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Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore
A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.
É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.
A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.
Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.
O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).
Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.
Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.
O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).
Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).
A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.
Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).
Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).
Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).
A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?
Referências
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).
TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.
Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: lucas.pereira@ifmg.edu.br.
HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].
Catholic orientalism: Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries) – XAVIER; ŽUPANOV (RH-USP)
XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Inês G.. Catholic orientalism. Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015. 416 pp. Resenha de: GONÇALVES, Margareth Almeida. “Orientalismos” e arquivos esquecidos da época moderna. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo 2018.
Catholic orientalism, publicado 37 anos após a edição princeps Orientalism por Edward Said, é um livro seminal aos estudos sobre a construção da(s) alteridade(s) indiana(s) na primeira mundialização ocidental através da grade do catolicismo, percorrendo percursos de teoria e metodologia distintos do pensador palestino. A contribuição de Catholic orientalism insere-se no amplo esteio de estudos críticos das últimas décadas à perspectiva saideana de imutabilidade e congelamento das relações de dominação. Tal abordagem ignora tanto as ambivalências das relações de poder quanto o componente de agência do “dominando”, sucessivamente subtraído da análise no complexo quadro dos processos de circulação e apropriação de conhecimento e informação dos encontros culturais. Das páginas de Catholic orientalism adquirem espessura epistemológica os repertórios de escrita do primeiro orientalismo, na ideia de construção e imaginação europeias sobre o Oriente por um dossel do catolicismo de Portugal e Roma papal na Época Moderna. Trata-se de uma renovação às análises da produção de saberes sobre a Índia, propiciadora de inflexões ao campo de conhecimento da historiografia do Império português, com desdobramentos mais amplos no rompimento de consensos reducionistas das conexões entre Ocidente e Oriente providos pelas versões do orientalismo francês e anglo-saxônico do final dos Setecentos. O conceito de “orientalismo católico” introduzido pelas autoras, Ângela Barreto Xavier e Inês Županov, evoca da invisibilidade um vasto arquivo documental de saberes e de práticas de conhecimento compostos no âmbito do Império português sobre a Índia. Esse conjunto de saberes foi remetido ao esquecimento no triunfo das abordagens atravessadas pelo crivo da razão da ciência moderna, paradigma dominante a partir do século XVIII. Redesenhar o mapa dos saberes católicos – os lugares de produção e as operações escriturárias – configurados em escala global à Época Moderna organiza as três seções de Catholic orientalism, em que sobressaem sensíveis percursos intelectuais por vasta historiografia, na combinação de sofisticado debate teórico e de metodologias heterodoxas das perspetivas foucaultinas e da chamada “grounded theory”. Entre os séculos XVI e XVIII, perscrutam-se grades de conhecimento e relações de poder sobre a Índia simultaneamente nas perspetivas do micro e macro, do local e global, por meio dos roteiros do catolicismo. De maneira distinta dos orientalismos dos Oitocentos, o orientalismo católico caracteriza-se pela natureza fracionada das instituições, dos conhecimentos e arquivos assinalados pela dispersão da produção. A fragmentação contribuiu ao apagamento de corpora dos conhecimentos orientalistas produzidos pelo catolicismo imperial de Portugal e igualmente da Roma papalina, importante centro produtor de abordagens sobre o Oriente na crescente sistematização de saberes asiáticos na fundação da congregação de Propaganda Fide, em 1622, com irradiações nos Seiscentos e séculos ulteriores. O livro propõe uma periodização do catolicismo entre os séculos XVI e XVIII, balizamentos entre os capítulos primeiro e oitavo. Uma das inúmeras qualidades da estrutura do livro está no eixo comparativo da análise seja com os espaços do Atlântico português, seja com a América espanhola. Destaca-se, por sua vez, em oferecer excelentes insights a futuras investigações e estudos de caso em torno do que podemos denominar intuitivamente de um “americanismo católico”, em desdobramentos a perspectivas já trilhadas por Serge Gruzinski e Jorge Cañizares-Esguerra, ambos citados em segmentos variados do livro.
Dentre a vasta produção das autoras, marcada por um acúmulo de investigação e erudição, salientam-se as obras sobre os jesuítas e franciscanos na Índia, respectivamente Disputed missions: Jesuit experiments and Brahmanical knowledge in seventeenth century India (1999) de Inês Županov, e A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII (2008) de Ângela Barreto Xavier. Catholic orientalism resulta da interlocução desafiante entre duas imponentes especialistas de presenças portuguesa, italiana e francesa na Ásia à Época Moderna, em que ganha o leitor, constantemente desafiado pelo fluxo narrativo vertiginoso de intensa pesquisa e interlocuções historiográficas cerradas.
A primeira seção, Imperial itineraries, consta de três capítulos. O primeiro, Making India classic: exotic and oriental, reflete as condições de emergência de saberes sobre a Índia por uma geração dos Quinhentos que orientalizou a Índia e fabricou Portugal mimetizado na Antiguidade romana. Duas categorias fulcrais à formação de corpora escriturários da Índia na primeira Época Moderna são expostas: orientalismo e classicismo. Delineia-se a imaginação cultural e política de Portugal no Oriente no eixo de similitude entre Portugal e o Império romano – a apropriação e ressignificação da Antiguidade pela expansão marítima, o protagonismo dos portugueses e a simbologia da nova Idade de Ouro. Tal conexão articula João de Barros (1496-1570), o Lívio português, e João de Castro (1500-48), o Cipião africano, ao universo dos Quinhentos. A associação entre o humanista, feitor da Casa da Índia, e o vice-rei do Estado da Índia permite às autoras a análise fecunda de conexões entre texto e imagética, como na referência à invenção da Índia na composição de Ásia na prodigiosa tapeçaria em estilo flamengo, ilustrando a vitória no segundo cerco de Diu (1546) e a entrada triunfal de João de Castro em Goa, atualmente no Kunsthistorisches Museum em Viena.
A formulação de modalidades de compreensão e narração sobre o sul asiático no século XVI estriba um primeiro período assinalado pela fragmentação da informação, em que predominam o controle e a hegemonia dos agentes das comunidades locais. A segunda metade dos Quinhentos distingue-se pela expansiva relevância política e a complexidade da produção de conhecimento sobre a Índia em compilações como o tratado de Garcia de Orta (Os colóquios dos simples e drogas da Índia, 1563), a geografia de Fernão Vaz Dourado (Atlas, 1571), as narrativas históricas de Fernão Lopes de Castanheda (História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, 1551) em ampliação do legado de João de Barros (Da Asia, 1552). Incluem-se ainda o poema épico de Camões (Os Lusíadas, 1578) e o relato de aventuras de Fernão Mendes Pinto (Peregrinaçam, primeira edição em 1664).
O segundo capítulo, Empire and the village, avança na análise da montagem de uma ciência da administração, suporte das práticas de governança. Na esteira das abordagens de Christopher Barly e Bernard S. Cohn para o Império britânico destaca-se a gênese da formulação de conhecimentos específicos da prática de governação na formação de uma proto-burocracia de funcionários, em que as autoras oferecem uma revisão à historiografia sobre a Índia na Alta Idade Moderna e a produção do que denominam conhecimento útil e pragmático. Assinalam o papel das populações nativas na produção de uma ciência da administração nos espaços coloniais na Índia. São abundantes as informações propiciadas por fontes como o Foral de Mexia de 1526 no mapeamento da população e dos territórios goeses, suprindo o centro do Império de informações obtidas da interação entre colonizados e agentes régios. O capítulo tangencia políticas de governo dos vice-reis, no exemplo de d. João de Castro (1545-1548) que, na esteira do governador Martim Afonso de Souza (1542-1545), articulou poder político e construção de memória, geradora de saberes sobre os territórios. Anteriores às imagens publicadas pelo insigne livro do neerlandês Jan Huygen van Linschoten (1563-1611) ao final do século XVI, as ilustrações de variados costumes das partes dos mundos portugueses além do cabo da Boa Esperança que constam do Codex Casanatense foram produzidas durante o governo de d. João de Castro, desvelando um manancial de surpreendente colorido dos súditos orientais do monarca português. Outros conjuntos documentais relevantes integram o arquivo colonial entre os quais a compilação da comunicação entre autoridade régia e o vice-rei em Goa, que compõe o Livro das Monções, no recurso ao vocábulo de alusão aos circuitos sazonais que condicionaram os deslocamentos entre Ásia e o Atlântico dos Quinhentos ao século XVIII. A riqueza do volume de fontes, embora disperso, da primeira mundialização europeia combina a escala local à global nos processos de decision-making imperial. A primeira seção do livro encerra a ampliação da análise do Império dos trópicos no foco dos atores em ação na posse da natureza na enunciação de uma história natural: médicos, mercadores e missionários.
O terceiro capítulo, Natural history: physicians, merchants, and missionaries, inicia pela menção ao médico cristão novo Garcia Orta em um percurso através de obras variadas que projetam o acúmulo de conhecimento sobre a natureza dos espaços do Leste por meio da disciplina de história natural conformando o mapeamento dos lugares de produção e dos produtores de saberes de botânica, farmacologia, das artes médicas de curar. Incluem-se conhecimentos relacionados à história natural que integraram interesses fragmentados de flora e fauna locais, como também de drogas e especiarias medicinais aplicadas a doenças. Esses escritos projetam tópicas semelhantes aos da literatura de viagem identificada à presença portuguesa na Ásia e Brasil. Xavier e Županov incluem a parte do Atlântico e da América portuguesa na montagem de arquivos de história natural em que a concepção de utilidade foi central no modus operandi português; adquire curso a positivação da experiência direta.
Catholic meridian, título do segundo segmento do livro, unifica três capítulos na consolidação de regimes de saberes do catolicismo acerca da sociedade e religiões locais pelos poderes interativos e competitivos de disputa de conhecimento e território entre monarquias ibéricas, papado e a França. Distribuídos pelos centros emissores da rede de missionários, os agentes foram jesuítas, franciscanos e religiosos vinculados à ação da Propaganda Fide. Segundo as autoras, o orientalismo católico transformou-se em uma entidade compósita e cosmopolita no ambiente de disputas da Europa católica no sul da Ásia.
Em Religion and civility in “Brahmanism”: Jesuit experiments, quarto capítulo e primeiro da segunda unidade, o protagonismo está nos missionários da Companhia de Jesus, em que a produção discursiva segmenta religião e ritos civis. A longa tradição dos jesuítas na valorização do estudo das línguas locais concretizou-se na produção de gramáticas e vocabulários. A opção jesuítica pelo “diálogo cultural” através de uma estratégia evangelizadora fundada no método da acomodação influiu sobremaneira a redefinição da idolatria pelo traço civilizacional indiano, defendida por alguns jesuítas nos episódios da controvérsia dos ritos malabares. A interação com os especialistas religiosos indianos intervém nas etnografias e descrições do corpus textual jesuítico. De acordo com Xavier e Županov, a controvérsia dos ritos e costumes no sul da Índia constitui um dos momentos fundadores do orientalismo católico como “ciência do outro” no manejo dos interesses europeus. Também a metodologia dos missionários católicos, expurgada dos fins soteriológicos, aproxima-se dos preceitos de sustentação científica do orientalismo britânico desenvolvido pela Asian Society em Calcutá, fundada nos moldes da Royal Society de Londres por William Jones (1726-1794).
Franciscan orientalism é o título do capítulo seguinte, nos termos das autoras, um guia do orientalismo franciscano nos séculos XVII e XVIII. Embora disperso e não unificado como o corpus documental jesuítico, centralizado em Roma, o arquivo escriturário franciscano manifesta extraordinária fortuna de textos de corografia e história, em que o preceito teológico e de letramento do medievo de valorização do contato com o mundo natural e das práticas de coleta perdura em obras escritas por franciscanos da Índia. Segundo as autoras, as práticas e os regimes de escrita orientalistas implicados nas obras de franciscanos amoldaram a construção da Índia portuguesa. O percurso através de bibliotecas diversas de franciscanos em Lisboa desvela acervos de manuscritos e impressos do orientalismo franciscano em coleções de títulos de línguas orientais, documentos sobre a Índia em memórias, textos de filosofia, história, “ciências”, que apontam para um diverso cânone orientalista. Por sua vez, os franciscanos da Índia representam perspectivas crioulas que vindicaram com tenacidade o pertencimento ao Império português. Conquista espiritual do Oriente (1636), tratado em três volumes de Paulo da Trindade (1570-1651), franciscano macaense da província de São Tomé da Índia da Regular Observância, inscreve-se no repertório da escrita de uma história geral da ordem e incorpora ademais a tese da anterioridade dos frades menores na Ásia frente aos jesuítas e a concomitante defesa de autonomia dos franciscanos da Índia em relação aos do Reino. Nesse mesmo horizonte intelectual, está Relação defensiva dos filhos da Índia oriental (1640) de frei Miguel da Purificação, confrade de Paulo Trindade. Originário de Tarapor na Índia, Purificação, em périplo globalizado, frequentou a cúria romana de Urbano VIII e a corte Habsburgo de Filipe IV nos anos de 1630. Note-se no capítulo a variedade da escrita franciscana no pertencimento a distintas comunidades imaginárias de conhecimento dirigidas por sua vez a audiências diferentes. Muitas formas de pensar e tematizar o orientalismo. A associação entre orientalismo e imperialismo português observa um traço indelével do regime da escrita franciscana de poder. Diferenças entre a escrita de leigos e religiosos, de obras produzidas na metrópole e na colônia e das formas de apropriação das tradições grega e romana forjam parâmetros do repertório escriturário não somente de franciscanos, mas extensivo ao espectro textual dos orientalismos na historiografia da Época Moderna.
O sexto capítulo encerra a segunda parte do livro no percurso por inúmeras gramáticas, vocabulários produzidos por traduções de missionários jesuítas e franciscanos. As autoras exploram a variedade e riqueza de trabalho linguístico seminal ao orientalismo católico, posteriormente base dos novos orientalismos francês e britânico.
A terceira e última seção – Contested knowledge – reúne dois capítulos que analisam a consolidação da dominação imperial portuguesa e a fase derradeira do primeiro orientalismo. O sétimo capítulo discorre acerca das disputas pelo lugar de ancestralidade do cristianismo na Índia entre as elites locais brâmane e charodo, na condição de descendentes únicos de Noé e do rei Gaspar, um dos três reis magos da tradição cristã. Nas primeiras décadas dos Setecentos, na trilha fundadora do que as autoras designam por “orientalismo de dentro”, inaugurada anteriormente por Mateus de Castro (1594-1677) no breve tratado Espelho de brâmanes – a notável expressão da voz bramânica -, ampliam-se os escritos redigidos por membros emergentes do clero nativo nos exemplos de Auréola dos índios (1702) de Antônio João José Frias e na letra de Leonardo Paes no Promptuario de deffinições indicas (1713). No mesmo diapasão de um regime de escrita orientalista de autoria dos grupos nativos situa-se o tratado Espada de David contra o Golias do bramanismo (c. 1710) de João da Cunha Jacques que exalta o contributo dos charodos à Índia cristã. A singularidade desses grupos desponta no controle da linguagem do colonizador, alentando escritas imaginativas que atendem interesses de grupos de estratos superiores nativos. Na argumentação do capítulo, destaca-se a relevância atribuída ao componente de agência aos grupos superiores autóctones no fortalecimento das posições internas da hierarquia de poderes locais na perpetuação da dominação imperial portuguesa.
O oitavo capítulo, Archives and the end of Catholic orientalism, expõe a fase derradeira do orientalismo católico. As autoras delineiam três itinerários do conhecimento orientalista no ocaso do século XVIII. Por breve período, Roma tornou-se o centro do orientalismo católico europeu – destaca-se a análise do percurso da produção intelectual do carmelita descalço croata Paulinus a S. Bartholomaeo (1748-1806). Um segundo itinerário tem por foco a constituição do orientalismo por Paris em que cabe atentar ao lugar dos acervos jesuítas na Índia francesa de Pondicherry no mercado de obras sobre o Oriente no período anterior à supressão da Companhia de Jesus entre 1759, em Portugal, e 1773, afinal em Roma, arquivos que assinalam a fundação dos estudos de indologia na França. E, o terceiro itinerário, da Índia e Londres britânicas, em que o orientalismo católico, misturado e baseado no conhecimento local, foi apropriado e invisibilizado pela nova composição imperialista.
O epílogo do livro encerra o opróbio do orientalismo católico no recurso a uma análise fina e densa da cidade de Goa do vice-reinado de Francisco de Assis de Távora (1750-1754). Viceja-se o ápice do esplendor da corte do marquês de Távora em Goa e do anúncio paradoxal do declínio do orientalismo católico. A presença de tópicas em torno de Alexandre o Grande no imaginário português repete-se no universo goês, uma espécie do que as autoras nomeiam de “novo totemismo”. A conclusão de Catholic orientalism, na reflexão da conexão entre orientalismo e o universo da ópera à época dos Távora em Goa – exibição das peças operísticas Tragédia de Poro e Adolonimo de Sidonia durante as festas de aclamação do rei d. José I em dezembro de 1751 na cidade de Goa -, persevera no registro a Edward Said, agora em Cultura e imperialismo. O futuro drama dos Távora, condenados por regicídio e executados em 1759, constitui uma metáfora da agonia do Portugal pré-moderno durante o consulado pombalino e pari passu ao deslocamento do orientalismo português dos séculos anteriores à pecha de saber menor, contestado.
À glosa de encerramento da leitura, nos defrontamos com um livro da envergadura de um clássico, de leitura inescapável aos estudos sobre a Índia em que o catolicismo foi parte insuperável na produção do Oriente na Europa e do Oriente filtrado pelo catolicismo dos indianos na Época Moderna. Há muito que aprender na análise primorosa de Xavier e Županov em perspectiva que evita estereótipos e amplia sobremaneira horizontes através de debates sobre os impérios ibéricos, o papado e a produção de saberes sobre a Índia na Época Moderna, sombreados pelos orientalismos francês e britânico do final dos Setecentos e século XIX.
Referências
XAVIER, Ângela Barreto & ŽUPANOV, Inês G. Catholic orientalism. Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015, 416 p. [ Links ]
1Resenha do livro: XAVIER, Ângela Barreto & ŽUPANOV, Inês G.Catholic orientalism. Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015, 416 p.
Margareth Almeida Gonçalves – Margareth de Almeida Gonçalves é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, 2002). É professora associada do Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História – PPHR da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: mdagoncalves@gmail.com.
O nascimento do Brasil e outros ensaios – OLIVEIRA (Tempo)
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Resenha de GARCIA, Elisa Frühauf. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Tempo, v.24, n.1, Niterói jan./abr. 2018.
Em O nascimento do Brasil e outros ensaios, João Pacheco de Oliveira reúne nove textos elaborados nos últimos anos, originalmente publicados como artigos em coletâneas e periódicos ou apresentados em congressos e afins. Organizados em formato de livro, discutem temas relacionados aos povos indígenas que, em alguma medida, representam a trajetória do autor e suas opções epistemológicas. Professor titular de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) desde 1997 e um dos mais influentes antropólogos de sua geração, João Pacheco começou seu percurso profissional realizando pesquisa de campo entre os Ticuna na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Dedicou-se também ao estudo de políticas públicas e, desde meados da década de 1990, vem desenvolvendo pesquisas sobre os povos indígenas do Nordeste. Lançado em 2016, o livro recebeu da ANPOCS em 2017 o prêmio de Melhor Obra Científica.
Os capítulos refletem as preocupações que o autor demonstrou já no início de sua trajetória com o estudo da condição indígena a partir do colonialismo e das interações entre os diferentes segmentos sociais. O colonialismo, neste caso, não se restringe ao sentido mais utilizado pelos historiadores, referindo-se ao período no qual o Brasil foi parte do império português. Trata-se de uma discussão mais ampla sobre a relação do Estado com os povos indígenas, marcada por diferentes recursos jurídicos e administrativos que limitavam a capacidade civil dos nativos. Tais dispositivos vigoraram oficialmente até a extinção da tutela pela Constituição de 1988. A implementação da mudança, contudo, encontrou uma série de entraves. Como demonstrado no capítulo 8, “Sem a tutela, uma nova moldura de nação”, os marcos legais não substituem facilmente culturas institucionais arraigadas. Alguns órgãos administrativos, sobretudo a Funai, mantiveram na prática a vigência de categorias e percepções tributárias da tutela.
A análise da atuação dos órgãos relacionados à questão indígena, considerando a legislação vigente, as culturas administrativas e as ações de funcionários orientadas pelo senso comum, nos conduz a uma questão central, a definição de quem é índio. O tema é complexo: a condição indígena no país está marcada não apenas por diferenças culturais dos povos entre si e destes em relação à sociedade envolvente, mas por aspectos históricos. Se o tema perpassa toda a trajetória de João Pacheco, foi com o trabalho sobre os povos indígenas do Nordeste que suas reflexões nesta linha adquiriram maior centralidade e densidade conceitual. O capítulo 5, “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, é uma referência imprescindível nos estudos de antropólogos e historiadores sobre a temática indígena. Fruto de uma conferência originalmente apresentada no concurso para professor titular no Museu Nacional e já publicado em outras ocasiões, contribuiu para a construção de um campo de pesquisa que vem se desenvolvendo com bastante vivacidade desde então (Oliveira, 1999 e 2011).
Ao abordar os povos indígenas do Nordeste, João Pacheco enfrentou o desafio teórico-metodológico de trabalhar com uma população cujo contato com a sociedade envolvente remete aos primórdios da construção do Brasil colonial no século XVI. Suas interações com grupos de diversas origens, tanto europeias quanto africanas, foram constantes desde então e eles não se enquadram na definição de índio caracterizada por uma alteridade cultural radical. Com frequência, pesquisadores e agentes estatais alegavam sua condição de “misturados” como desqualificadora de reivindicações políticas e de sua legitimidade como um objeto de pesquisa etnológica. Diante disso, o autor optou por problematizar a trajetória dessas populações. Apresentou os diferentes “momentos de mistura” gerados pelas políticas administrativas implementadas em um primeiro momento pelo Estado colonial português e, já no século XIX, pelo Império do Brasil. Evitou, assim, a condição indígena entendida como uma essência e forneceu os elementos conceituais para que ela fosse percebida em sua historicidade, relacionada a situações específicas.
O autor elenca três momentos fundamentais de “mistura”: os aldeamentos promovidos pelo Estado português a partir de meados do século XVI; a aplicação da legislação pombalina iniciada na década de 1750 e a dissolução das aldeias no século XIX. No primeiro momento, os índios foram sujeitos a uma política administrativa que lhes adjudicou um determinado território onde deveriam passar a viver após a inserção na sociedade colonial: as aldeias missionárias. João Pacheco não interpreta tais espaços apenas como ambientes que ameaçavam, ou mesmo extinguiam, a condição indígena a partir da “aculturação”, como então se pensava nos estudos históricos desenvolvidos no país. As aldeias são apresentadas como propulsoras da formação de novas identidades, explicadas a partir da noção de “territorialização”. Conceito-chave para os estudos nessa linha, remete ao processo pelo qual os índios, objeto de uma política colonial que os circunscreve a determinado espaço, se apropriam daquele ambiente, reformulando suas políticas identitárias em uma situação específica. O conceito fez parte das reflexões que possibilitaram uma mudança fundamental na perspectiva sobre as aldeias missionárias no Brasil colonial, cujo trabalho mais influente no âmbito historiográfico foi o de Maria Regina Celestino de Almeida (2003).
Suas reflexões a partir de uma antropologia histórica o levaram também a enfocar a questão indígena em uma perspectiva de longa duração. Para tanto, articula a análise das diversas imagens que hoje manejamos sobre o tema, em geral desencontradas e idealizadas, com seus usos e construções em momentos específicos. Os dois primeiros capítulos, “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico” e “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, abordam visões estabelecidas sobre o lugar das populações nativas em nossa história. Retomando os diferentes momentos das relações dos índios com os europeus no século XVI e analisando os processos artísticos do indianismo do século XIX, a ideia é entender e questionar a consolidação de uma percepção da história do Brasil que deliberadamente desconsiderou os povos nativos. Como demonstra o autor, a mudança recente de paradigma, com sua inclusão como agentes importantes, decisivos em vários contextos, é fundamental para explicarmos que foi a apropriação violenta de seus recursos (sua força de trabalho, suas terras e seus conhecimentos) que possibilitou a construção do Brasil. Esse processo, por sua vez, não desencadeou a extinção física e cultural dos índios, mas sua incorporação à sociedade envolvente em uma condição subordinada. Tal lógica não está restrita aos primeiros contatos, ela se reproduziu ao longo do tempo em diferentes situações à medida que se avançava “sertão adentro”.
A expansão da sociedade envolvente sobre os territórios indígenas articula-se a uma noção fundamental para a história do Brasil: a fronteira. Nos capítulos três e quatro, “A conquista do vale amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidades de trabalho compulsório” e “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual de fronteira”, o autor analisa tal expansão vinculada à extração da borracha. Para tanto, evita a ideia de uma fronteira naturalizada, que refletiria uma determinada realidade. Ao contrário, utiliza o termo como uma categoria analítica para pensar a subordinação daquela região específica a interesses econômicos externos, com grande peso internacional. Enfatiza como as análises anteriores desconsideraram a presença e a perspectiva dos povos indígenas que habitavam aqueles espaços, especialmente sua atuação em determinados tipos de seringais. A proposta é interpretar a história da região partindo das relações concretas que lá existiam, considerando sobretudo os impactos do “apogeu” da extração da borracha nas dinâmicas locais.
A ausência dos índios nas narrativas históricas, apresentados como meros “remanescentes” que seriam inexoravelmente “extintos” pela expansão da sociedade envolvente, ou seja, não teriam um futuro como um grupo diferenciado dentro da “nação” brasileira, foi questionada pelos resultados dos últimos censos. Verificou-se, especialmente a partir do realizado no ano 2000, um crescimento do número de índios muito superior aos demais segmentos da população (IBGE, 2005). Porém, como demonstrado no capítulo seis, “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação das fronteiras étnicas”, os resultados dos últimos recenseamentos devem ser interpretados em perspectiva histórica. Longe de serem um mero reflexo da composição demográfica do Brasil, refletem paradigmas e configurações de poder específicos. A mudança nas últimas contagens espelha, entre outros aspectos, as disputas no campo indigenista e as iniciativas desenvolvidas pelos próprios índios. Em grande parte, foram seus vínculos identitários e suas ações políticas que questionaram os prognósticos sobre seu “desaparecimento” iminente. Relacionam-se, também, à disputa por direitos, pois os dados oficiais são documentos fundamentais na elaboração de políticas públicas e na distribuição de recursos.
O livro termina com a abordagem de uma categoria muito empregada em diferentes contextos na relação do Estado com as populações indígenas: a “pacificação”. A reflexão foi ocasionada pelas políticas de segurança pública desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 2008. Na ocasião, uma operação militar na comunidade Santa Marta era apresentada como o início de uma “nova” presença do Estado nestes espaços, com promessas de combate ao tráfico e do estabelecimento de uma série de serviços de atendimento à população. O autor parte de um desconforto compartilhado por todos aqueles que conhecem minimamente a longa e controversa história da categoria “pacificação”, utilizada em diferentes contextos, desde o período colonial, para lidar com a alteridade indígena de maneira subalterna. A opção por sua recuperação na contemporaneidade em um contexto urbano revela a permanência de um paradigma estigmatizador das populações que habitam as comunidades na construção das políticas públicas de segurança. Denota ainda a presença de antigas práticas como referencial para iniciativas apresentadas como “novas” e nos leva a suspeitar em que medida elas representam de fato uma ruptura com um passado desairoso.
Os capítulos, produzidos em diferentes ocasiões, como já mencionado, foram articulados por um prefácio esclarecedor, no qual o autor retoma suas principais preocupações e contextualiza a leitura. Trata-se de uma publicação que deve ser lida por todos aqueles interessados na história no Brasil. Os temas tratados e a metodologia utilizada nos recordam que a história não é linear desde nenhuma perspectiva. Os povos indígenas do Brasil não têm uma trajetória única, e o que eles são hoje se vincula à maneira como se relacionaram, e foram afetados, pelas políticas estatais e pelas ações de diferentes agentes sociais. Vincula-se, ainda, às suas expectativas de futuro e às possibilidades apresentadas pelo tratamento que o Estado e a sociedade civil dão ao tema. Afinal, como João Pacheco enfatiza ao longo do livro, a questão indígena está intrinsecamente relacionada às discussões sobre a formação da “nação brasileira” e de suas hierarquias sociais. Ao não nos questionarmos sobre as origens das interpretações e das categorias que utilizamos, corremos o risco de naturalizarmos os projetos e sentidos daqueles que, baseados em seus próprios interesses e convicções, desenharam uma história do Brasil ancorada no eurocentrismo.
Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]
OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. [ Links ]
OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa , 2011. [ Links ]
Elisa Frühauf Garcia – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: elisa.fruhauf.garcia@gmail.br.
Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnicos-Raciais / Ariosvalber S. Oliveira
Com a aprovação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório nas escolas de todo o Brasil o ensino de História da África e cultura afro-brasileira como, a inclusão dos conteúdos de História e Cultura dos Povos Indígenas, além de atender a uma antiga e justa reivindicação; trouxe uma série de consequências para o Ensino de História em sua totalidade. As mudanças ocasionadas pelas respectivas leis ainda estão em processo e não influenciarão apenas educadores. Crianças, adolescentes, jovens, adultos entrarão e estão entrando em contato com o tema. O alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo, devendo ser aceleradas ou adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade dos setores interessados em intervir no processo (LIMA, 2009, p. 149).
Contudo, vale salientar que o trabalho com História da África e Indígena como conteúdos curriculares dos cursos de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu e mesmo na educação básica não nasce no Brasil como resultado da imposição das leis mencionadas anteriormente, havendo histórias de mais longa duração que se relacionam diretamente com o cenário que hoje vislumbramos 1. Leia Mais
Humanismo do outro homem – LÉVINAS (ARF)
LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. 131p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9 jan./jun. 2013.
A tradução deste livro de Emmanuel Lévinas nasceu de seminário sobre o autor realizado no programa de mestrado da PUCRS. Ele reúne três ensaios e foi publicado em 1993. Embora seja publicação relativamente antiga, o autor não é bem conhecido dos estudantes de Filosofia e a temática abordada é atual frente às dificuldades que enfrenta o humanismo em nossos dias. O próprio autor sugere que o termo humanismo não significa o mesmo que há algumas décadas, o que exige encontrar novas justificativas para o conceito. Por outro lado, o crescente reconhecimento do mérito intelectual do filósofo aumentou, nos últimos anos, o interesse por conhecê-lo.
Como o filósofo pensa em fundamentar o humanismo num tempo que questiona os parâmetros do ocidente? Ele o estabelece na descoberta do outro, o que justifica do seguinte modo:
É ali na alteridade que abriga infinitamente grande tempo num entretempo intransponível. O um é para o outro um ser que se desprende, sem se fazer contemporâneo do outro, sem poder colocar-se a seu lado numa síntese, expondo-se como tema, um- -para-o-outro como um guardião-de-seu-irmão, como um responsável- pelo-outro. (p. 15).
A descoberta do outro suscita uma meditação de raiz fenomenológica sobre “a não-indiferença da responsabilidade.” (p. 15). É esta responsabilidade pelo outro que amarra a fraternidade universal, estando nela a raiz do novo humanismo proposto por Lévinas. A presença do outro não se revela na percepção transcendental, ou melhor, a percepção que dele se tem não apresenta o que o outro é verdadeiramente, fato que pede uma crítica da experiência fenomenológica como fonte de sentido. O outro em sua infinitude não chega pela percepção transcendental porque o outro se mostra a partir do seu rosto – que não está encerrado na forma do aparecer – nu, despojado de sua forma, desnudado de sua presença que o marcaria ainda como seu próprio retrato; pele enrugada, vestígio de si mesmo. (p. 16).
A alteridade do próximo aponta para um vazio escondido atrás do seu rosto cujos vestígios o sujeito apenas vislumbra. O outro não se revela inteiramente no rosto fenomênico. A identidade do outro nasce de um sinal, sem figura, sem presença, fora da civilização. Assim o filósofo conclui o prólogo julgando que a descoberta do outro representa as bases de um novo humanismo.
Seguem-se três ensaios independentes e subdivididos. São eles: A significação e o sentido; Humanismo e anarquia e Sem identidade. O primeiro é o maior e examina o significado oculto que transcendente a percepção transcendental do outro. Os conteúdos ausentes no ato dão a ele significado, apontando a distância que há entre o percebido e a realidade.
Esta condição humana se esclarece quando contraposta à condição divina, como ele explica: “Para Deus, capaz de uma percepção ilimitada, não haveria significação distinta da realidade percebida, compreender equivaleria a perceber.” (p. 22). A condição humana é desafiada pelo uso da metáfora, pois ela é capaz de sugerir uma realidade para além da percepção. O significado ganha sentido quando inserido num horizonte cultural “com tudo o que de aventura e de já feito comporta – que é o lugar em que, consequentemente, se situa a significação.” (p. 24). A linguagem amplia a experiência da percepção que não se limita a elementos isolados presentes nos dados perceptivos. Diz o filósofo que “a significação precede os dados e os clareia.” (p. 26). A linguagem mostra e interpreta o mundo. O ato de ler, neste contexto, fornece uma hermenêutica, traz uma exegese do dado. Assim ele interpreta as meditações de Martin Heidegger e o que “ele quis dizer quando nos ensinou que a linguagem é a casa do ser.” (p. 27).
No segundo item o autor amplia o estudo da cultura afirmando que nela se encontra a noção de ser, vista como totalidade existente além do dado percebido. Afirma: É por esta referência da totalidade clareadora do gesto criador da subjetividade que se pode caracterizar a originalidade da noção da significação, irredutível à integração de conteúdos dados.
(p. 29).
Esta totalidade passa pela linguagem, mas também pelos sentidos, ou pela corporalidade, como dizia Merleau-Ponty. A visão da realidade se estrutura em objetos culturais, que são reunidos em grupos ou totalidades que “exprimem ou iluminam uma época.” (p. 32). O pensamento é parte da cultura e é nela que a criação verbal descobre uma nova forma de descrever o ser. A atividade cultural revela o ser através do sujeito que se torna seu servo e guia. Este é o esquema da fase final do pensamento heideggeriano e influencia o pensamento contemporâneo no esforço de superar a relação sujeito-objeto.
O item seguinte traz uma crítica à metafísica platônica a partir da noção de totalidade que a Filosofia pretende estabelecer. Ela não pode ser fixada, contudo, como no mundo das ideias de Platão o é, de uma vez para sempre. Ao contrário, ele esclarece: “o inteligível não é concebível fora do devir que o sugere.” (p. 37). Nisto consiste a grande contribuição da fenomenologia ao aproximar “a função transcendental da espessura concreta de nossa existência corporal.” (p. 39). Dito de outro modo, a significação não se separa do modo como é concebida.
O quarto item trata da significação econômica dos bens, inserindo- -a num contexto cultural amplo: “Toda necessidade humana é, desde logo, interpretada culturalmente.” (p. 43), esclarece.
No item seguinte Lévinas afirma que a totalidade expressa na linguagem cultural não é reconhecida da mesma forma em todo o mundo.
Para entender o significado de totalidade para o europeu e para o chinês é necessário aprender a linguagem de ambos e outros referentes culturais que eles empregam em sua descrição. Assim, a mundialização da comunicação instaura uma crise de sentido melhor sentida nas diferentes concepções sobre Deus presentes nas diversas regiões do mundo. Ele afirma: “a crise do sentido é ressentida pelos contemporâneos como uma nova crise do monoteísmo.” (p. 47). A ideia bíblica de Deus perdeu a força entre os homens de hoje. Isto sugere o seguinte desafio: “é a análise do sentido que deve ensejar a noção de Deus que o sentido encobre” (p. 48).
O item VI trata da busca do sentido encoberto na relação intersubjetiva.
O elemento determinante na intersubjetividade é o outro. O movimento que vai da consciência do sujeito ao outro é denominada de obra. E o que é mesmo a obra? Trata-se do movimento que vai até o outro, mas não retorna à consciência mesma. Isto traz para a consideração o ser para além de mim e de minha morte pessoal, porque o processo não depende do retorno à consciência de si para ser elaborado. É um ir que fica inconcluso. Obra representa o valor da esperança e o sentido de nobreza expresso na preocupação com o outro concretizada na mudança de atitude para com o futuro. Afirma que a atitude esperançosa não se justifica se ficamos apenas no presente. Ele escreve: Um homem na prisão continua a crer num futuro não revelado e convida a trabalhar no presente, para as mais distantes coisas às quais o presente é irrecusável desmentido. (p. 54).
No item VII o autor aprofunda o significado deste outro: ele não é adversário como pensou Hobbes, nem o complemento natural das relações humanas sugerido por Platão. O outro aparece na consciência como orientação e busca de sentido. A presença do outro na existência recebe luz da cultura e representa um tipo de relação diferente da realizada com outros seres: “a epifania do outro comporta significação própria, independente da significação recebida do mundo” (p. 58). Este outro aparece para mim como rosto desnudo. Rosto que questiona a consciência e o que dele penso: “A epifania do absolutamente outro é o rosto com que o outro me interpela.” (p. 61). A emergência deste outro é pautada pela ética, considerando- se que a relação com ele deva ser guiada pela retidão.
No penúltimo item deste ensaio, o autor destaca a relação da ética com a cultura. Ele a emprega como referência objetiva para julgar e comparar culturas numa circunstância difícil e complexa da história, numa época em que várias culturas querem se mostrar válidas. Este momento multicultural gera confusão e, adicionalmente, questiona a excelência da cultura ocidental, considerando-a historicamente determinada. Ao tratar das normas morais como elemento comparativo ele descobre no humanismo que nasce do reconhecimento do outro como valor com peso universal.
No último item Lévinas trata do vestígio, concebendo-o como sinal que remete e traz até nós uma realidade oculta. Ele usa o conceito de vestígio para representar algo escondido no rosto do outro que aparece para mim de modo residual. Um rosto mostra algo ausente e para além do que revelam as manifestações fenomênicas. Assim o diz: “o outro é um puro buraco do mundo.” (p. 72). O rosto do outro me coloca em contato com o transcendente sem destruí-lo, um transcendente que vai além do fenômeno sem anulá-lo. Nisto consiste o vestígio, ele revela mais do que o sinal mostra, ele inclui todo o passado do ente que emitiu o sinal. A noção de Deus veiculada na tradição judaico-cristã vem permeada por esta noção de vestígio, ela “conserva todo o infinito da consciência que está na ordem pessoal própria.” (p. 80). Deus apenas se mostra nos vestígios que deixa.
No ensaio seguinte denominado Humanisno e anarquia, o filósofo volta ao tema da crise de civilização, cuja raiz é a “ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições.” (p. 82). Para o fato também contribuiu a destruição da consciência, que na forma meditada por René Descartes e aceita até então foi posta em cheque pela psicanálise e pela fenomenologia ao instaurar a subjetividade transcendental. O resultado da crise é o aparecimento de uma civilização que não é nem humana nem inumana. Sua superação, na avaliação do filósofo “depende do surgimento do ente na matriz do algo ou do modelo do uno no seio do ser, ou seja, no seio do que se chama o ser do ente.” (p. 87).
No segundo item do ensaio, Lévinas lembra que o conteúdo da consciência é o presente, ainda que parte de seu conteúdo seja formado pela memória. O eu exercita a liberdade ao pensar além de si. Ele é confrontado com limites como a morte, mas é questionado pelo outro e por ele é acusado. Diante dos limites descobre uma liberdade originária na forma de lidar com as coisas, uma liberdade que se apresenta antes das escolhas que faz.
No item seguinte examina o componente anterior à escolha e observa que ser dominado pelo bem “não é escolher o bem a partir de uma neutralidade axiológica. O conceito de tal bipolaridade já se refere à liberdade.” (p. 96). Esta é a relação que Deus tem com o bem, ele não escolhe praticar o bem, ele está no bem. Além disto, Deus revela uma responsabilidade pelo outro que não tem origem nas escolhas. Portanto, Deus aparece nesta meditação como um Outro privilegiado diante de mim.
No quarto item mostra que o contato com o bem originário pode ser intuído por uma alma encarnada. No entanto, obedecer ao bem antes de fazer escolhas não é algo possível ao homem, pois “a responsabilidade pré-original pelo outro não se mede pelo ser, não é precedida de uma decisão e a morte não a pode reduzir ao absurdo.” (p. 101). Isto obriga cada indivíduo a construir o sentido da própria vida sem medi-lo pela ontologia. Trata-se de chegar ao sentido construído e aberto ao transcendente que chega pelo outro e em meio aos limites existenciais e da cultura.
O último dos ensaios, dividido em cinco itens é denominado Sem identidade. Nele o autor recorda o desafio humano de construir o sentido.
O grande problema é que a construção do sentido não atinge o significado real da liberdade e introduz o problema da verdade. A questão do sentido inverte a busca pela verdade, “não é mais o homem, por vocação própria, que procura a verdade, é a verdade que suscita e possui o homem.” (p. 111).
No item seguinte o autor examina a contribuição de Martin Heidegger para o assunto. Diz que o filósofo alemão associa a noção de subjetividade transcendental da fenomenologia com a metafísica. Assim, o esquecimento do ser apregoado por Heidegger significa que o homem “enclausura-se como uma mônada; ele se faz alma, consciência, vida psíquica” (p. 114). É preciso superar tal forma do pensamento para entender a filosofia de Heidegger e acompanhando a destruição da subjetividade compreender o motivo pelo qual “o poema ou a obra de arte guarda o sistema, deixa de ser a essência do ser, como o pastor guarda seu rebanho.” (p. 114).
O item seguinte examina como se dá a abertura da consciência às coisas e outros eus. Lévinas entende que a abertura ao ser significa uma forma de considerar a consciência do ser e do contato com o outro.
É nestas aberturas que o sujeito expõe a fragilidade da sua pele exposta à dor e à ofensa. Trata-se de fraqueza “que todo ser em sua altivez natural teria vergonha de confessar.” (p. 119), especialmente quando é agredido e recebe bofetadas. É a forma como se refere ao sofrimento recebido, lembrando que se expor ao ultraje está além do razoável para o homem comum.
No item IV, Lévinas trata do processo de esquecimento do ser sugerido por Martin Heidegger na releitura que fez do pensamento platônico.
No último item menciona as aspirações da juventude de mudar o mundo dizendo que elas dispensam reflexão sobre a subjetividade. Reporta-se ao movimento de 1968 na França como a procura da autenticidade e o vê como espaço de aproximação com o outro e expressão da humanidade do homem.
O livro de Lévinas é especialmente importante por recolocar a questão do humanismo como assunto central da meditação nos tempos de diálogo entre culturas. Ele justifica o humanismo na descoberta do outro que surge para o sujeito como um infinito diante do qual sua consciência se amplia e se depara com o significado da experiência intersubjetiva.
Espera, desta forma, superar a justificativa do valor do homem pela falta de justificação convincente da excelência ocidental. Falta-lhe, contudo, perceber que, enxergar o outro como sendo entrada para o infinito só significa dignidade pelo reconhecimento de seu valor na cultura ocidental ou numa crença religiosa. O reconhecimento do outro como valor só se torna a base de um humanismo se tivermos a cultura ocidental como referência ou admitirmos a crença religiosa como elemento universal.
José Maurício de Carvalho – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Del Rei (UFSJ). E-mail:: mauricio@ufsj.edu.br.
A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845) – TORRÃO FILHO (H-Unesp)
TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p. Resenha de: GAMA, Luciana. Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem. História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.
Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.
(Górgias, Elogio de Helena).
Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, “não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).
Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o “gênero viático” – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o “gênero literatura de viagem”. Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo “gênero” adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por “literatura de viagem”, que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.
Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é “enorme a sua diversidade de registros” e ao mesmo tempo “grande sua permeabilidade” o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo “do ponto de vista da forma” como “diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para “um gênero literário claramente constituído, ‘ dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'” e instituído com precisão: “a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).
O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo “gênero” para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como “ficção” e “literatura”. Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o “tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava” até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?
A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana “para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as ‘coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras’, importando sim, ‘a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas”. Nesse sentido, “a história também é matéria bruta de toda poesia” e “apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra ‘verossímeis e possíveis’, nunca esgotados em sua possibilidade de ser” (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que “inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra” (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que ” A prescrição de um ‘pintor historiador’ que substitui ‘o pintor poeta’ tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: ‘A pintura é a história do ignorante’, e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei” (HANSEN, 1994, p.30).
No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado “Imago Mundi”, chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem “trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:
[…] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do “Grande Romance” e da “viagem literária”; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do “romance verdadeiro” e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como “retórica”, “tópica” “lugares-comuns (topos)”, “descrição”, “textos retóricos”, “repetição descritiva”, “tradição intertextual da viagem”, “procedimentos retóricos”, “retórica do gênero”, “retórica da alteridade”, “convenção retórica”, seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.
No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo “retórica”, tendo em vista que o objetivo do autor é “demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma ‘teoria’ trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura” (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)
Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz “retórica” está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for “falso”. No entanto, também quando escreve “retórica” em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano III”, 10, 34:
[…] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um “Império Retórico” mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).
As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).
Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.
Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: “descrição” (descriptio) e “tópica” (topos, topoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em “O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista” (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.
Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.
Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo “descrição” é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).
Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, “essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio” (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a “imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do “desleixo das edificações” (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da “cidade suja” como poderemos verificar no capítulo quatro e a “tópica dos ciúmes” que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam “ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes” (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.
Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da “edênica paisagem exterior”, na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um “anfiteatro” de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é “elevada em anfiteatro”; e também por Debret, em 1816, cujo “quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro”; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas “serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem” (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).
Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: “como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará” (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).
A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:
[…] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas – a cenografia, skenografia– dos tratados de óptica […] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata […]. (HANSEN, 2007, p. 183).A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.
É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das “auctoritas”, dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de “Memória de Biblioteca”. (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).
Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como “ir a Jerusalém caminhando para Emaús”, capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.
No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de “A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem”, para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.
Referências
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PÉCORA, A. A Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001. [ Links ]
SOUZA, R. A. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: Uerj/ Eduff, 1999. [ Links ]
Luciana Gama (SHLOMIT OR) – Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp – Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas – IEL/Unicamp – Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas – São Paulo e no Dept. of Romance and Latin – American Studies – The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 – Jerusalem – Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: shlomit.gama@mail.huji.ac.il.
El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: Identidad femenina y otredad | Brígida Pastor
A emergência das mulheres à condição de objeto e sujeito da história é um fato relativamente novo entre aqueles que se dedicam ao estudo e compreensão do passado humano. O recente e progressivo interesse pelo estudo das mulheres, nessa dupla acepção, enfrenta, entretanto, um grave desafio, representado pela escassez de fontes e vestígios acerca do passado feminino, produzidos pelas próprias mulheres, na medida em que as representações que dispomos sobre elas têm sido histórica e majoritariamente oriundas de fontes e discursos masculinos. Diante de tal quadro de escassez de fontes e de uma crescente preocupação interdisciplinar capaz de dar conta das diversas e complexas dimensões desse objeto, destacam-se, como uma das poucas e privilegiadas formas de expressão desse universo feminino, as obras literárias escritas por mulheres e que, em maior ou menor medida, abordam direta ou indiretamente a própria condição feminina. Tais obras literárias ganham ainda maior relevo quando geradas em contextos históricos de sociedades patriarcais nos quais as idéias do que hoje poderíamos chamar de feminismo não contavam ainda com quaisquer outras possibilidades alternativas de expressão. Esse é o caso, por exemplo, do contexto da produção literária de uma das mais importantes escritoras do meio cubano-espanhol do século XIX, a cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873).
A propósito, um rico e instigante conjunto de ensaios sobre o discurso feminista de Gómez de Avellaneda, que partem da análise dos principais escritos pessoais—memórias, autobiografia e epistolário—e de algumas obras ficção literária da escritora cubana, encontram-se no livro El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: identidad femenina y otredad (Alicante, Espanha: Universidad de Alicante, 2002, 158p.), da investigadora espanhola Dra. Brígida Pastor, professora de letras hispânicas da Universidade de Glasgow, Escócia.
O primeiro ensaio desse livro, intitulado “La expresión feminista en la Cuba del siglo XIX: La mujer escritora”, divide-se em duas partes. Na primeira, a professora Pastor procura demonstrar como algumas características da sociedade cubana do século XIX exerciam uma forte repressão nas mulheres em geral e, em particular, como tal repressão repercutia no desenvolvimento das idéias liberais e feministas de um tipo especial de mulher que se forjou naquele momento: a mulher escritora e intelectual. Para a autora, algumas peculiaridades caracterizaram o feminismo hispano-americano: significou uma ameaça à tradição, uma negação dos valores da família e das convenções sociais. Exatamente por tal característica, esse feminismo se deparou com a forte resistência de uma arraigada cultura patriarcal, o que contribuiu para postergar o processo de emancipação da mulher, especialmente em Cuba. Por outro lado, em que pese a educação e a igreja católica terem fortalecido a cultura da submissão, mesmo nessas condições adversas algumas mulheres de status privilegiado, aspirando seu reconhecimento intelectual, se rebelaram contra essa sociedade discriminadora e patriarcal por meio da escrita. Contudo, conforme demonstra a autora, os escritos e a rebeldia dessas mulheres se viram limitados por sua própria condição cultural, refletindo o conflito entre a sua vocação literária e o seu papel de esposas e mães. Além do mais, essas mulheres se defrontaram com as barreiras impostas por um mundo literário de domínio exclusivamente masculino no qual a feminilidade e a intelectualidade eram tidas como inconciliáveis.
Na segunda parte desse primeiro ensaio, Brígida Pastor destaca ainda como a escritora cubana iniciou de forma pioneira o debate feminista tanto em Cuba como na Espanha. A partir da análise da autobiografia, das memórias e do epistolário de Avellaneda, Pastor demonstra como as suas idéias feministas emergiam de forma recorrente nas abordagens de temas como o do casamento, da educação e da marginalização da mulher, ressaltando como a escritora cubana combatia veementemente todas as convenções e imposições sociais no âmbito de cada uma dessas esferas. A autora destaca como Avellaneda já denunciava, em meados do século XIX, a prática do casamento forçado e a própria instituição do casamento, a desigualdade entre a educação de homens e mulheres e, ainda, a discriminação sofrida pela mulher dentro do mundo literário e da sociedade em geral. Tais preocupações feministas, ao serem expressas publicamente por Avellaneda, lhe renderam perseguições e discriminações por parte das autoridades e do meio social cubano, sendo que algumas de suas obras literárias foram proibidas sob a alegação de que portavam idéias subversivas ao sistema escravista, bem como idéias que atentavam contra a moral e os costumes da época. Gómez de Avellaneda converteu-se, assim, segundo Pastor, numa vítima dos próprios códigos sociais discriminatórios que atacava, numa exceção entre as demais mulheres escritoras de sua época, por ter radicalizado e levado mais adiante que aquelas a bandeira feminista, com a crítica contundente dos valores discriminatórios e excludentes da sociedade patriarcal cubana.
Sob o título “Autobiografia y discurso estratégico: la escritura ginocrítica”, o segundo ensaio do livro se propõe a demonstrar que várias das estratégias narrativas empregadas na elaboração das cartas autobiográficas de Gómez de Avellaneda encontram-se limitadas pelos recursos teóricos que estavam ao alcance da mulher cubana daquela época para expressar sua identidade em uma cultura patriarcal. O termo “ginocrítica” designaria, no caso específico, algo como a abertura dos textos escritos por mulheres para as distintas formas femininas de analisá-los. O grande desafio e objetivo de Avellaneda, segundo Brígida Pastor, seria inventar, pela escrita, uma identidade genuinamente feminina, alternativa à identidade cultural do sistema patriarcal. Ou, mais precisamente, seria transformar a mulher, de objeto, desprovida de linguagem própria, em sujeito, com linguagem e direito próprios. Mas, para tanto, era necessário enfrentar, quase sempre de forma contraditória, os rígidos parâmetros que a sociedade impunha à mulher. Avellaneda enfrentará esse desafio por meio de sua própria pessoa, no âmbito privado—o único então que lhe era permitido—, em sua Autobiografia y cartas.
Tais textos expressam, ao mesmo tempo, segundo Pastor, os conflitos da própria escritora com as normas da sociedade e como a força dessas mesmas normas praticamente impede Avellaneda de reagir e libertar-se totalmente delas por sua própria conta. Em outras palavras, expõem o dilema da escritora cubana que, embora inserida numa sociedade que considerava a mulher objeto, assumiu abertamente o desafio de revelar-se em sua linguagem como sujeito autônomo e essencialmente feminino. Em seu afã de apresentar-se como uma mulher diferente, a escritora acaba por se mostrar como um ser dividido, em constante tensão e contradição com as convenções sociais que a perseguiam e limitavam. Tal fenômeno foi denominado por algumas teóricas feministas de “ansiedade de autoria”, como um sintoma do medo que as escritoras do século XIX experimentaram ao se atreverem a adentrarem no âmbito do mundo masculino.
O primeiro romance de Gómez de Avellaneda, intitulado Sab, de 1841, que narra o caso de um amor impossível de um mulato escravo (Sab) por uma mulher branca, é o foco central do terceiro ensaio do livro, “Discurso de marginación híbrida: género y esclavitud en Sab”. Nele a doutora Pastor pretende demonstrar, distanciandose de algumas outras interpretações críticas dessa obra, que o propósito principal de Avellaneda não foi o de narrar uma história de amor mais ou menos conflitiva e nem o de apresentar uma denúncia premeditada contra a escravidão, mas sim o de afirmar sua ideologia feminista, estabelecendo o paralelismo entre a situação de escravidão da raça negra e o estado de marginalização da mulher branca no seio da sociedade burguesa. Ou seja, com este romance a escritora cubana procurou, de acordo com a autora, estabelecer uma analogia entre a posição dos escravos e a da mulher, constituindo-se um discurso de marginalização híbrida que vincula a posição e a condição social da mulher com a representação do “outro”, nesse caso o escravo. Uma construção híbrida em razão de que esse escravo negro, embora do sexo masculino, é apresentado como um personagem sexualmente ambíguo, uma mescla de masculino e feminino, na medida em que se identifica com a condição social da mulher e questiona, ainda que de forma indireta, os valores patriarcais. Mas também porque esse escravo, na verdade, não é totalmente branco, nem completamente negro, sendo mais uma mescla de branco e negro e de africano e europeu. Por tudo isso, trata-se, segundo Pastor, de um personagem que desafia o discurso masculino dominante. Ainda que Avellaneda não tenha sido obcecada pelo ideal abolicionista, o personagem do escravo teria sido mais um meio ou um instrumento do qual a autora se serviu para proclamar os direitos da mulher e seu desejo de igualdade social.
Dividido entre duas realidades sociais, o escravo Sab não pertencia a nenhuma: se encontrava, como as mulheres, à margem da sociedade, em uma posição de subordinação, carente de poder e de voz própria.
Por fim, no quarto e último ensaio do livro, intitulado “Discurso identitario femenino em Dos Mujeres”, Brígida Pastor analisa outro romance de Avellaneda, Dos Mujeres (1842). Para a autora, este romance, mais do que uma simples crítica à instituição do casamento, representa um dos primeiros discursos feministas em língua castelhana que ataca as convenções sociais que discriminam e oprimem a mulher. A obra narra a história de duas mulheres (Luisa e Catalina) que representam os estereótipos bipolares comuns na sociedade patriarcal cubana: de um lado a mulher “anjo”, tradicional, submissa, carente de toda identidade própria, perfil que caracteriza a maioria das mulheres nesse contexto; e, de outro, a mulher intelectual, culta e liberada, rebelde, pouco convencional, tida pela sociedade como um “monstro”. Para a autora, com esse romance, Avellaneda, identificando-se claramente com a personagem intelectual e transgressora, oferece duas imagens diferentes da mulher do século XIX em sua constante batalha pela expressão de sua própria identidade feminina. Em que pese as diferenças óbvias entre esses dois estereótipos de mulheres, ao longo da narrativa Avellaneda faz com que ambas as personagens terminem por buscar, contraditoriamente, suas respectivas identidades genuinamente femininas.
Com esses quatro ensaios de crítica literária, a professora Brígida Pastor—com a autoridade de uma das mais respeitadas especialistas na obra de Gertrudis Gómez de Avellaneda—nos brinda com um conjunto de reveladoras imagens da realidade feminina do contexto sócio-cultural hispano-americano do século XIX. Analisando e confrontando, de forma minuciosa e crítica, os escritos públicos e privados daquela que foi sem dúvida uma das mais importantes escritoras do mundo hispano-americano do século XIX, Pastor revela, com uma invejável sensibilidade e requinte de detalhes, os traços fundamentais que caracterizaram e marcaram o discurso feminista de Avellaneda. Assim, este livro constitui mais um bom exemplo de como a literatura, sobretudo quando esta constitui uma das raras alternativas e possibilidades de expressão das mulheres sobre suas próprias condições de vida, pode se constituir numa riquíssima via ou caminho para se compreender esse intrincado, complexo e contraditório universo feminino. Tendo como veículo e instrumento a obra literária de Avellaneda, o que Brígida Pastor capta e nos revela é, no fundo, a experiência reprimida e encoberta vivida pelas mulheres cubanas em meados do século XIX e, sobretudo, as entranhas e contradições de um mundo social discriminador e excludente, no qual praticamente todas as suas representações eram limitadas e moldadas por uma arraigada cultura patriarcal e discriminadora.
Eugênio Rezende de Carvalho – Universidade Federal de Goiás.
PASTOR, Brígida. El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: Identidad femenina y otredad. (Cuadernos de América sin nombre, Centro de Estudios Iberoamericanos Mario Benedetti, 6). Alicante: Universidad de Alicante, 2002, 158 p. Resenha de: CARVALHO, Eugênio Rezende de. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.6, n.11, p.285-291, jul./dez., 2005. Acessar publicação original. [IF]
Il futuro del clássico – SETTIS (CN)
SETTIS, Salvatore. Il futuro del clássico. Einaudi, 2004. Euro 7. Resenha de: DEMATTÈ, Francesca. 7 ago. 2019.
Perché si studia la Storia antica, greca e romana?
In un’epoca dominata dalla retorica della globalizzazione, è ancora vero che il passato “greco e romano” è più “nostro” di quello cinese? Quale può essere il posto degli Antichi in un mondo caratterizzato sempre di più dalla mescolanza dei popoli e delle culture, dalla rivendicazione delle identità etniche e nazionali e delle tradizioni locali?
Se tutte le vicende degli uomini meritano attenzione, e per tutti le tracce del passato sono tali da obbligarci a studiarlo per capire una parte importante di noi stessi, come spiegare il progressivo, inarrestabile arretrare della cultura “classica” nei sistemi educativi e nella cultura generale di tutti i paesi che dovrebbero rifarsi ai valori immutabili e perpetui del mondo classico?
Con un argomentare serrato Settis dà voce ad un paradosso che evidenzia come, mentre siamo disposti ad imparare sempre meno dell’antichità greca e romana, incapaci di riconoscerla diversa, altra dal nostro presente, un vero e proprio altrove nel tempo e nello spazio, frammenti sconnessi di questa cultura emergono all’improvviso nel cuore di grandi culture extraeuropee, inducendo gli studiosi a interrogarsi sui valori dell’antichità elaborati dai Greci e dai Romani e sull’uso che ne è stato fatto per legittimare l’egemonia dell’Occidente sul resto del mondo.
Le vere domande diventano dunque: che cosa vuol dire classico? L’eredità greco-romana è davvero più “nostra”(lo è ancora?) di quella della civiltà giapponese, cinese, indiana? L’autore ci porta a distinguere fra classico e classicismo, individua il classico come discrimine fra post-moderno e moderno, definisce classico rispetto ad autentico, distingue classico greco da classico romano, parla del classico prima dell’antichità classica in un percorso a ritroso legato alle arti figurative che approda dentro una ridefinizione dei concetti di identità e alterità e va a individuare l’essenza del classico nel risultato di scambi e mescolanze fra culture.
Anzi fa della curiosità per le culture “altre”, del confronto fra culture il nucleo generativo e fondante della storia culturale europea: nel continuo rinascere del classico, incontriamo la forma ritmica originale e propria dell’Europa, caratterizzata dal perenne ritorno.
Francesca Demattè
[IF]Das Ráísel der Vergangenheit / Paul Ricoeur
As questões da apreensão da multiplicidade cultural do mundo contemporâneo e da compreensão de sua complexidade histórica e social são objeto da série “Conferências de Essen sobre Ciências da Cultura”, promovida e editada pelo Instituto de Ciências da Cultura.
Este Instituto, fundado em 1988 e sediado na cidade de Essen (Alemanha) é integrante do Centro de Ciências da Renânia do Norte/Vestfália. O Instituto (conhecido por sua sigla KWI, homólogo do Institute for Advanced Studies de Princeton ou do Wissenschaftskolleg de Berlim) é uma instituição pública, voltada para a pesquisa científica realizada mediante projetos de investigação dedicados aos problemas da sociedade e da cultura marcadas pelo desenvolvimento científico, pela sofisticação tecnológica e pela industrialização. Os projetos são desenvolvidos por grupos de estudo interdisciplinares, com temas vinculados à pesquisa fundamental no campo das ciências da cultura. O arco temático dos projetos apoiados pelo Instituto vincula-se aos problemas atuais de orientação das sociedades modernas no contexto internacional e intercultural.
Pesquisas dessa natureza não atraem facilmente a atenção do público. Seus resultados, contudo, são habitualmente incorporados pelas próprias ciências setoriais e continuam a surtir efeitos nelas e por intermédio delas. A interdisciplinaridade e o trabalho em grupo dos especialistas são uma condição importante para o êxito desse tipo de projeto. No entanto, o KWI considera ser também incumbência sua fundamentar a necessidade e a relevância de suas atividades e fazê-las perceber pelo grande público. Isso ocorre de forma multifacetada: conferências, mesas redondas, debates públicos, cursos de extensão.
A série de livros das “Conferências” publica textos escolhidos do programa de conferências do Instituto. Esses textos se originam em palestras abertas ao grande público, e ao especializado, elaboradas e completadas para os fins de publicação. O amplo leque temático documenta a amplitude e o alcance das questões ligadas às ciências da cultura, assim como o fascínio das constelações interdisciplinares de pontos de vista, perspectivas e estratégias de argumentação. Cada conferência representa, por si, uma faceta desse leque.
Cada uma é um componente do vasto complexo de abordagens do conhecimento, no qual as experiências do homem consigo mesmo e com seu mundo são interpretadas, as interpretações são refletidas e transformadas em orientações práticas, para afinal serem incorporadas nas mais diversas formas de determinações de sentido, em função das quais o homem age e interage com os outros.
A pesquisa em ciências da cultura requer distanciamento da atualidade do cotidiano imediato, independência com relação às lutas pelo poder e atitude crítica com respeito às polêmicas e dos conflitos de pessoas. A aparente ausência de aplicação prática imediata não raro traz à pesquisa básica e às ciências humanas a fama de serem um luxo, um desperdício. No entanto, o pragmatismo imediatista da pressão tecnológica — que decorre muito mais da lógica econômica da lucratividade — exige justamente que se desenvolvam reflexões que se libertem a prisão “dourada” em que os resultados “imediatos” parecem ser o máximo dos máximos. O longo prazo, a profundidade do alcance, a multiplicidade das perspectivas — esses e outros fatores fazem das ciências da cultura as que apreendem, descrevem, analisam, interpretam e explicam os complexos códigos de sentido — as estruturas de significado — que produzem, consolidam e reproduzem a(s) cultura(s). A ciência da cultura torna-se assim, ela mesma, um fator ativo da cultura como patrimônio coletivo e imaterial da sociedade. Ela desempenha o papel relevante de pensamento crítico e de diretriz interpretativa para a orientação — aí sim — prática do agir humano em todos os campos. A série de “Conferências” busca, assim, na apresentação de seu editor principal, Jórn Rüsen (Presidente do KWI), dar forma concreta a essa tarefa constante da crítica científica e social.
Da série estão disponíveis, até o final de 2003, doze pequenos volumes:
- Friedrich Kambartel. Pbilosophie und politische Òkonomie. Gõttingen: Wallstein Verlag, 1998 (3-89244-332-7) 85 p.
- Paul Ricoeur. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998 (3-89244-333-5) 156 p.
- Klaus E. Müller. Die fünfte Dimension. So^iale Raum^eit und Gescbichtsverstàdnis inprimordialen Ku/turen. 1999(3-89244-348-3) 158 p.
- Jürgen Straub. Veriehen, Kritik, Anerkennung. Das Eigene und das Fremde in der Erkenntnisbildung interpretativer Wissenscbaften. 1999(3-89244-366-1) 95p.
- Burkhard Liebsch. Moralische Spielràume. Menschbeit und Anderheit, Zugehorigkeit und Identitãt. 1999 (3-89244-383-1) 128 p.
- Helwig Schmidt-Glinzer. Wir und China — China und wir. Kulturelle Identitãt im Zeitalter der Globalisierung. 2000 (3-89244-426-9) 101 p.
- Hans Schleier. Historisches Denken in der Krise der Kultur. Fachhistorie, Kulturgescbichte undAnfànge der Kulturwissenschaften in Deutschland. 2000 (3- 89244-427-7) 127 p.
- Gertrud Koch. Medien der Kultur. Film: Beivegungin derLatenç. (3.89244- 428-5). no prelo 9. Rolf Wiggerhaus. Wittgenstein und Adorno. Zwei Spielarten modernen Phi/osophierens. 2000 (3-89244-429-3) 143 p.
- Bernhard Waldenfels. VerfremdungderModerne. Phãnomenologische Ansãtze. 2001 (3-89244-459-5) 162 p.
- Hans-Ulrich Wehler. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. 1945-2000. 2001 (3-89244-430-7) 108 p.
- Ludwig Amman. Die Geburt des Islam. Historische Innovation und Offenbarung. 2001 (3-89244-460-9) 111 p.
Seus títulos representam efetivamente a variedade de perspecdvas que compõem o espectro ilimitado das questões culturais: Kambartel preconiza a crítica filosófica da economia política, sustentando a necessidade de ampliação da economia social de mercado (vol. 1); o respeitado filósofo Paul Ricoeur relembra um enigma amiúde negligenciado pela tecnologia da pesquisa: o passado só subsiste na memória e em seus vestígios, lidar com ela é questão de lembrar, esquecer, perdoar (vol. 2); como ecoando Ricoeur, o antropólogo Klaus Müller reforça a tese da memória na concepção de história, de origem, de pertencimento e de constituição do espaço social nas sociedades originárias (vol. 3).
Jürgen Straub, professor de comunicação intercultural, aborda a compreensão, a crítica e o reconhecimento: imagens de si e do outro nas ciências que recorrem à interpretação — um problema espinhoso, sobretudo para a interface entre história e psicologia social (vol. 4); Liebsch, professor de filosofia em Bochum, reflete sobre os campos — virtuais — do agir moral como espaço de relacionamento entre afirmação de si e reconhecimento da alteridade — com os problemas decorrentes da “etnicização” dos grupos e subgrupos nas sociedades (vol. 5). Como transparece ao longo de todos os volumes desta série, a referência de origem é a perspectiva cultural européia e o “déficit” de conhecimento e de compreensão da outras culturas [inclusive levando- se em conta a história colonial e seus efeitos perversos] — assim, a alteridade “radical” da cultura chinesa e a contraposição a ela histórica cultural européia, forçada pela globalização, e a impossibilidade de se entronizar novamente uma cultura hegemônica ocupam a reflexão de Schmidt-Glintzer, um dos maiores sinólogos alemães e diretor da famosa Biblioteca do Duque Augusto, em Wolfenbüttel (vol. 6).
A diversificação do tecido cultural da sociedade abriu, também para os historiadores, a crise da identidade em sua especialidade e a instrumentalização da historiografia para projetos políticos passou a ser problematizada. Hans Schleier os primórdios das ciências da cultura na Alemanha e o papel da ciência da história no contexto da crise da cultura contemporânea, a partir da experiência da desconstrução e da reconstrução alemãs entre 1880 e 1930 (vol. 7). O fenômeno da mídia — em particular da crítica social no cinema — e seu impacto na concepção do pertencimento social é o tema estudado por Gertrud Koch, professora de cinema em Berlim, ainda a ser publicado (vol.8). Wittgenstein e Adorno como representantes de dois formatos de crítica filosófica no século 20: a analítica, formal, que não se manifesta sobre o inverificável, e a dialética, engajada, que não admite que não se manifeste sobre o inefável e o subentendido são os objetos de Rolf Wiggerhaus, filósofo e jornalista (vol. 9). Bernhard Waldenfels, professor de filosofia prática e fenomenologia em Bochum, desenvolve uma forte e consistente crítica à alienação do projeto (incompleto) da modernidade por causa de seu individualismo pretensioso que concebe o global como projeção de si — e por isso mesmo compromete a racionalidade como faculdade do indivíduo e como liame do coletivo (vol. 10). O historiador Hans-Ulrich Wehler, um dos chefes de fila da escola de história social de Bielefeld, faz um balanço comparativo dos resultados obtidos pela reflexão historiográfica na segunda metade do século 20 — por exemplo, acerca do caráter “ocidental” das grandes conquistas políticas, como o estado de direito e o sistema parlamentar e eleitoral universal —, e os parcos efeitos que esses conhecimentos tiveram, até o presente, sobre a crítica social, política, econômica e cultural do mundo contemporâneo (vol. 11). O contraste inquietador que as culturas não-européias provocam nas sociedades de feitura européia é uma espécie de enigma adicional que intriga e mesmo atemoriza a “matriz” européia. A longa experiência das sociedades européias (ocidentais) e da norte-americana de ver as demais sociedades ser-lhes submissas ou ao menos delas discípulas, leva Ludwig Ammann, especialista em islamismo e jornalista, a sistematizar as circunstâncias do nascimento do islã (o aparecimento de Maomé e de sua pregação do monoteísmo, à maneira de um messias) e o choque que provoca nas tribos politeístas árabes e nas respectivas relações sociais, ao enunciar a necessidade da conversão como o sentido de uma missão transcendental instituída por revelação divina — e de como foi possível o fenômeno da islamização das culturas árabes a partir do século 7o (vol. 12).
Duas reflexões se impõem, diante da variedade e da complexidade dos temas abordados pelos textos da série. A primeira é relativa ao caráter pioneiro de abrir espaço de discussão e de contraponto, no âmbito de culturas tradicionalmente avançadas e extremamente seguras e cheias de si, como a alemã. Essa iniciativa do KWI se entende bem pela forma característica de Jõrn Rüsen de conceber o papel da reflexão histórica como um dos fatores relevantes na interculturalidade da comunicação social. Trata-se de uma contribuição de importância tanto para incrementar o arejamento do debate público e científico alemão e europeu como para resistir à crescente intolerância para com o outro e o diferente, que distorce as relações intra- e intersociais, em um mundo cada vez mais marcado pela produção e pela circulação ilimitada de informações. Essa abertura científica e cultural protagonizada pelo KWI reveste-se de duas qualidades adicionais: coragem pública e exemplaridade.
A segunda reflexão refere-se à utilidade de publicações desta natureza para sociedades multiculturais, como a brasileira. A dupla constatação de que há fissuras (bem-vindas) na torre de marfim do eurocentrismo e de que se toma consciência da necessidade de apreender o outro não para reduzi-lo a si é uma perspectiva alvissareira de fecundação da ciência pratica no Brasil. A história é um eixo de constituição da identidade que incorpora, à luz de estudos críticos como os desta série “Conferências sobre Ciências da Cultura”, a dimensão do processamento intelectual e cultural da diversidade como integrantes dialéticos do retorno a si mediante a afirmação do outro, e não por sua eliminação. A leitura historiográfica da cultura e da sociedade pode enriquecer-se com os pontos de vista da interculturalidade, superando assim a constante tentação do nombrilismo nacionalista.
Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.
RICOEUR, Paul. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998. 156p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura, multiculturalismo e os desafios da compreensão histórica. Textos de História, Brasília, v.10, n. 1/2, p.225-230, 2002. Acessar publicação original. [IF].
Conquista y barbárie. Ensayo crítico acerca de la conquista de Chile – BENGOA (RCA)
BENGOA, José. Conquista y barbárie. Ensayo crítico acerca de la conquista de Chile. Santiago: Ediciones Sur, 1992. Resenha de: FOERSTER, Rolf. Revista Chilena de Antropología, n.11, p.131-133, 1992.
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