidas pelos autores e a originalidade da trajetória e do enfoque de Tânia Fernandes tornam-se evidentes à medida que nos debruçamos sobre o livro da pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. Enquanto o trabalho de Chalhoub está mais voltado para uma história cultural e procura resgatar as resistências da cultura popular carioca à prática da vacina, Fernandes volta sua atenção para a história da ciência, privilegiando a história da vacina propriamente dita, incluindo-se neste aspecto não apenas a história dos institutos encarregados de produzi-la e aplicá-la, mas também o conhecimento técnico e científico envolvido na sua produção.

Registre-se que, ao estudar as práticas científicas e as técnicas envolvidas na produção da vacina, Fernandes preocupa-se em mostrar como as concepções científicas não podem ser dissociadas das práticas políticas e dos interesses profissionais da comunidade médica, fugindo de qualquer compromisso com uma história ‘heróica’ da ciência. Esta perspectiva fica bastante evidente no capítulo três, onde analisa os conflitos políticos entre o barão de Pedro Affonso e Oswaldo Cruz em torno da concepção de a quem caberia o monopólio de produzir e aplicar a vacina: ao Estado ou à iniciativa privada. O barão de Pedro Affonso, primeiro médico a produzir com sucesso a vacina antivariólica animal e diretor do Instituto Vacínico Municipal do Rio de Janeiro entre 1894 e 1920, defendia seu monopólio privado conquistado ainda no final do Império, quando conseguiu reproduzir a vacina animal no país. Oswaldo Cruz, diretor do então Instituto Soroterápico e representante de uma tendência centralizadora e estatista, defendia a incorporação do Instituto Vacínico ao Instituto Soroterápico e o fim do monopólio privado de Pedro Affonso. Leia Mais

Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819) | Fernanda Pinheiro Domingos

Desde a década de 1980, o estudo das chamadas “ações de liberdade” se consolidou na historiografia da escravidão brasileira. Muitos foram os trabalhos publicados sobre a luta judicial pela liberdade e também foram recorrentes estudos sobre crime, família escrava, tráfico e outras questões que se valeram desses processos judiciais como fontes fundamentais para a análise do cotidiano e da agência de escravos, libertos e pessoas livres de cor. O livro de Fernanda Domingos Pinheiro, Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819), insere-se nesse campo já consolidado da história da escravidão, apresentando inúmeras informações que ainda não eram de amplo conhecimento dos pesquisadores do campo e levantando novas questões e perspectivas de análise sobre as relações entre direito, liberdade e escravidão. O livro apresenta uma pesquisa rigorosa e minuciosa sobre os significados e a precarização da liberdade no Império português, baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais ajuizados em Mariana e Lisboa. Nessa análise, a autora não deixa de lado nem os argumentos e formas jurídicas específicas que constituíram esses documentos, nem o debate acerca da vivência das pessoas de cor em sociedades escravistas em um sentido mais amplo. Leia Mais

Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786 | Mariza de Carvalho Soares

A publicação de fontes históricas não é algo muito comum no mercado editorial brasileiro. Neste sentido, é mais do que bem-vinda esta narrativa sobre uma congregação religiosa católica formada por africanos que originalmente vieram para o Brasil escravizados do Golfo do Benim (atual Togo, Benim e Nigéria). Este documento, guardado na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi apresentado ao público através do trabalho de Mariza de Carvalho Soares, uma das mais destacadas africanistas em atividade no Brasil. Partes dele tinham sido exploradas em trabalhos anteriores da pesquisadora, mas somente agora uma edição crítica do documento, com notas explicativas, veio a lume.

Antes deste livro, a autora já havia publicado Devotos da cor, obra que trata da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro durante o século XVIII (SOARES, 2000). Ademais, ela também organizou um livro sobre a diáspora da Costa da Mina para o Rio de Janeiro (SOARES, 2007). Em outras palavras, é uma conhecedora desta região africana e da diáspora no Brasil dos povos desta área (conhecida pelos linguistas como “área dos gbe-falantes”). A iniciativa contou com o apoio da Chão, editora nova no mercado e que já tinha publicado documentos sobre Jovita Feitosa, uma voluntária para a Guerra do Paraguai, com comentários de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2019). Leia Mais

Forças Armadas e Política no Brasil | José Murilo de Carvalho

Em 2015, o historiador José Murilo de Carvalho chamou a atenção para um episódio cuja gravidade havia passado despercebida no âmbito da opinião pública. O General Hamilton Mourão celebrou o golpe de 1964 sem despertar reação dos seus superiores ou da presidência da República. Uma luz amarela acendeu-se. Um sinal de alerta a desfazer a crença na reclusão dos militares às suas atividades profissionais. Significava a retomada do envolvimento das Forças Armadas na política brasileira?

Com a redemocratização do Brasil e a aprovação da Constituição de 1988, a agenda política foi tomada por outros assuntos mais urgentes, passando os militares a um papel secundário no quadro das preocupações dos analistas, da imprensa e das forças partidárias. Entretanto, a atuação dos militares nos recentes acontecimentos do País modificou tal percepção, restaurando a questão do protagonismo político dos militares. O livro de José Murilo é mais do que oportuno. Recoloca uma vez mais não só a necessidade, mas a urgência do estudo dos militares no passado e no presente da vida nacional. Trata-se de uma reedição ampliada, disponível em versão impressa e em formato digital, que oferece aos leitores, novos capítulos tanto sobre a história dos militares quanto da sua atuação recente. Leia Mais

O fotógrafo Benicio Whatley Dias | Cêça Guimaraens

O que seria da arquitetura sem seus fotógrafos? Ou antes, o que seria de uma cidade sem eles? De Paris sem Atget; de Nova York sem Stieglitz; do Rio sem Ferrez; de São Paulo sem Militão; de Buenos Aires sem Coppola; de Salvador sem Verger; do Recife sem Benicio Dias? O que sua presença – como de tantos outros fotógrafos – tem a dizer dessas cidades que eles retrataram? Da transformação de sua fisionomia, das múltiplas maneiras de enxerga-las, dos acúmulos temporais nelas flagrados, dos vestígios do perene, do fugidio, do insólito? Que cidades ao fim e ao acabo eles revelaram? Que imagens elaboraram ou consagraram a seu respeito?

O livro acerca da obra fotográfica de Benicio Dias organizado por Cêça Guimaraens ajuda-nos a responder algumas dessas questões. Não apenas aos que, como nós, nascemos no Recife ou que estudamos a história da cidade em que cedo ele emergiu como um de seus intérpretes mais vigorosos. Mas a todo aquele interessado nas relações da cidade com a fotografia e com as arenas culturais que estimularam o surgimento de representações visuais tão eloquentes acerca do urbano. Leia Mais

Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado | Douglas de Araújo Ramos Braga

Resultado de uma pesquisa de iniciação científica que se tornou tema de trabalho de conclusão de graduação, o livro é fruto da monografia de Douglas de Araújo Ramos Braga- graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC-FIOCRUZ) e atualmente doutorando em História pela Universidade de Brasília (UNB) 1.

Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado concede centralidade às noções de “criança”, “infância” e “menor”, numa análise que busca entender a experiência institucional do instituto de vida efêmera que exerceu profundo impacto sobre os indivíduos que para ela foram enviados-retirados das ruas ou mandados por familiares que não tinham condições de criá-los. O que eram crianças? O que eram menores? Como e porque eram inseridos junto a outras figuras – homens, mulheres, livres, escravos, imigrantes, africanos livres de diversas idades – nas chamadas “classes perigosas”? O que era ser criança, o que era infância? São algumas das perguntas que norteiam as reflexões do autor, que insere sua problemática no debate maior acerca das políticas públicas de controle e esquadrinhamento social pelo Estado Imperial. Leia Mais

História Agrária: conflitos e resistências (do Império à Nova República) | Dayane Nascimento Sobreira e Júlio Ernesto Souza Oliveira e Rafael Sancho Carvalho Silva

Obra organizada por Dayane Nascimento Sobreira, Júlio Ernesto Souza Oliveira e Rafael Sancho Carvalho Silva, o livro História Agrária: conflitos e resistências (do Império à Nova República) apresenta as recentes discussões realizadas na I Jornada de História Agrária: Conflitos e Resistências na Construção da Nação, evento que ocorreu na Universidade Federal da Bahia (UFBA) entre os dias 10 e 11 de 2019. O colóquio foi organizado pela equipe do GT História Agrária da Bahia (HISTAGRO).

Analisando processos históricos de luta pela terra, partindo da ruralidade como eixo de análise, o livro se propõe a discutir a História do Brasil através de dimensões de violência e resistência que são constitutivas dos conflitos agrários, observando tais conflitos em suas múltiplas especificidades nos períodos imperial e republicano brasileiro. Dividida em quatro partes, a obra aborda a História Agrária como um campo plural em suas possibilidades de estudo e pesquisa. Os textos discutem a História Agrária a partir de relações fundiárias, étnico-raciais, de gênero e de trabalho, com reflexões teórico-metodológicas que contribuem para o campo da História Agrária e Rural da Bahia. Leia Mais

Brasil caníbal. Entre la Bossa Nova y la extrema derecha | Florencia Garramuño

Durante las últimas dos décadas, la historia política brasileña ha adquirido un creciente interés en las ciencias sociales y políticas en Argentina, tal vez como una forma elíptica para comprender las vicisitudes locales, bajo el candil de un país en creciente expansión y resonancia internacional desde la llegada del gobierno del Partido de los Trabajadores y la figura de Lula da Silva a la presidencia1 . La vocación por poner en palabras castellanas los avatares lusitanos del vecino país, llevaron inclusive a que se produjera un enorme acervo de traducciones de obras brasileñas, bajo el intento de ofrecer retazos para construir una biografía ordenada o un “caminho das pedras”2 que permita transitar la multiplicidad que encierra aquel país. En este marco, la aparición del libro de Florencia Garramuño, Brasil caníbal…, es un intento acertado por ofrecer parajes o destinos donde anclar en este archipiélago diverso y complejo de la historia brasileña del siglo XX y XXI, más que brindar una brújula para un tránsito apolíneo que clausure los sentidos o desoiga los cantos de sirena que trasuntan por la Odisea brasileña.

En esta publicación se entremezclan aproximaciones desde los estudios culturales y la literatura, la historiografía sobre el pasado reciente y la sociología, las observaciones participantes y la perplejidad de la experiencia en primera persona. Sin embargo, claramente estás observaciones están escritas a caballo de un presente que la inquieta por la radicalización y la llegada de un gobierno post autoritario de Jair Bolsonaro por un lado, y la proliferación de aristas que la han llevado a enamorarse de Brasil como un enigma, por el otro. Escrito con una pluma liviana, voraz, seductora y profusa, ofrece un derrotero panorámico, complejo y ligero sobre el devenir de ese país desde su configuración identitaria como Estado nación hasta su perplejidad actual como sociedad en crisis. Leia Mais

Segredos de Estado: o governo Britânico e a tortura no Brasil (1969/1976) | João Roberto Martins Filho

Foi publicado pela Editora Sagga, em 2019, Segredos de Estado: o governo britânico e a tortura no Brasil (1969-1976), de autoria do historiador João Roberto Martins Filho. O livro teve origem em meados de 2013, quando o autor submeteu o projeto à cátedra, perante o King´s College, em Londres, com o título “As Democracias europeias e a ditadura militar brasileira: o caso do Reino Unido”.

A obra se embasa na documentação da diplomacia do Reino Unido e traz uma enorme contribuição para a historiografia sobre as ditaduras militares na América Latina. A obra quebra alguns mitos sobre a instauração de regimes autoritários no Cone Sul. O primeiro deles refere-se ao deslocamento da temática sobre a relação entre a ditadura militar no Brasil e outros países, saindo do foco dos EUA, apesar de ainda haver muito a ser estudado sobre a participação norte-americana no Golpe de Estado e no planejamento e apoio ao regime militar. Há uma vasta lacuna sobre a relação entre o regime autoritário brasileiro e os países europeus. Leia Mais

Patrimônio em transformação. Atualidades e permanências na preservação de bens culturais em Brasília | Sandra Bernardes Ribeiro e Thiago Perpétuo

Efemérides são boas ocasiões para se olhar algo novamente e refletir. É nesse sentido que vem o livro Patrimônio em transformação – atualidades e permanências na preservação de bens culturais em Brasília. Lançado pelo Iphan em 2017, o exemplar aparece em momento de tripla comemoração: sessenta anos do projeto vencedor de Lúcio Costa para a nova capital; trinta anos da inscrição do Plano Piloto de Brasília na lista de patrimônio cultural da humanidade da Unesco; oitenta anos da criação do órgão destinado à proteção patrimonial. Como o nome prenuncia, trata-se de uma obra sobre patrimônio, dedicada a olhar Brasília e a trazer para reflexão discussões sobre a cidade que vem se modificando e consolidando. A publicação mostra-se como boa forma de celebrar, uma vez que se insere de forma atual e propositiva no debate. E, o olhar que se lança sobre a cidade-patrimônio, nesta ótima coletânea de artigos, traz contribuições significativas para pensá-la.

A tônica da obra é dissociar-se da ideia de que o respeito ao patrimônio implica fixidez. Compreende-se a mudança como algo imanente à condição de cidade dinâmica, e a necessidade de revisitar Brasília é lida como um exercício fundamental para sua própria proteção. O assunto da preservação patrimonial de – e em – Brasília não é novo, mas muito do que se aborda, e como, coloca-se como leitura enriquecedora para quem lida com o tema ou se interessa por ele. Encaram-se transformações por que passam a cidade dinâmica, e não mais projeto, trazendo reflexões e deixando claro quais são as questões que estão na ordem do dia para o órgão do patrimônio e que, não por coincidência, guardam relação com as datas que festejam. Leia Mais

Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro | Leopoldo Guilherme Pio

1. Do Patrimônio cultural ao Porto Maravilha

O livro de Leopoldo Guilherme Pio se constituiu em uma contribuição importante para se pensar o patrimônio cultural, atualização e sua utilização no contexto das transformações urbanas ocorridas ao longo da última década na região central do munícipio do Rio de Janeiro.

Cabe o apontamento da situação específica desta cidade, sendo fortemente caracterizada como uma metrópole que se desenvolveu a partir de um incremento de suas potencialidades como polo de turismo e de demais eventos, neste caso, esportivos. Desta forma, buscou-se reforçar as estratégias para tornar o Rio de Janeiro como um centro atrator de negócios e atividades correlatas.

Nesta direção, o autor destacou a preocupação central de sua proposta que consistiu em compreender como a memória, contida nos patrimônios históricos, foi utilizada como recurso no contexto da estratégia de revitalização e modernização da região, a partir da proposta de desenvolvimento do Rio de Janeiro.

Tal processo ocorreu a partir da atribuição a cultura e ao patrimônio novas competências para revitalizar áreas degradadas, promovendo uma melhor qualidade de vida. Posteriormente, decidiu-se pelo foco na utilização da categoria patrimônio cultural como um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico no interior da proposta do Porto Maravilha.

Para obter este intento, Pio (2017) se utilizou da categoria Patrimônio Cultural como elemento constituinte do patrimônio, presente na cidade do Rio de Janeiro desde os anos 1990, seja, por meio do o projeto do Corredor Cultural, seja com a proposta de 1 instalação do Museu Guggenheim, já sinalizando para o atual 2 momento, mesmo que timidamente. Neste ponto, Pio (2017) considera em seu livro, os termos “usos e sentidos” funcionando como ferramentas que classificam “os principais significados do patrimônio: o patrimônio como oportunidade econômica; como capital de inovação; como instrumento de gestão do espaço público e como símbolo de harmonia social e qualidade de vida”. (PIO, 2017, p.6)

O emprego do patrimônio como ferramenta para se pensar a imagem da cidade como elemento a ser comercializado, inseriu em uma dinâmica de mercado ao destacar pontos positivos e omitindo os negativos. No caso em questão, serão desenvolvidos os pontos positivos que passaram a ser valorizados nesta nova lógica de utilização do espaço urbano.

Tal processo é compreendido pelo autor como “patrimonialização, ou seja, a produção de processos que criam patrimônios, neste caso, na região em que se localiza o Porto Maravilha, em que se destaca o Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Cultura Africana, como representante deste processo.

O próprio autor salienta que a “organização do patrimônio como ramo fundamental da indústria de lugares e do turismo é um indicador desta mudança de paradigma … que se constituiu em mais um legado do que de recuperação de uma herança”. (PIO, 2017, p.59).

Este posicionamento ressaltou a presentificação do patrimônio e da patrimonialização acabando por conectar patrimônio e “marketing das cidades”.

Tal conexão permitiu perceber a aplicação do patrimônio como instrumento que pode funcionar como um “atrativo locacional” (CICCOLELLA, 1996), ou seja, um potencial a ser explorado, neste caso, o patrimônio histórico como uma oportunidade de negócios, como defende Pio (2017).

A partir das linhas gerais do autor, é possível salientar dois pontos relevantes como a implementação de uma proposta de city marketing, termo defendido por Vainer (1999) e Sanchez (2001) e a ênfase em um patrimônio, associado as classes populares, que adquire uma nova funcionalidade.

A primeira delas explica-se pelo fato destes projetos serem elaborados a partir de premissas do city marketing, ou seja, baseado na proposta que adotou o desenvolvimento econômico a partir da valorização de atrativos locacionais que uma cidade possua. No caso carioca, a área a ser “revitalizada”, ou utilizando os próprios termos de Pio (2017), a receber novos “usos” como parte da região portuária do Rio que convencionou-se denominar como Porto Maravilha.

Como pontos a serem desenvolvidos a partir da reflexão de Pio (2017), podemos desenvolver uma intensificação do city marketing e uma “revitalização” que explora uma área “marginal” que compõe uma região mais ampla que possui um projeto com uma perspectiva mais global.

A primeira delas consiste em uma adaptação do “city marketing” para uma área periférica da região central, discutida por Pio (2017) de forma inovadora no seu foco na dinâmica cultural como indutor de desenvolvimento na região do Porto Maravilha.

Esta linha pode ser um caminho valioso, mesmo ao ser aplicado em uma área que possui forte tradição associada a cultura negra como a Pequena Àfrica que passaram a se revalorizados, 3 evidenciando a possibilidade de estimular outras culturas e/ou grupos sociais que não possuem voz, a destoarem dos projetos de city marketing que predominantemente valorizam cultura erudita ou o setor de negócios.

Nesta direção, a discussão de Pio (2017) sinaliza para o reforço na valorização da cultura, neste caso, popular como caminho para se pensar estratégias alternativas para discutir formas de estímulo ao desenvolvimento econômico.

Já o segundo ponto, pensado de forma complementar ao primeiro, trata da revitalização de uma área periférica do centro carioca, suscitando duas questões: o termo “revitalização”, colocado como se não existe vida anteriormente e que daquele momento em diante, tivesse “recuperado” a vida, ou como destacou ABREU (1998), pretendeu-se valorizar uma memória urbana, por meio da “valorização atual do passado” como observado na reflexão de Pio (2017).

Assim, a busca por valorizar o passado, representado na memória urbana, defendida por Abreu(1998), como forma de reforçar uma identidade, neste caso, aquela relacionada a cultura negra, que hoje, por exemplo, instalou-se nos bairros em questão, Saúde, Gamboa e Santo Cristo, como locais símbolos de uma cultura negra que foi recuperado, mas não se criou uma vida nova, mas reforçar a memória urbana relacionado a cultura negra que hoje se tornou um 4 local de valorização e de resistência deste grupo.

Desta forma, a reflexão de Pio (2017) contribui consideravelmente tanto por se referir a oferta de questões quanto na proposição de novos caminhos para discutir o patrimônio, sua re-elaboração e em sua inserção de uma lógica de “comércio” das cidades e de seus espaços diversos.

Notas

1 Consistiu em um conjunto de iniciativas, criadas na região central carioca no decorrer dos anos 1980 até o início dos anos 1990, em que foi incentivada a revitalização desta por meio da utilização de seu patrimônio artísticos, arquitetônico e cultural.

2 Foi uma proposta de revitalização da região portuária da cidade, criada no final dos anos 1990, por meio da implementação de equipamentos culturais como museus, centros culturais e congêneres que sejam indutores de desenvolvimento no entorno da região em que são instalados.

3Esta área foi uma área que possui uma tradicional ocupação de população negra a partir do século XVIII e que continuou no bairro, mas sem valorizar esta tradição, sendo está recuperada nas duas últimas décadas, pela ação do movimento negro.

4 Representado por um passado, que vai desde um local de chegada de escravos negros até locais de interação e de resistência de negros e de sua cultura.

Referências

ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades in Revista da Faculdade de Letras – Geografia, 1 ª série, volume XIV, Porto, p.77-97, 1998.

CICOLLELA, Pablo. Las metrópoles latino-americanas en el contexto de la globalizacion: las mutaciones de las áreas centrais in Para Onde – UFRGS, Porto Alegre, 9 (1), p.01-09, janeiro – julho de 2015.

SANCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política in Revista Sociologia e Política, Curitiba, 16, p.31-49, junho de 2001.

VAINER, Carlos. Pátria, mercado e mercadorias – notas sobre a estratégia discursivas do planejamento estratégico urbano in Anais dos VIII Encontro Nacional da ANPUR, Natal, 1999.

Fábio Peixoto – Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. E-mail: fabiocope@gmail.com


PIO, Leopoldo Guilherme. Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. Resenha de: PEIXOTO, Fábio. O patrimônio cultural no âmbito do porto maravilha: novos usos de “antigos” lugares. Urbana. Campinas, v.12, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade | Joaquim Justino dos Santos, Raffael Mattoso e Teresa Guilhon

Pensar a construção da cidade a partir de seus espaços de exclusão social e marginalização das populações pobres, eis aqui o objetivo central e transversal da obra organizada em conjunto pelos pesquisadores e professores Joaquim Justino dos Santos, Rafael Mattoso e Teresa Guilhon e que conta com colaborações de diversos profissionais e estudiosos dos subúrbios cariocas, oriundos, esses últimos, dos mais variados campos de estudo e atuação profissional. Antes de começarmos a destrinchar a obra, gostaríamos de apresentar um pouco da trajetória dos idealizadores desse projeto. Joaquim Justino dos Santos é formado em História pela UFF, mestre e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ, tendo atuado durante vários anos como gestor público; Raffael Mattoso é formado em História pela UFRJ, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ, doutorando em História da Cidade pelo PROURB-UFRJ e professor das redes pública e privada do Rio de Janeiro; e, Teresa Gilhon é formada em Comunicação Visual pela UFRJ, mestre em Bens Culturais e Projetos sociais pela FGV e é atualmente pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Urbanos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Comparada do Brasil (CPDOC). Além de artigos de alguns dos organizadores, a obra ainda traz colaborações de professores, arquitetos, geógrafos, historiadores e cientistas políticos. Com relação aos autores, destacaremos aqui apenas suas áreas de formação, a fim de clarearmos um pouco o local de fala dos respectivos colaboradores. Ressaltamos de antemão que, o caráter interdisciplinar, presente nesse empreendimento, não se dá apenas pela filiação intelectual e profissional de seus produtores, como também pela série de enfoques, conceitos e métodos que são empregadas nas construções das narrativas sobre os subúrbios cariocas. Leia Mais

A cor do amor: características raciais/estigma e socialização em famílias negras brasileiras | Elizabeth Elizabeth Hordge-Freeman

O reconhecimento, nas ciências sociais, da importância do afeto ao lado da razão, do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida, incluindo a política, é o fundamento teórico central do que atualmente denominamos virada afetiva. Nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, nos últimos anos, a abordagem tem sido usada de forma pioneira pelas teorizações feministas e queer. De todo modo, guardadas as diferentes filiações teóricas em torno da virada afetiva, há, pelo menos, duas convergências que merecem destaque: primeiro, a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento (Almeida, 2018, p. 33-32); segundo, o enfoque tanto em “nosso poder de afetar o mundo a nossa volta, quanto o de sermos afetados por ele” (Hardt, 2015, p. 2). Leia Mais

Dinâmicas do jogo. Concursos de arquitetura no Brasil | Fabiano José Arcadio Sobreira

Concurso é uma palavra que se inscreveu nas obras de arquitetura de modo notável a partir dos grandes edifícios de infraestrutura que surgiram em decorrência, e logo na sequência, de duas revoluções: Industrial e a Francesa. Designa-se concours a grande galeria de acesso àquelas estações ferroviárias, como na Gare du Nord em Paris, projetada por Leonce Reynaud em 1847. Em geometria concurso designa ponto de intersecção, nas gares é também assim: o entroncamento por onde ingressamos juntos para, imaginemos os arquitetos, tomarmos todos um mesmo trem. Esta acepção da palavra aplicada àquelas obras merece prevalecer como sentido do termo quando dizemos concurso de arquitetura. Ou seja, concurso é um caminhar junto, é o convívio num mesmo contexto, é produzir, expor, trocar ideias para, eventualmente, expandir os limites dessa atividade cujo propósito é dar feição física, ou existência concreta, à cultura de um lugar. Associar, portanto, concurso à noção de competição é reduzi-lo a uma dimensão que não condiz com aquela que se pretende a uma atividade que se funda, se desenvolve e se realiza no campo da cultura. Leia Mais

Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva

O segredo não é somente o estado de uma coisa que escapa ou se revela em um saber. Ele designa um jogo entre atores. Ele circunscreve o terreno de relações estratégicas entre quem o procura e quem o esconde, ou entre quem suspostamente o conhece e quem supostamente o ignora (o “vulgar”).”

Michel de Certeau

Glauber Rocha, em citação no livro Impressões de Viagens, de Heloísa Buarque de Hollanda, argumenta que as produções artísticas de Ney Matogrosso, Gal Costa e Dias Gomes em 1970, não passavam de “texto da decadência da colônia do Rio de Janeiro”2, por conta do apelo ao espetáculo midiático e a performance erótica para dialogar com o público. O cineasta é incisivo na diminuição da relevância desses personagens históricos para a circularidade e reflexão do cenário político da época. No entanto, a fala direta e agressiva do diretor não perpassa apenas ao seu nicho individual de concepção estética, o referido pronunciamento dialoga ao menos com duas memórias históricas3; o conceito de Indústria Cultural da escola de Frankfurt e uma determinada historiografia da música brasileira, que valoriza os compositores – escrita – e desvaloriza a importância dos performers na vida política da segunda metade da década 70; interpretação que ajudou na consolidação do imaginário de “vazio cultural”. Leia Mais

O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala | Boris Fausto

Os chamados faits divers, ou seja, tudo o que é fora do comum, insólito ou inesperado, têm frequentado, desde o final do Oitocentos, as páginas da imprensa e assegurado o sucesso de várias publicações. A fórmula tem se adaptado a cada novo veículo, seja o rádio, a televisão ou a internet. Os crimes bizarros constituem-se em fonte inesgotável, como atesta, por exemplo, os programas das redes de televisão abertas, que cotidianamente esmiúçam detalhes de perversidades variadas. Para ficar apenas num exemplo, basta citar o caso ocorrido em fevereiro de 2020, no programa policialesco da TV Record de São Paulo, Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci, que informou, ao vivo, para uma mãe que sua filha acabara de ser assassinada pelo namorado. O caso gerou fortes críticas, tendo em vista a espetacularização barata da dor alheia, regada por altas doses de falta de ética.

Tais práticas, é importante lembrar, remontam ao final do século XIX, momento em que os jornais, então os principais veículos de comunicação, narravam, não sem doses de sensacionalismo, a repercussão de crimes, conforme demonstra Boris Fausto no seu novo livro, O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala. São Paulo, 1908-1928. O autor organizou a obra em duas partes: a primeira, intitulada “O crime da Galeria de Cristal”, contém dez capítulos [71] e outra, sob o título “Os crimes da mala”, divide-se em doze capítulos. [72] A obra abre-se com uma introdução e encerra-se com conclusão e anexo, que traz o diário de um dos réus, publicado originalmente em 1908 no jornal O Estado de S. Paulo. Leia Mais

Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro | Guilherme Leite Gonçalves, Sérgio Costa

Durante a administração de Eduardo Paes como prefeito do Rio de Janeiro (2009-2016), a prefeitura empreendeu um ambicioso projeto de revitalização da Zona Portuária da cidade, realizado sob a midiática alcunha de Porto Maravilha. O projeto consistiu na implantação de uma nova rede de infraestrutura viária e de serviços, que tinha por objetivo lançar a região como novo polo empresarial, fomentando ali um processo de adensamento demográfico e verticalização. Para tanto, em um gesto polêmico que suscitou um acalorado debate público, foi demolido o Elevado da Perimetral, que margeava o Cais do Porto e a região do Centro. A demolição foi apresentada como a obra-chave para a revitalização urbana proposta e, justamente na faixa de terrenos liberada com a remoção do elevado, foram construídos os espaços e equipamentos públicos que se transformariam nos principais símbolos da operação Porto Maravilha. Leia Mais

O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise | Noemi Kon, Maria Lucia da Silva, Cristiane Abdul

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”.1 Com essas palavras que hoje assumem ares proféticos, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) terminava um dos seus seminários em 1972. Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

O autor João J. Reis em seu livro, Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia, apresenta-nos um retrato social dos chamados “ganhadores”, que ocuparam as ruas de Salvador ao longo do século XIX. A greve de ganhadores ocorreu em Salvador, no ano de 1857, e com ampla mobilização social da categoria colapsou o funcionamento da cidade. Em uma leitura fluída, agradável e densa as páginas conduzem para o dia a dia da lida desses trabalhadores africanos empregados ao ganho em Salvador na década de 1850. A maioria deles era composta por homens africanos nagôs, libertos ou escravizados, empregados ao ganho, responsáveis, principalmente, por carregar pessoas e mercadorias entre as ruas enladeiradas da capital baiana. Como indica o autor, “esse livro busca descrever e entender o que foi o primeiro movimento grevista envolvendo todo um setor sensível da classe trabalhadora urbana no Brasil, trabalhadores responsáveis pelo transporte, por toda cidade, de pessoas livres de vária ordem e objetos de todo tipo.” (p.17). Leia Mais

Ordem Imperial e Aldeamento Indígena: Camacãs, Gueréns e Pataxós no sul da Bahia | Ayalla Oliveira Silva

Por muito tempo, a história relegou aos índios um lugar estritamente demarcado pela passividade ou condição de vítima. Os povos indígenas foram concebidos pela historiografia a partir de categorias genéricas, que invisibilizaram as inúmeras diferenças étnicas e culturais. Lidos como incapazes de agir diante das suas realidades, a tendência de análise era a do desaparecimento ante uma sociedade em expansão. Todavia, nas últimas duas décadas, é possível afirmar que essa condição dos índios na historiografia brasileira mudou a partir da emergência da denominada “nova história indígena” que, por meio de significativas mudanças teóricas, metodológicas e empíricas, redimensionou o papel dos índios na história, dotando-os de protagonismo. Leia Mais

História social e mundos do trabalho no Brasil | Revista Piauiense de História Social e do Trabalho | 2020

Referências

[História social e mundos do trabalho no Brasil]. Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Parnaíba, ano VI, n. 10. Jan./jul. 2020. Acessar dossiê [DR]

 

Os estertores da Guerra da Tríplice Aliança: momentos finais e repercussões | Navigator | 2020

O presente dossiê, referente ao sesquicentenário do final da Guerra da Tríplice Aliança, é de suma importância por trazer à tona reflexões inovadoras acerca daquele conflito numa tão importante efeméride. As preocupações centrais aqui foram preservar o rigor científico e a diversidade historiográfica. Para tanto, este dossiê conta com a presença de historiadores(as) independentes ou ligados às mais diversas instituições de ensino superior no Brasil e no exterior, e juristas, tratando de temas os mais variados, como tática, estratégia, logística, direito internacional, antropologia, historiografia, tecnologia (naval e terrestre, civil ou de emprego mais propriamente militar). Leia Mais

1989: história da primeira eleição presidencial pós-ditadura | Cássio Augusto Guilherme

O livro intitulado “1989 história da primeira eleição presidencial pós-ditadura”, de Cássio Augusto Guilherme narra os acontecimentos políticos ocorridos no ano de 1989. Inicialmente a obra busca mostrar alguns episódios que a Europa enfrentava, especificamente, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o que representava uma nova reconfiguração geopolítica entre os países do Leste europeu e uma reorganização deles, gradualmente em nações capitalistas “livre agora, do perigo comunista” os Estados Unidos passam a ter as Américas central e do Sul como área de influência mais direta impondo o seu modelo neoliberal de política econômica. Isso é o que veremos no livro ora resenhado que apresenta pelas páginas do jornal O Estado de S. Paulo (OESP) a defesa desse tipo político e econômico para o Brasil.

A obra estuda como foi possível um presidente civil, José Sarney, permitir que a abertura política brasileira tenha sido tutelada pelos militares; intelectuais, trabalhadores, artistas, mas também à classe política. Revela que o ex-presidente José Sarney “ganha” a presidência da República dos militares para aos poucos implementar algo como uma democracia, mas sempre vigiada e coercitiva com os tanques às portas dos quartéis e os generais ameaçando a nova ordem. Sarney cumpre seu papel histórico de passar a faixa presidencial a Fernando Collor de Mello, o candidato do jornal OESP. Leia Mais

Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX) | Diana Gonçalves Vidal e Paula Perin Vicentini

A composição predominantemente feminina da profissão docente é uma característica facilmente perceptível, sobretudo da educação básica. Segundo o Censo do Professor (2007), cerca de 82% do professorado brasileiro é composto por mulheres. Essa média se mantém no Estado de São Paulo (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007). Esses mesmos números foram retomados em matéria do site UOL (HARNIK, 2011), que apresentou as diferentes percentagens dessa característica de acordo com os segmentos de ensino. Destacou-se, nessa investida, a disparidade entre o número de professoras nos anos iniciais do ensino fundamental (82%) e no ensino médio (64%).

Em que pese a produção acadêmica sobre a História e a Sociologia da profissão docente e o seu recorrente foco nas condições de seu desenvolvimento profissional, proletarização2 e profissionalização3 (XAVIER, 2014, p. 830), são de longa data as colocações acerca da ocupação feminina da docência. É nesse esteio que Cláudia Vianna, ao tematizar “O sexo e o gênero da docência” (2001, p. 81-103), assinala para os contornos históricos desse processo. A autora liga a ocupação da carreira pública do magistério por mulheres à expansão do ensino primário público de modo que, já em inícios do século XX, as mesmas são maioria do contingente profissional. A despeito da efetiva publicação de estudos sobre o tema, a autora destaca que a incorporação do conceito de gênero aos estudos sobre a feminização do magistério no Brasil é relativamente recente (Ibidem, p. 87). A mesma destaca sua pouca tematização até meados dos anos 80 e, especificamente no campo de estudos educacionais, a demora na passagem do “feminino ao gênero”, movimento esse já percebido nos estudos sobre o trabalho na década de 90 (Ibidem, p. 88). Leia Mais

Didática reconstrutivista da história | Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt

O livro Didática Reconstrutivista da História da professora e historiadora Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt, publicado em 2020 pela Editora CRV, sediada em Curitiba, é o que existe de mais recente como reflexão teórica e metodológica para o campo da Didática da História no país. A autora percorre o caminho realizado pela influência do pensamento intelectual alemão, da mesma maneira que ressalta o influxo das reflexões realizadas no contexto da linha de investigação da Educação Histórica ibérica (portuguesa) e anglo-saxônica, da qual faz parte, sendo a principal referência dessa área em solo brasileiro.

Maria Auxiliadora Schmidt, carinhosamente conhecida como “Dolinha” por seus pares, possui uma longa trajetória na educação brasileira, que começou no final dos anos de 1970. Foi professora da educação básica por vários anos na cidade de Curitiba, apropriadamente do Ensino Fundamental II, o que a possibilitou conhecer a realidade do ensino na escola pública no Brasil. Como docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuou na formação de professores e pesquisadores das áreas de História e Educação e colaborou, e até o momento colabora, com instituições acadêmicas brasileiras, europeias e ibero-americanas. Atualmente, a pesquisadora é professora titular aposentada e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e ao Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH) da UFPR, tendo sido a fundadora deste. Leia Mais

Não existe vitória sem sacrifício: da depressão severa à medalha olímpica, a trajetória de superação do mais vitorioso ginasta brasileiro. Diego Hypolito em depoimento a Fernanda Thedim | Diego Hypolito

Nascido em Santo André (SP), o vice-campeão olímpico, Diego Hypolito, contou a sua trajetória em depoimento a jornalista Fernanda Thedim, em cerca de seis encontros na casa do atleta no Rio de Janeiro. O livro intitulado Não existe vitória sem sacrifício: da depressão severa à medalha olímpica, lançado em novembro de 2019 pela editora Benvirá, é escrito em primeira pessoa e dividido em 11 capítulos, além do prefácio, apresentação, agradecimentos e quadro de medalhas (com linha do tempo). Sendo assim, nas próximas linhas será apresentada a resenha crítica da obra.

A jornalista Glenda Kozlowski, ao prefaciar a obra relembrou a primeira entrevista que realizou com o atleta, quando ele ainda era o “irmão da Daniele”, no ginásio do Flamengo em 1996. O menino agitado que a chamava de “tia” e “senhora” tirou a atenção da repórter e, mais tarde, tornou-se o Diego Hypolito – primeiro campeão mundial da história da ginástica artística brasileira. Leia Mais

História e mundos do trabalho no Brasil: desenvolvimento, paradoxos e desafios | Ars Historica | 2019

“O século XX foi a era da classe trabalhadora”, lembrou recentemente o sociólogo sueco e professor da Universidade de Cambridge, Goran Therborn. Para ele, foi nesse período que, em escala global, “pela primeira vez, as pessoas que trabalham e que não têm propriedade tornaram-se uma força política fundamental”.1 Também foi assim no Brasil. Se os legados seculares da escravidão e os impactos das imensas assimetrias econômicas e exclusão política marcaram a “questão social”, também é possível dizer que os embates contra essas desigualdades foram decisivos para a construção de uma linguagem de classe e de valorização do mundo do trabalho que colocaria os setores populares no centro da arena política ao longo daquele século. Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).

Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p). Leia Mais