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O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV / Anos 90 / 2013
O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV. No final do ano de 2001, a revista Anos 90 publicou o número intitulado Estudos sobre Idade Média Peninsular. O trabalho de seleção dos textos ali reunidos foi organizado pelo Professor Dr. José Rivair Macedo. Esse número foi a coroação de uma série de ações realizadas na UFRGS sobre história medieval na década de 1990. Sendo assim, foram publicados textos de professores e, então, alunos de pós-graduação e graduação, além de professores de outras instituições. O tema daquele número também refletia a concentração de estudos, na historiografia brasileira sobre Idade Média, que privilegiavam a Península Ibérica nos séculos finais daquele período.
Doze anos depois, podemos afirmar que o presente dossiê sobre normas e relações de poder entre os séculos V e XV é reflexo de uma série de mudanças: desde as relacionadas à avaliação e classificação das revistas acadêmicas, que estimulam a inserção dos Programas de Pós-Graduação em nível nacional e internacional e evitam também a publicação de textos de autores da casa, às abordagens sobre tempos e espaços diversos. Sendo assim, os autores que publicam no presente dossiê, em geral, tem como característica geral, a presença mais constante e sistemática de períodos e projetos de colaboração internacional de pesquisa. Dessa forma, o presente número oferece ao público uma reunião de textos que tem origem em pesquisas realizadas (concluídas ou em andamento) em nove Universidades diferentes e que tratam de tempos e espaços heterogêneos.
Dividimos o dossiê O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV em três blocos, não necessariamente fechados em si. O primeiro inclui textos sobre o período inicial da Idade Média que analisam aspectos das relações de poder na região da atual França; o segundo concentra textos sobre a chamada Idade Média Central, mas também abarca os textos sobre Península Ibérica entre os séculos XI e XV; o terceiro reúne textos sobre a Península Itálica, especificamente entre os séculos XIII e XV. O leitor pode perceber, então, que há uma orientação cronológica (da Alta à Baixa Idade Média) e geográfica (França, Portugal, Espanha e Itália), porém, o que fica evidente no conjunto dos textos é a pluralidade de possibilidades: textos que defendem a atuação de um possível Estado e ideias de governo, textos sobre a constituição de normas específicas, como regras de Ordens Religiosas ou processos jurídicos, textos sobre concílios e moralização clerical, além de textos sobre resolução de conflitos.
O primeiro artigo é de autoria de Rossana Pinheiro, da UNIFESP. A autora aborda algumas características do poder episcopal na Gália do século V, com especial destaque para a não separação entre monges e bispos ou, como defende a autora, para a atuação de “monges-bispos” na expansão do cristianismo naquela região. O texto seguinte, de autoria de Marcelo Cândido da Silva (USP), trata de crises de escassez de alimentos e fome entre os séculos VIII e IX, entre os carolíngios. O autor analisa, além de anais, crônicas e inventários, a atuação de combate à fome adotada por governantes, como: Pepino, o Breve († 768), Carlos Magno (†814), Luís, o Piedoso († 840), Carlos, o Calvo (†877) e Carlomano II (†884). Para Cândido da Silva, os indícios encontrados sobre a fome na documentação analisada não necessariamente permitem associar as crises às dificuldades técnicas. Sendo assim, o autor fornece um olhar mais voltado para a história política do que para a história econômica para discutir o assunto.
O segundo bloco de textos inicia-se com a reflexão proposta por Cláudia Regina Bovo, professora de história medieval na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. A autora expõe seu problema de pesquisa no título do artigo: O combate à simonia na correspondência de Pedro Damiano: uma retórica reformadora do século XI?. O objetivo é discutir se se pode afirmar a existência de um “programa reformador” no século XI. Em outras palavras, a autora propõe uma revisão sobre a chamada “reforma gregoriana” a partir de uma análise de caso: a simonia. Ao final do texto, ela conclui que não é possível afirmar a existência de uma noção ampla de “reforma”. O texto de Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) sobre o concílio de Coyanza (século XI) apresenta as características que fazem dessa reunião uma das mais importantes ocorridas na Península Ibérica durante o medievo e, principalmente, como se deu a construção historiográfica sobre essa importância. De acordo com a autora, as duas redações diferentes das atas daquele concílio revelam os interesses políticos que estavam em cena nas disputas no reino de Castela-Leão. O terceiro texto que compõe esse eixo é de autoria de Maria Filomena Coelho (UNB). A autora analisa, a partir do tema da clausura feminina, o processo de instituição e consolidação do braço feminino da Ordem Cisterciense na Península Ibérica, bem como relaciona esse processo às tensões políticas em Castela-Leão no século XIII. Para Coelho, como a clausura era um elemento básico e importantíssimo para a legitimação da vida monacal das mulheres, o tema deve ser analisado a partir da cultura política, entendida como “valores em que se assentam e pelos quais se justifica o poder de exigir a observância da clausura, bem como o de permitir as exceções”. Sendo assim, ao final do texto, a autora defende a necessidade de entender a clausura feminina como um elemento de legitimação institucional de um modelo, no qual as disputas concernentes a essa questão devem ser entendidas no contexto social e político de cada região. Finalizando o segundo bloco, o texto de Beatris dos Santos Gonçalves (UCAM-RJ) aborda a importância da concessão do perdão régio no processo penal português para a afirmação de um reino centralizado e fortalecido no século XV. A autora privilegia a análise das Ordenações do Reino e conclui que o “acesso à benevolência da remissão régia” funcionou como elemento de propagação do argumento que “só o rei poderia garantir a justiça”.
O presente dossiê é finalizado por uma sequência de três textos que tratam de ideias de governo, normas, regras e conflitos na Península Itálica. André Luís Pereira Miatello (UFMG) aborda os usos e significados das ideias de bem comum e utilidade comum nas cidades comunais italianas, como Florença, Siena, Bolonha e Pádua. O autor analisa dois escritos retóricos de Brunetto Latini (1220- c.1294): Rettorica (ca. 1260), e Li Livres dou Tresor (ca.1260-1267). Miatello conclui que é possível afirmar a existência de uma “esfera pública” construída nas cidades italianas a partir da noção de bem comum. No texto de Carolina Coelho Fortes (UFF), sobre a formação da Ordem dos Irmãos Pregadores (dominicanos) no início do século XIII, o leitor encontra alguns aspectos da tese de doutorado da autora, defendida em 2011. Seu principal interesse está em discutir o papel dos estudos na constituição de uma identidade institucional dos frades pregadores. A autora analisa documentos como o Liber Consuetudinum e as atas dos capítulos gerais realizados pela Ordem entre 1220-1260. Fortes conclui que, ao identificar na documentação constantes referências à regulamentação sobre a saída dos frades para atuar como mestres, inclusive, em casas de outras ordens, é possível afirmar que os dominicanos, no século XIII, podem ser associados a uma societas studii, ou “sociedade de estudos”. O texto que encerra o dossiê é de autoria de Didier Lett (Paris VII). O autor apresenta uma microanálise sobre qual consciência homens e mulheres poderiam ter dos estatutos nas cidades italianas da região das Marcas de Ancona. Para isso, apresenta e analisa um processo movido pelo pai de uma criança, em 1458, após um jogo de batalha de pedras em São Severino. No processo, a acusação é de um tipo de traumatismo craniano provocado por Benincasa di Beneamato Corradi em Andrea di Nicola. O pai de Andrea recorre à justiça e o pai de Benincasa é convocado a defender o filho. O que estava em causa: a inimputabilidade penal de Benincasa. Em outras palavras, a defesa foi estruturada a partir do argumento de que o acusado teria menos de dez anos quando do ocorrido e, por isso, não deveria ser aplicada pena. Na movimentação dos dois pais a partir do acionamento e recurso à justiça para a resolução do conflito, Didier Lett desvenda um universo que compreende desde as práticas cotidianas de divertimento de crianças e jovens de uma determinada região, a consciência que os habitantes poderiam ter das leis (pois o pai da vítima reclamou na justiça o direito de indenização) e, também, a atuação de diferentes autoridades no processo de formação e a relação entre práticas e representações nas comunas italianas no final da Idade Média.
Os nove textos aqui reunidos, dessa forma, oferecem ao leitor um espectro diversificado sobre o universo político e social, em diferentes regiões, entre os séculos V e XV. Além desses artigos, apresentamos também uma resenha, de Néri de Almeida Sousa (UNICAMP), do recente livro Guerra Santa, de Jean Flori, publicado em português em outubro de 2013. Sendo assim, o leitor tem acesso a um bom número de reflexões recentemente concluídas e / ou de pesquisas em andamento que já produziram resultados consistentes. Resta aos organizadores o convite à leitura e o estímulo ao debate. Agradecemos aos colaboradores da Anos 90: a comissão editorial 2010-2012, que aceitou a proposta do dossiê, aos pareceristas que colaboraram com a qualidade dos textos aqui publicados e aos autores que privilegiaram a proposta ao enviar seus textos para avaliação.
Boa leitura!
Igor Salomão Teixeira
Cybele Crossetti de Almeida
(Organizadores)
TEIXEIRA, Igor Salomão; ALMEIDA, Cybele Crossetti de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]