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Direitos humanos, sensibilidades e resistências / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020
A história como ciência, desde há muito tempo, é alvo de disputas políticas e intelectuais que colocam em xeque um discurso amplamente difundido, que sustentava a existência de uma suposta imparcialidade no ofício do historiador e da historiadora. No entanto, ao se aproximar de diversas áreas que compõem as Ciências Humanas e Sociais, com intuito de pluralizar seus sujeitos e objetos, a história, e, portanto, a própria historiografia, viram-se envoltas em problemáticas que as questionavam como campo discursivo neutro, impelindo-as à produção de um tipo de conhecimento marcado pelas posições políticas e ideológicas, que por sua vez, possuem uma forte ancoragem em processos socioculturais do presente que transbordam em subjetividades.
Desta intersecção entre história, novos sujeitos, objetos multifacetados e pluralização dos discursos sobre o passado, a temática dos direitos humanos, surge como um campo que convoca historiadores e historiadoras a pensar a produção de sujeitos, os processos de violação e as diversas formas de existência, em seu atravessamento por questões da interculturalidade, identidades, igualdade, equidade, justiça social e representatividade, entre outras, que constroem as concepções atuais de dignidade humana e respeito a diversidade.
Este Dossiê, n. 36, intitulado Direitos humanos, sensibilidades e resistências, que se apresenta com caráter multi, trans e interdisciplinar, é constituído por dez artigos, uma entrevista, um texto composto por relatos e duas resenhas. Os trabalhos aqui apresentados, versaram sobre as relações da história com os direitos humanos, as sensibilidades e os processos de resistência.
O historiador Reinaldo Lindolfo Lohn no artigo intitulado A utopia dos direitos humanos na cidade: o direito à cidade, reformas urbanas e projeções sociais em Florianópolis (SC) – entre a ditadura e a democracia (1964-2004) discutiu os conflitos gerados pela imposição de reformas urbanas em Florianópolis (SC), ao longo da ditadura militar, com desdobramentos no período democrático. Tomando o acesso à cidade como uma das dimensões dos direitos humanos, o autor discute a constituição do espaço urbano como um elemento de disputa entre as camadas médias e os grupos populares urbanos.
Ernani Soares Rocha e Sueli Siqueira no artigo, Percepção dos jovens sobre o novo território 10 anos depois da desterritorialização: o caso de Itueta, abordaram, por meio de entrevistas, a percepção dos jovens do município Itueta que vivenciaram, entre os anos de 2000 e 2006, o processo de realocação de sua sede em função da instalação da Usina Hidrelétrica Eliezer Batista. Ao centrar suas análises em entrevistas, as autoras buscaram compreender os efeitos dessa Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização, nas trajetórias de vida de jovens e adolescentes que habitavam até então a sede do referido munícipio
O artigo A educação no município de Xaxim: dimensões históricas e políticas da universalização da educação básica (1910-2020), de Paulo Roberto Da Silva e Joviles Vitório Trevisol, analisou a trajetória da educação no município de Xaxim (SC) no período entre 1920 e 2020. Enfatiza que o direito à educação para todas as crianças em idade escolar do Ensino Fundamental tornou-se realidade apenas no final do século XX, demonstrando a existência das desigualdades regionais que estruturam o Brasil no campo das políticas públicas.
Natalia Ferreira, com o artigo Os desafios do tempo presente e a colonialidade da natureza: intersecções para pensar novas sociabilidades, intenciona discutir sobre a colonialidade a partir de seus aspectos, demonstrando as sobreposições das opressões da Matriz Colonial do Poder a partir da análise de linguagens e hábitos recorrentes que são naturalizados por nossa sociedade.
No artigo Ilha da Magia seletiva: religiões de matrizes africanas e a intolerância religiosa em Florianópolis, Hilton Fernando da Silva Pinheiro evidencia os desafios que as comunidades religiosas de matrizes africanas enfrentam, no que se refere aos direitos de fruição ao espaço público. As reflexões partiram da análise de um ato de intolerância religiosa ocorrido em setembro de 2019, na cidade de Florianópolis – SC, que visibilizou os conflitos existentes em torno de símbolos, monumentos, sujeitos e manifestações religiosas de matriz africana.
Com o artigo intitulado Dignidade humana: o desaparecimento do preto velho Jeronymo – Palmas / PR, meados do século XX, os historiadores Renilda Vicenzi e Carlos Eduardo Cardoso, por meio de um inquérito e de um processo crime, do início do século XX, na Comarca de Palmas / PR, buscam compreender as estruturas de racialização e exclusão social, conferidos a população negra, que marcaram de forma profunda a organização sociojurídica do Estado brasileiro.
Susana Cesco, no artigo O que, como e por que censurar: o trabalho de censura da Polícia Federal na década de 1970, analisou o trabalho de censores, autoridades policiais e a própria reestruturação e atuação da Polícia Federal nas décadas de 1960 e 1970 que passou a atuar como órgão responsável pela censura no país. A autora descreve os caminhos percorridos pela política de controle estatal, especialmente no que diz respeito às normas e critérios adotados para proibir e cercear a livre circulação de ideias.
A historiadora Marlene de Fáveri no artigo Violência política em tempo de guerra: a Exposição de Material Nazista: a Exposição de Material Nazista tratou da Exposição de Material Nazista organizada pelo Departamento de Ordem Política e Social de Santa Catarina nos anos de 1942 e 1943, quando o Brasil declarava guerra aos países do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao se debruçar sobre tal processo histórico, a autora visa analisar o papel da Polícia Política na repressão e perseguição de populações originárias da Itália e Alemanha, destacando a atuação de tal instituição na construção de discursos políticos que fomentavam o medo e a repulsa pelo outro entre a população catarinense.
O artigo Marcelino Chiarello: um defensor dos direitos humanos, de Cesar Capitanio e de José Carlos Radin, evidenciou a formação e a militância do vereador Marcelino Chiarello, de Chapecó-SC, sobretudo, o seu envolvimento na defesa dos direitos humanos, relacionandoa com uma formação sociopolítica alicerçada na vertente religiosa da Teologia da Libertação e da influência do Bispo Dom José Gomes. Os autores destacam sua atuação junto aos movimentos sociais e sindicatos, em um projeto que visava radicalizar o campo da política formal.
Com o artigo Rezar, lutar, lavrar: missionários, militares e indígenas na composição das fronteiras da Província do Amazonas (1851 – 1852), Paulo de Oliveira Nascimento abordou o projeto de construção das fronteiras da / na Província do Amazonas, num momento em que as autoridades imperiais (1851 – 1852) buscavam nortear a ação política e administrativa para modernizar a região. Através da expansão da fronteira, pretendiam implementar o projeto geopolítico de “civilização” dos indígenas e modernização da economia naqueles rincões do Império do Brasil, na tentativa de integrá-los a um projeto modernizador da sociedade brasileira
A atual edição de Fronteiras conta ainda com uma entrevista realizada por Kelly Caroline Noll da Silva que dialogou com a professora Solange Ramos Andrade sobre a temática da religião e da religiosidade católica no Brasil Contemporâneo.
Este número da revista traz uma proposta inovadora, com publicação de um texto composto a partir dos relatos das professoras Andréa Vicente, Adriana Fraga Vieira, Adriana Signori, Elandia S. Thiago e Karla Andrezza Vieira. Os textos foram agrupados e denominado Vozes docentes: lugar de escuta em tempos de pandemia. As professoras participaram da mesa redonda “Lugares de escuta: ensinar História em tempos de pandemia” que compunha a programação do XVIII Encontro de História da ANPUH / SC. Além dos tocantes relatos, o texto é introduzido pelo historiador Rogério Rosa Rodrigues, idealizador da mesa e diretor da ANPUH-SC (2018-2020). Os relatos voltam as luzes às professoras da rede básica de ensino e são traduzidos por Rogério Rosa como narrativas contundentes, sensíveis e engajadas.
Finalizando o número, duas obras compõem a seção resenha. A primeira, realizada por José Antônio Fernandes, analisa as discussões presentes no livro Peronismo: como explicar lo inexplicable, obra organizada por Santiago Farrell, que apresenta uma pluralidade de interpretações sobre o Peronismo, observando que tal temática é ainda bastante controversa e pouco homogênea. A segunda, de Kauê Pisetta Garcia, trata-se do livro intitulado Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade, de Caroline Silveira Bauer. A obra se constitui a partir do resultado de uma pesquisa realizada pela autora sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade.
Neste ano conturbado, em meio a uma pandemia – que nos marcou por muitas perdas, a Fronteiras: Revista Catarinense de História reúne textos sensíveis a diversas causas. São artigos, entrevista e relatos envoltos de sensibilidades e que narraram processos de resistências.
Desejamos uma boa leitura!
Ismael Gonçalves Alves (UNESC)
João Henrique Zanelatto (UNESC)
Michele Gonçalves Cardoso (UNESC)
Organizadores do Dossiê Direitos Humanos, Sensibilidades e Resistências
Samira Peruchi Moretto (UFFS)
Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História
ALVES, Ismael Gonçalves; Cardoso, Michele Gonçalves; MORETTO, Samira Peruchi; ZANELATTO, João Henrique. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.36, 2020. Acessar publicação original [DR]
História da assistência / História – Questões & Debates / 2017
Este dossiê reúne pesquisadores do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Coloca em pauta um assunto relevante, que carece de maior discussão na historiografia brasileira, ainda que muito se tenha produzido sobre isso nas Ciências Humanas e Sociais – a História da Assistência. Entende-se por assistência o ato de apoiar, socorrer, ajudar, auxiliar os necessitados. Desde tempos remotos, as adversidades e vicissitudes da vida mobilizaram indivíduos e grupos sociais a prestar assistência aos que se encontravam em situação de risco e vulnerabilidade.
No Ocidente, a assistência aos desvalidos, fruto da caridade, passou a ser uma questão central do cristianismo. As novas formas de espiritualidade e devoção estimulavam os cristãos a imitarem a pobreza e humildade de Cristo e a vivenciarem a sua fé através da prática da caridade. Segundo Maria Antónia Lopes, entende-se por caridade o bem que se faz aos filhos de Deus por amor ao Seu nome – “é, pois, porque se ama Deus que se faz o bem àqueles que Ele ama”. [1] O pobre era então o pobre de Deus, revestido de um manto santificado, e atribuía-se às ações benemerentes o mesmo caráter sacro.
Na Europa medieval a Igreja pregava o desapego aos bens terrenos como via de salvação da alma, condenando a usura, o lucro e o comércio. A pobreza voluntária era então uma condição desejável, mas na impossibilidade de se contrapor e condenar totalmente os ricos, a Igreja lhes oferecia um caminho para a salvação após a morte: a prática da caridade para com os pobres. A caridade poderia ser praticada em espaços públicos, através da distribuição de esmolas, da visitação aos pobres em seus domicílios ou em espaços institucionais, em grande parte, multifuncionais. [2] Além da promessa de salvação, os favores e o cuidado prestados aos pobres conferiam prestígio social aos mais abastados. Conforme destaca Castel, a economia da salvação estabelecia situação vantajosa tanto para os pobres quanto para os ricos.[3]
Entre os séculos XIII e XV, todavia, observou-se uma crescente pauperização da população europeia, decorrente de guerras, epidemias, crises econômicas e migrações internas. A pobreza tornou-se então ameaçadora e incômoda. O pobre passou a ser visto como uma ameaça à ordem e à higiene urbana, à integridade dos ricos e da propriedade privada. A partir de então a caridade deixou de ser indiscriminada, passando a ser dispensada apenas aos que fossem considerados merecedores.
Com a expansão do capitalismo, aprofundou-se o debate sobre os pobres merecedores e não merecedores de auxílio. A pobreza passou a ser encarada como uma condição daqueles que nada faziam para superá-la. Havia mecanismos de repressão para os que viviam no ócio, na vadiagem, cujo comportamento afrontava a lei e os bons costumes. Eram tolerados, todavia, os que por alguma incapacidade física ou de saúde não podiam trabalhar, os que estavam temporariamente desempregados ou que, mesmo trabalhando, careciam de recursos pecuniários suficientes para prover a própria subsistência.
Como bem assinala Geremek, “em épocas diferentes, muda a função principal da imagem do pobre, altera-se a ordem dos valores em que ele está inscrito, modifica-se a avaliação ética e estética dessa personagem”.[4] As divergentes percepções do pobre e da pobreza informaram as distintas atitudes em relação a estes. Ao traçar o perfil do “pobre merecedor” em contraste com aqueles que não são dignos da caridade ou assistência, no Portugal moderno, Laurinda Abreu argumenta que a delimitação do conceito foi “um elemento estruturante das políticas sociais da Europa moderna”.5 Durante o século das Luzes, no entanto, buscou-se compreender as causas da pobreza estabelecendo-se uma relação desta com a organização socioeconômica, atribuindo-se ao Estado o dever público de prover a assistência na perspectiva da beneficência, não da caridade. Conforme explica Lopes, “beneficência que procedia da filantropia”, ou seja, do “amor aos homens, e não da caridade, o amor a Deus”.6
Historicamente, os pobres, os peregrinos, os enfermos, os prisioneiros, as viúvas, as mães e recém-nascidos, os enjeitados, os órfãos, os velhos, os loucos, dentre outros considerados incapazes, foram os alvos preferenciais das ações assistencialistas. Contudo, assim como os conceitos de pobre e pobreza são complexos e dinâmicos, os alvos da assistência assumiram maior ou menor importância, conforme o contexto em que estavam inseridos os sujeitos ou grupos envolvidos no processo de prestar e receber assistência. Idealizadas e dirigidas por indivíduos, grupos ou entidades, as ações e instituições benemerentes ou filantrópicas surgiam e / ou se extinguiam conforme a conjuntura política, econômica e sociocultural e os valores vigentes em diferentes espaços e temporalidades.
O texto de escrito por Cristina de Cássia Pereira Moraes, Lara Alexandra Tavares e Rildo Bento de Souza, intitulado Três tempos de caridade, assistência e filantropia em Goiás (séculos XVIII ao XX), apresenta uma discussão sobre pobreza, caridade, assistencialismo e filantropia calcada nas distintas realidades da antiga capital Vila Boa e da moderna e atual Goiânia. Para o período colonial, os autores destacam o papel assistencialista exercido pelas confrarias e irmandades, na medida em que seus membros se associavam para fazer alguma obra de piedade ou caridade e / ou assumiam o dever de oferecer algum tipo de amparo e auxílio mútuo aos seus integrantes e familiares. Já no período que se estende do Império à República, os autores se dedicam a analisar o papel caritativo exercido pela Sociedade São Vicente de Paulo. Os Vicentinos chegaram à Goiás em 29 de abril de 1885. Em contexto de romanização da Igreja Católica no Brasil, a Sociedade constituiu dezenas de conferências, que cuidavam, cada uma, de certo número de pobres, mendigos e indigentes, desde que fossem católicos. Para conseguir doações dos mais abastados, lançavam mão da economia da salvação ao afirmarem que “o pobre é nossa riqueza”, lembrando também que a prática da caridade para com os pobres era uma garantia de bom lugar no céu, visto que “quem dá aos pobres, empresta a Deus”. Para caracterizar a ação da filantropia em Goiás, em contraste com a ação caritativa exercida pelos Vicentinos, os autores trazem à luz o médico José Netto de Campos Carneiro, conhecido como o “pai dos pobres” na antiga capital goiana. Único cirurgião em exercício, na época, na cidade de Goiás, a visibilidade adquirida no exercício da medicina e da filantropia conferiu prestígio à personagem, que assumiu cargos administrativos e políticos importantes como os de inspetor de higiene e intendente municipal. A morte do benemérito em 1921 não encerra o seu protagonismo na filantropia vilaboense e revela, segundo os autores, uma preocupação com a sua memória. O médico deixa em testamento bens destinados à fundação de um orfanato para acolher meninas pobres. Os autores demonstram que o Orfanato São José, ao acolher e educar meninas pobres, órfãs e saudáveis, se tornou mais que uma instituição beneficente, mas também um fornecedor de empregadas domésticas disciplinadas para os lares das elites de Goiás.
Já no artigo Entre a caridade e a assistência: a criação e o funcionamento do hospital da caridade em Viana do Castelo (séculos XVIII-XIX), Alexandra Esteves debruça-se sobre a assistência a velhice em Portugal, campo pouco debatido no âmbito historiográfico. Ao discorrer sobre os estudos da pobreza e da velhice a autora demonstra como este recorte geracional vai gradativamente tornar-se uma problemática assistencial / caritativa para os mais bem aquinhoados que viam no auxílio a este pobre merecedor um dos possíveis caminhos para salvação de sua alma. Centrada na experiência do Hospital de Viana do Castelo e sua irmandade mantenedora, a autora demonstra como este aparato assistencial torna-se um dos locus privilegiado dos cuidados com a velhice, que ao longo do século vai se transformando e expandindo suas atribuições com o intuito de se adaptar as novas demandas socioeconômicas e políticas urgidas do período analisado. Esteves ainda destaca a importância desta instituição hospitalar na economia da salvação local, pois financiar e manter as atividades da entidade encurtava o caminho para o céu e capitalizava em prestígio social, tornando sua irmandade uma importante ferramenta de poder e alvo de disputas. Calcada em um rigoroso trabalho empírico a autora demonstra o alargamento das funções hospitalares por meio do atendimento a um conjunto multifacetado de indivíduos, deixando de preparar para a boa morte para centrar-se no prolongamento da vida.
De outro lado, o texto de Alcileide Cabral do Nascimento, intitulado Entre a caridade e o saber médico: os embates em torno da assistência às crianças abandonadas no Recife (1840-1860), traz uma acurada análise acerca da assistência à infância considerada desvalida na cidade de Recife em meados do século XIX. Entendida como um espaço urbano caótico e de difícil controle salutar, no qual os problemas sociais se avolumavam ano após ano, a cidade materializava em sua estrutura social e edificada os contrastes da modernidade, medo das epidemias, dos amontoados, dos esgotos, do ar nauseabundo e dos indivíduos considerados desviantes, que por sua vez, poderiam colocar em xeque a ordem social vigente. Dentre os personagens lôbregos presentes no imaginário burguês, a autora centra suas análises no problema das crianças abandonadas e sua relação com a roda dos expostos. Erigida para salvaguardar a vida das crianças – bem como a moral familiar – impedindo-as de se transformarem em futuros transgressores, a roda dos expostos foi paulatinamente se transformando em um problema de salubridade que exigia a intervenção médica. O embate entre caridade e ciência, representada pela medicina-higienista, se deu não sem percalços, como bem analisa a autora, culminando no Regulamento dos Estabelecimentos de Caridade de 1847 que instituía a regulação dos mesmos pela corporação médica que vigiava, ordenava e purgava sua esfera de atuação. Controlando e normatizando a vida das crianças, das mulheres, das amas de leites e das famílias pobres, que faziam usos da Roda dos Expostos, o saber médico tornou-se hegemônico, responsabilizando-se pelo porvir da população pueril. Como relata a autora, este processo, contudo, não foi automático e tampouco passivo, mas sim, permeado por disputas e resistências que movimentam as relações sociais.
Em “Por un beso de tu boca”: assistência à saúde bucal infantil na revista Salud y Sanidad da Colômbia (década de 1930) Iranilson Buriti analisa os discursos médico-higienistas de profissionais dentistas veiculados em um periódico especializado intitulado Salud y Sanidad pertencente ao Departamento Nacional de Higiene de Bogotá. Tendo como alvo principal a família e a infância estes profissionais da saúde buscaram cercar a população de discursos normatizadores que visavam criar um corpo social hígido capaz de contribuir com o desenvolvimento nacional. Criar indivíduos saudáveis, disciplinados e produtivos era indispensável para uma nação que se queria construir como moderna, por isso cada parte do corpo, desde a mais tenra idade, deveria ser escrutinada com a finalidade de impor sobre ele um saber / poder que promoveria a ordem e afastaria todas as possibilidades de fragilização da vida, do biológico. Neste contexto, de acordo com as análises do autor, a saúde bucal das crianças fazia parte de um projeto civilizador do qual a mãe e a escola eram peças fundamentais, pois presentes em diferentes momentos da infância, ambas construiriam um ambiente bucal saudável envolvendo a língua, os lábios, o hálito, a manducação e o prazer em consonância com os modelos emergentes de civilidade.
Em Infância e morte na Região Carbonífera: os discursos médicos sanitários sobre a mortalidade infantil no sul de Santa Catarina, Ismael Gonçalves Alves apresenta os discursos sobre a mortalidade infantil, produzidos pela corporação médica da Região Carbonífera Catarinense. Partindo do crescimento populacional gerado pelas atividades mineradoras e das problemáticas ocasionadas pela falta de salubridade das vilas operárias, que geravam baixas do trabalho e uma série de problemas sanitários, o autor analisa a atuação dos médicos locais no processo de higienização da região. Escolhendo como alvo principal de suas ações a criança – futuros trabalhadores – os médicos locais instituíram uma série de práticas normativas e racionais que deveriam ser aplicadas no ambiente familiar. Condenando as tradicionais práticas de cuidados infantis executadas pelas mulheres, e não a pauperização provocada pelo processo de industrialização, os médicos instituíram uma série de discursos que culpabilizavam as mães pelos altos índices de mortalidade infantil, requerendo, desta forma, uma drástica mudança de hábitos pautada nos mais modernos comezinhos da medicina. Para o autor, consideradas ignorantes e apegadas na tradição, as mães foram alvo de um indicioso processo de aculturação que visava medicalizar a maternidade, transformando as mulheres em aliadas dos médicos e únicas responsáveis pelo bem estar de sua prole.
Já o artigo dedicado a atuação associações femininas da província de Buenos Aires La organización normativa de la Comisión Central de Señoras Cooperadoras Salesianas: género y sociabilidad. Argentina, 1900-1926, de Lucía Bracamonte, analisa as relações e atividades institucionais das cooperadoras Salesianas na assistência aos necessitados na Capital Federal. Por meio de um atencioso trabalho empírico com a documentação produzida pela Pia União, Bracamonte desvela os limites de gênero impostos às práticas assistências desenvolvidas pelas mulheres. Através das relações instituídas entre sacerdotes e cooperadoras o artigo desvela as tensões, conflitos e consensos estabelecidos em torno da construção de seus regulamentos e sua efetivação no campo prático, estabelecido por um processo contínuo de negociação entre associadas e representantes eclesiásticos. Ademais, as normas e os regulamentos analisados descortinam, em partes, as práticas e sociabilidades desenvolvidas entre mulheres de classe média, que no âmbito associativo reproduziam normas e valores burgueses que deveriam reger sua atuação na esfera pública. Centrada nessas relações, a autora demonstra como a participação destas mulheres no âmbito assistencial deu-se por meio de um recorte de classe e gênero, mas que apesar das restrições e das fortes amarras que delimitavam seu espaço de atuação dentro da estrutura caritativa, utilizaram-se das normas e regulamentos para expandir sua ação social. Assim, manuseando elementos jurídicos, contábeis e políticos, atinentes a agremiação, estas mulheres extrapolaram os limites estabelecidos transformando a prática assistencial num gatilho de protagonismo social.
Segue por caminhos semelhantes o artigo proposto por Amalia Morales Villena e Soledad Vieitez Cerdeño intitulado Intervención femenina en el mundo rural franquista (España, 1939- 1975). Las cátedras ambulantes de la Sección Femenina de la Falange Española y su labor de divulgación sanitaria y social. Em seu texto, as autoras analisam a participação das mulheres no trabalho assistencial durante o período ditatorial espanhol. Para isso, elencaram como foco principal de sua investigação a Sección Feminina de la Falange (SF), agremiação política de extrema direita que buscava reunir em torno de ideais nacionalistas e conservadores o maior número mulheres possível na construção de uma nova Espanha – moldada pelo discurso franquista. Enredada por um discurso de gênero conservador a SF foi responsável por difundir a ideologia nacional-sindicalista junto às mulheres e suas famílias e, para tal utilizou-se do trabalho assistencial como instrumento de persuasão. Levando a assistência aos mais recônditos cantões da Espanha a SF tornou-se responsável por reordenar e moralizar as relações familiares, adequando-as as necessidades do novo regime vigente. Por meio de cursos populares, noções de puericultura, dietética, trabalhos manuais, entre outros, as falangistas criaram um espaço propício e legítimo de intervenção, alinhando, formando e instrumentalizando outras mulheres a cumprir a função de anjo do lar e responsável unidade moral de seu grupo familiar. No entanto, como ressaltam as autoras, apesar de ser um espaço de gênero controlado a SF possibilitou a suas afiliadas participar da esfera pública, utilizando-se do trabalho assistencial como uma ferramenta de inserção social, que por sua vez, criava um espaço autorizado de poder.
Como se pode perceber, tanto na América Latina como nos países ibéricos a assistência era ofertada por diversas entidades caritativas e / ou filantrópicas, como as confrarias e irmandades, as sociedades civis e religiosas, associações de classe ou étnicas, as fundações assistenciais e outros grupos comunitários. No Brasil, as instituições privadas, especialmente no campo da assistência à saúde, tinham uma função pública, mesmo porque recebiam subvenção do Estado para prestar assistência gratuita às camadas mais pobres da população. No Estado liberal, tanto no Império quanto na Primeira República, a ação dos poderes públicos era muito pontual – se incumbiam de prestar assistência aos indigentes em épocas de calamidades como as de epidemias, em casos de acidentes, encarregando-se também assistência psiquiátrica. A crise do capitalismo em 1929, entretanto, colocará em pauta a questão social, demandando maior intervenção do Estado, que passará a incorporar e desenvolver políticas sociais e de assistência, a fim de minimizar os danos e tensões próprios do processo de acumulação de capital.
No artigo A província do Espírito Santo versus “epidemias reinantes”: ações de Estado e mobilização popular na passagem da febre amarela e do cólera (1850-1856) escrito por Sebastião Pimentel Franco e André Nogueira busca discutir as práticas de assistência e contenção – públicas e privadas – erigidas em torno das epidemias de febre amarela e cólera que assolaram a província do Espirito Santo em meados do século XIX, mobilizando diversos segmentos sociais em ações que visavam minorar e extirpar seus impactos sobre o conjunto da população. O artigo ainda demonstra como a passagem de um evento epidêmico pode mudar as relações, práticas e sociabilidades, tornando-se, em muitos casos, uma espécie “lição” que exige reflexões e respostas múltiplas para interromper seu ciclo de dor e mortes. Baseados nestas premissas, os autores analisam as diversas iniciativas públicas – arquitetadas pelo Estado – e privadas, fruto da mobilização popular – que de diferentes formas buscaram interpor os reflexos negativos da febre amarela e do cólera sobre o cotidiano e a vida das pessoas. Franco e Nogueira buscam também desvelar as práticas sociais e os laços de solidariedade que movimentaram as populações locais no combate as epidemias, pois frente à ineficiência ou total ausência do Estado restavam-lhes construírem alternativas assistências com vistas a interromper o rastro de morte deixado pelas doenças, desvelando a importância das iniciativas populares na complementariedade ou suplantação dos empreendimentos estatais.
O artigo A quem recorrer? – o serviço de pronto socorro do hospital das clínicas de São Paulo, 1930-1950, proposto por André Mota, nos apresenta outra faceta da assistência médico-hospitalar. A partir do crescimento populacional da cidade de São Paulo – inflada pelos movimentos migratórios da década de 1930 – o autor adentra nos problemas da gerência da população em seus detalhes: ocupações desordenadas, aglomerados populacionais, falta de infraestrutura e problemas endêmicos, que exigiam por parte da administração pública um posicionamento com relação à assistência às camadas populares urbanas. É neste turbilhão de precariedades ocasionado pela inobservância dos administradores públicos das necessidades populacionais que sistema hospitalar da cidade, representando especialmente pela Santa Casa de Misericórdia, é repensado a fim de minimizar os impactos da pobreza sobre o conjunto da população. Assim, em 1944, foi instituído Serviço de Pronto Socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo ligado à Faculdade de Medicina da USP, que ofereceria um leque considerável de serviços médico-hospitalares destinados aos paulistanos, desafogando assim a já colapsada Santa Casa. Imbuído dos mais modernos procedimentos médicos o pronto socorro buscaria unir a assistência à população ao treinamento de seus alunos que a partir daquele momento teriam um locus privilegiado para unir teoria e prática. No entanto, como demonstra o autor, o funcionamento do Hospital de Clinicas (HC) enfrentou frequentes problemas que dificultavam seu pleno funcionamento impossibilitando a execução de inúmeras demandas para as quais foi pensado. De acordo com a narrativa do autor, fosse pela complexidade de sua gestão, inoperância burocrática ou pela falta de articulação entre diversos os setores da administração pública, o Pronto Socorro do HC foi levado rapidamente à exaustão afastando-se de seus objetivos iniciais que eram os cuidados emergenciais, esta situação, por sua vez, desvelou toda a complexidade que existe na gestão hospitalar de uma grande cidade como São Paulo.
No texto intitulado Sociedade, política e saúde na Bahia (1930-1950) Christiane Maria Cruz de Souza discute o projeto de ampliação dos serviços de assistência e previdência social desenvolvido durante os governos de Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas. A autora pretende demonstrar que a política social implantada nesse período tinha por objetivo amenizar as tensões entre governo, empresários e trabalhadores em uma Bahia abalada por dissenções políticas e conflitos motivados pelo desemprego, pela carestia e pela crise habitacional. Em período em que a saúde se tornava um “bem público”, a escassez de recursos e a necessidade de construir equipamentos de saúde favoreceram arranjos entre instâncias da administração pública e entidades privadas, dentre estas os Institutos de Aposentadoria e Pensões. Para discutir o processo de conformação do sistema previdenciário no país e na Bahia e a constituição de uma rede de assistência médico-hospitalar voltada para assistência do trabalhador urbano, a autora toma como caso exemplar a construção do Hospital do IAPETC (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas), atual Hospital Ana Nery, em Salvador, Bahia. A trajetória desta instituição de saúde é representativa das vitórias e derrotas, das fragilidades, tensões, conflitos e negociações no âmbito de diferentes projetos políticos e de modelos de assistência à saúde no Brasil e na Bahia no período estudado.
Trabalhando com o patrimônio da assistência e lugares de memória Viviane Trindade Borges em Patrimônio carcerário: a patrimonilialização de espaços prisionais no Brasil debruça-se sobre um tema que é pouco discutido nos estudos sobre a assistência: as prisões. Ao elencar como objeto de análise o espaço prisional, a autora demonstra que devido suas múltiplas dinâmicas sociais, estes lugares tornam-se de difícil interpretação e aceitação pelo tecido social. Por se tratarem de espaços marginais e altamente estigmatizados, as prisões, enquanto patrimônio cultural, foram e são deixadas a margem das políticas públicas patrimonialização, contudo, de acordo com a autora, este cenário vem se reconfigurando nos últimos anos devido as mobilizações sociais relacionadas às políticas de memória concernentes ao regime militar, que pressionam pela preservação destas memórias marginais. Neste escopo, Borges centra sua discussão na ausência de tombamentos em nível federal e o rápido processo de destruição de edificações carcerárias que datam do século XX, fruto da forte pressão imobiliária presente nos centros urbanos. Por outro lado, a autora chama atenção para a amplitude da categoria patrimônio carcerário, que não se restringe apenas à sua dimensão edificada, mas que também engloba aspectos imateriais e materiais dos sujeitos envolvidos no cotidiano prisional. Debruçada sobre estas questões, a autora aponta para toda a complexidade que envolve este campo desvelando embates e desafios que emergem das relações de patrimonialização entre a sociedade e a administração pública.
Ao reunir diferentes temáticas e pesquisadores de diversos lugares do país, assim como da América Latina e da Península Ibérica, esse dossiê pretende contribuir para ampliar a reflexão sobre as diferentes vertentes da assistência – a caridade, a filantropia, bem como o processo formação e instituição do Estado de Bem-estar. Busca, igualmente, fomentar o debate em torno do discurso subjacente às práticas caritativas e assistenciais, relacionando-o ao contexto político, sociocultural e econômico, bem como do papel representado e interesses dos protagonistas das ações assistencialistas. Espera-se que o leitor possa usá-los como referência para identificar e comparar os modelos, conhecer e analisar a organização e o funcionamento de associações benemerentes e filantrópicas, refletir sobre a ‘questão social’, o papel e a intervenção do Estado na oferta de assistência aos desvalidos e trabalhadores.
Acompanhado este conjunto de textos temos o artigo de Thiago Tremonte de Lemos intitulado Mémoire oublieuse: possível contribuição “involuntária” de Patrick Modiano à narrativa do passado que disserta sobre as potencialidades da memória como fonte de construção do passado. No artigo Os ícones e seus signos: a aplicabilidade das imagens nas pesquisas e estudo da História do Império Bizantino de Paulo Augusto Tamanini aborda os ícones bizantinos em sua historicidade, em sua feitura estética e diálogo com a Teologia da Igreja Ortodoxa Oriental, afastando-se das interpretações exclusivamente teológicas. Na continuidade apresentase o texto Mulheres e a pintura paranaense: relação entre arte e gênero (Fim do século XIX e começo do século XX) de autoria de Claudia Priori que aborda a presença e atuação de mulheres no campo da arte paranaense, entre os séculos XIX e XX, debruçando-se sobre os espaços ocupados por elas no cenário artístico e suas trajetórias, analisando como eram vistas e representadas pela sociedade. Em O livreiro que prefaciava (e os livros roubados); os prefácios de Francisco Rolland e a circulação de livros no Império Português ao fim do século XVIII de Claudio Denipoti apresenta a trajetória do livreiro e impressor francês radicado em Lisboa, Francisco Rolland, que bem inserido nos círculos de letrados escrevia paratextos para suas edições, nos quais elabora padrões discursivos relativos às questões fundamentais do mercado de livros português do fim do século XVIII, como a utilidade, a necessidade, a instrução e o serviço ao império. De Amilcar Torrão Filho o artigo Melancolia e alteridade nos Tristes Trópicos brasileiros: Claude Lévi-Strauss leitor de Jean de Léry, aborda a influência de Léry sobre Lévi-Strauss, de quem este último herda a visão melancólica do encontro entre culturas, sendo considerado pelo antropólogo como o primeiro, senão também o último etnógrafo, que viu a um Paraíso em seus últimos momentos antes da destruição.
Boa leitura!
Notas
1. LOPES, Maria Antónia. Protecção social em Portugal na idade moderna. Coimbra, PT: Imprensa da Universidade de Coimbra / Coimbra University Press, 1 de dez de 2010, p.29-33.
2. Os hospitais, por exemplo, tanto serviam de refúgio para peregrinos e viajantes e de asilo para os incapazes e indesejados como espaço para tratar os doentes. cf. WOOLF, Stuart. Ideologias e práticas de caridade na Europa ocidental do Antigo Regime (Prefácio) In: SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português (1500-1800). Lisboa: CNCDP, 1997, p. 07-13.
3. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
4. GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia: 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 07.
5. ABREU, Laurinda. O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa, PT: Gradiva Publicações, 2014, p. 22.
6. LOPES, op. cit., p.36-37.
Christiane Maria Cruz de Souza
Ismael Gonçalves Alves
SOUZA, Christiane Maria Cruz de; ALVES, Ismael Gonçalves. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.65, n.1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]