Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824 | Ivana Frasquet

Fruto de tese de doutoramento defendida em 2004 na Universitat Jaume I de Castellón e dirigida por Manuel Chust, o livro de Ivana Frasquet é contribuição historiográfica de peso. Não apenas porque vivemos tempos de hiperprodutividade acadêmica a resultar, no campo historiográfico, em uma enormidade de superficialidades e efemeridades – situação acentuada pela recente onda de comemorações dos supostos bicentenários das independências da América espanhola, a mesclar pontuais verdadeiras contribuições acadêmicas com uma montanha de redundâncias ou de ideias apenas rabiscadas; mas, sobretudo, porque a obra de Frasquet é boa por ela mesma, feliz encontro de um tema extremamente relevante com uma pesquisadora de alto nível que o conhece tão bem quanto dele gosta.

A independência do Vice Reino de Nova Espanha e a subsequente formação do Estado nacional mexicano são pautas que há muitas décadas têm merecido atenção de grande número de cientistas sociais, sobretudo os historiadores. Muitos mexicanos, vários norte-americanos e canadenses, poucos europeus; dentre estes, os espanhóis delimitam um círculo mais restrito ainda. Um mérito de antemão ao estudo de Frasquet? Em parte sim; mas apenas em parte, já que a pretensão da autora – tanto em Las caras del águila como no restante de sua numerosa produção tematicamente a ela correlata – não é, simplesmente, tratar de um tema de que seus conterrâneos pouco trataram. Essa eventual postura, ao mesmo tempo presunçosa e ingênua, é a de muitos historiadores de muitas histórias de muitos países, mas não a de Frasquet. É como uma historiadora do chamado liberalismo hispânico e da história mexicana em seus desenvolvimentos oitocentistas que ela deve ser efetivamente tomada, e é por aí que sua obra segue.

Os grandes temas de uma historiografia nacional não se esgotam jamais, todos sabemos. O caso aqui presente não é diferente. Conforme bem mostraram avaliações ao mesmo tempo quantitativas e qualitativas da numerosíssima historiografia acerca da formação do Estado mexicano, reunidas por Alfredo Ávila e Virginia Guedea ainda antes dos bicentenários (La independencia de México: temas e interpretaciones recentes. México: UNAM, 2007), o muito que se fez mostra o muito que não se fez, e, claro, a permanente reinvenção de tal objeto historiográfico. Frasquet encontra em seu livro um filão original, apenas parcialmente explorado por uma historiografia pretérita e da qual em vários momentos ela se mostra tributária (a de autores como Nettie Lee Benson, Jaime E. Rodríguez e do próprio Manuel Chust): os impactos das experiências político-constitucionais espanholas peninsulares (logo hispânicas) na definição de um movimento histórico que, na América, levaria à formação do Estado nacional mexicano. A delimitação cronológica de sua obra implica uma circunscrição: a ela importa sobremaneira o que se passa entre a eclosão da segunda onda constitucional espanhola, em 1820 (com a pronta reunião de novas cortes nacionais nas quais a deputação da Nova Espanha desempenharia papel paradigmático), e a queda da efêmera experiência monárquica mexicana, com a proclamação da Ata Federal de 1823. Cádiz e as Cortes de 1810- 1814 se fazem fortemente presentes na análise, mas como manancial do que se passa nos momentos mais cruciais de definição da independência e da formação do Estado que realmente interessam à autora.

O tema e sua delimitação temporal, por si sós, impõem um corte documental à autora, que realiza, então, uma minuciosa e aprofundada leitura de debates parlamentares, madrilenhos e novohispanos/mexicanos (há outra documentação variada complementar). De tal leitura resulta uma análise do problema central que é, simultaneamente, uma narrativa, passo a passo, do que pensaram, disseram e fizeram homens atuantes naqueles espaços parlamentares, cruzada com o essencial do que, em termos políticos, se passava fora deles, na Espanha, na Nova Espanha e no México. Uma “história política” (que prefiro chamar, apenas, de “uma história focada no político”, sem qualquer pretensão categorial) que muitos consideram fora de moda em afãs novidadescos pouco dignos de nota, mas que obras como as de Frasquet contribuem para tornar incontornável.

Ao longo de oito capítulos cronologicamente sequenciados que agrupam as quase quatrocentas páginas da obra, recheadas de citações primárias, menos de citações secundárias (que, afinal, são secundárias), Frasquet nos oferece magnificamente os ritmos e as direções de uma política construída em espaços parlamentares, permeada de embates, contradições, meias-palavras e mudanças repentinas de posição, em meio à qual discerne, de modo enfático, os momentos em que o constitucionalismo espanhol de Cádiz e de Madri se metaboliza em um constitucionalismo agora americano, também mexicano, ao fim e ao cabo hispânico; por vezes, momentos até mesmo em que aquele constitucionalismo é continuidade, isto é, oferece parâmetro de ação, porto seguro para a prática política dos legisladores americanos.

Ponto fundamental de sua tese é a constatação de que a atuação dos deputados de Nova Espanha nas Cortes de Madri tenha se pautado, até junho de 1821, por sinceras tentativas de construção de uma entidade política que abrigasse tanto a Espanha quanto o que restava de seus antigos domínios americanos, em um arranjo político que contemplasse as demandas de autonomia – não de independência – que aqueles deputados expunham. Afinal, será do esgotamento desta alternativa, resultado de um errático processo de embates nas Cortes nos quais diferenças políticas até então concebidas majoritariamente como pequenas se transformaram em verdadeiras incompatibilidades entre peninsulares e americanos, que emergirá um senso de distinção entre espanhóis americanos novohispanos e peninsulares capaz de, aí sim, amparar um projeto de total separação entre as partes (o paralelismo com o caso lusoamericano salta aos olhos. Quem se arriscará a enfrentá-lo?). Uma vez voltados para a construção de um novo Estado, tais deputados, ao irradiarem uma experiência e um conjunto de saberes, inspirações e modelos a outros indivíduos que com eles passariam a atuar no legislativo mexicano, seriam o elo mais concreto a interligar Espanha e México, tecendo os fios de um constitucionalismo que lhes serviu de parâmetro de ação em meio aos turbulentos anos de 1822 e 1823.

De um autonomismo hispano-americano a um autonomismo provincial mexicano (base da república federal de 1824), passando por uma revolução de independência que redefiniu não apenas os agentes de uma questão nacional, mas sua própria natureza (embora Frasquet seja pouco cuidadosa no tratamento deste arcabouço teórico importante, sobretudo ao utilizar de modo impreciso o termo nacionalismo nos três primeiros capítulos do livro), eis a síntese de uma trajetória complexa, que aqui ganha especial concretude.

Para tanto, contribui a arquitetura geral da obra, assentada em uma permanente reiteração, ao longo do livro, da tese central de sua autora. Leiamos então, suas próprias palavras. Logo em sua “Introducción”, afirma, a propósito de uma das “pontas” de seu recorte cronológico: “La participación de los diputados americanos, novohispanos concretamente, en las Cortes de Madrid de 1820 será de gran importancia para la consecución de las aspiraciones autonomistas de este grupo” (p.19); e, quanto à outra “ponta”, que “a partir de aquí [1822], el liberalismo mexicano aglutinará a todas las facciones que, de uma manera u outra, estaban luchando por la independencia de México. Insurgentes, autonomistas, liberales, monárquicos, republicanos, federalistas, centralistas, etc., todos se unirán para conformar el Estado-nación mexicano, eso sí, partiendo del liberalismo hispano que la legislación doceañista y la Carta de 1812 habían dejado en herencia a los diputados novohispanos” (p.21.) Logo em seguida, um cauteloso e benéfico esclarecimento:

Con eso no queremos decir que toda la obra de los constituyentes mexicanos sea fruto de la legislación doceañista, ni mucho menos. Pero sí queremos resaltar el espacio que el liberalismo hispano, que no español, nacido de las Cortes de Cádiz tuvo en la formación del Estado-nación mexicano. Desde nuestra visión global, integradora e contextualizada, no se puede explicar Cádiz sin América, ni América sin Cádiz (p.21).

Tese exposta e devidamente circunscrita, Frasquet dá início ao seu empreendimento, repitamos, com o fôlego que ele exige; embora exigisse também um tratamento mais circunspecto e polissêmico de termos como liberalismo, federalismo e monarquismo, a respeitar uma dinâmica conceitual com a qual a autora não se preocupou (vide os trabalhos de outro historiador espanhol, Javier Fernández Sebastián, não aproveitados por Frasquet). Como quer que seja, vemos sua tese central reiterada em muitas passagens do texto, relativas a fenômenos específicos por meio dos quais revelar-se-iam formas pelas quais a América continuava a se fazer parte do mundo hispânico. Assim, por exemplo, em 1822 “la frustración autonómica había desembocado en un deseo de independencia sentado sobre las bases del constitucionalismo hispano desarrollado en Cádiz” (p.100); ou “la independencia había sido posible gracias al trabajo de los autonomistas mexicanos que tenían en las Cortes de Cádiz y en la Constitución de 1812 el legado político y parlamentário que formaba parte de su tradición hispana” (p.121); finalmente, “la Constitución de 1812 y sus leyes eran el referente legislativo y liberal de los diputados mexicanos en la construcción de su próprio Estado-nación” (p.199), afirmação reiterada tal qual para o que ocorria em março de 1823 (p.291-292), quando “continuaba así el liberalismo mexicano el caminho iniciado en Cádiz sobre la concepción de los poderes” (p.300).

Em suma, Cádiz seguia siendo útil para sentar las bases de la construcción del Estado-nación mexicano, ¡en 1823! Y en un Estado que, como se insinuaba en el último artículo [das proposições apresentadas ao congresso mexicano em 07 de abril], caminaba hacia formas monárquicas de gobierno. ¿Sería eso posible? (p.307).

A aparente perplexidade da autora perante o que ela observa e as interjeições de seu discurso possuem função retórica, para enfatizar a validade de sua tese central, da qual, aliás, o leitor dificilmente discordará. Ponto positivo, talvez o mais importante. No entanto, após repetidas reiterações que nos acompanham até as última página do último capítulo – o livro de Frasquet não possui “Conclusões” formalmente compostas – algo parece ter mudado nessa tese. Progressivamente, o que fora enunciado na “Introducción”, primeiro ganha pertinência – com as consistentes demonstrações empíricas da autora –, para logo se converter em abandono de cautela e em ênfase excessiva. Ora, repitamos: há aqui um corte documental, que implica obviamente na segmentação de uma história (e não há outro modo de torná-la História). A formação do Estado mexicano se explica parcialmente pela continuidade modificada de conteúdos advindos das experiências constitucionais hispânicas. Com isso, certamente Frasquet se mostrará de acordo; de nossa parte, tal afirmação deve soar como uma valorização do que ela própria afirmou à p.21 (supra), e que parece ter ficado para trás à medida que seu livro caminha para o final. Algumas coisas se explicam por aí, muitas e fundamentais, mas claro que nem tudo.

É possível que esta crítica esteja antes confinada à análise formal do discurso de Frasquet do que ao grosso de sua análise histórica. De todo modo, suas conclusões corroboram a percepção desse progressivo abandono de cautela na reiteração de sua tese. Nas últimas páginas do capítulo 8, ainda é possível ler-se, sem freios, que “a la altura de 1823 con la forma republicana declarada, las províncias levantadas en pro de su soberania, con los españoles todavia en suelo mexicano, con la discusión sobre federalismo o centralismo… ¡la Constitución doceañista y toda la legislación hispana emanada de las Cortes de Cádiz y de las de Madrid eran todavia punto de referencia para la construcción del Estado-nación mexicano!” (como discordar da autora? Ao mesmo tempo, como não sentir falta de um matiz do tipo um dos pontos de referência importantes…?). E no último parágrafo do livro, deparamo-nos com uma dura crítica a “algunos autores” que teriam realizado análises da “herencia liberal hispana” na formação do México “desde el presentismo, desde el conocimiento de como sucedieron los hechos en décadas posteriores y desde otras ciencias no históricas”, e que supostamente resultariam na impossibilidade de “que valoremos en su justa dimensión el impressionante cambio revolucionário que el liberalismo produjo en las sociedades del Antiguo Régimen” (p.367).

É razoável restringir o bom da historiografia ao que historiadores, digamos, de formação formal, fizeram? Ou imputar a todos os autores diretamente mencionados – José Antonio Aguilar, Roberto Breña, Rafael Rojas e Alfredo Ávila, referidos em rodapé, mas apenas parcialmente também na bibliografia final, e de posturas historiográficas bastante diferentes entre si – a pecha de anacrônicos? Minhas respostas são ambas negativas. Inclusive por que vejo em tais autores méritos e posturas em muitos casos perfeitamente compatíveis com muito daquilo que há no livro de Frasquet. Por exemplo, no fato de também eles (todos) terem se preocupado com as experiências constitucionais de Cádiz e de Madrid “lá” e “cá”, jamais confinando os escopos de suas também excelentes análises aos limites geográficos ou intelectuais desenhados pelo nacionalismo historiográfico mexicano (o que, aliás, esvazia a mal-humorada crítica historiográfica realizada por Jaime Rodríguez em seu “Prefacio” a Las caras del águila). Mérito de todos os aqui citados; méritos, aliás, de muitos outros, por toda a parte, voltados às independências e às formações estatais nacionais a elas subsequentes.

Esse antagonismo entre o que se apresenta em Las caras del águila e o que se apresentou antes dele não implode, sequer esvazia muitos de seus méritos, alguns dos quais sequer mencionei – ou teria condições de mencionar – aqui. Se várias de suas passagens, marcadas por um desmedido embate historiográfico, dão a impressão de uma tese em tom excessivo e fecham portas ao debate, todo o resto abre muitas e muitas outras, função última de obras historiográficas reveladoras, pujantes e importantes, qualidades últimas – repitamos – a definirem o livro de Frasquet.

João Paulo Garrido Pimenta – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil). E-mail: jgarrido@usp.br


FRASQUET, Ivana. Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824. Castelló de la Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, 2008. Resenha de: PIMENTA, João Paulo Garrido. A formação do México, entre a Espanha e a América. Almanack, Guarulhos, n.3, p.152-156, jan./jun., 2012.

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Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800) | Thais Buvalovas

Hipólito José da Costa é, sem sombra de dúvidas, fundamentalmente conhecido, lembrado e estudado por ter sido o fundador e editor do primeiro veículo de imprensa brasileiro. Apesar de intitulado Correio Braziliense, seu jornal mensal foi publicado em Londres, entre 1808 e 1822. Constitui uma espécie de depositário das ideias de seu criador e gestor, ancoradas essencialmente no liberalismo inglês. Por intermédio do Correio Braziliense, o autor mostrou-se contrário ao poder absoluto, militou pela liberdade de imprensa e de comércio e defendeu o trabalho livre.

A despeito de ter angariado fama com o jornal, as origens de algumas de suas práticas e ideias políticas (como as atividades maçônicas e os ideais abolicionistas) já estavam em desenvolvimento antes de sua atuação como periodista. Elas teriam emergido, ou ao menos se robustecido, durante uma viagem de três anos aos Estados Unidos, para onde partiu quando, aos 24 anos, acabara de se formar em Leis em Coimbra. É o que defende Thais Buvalovas, em Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800), trabalho originalmente realizado como mestrado no Departamento de História da USP, em 2007, que agora a Editora Hucitec traz acertadamente a um público mais amplo, com sua veiculação em formato de livro.

A viagem de Hipólito aos Estados Unidos ocorreu como encargo da Coroa portuguesa, a mando de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro da Marinha de Ultramar. Correspondia às funções de Hipólito da Costa reunir informações sobre a produção agrícola nos Estados Unidos, estudar métodos empregados na mineração, bem como observar a tecnologia usada na navegação dos rios e canais. Também foi incumbido de coletar exemplares da planta e inseto da cochonilha, para que fossem aclimatados no Brasil, mas para isso ele teria que viajar até a fronteira sul dos Estados Unidos e entrar clandestinamente em território mexicano.

A viagem estava situada no contexto da Ilustração, fonte de inspiração para as viagens científicas do século XVIII, por meio das quais estudiosos das nações europeias mais desenvolvidas buscavam investigar e catalogar os elementos da natureza em escala planetária. Também eram instigados por uma nova lógica de mercado, pautada pela busca de domínio comercial sobre importantes centros produtores de recursos naturais. Fazer parte do círculo das viagens científicas significava, de alguma maneira, integrar um processo de modernização que se espraiava pela Europa e que em Portugal vinha sendo fomentado na esteira das reformas pombalinas. Em suma, era preciso garantir o lugar neste circuito.

O périplo de Hipólito pelos Estados Unidos gerou uma gama de documentos, que constitui a base da pesquisa deste livro. Por ordem de importância, o principal documento utilizado é Diário de minha viagem para a Filadélfia, um caderno de anotações pessoais, no qual Hipólito da Costa narra sua estadia nos Estados Unidos, onde fixou-se na Filadélfia (então capital federal), passando também por outros lugares, como, por exemplo, Boston e Nova Iorque. O Diário narra a viagem de dezembro de 1798 a dezembro de 1799. Por razões ainda inexplicadas, não constam do documento as anotações relativas ao ano de 1800, período durante o qual ainda se manteve no país.

Além do Diário, a autora explora outras fontes, como as cartas de ofício, enviadas por Hipólito da Costa a autoridades de Lisboa, e um relatório sobre a viagem, intitulado Memória sobre a viagem aos Estados Unidos (1801). São documentos de naturezas distintas, ainda que todos se relacionem à viagem: o Diário é pessoal, uma escrita sem pretensões literárias ou acadêmicas; as cartas de ofício eram voltadas para superiores hierárquicos, assim como a Memória, ainda que esta guarde a peculiaridade de poder alcançar um público mais vasto.

Tal diversidade possibilitou a comparação entre os diferentes tipos de documentos, evidenciando contrastes nas informações, omissões e liberdades narrativas de um e outro lado, fato bastante enriquecedor numa investigação. Como mostra Luciana de Lima Martins, em O Rio de Janeiro dos viajantes (2001), a pluralidade da documentação contribui para que se obtenha como resultado de pesquisa uma visão menos homogênea, a que um acesso limitado a obras oficiais poderia levar. De acordo com esta autora, “anotações e imagens inacabadas” dos viajantes ajudam a trazer complexidade ao objeto estudado, mostrando diversificados ângulos, sobretudo por se tratarem de documentos “mais abertos e menos polidos”. (p. 38.) As discrepâncias identificadas por Thais Buvalovas nos documentos de Hipólito revelam os artifícios do autor para escolher o que podia ser publicado e relatado em âmbito oficial, e o que deveria ficar resguardado a um universo mais privado, pessoal.

Nesse sentido, um dos resultados centrais de Hipólito da Costa na Filadélfia foi evidenciar, por meio da análise das distintas fontes, que o autor não deu as mesmas informações sobre seus trajetos e ações nos diferentes papéis que produziu ao relatar a viagem. O confronto das fontes mostra certas inconsistências. O exemplo cabal disso se relaciona aos planos de viajar ao sul dos Estados Unidos e adentrar o território sob domínio espanhol. As cartas oficiais mostram uma pretensão nesse sentido, assim como a Memória, por meio da qual Hipólito afirma ter percorrido a região. Contudo, na leitura do Diário tal percurso parece não ter sido realizado. Isso leva a autora a desacreditar no roteiro oficial, que incluía tais viagens ao sul dos Estados Unidos e ao México. A consulta a catálogos de Botânica e a coleta de informações e espécimes na visita ao horto de um amigo naturalista da Filadélfia, teriam poupado o viajante de realizar este roteiro. Não se trata, entretanto, de um consenso. Segundo Neil Safier, em um capítulo sobre Hipólito da Costa em recente coletânea organizada por Bernard Bailyn e Patricia L. Denault (Soundings in Atlantic History, 2009, p.280), não é possível descartar totalmente a possibilidade de Hipólito da Costa ter cumprido tal trajeto, até que novas fontes sejam investigadas.

De qualquer maneira, a discussão que Thais Buvalovas faz em seu livro sobre as fontes é rica e interessante. A autora alerta que as inconsistências na Memória e nas cartas – documentos oficiais – “indicam que eles não refletiam a realidade dos fatos”. Por outro lado, o Diário revela “um esforço muito grande para encontrar alternativas e alcançar resultados em sua missão” (p.73). A despeito disso, a autora não trabalha com a perspectiva de que este seja mais “verídico” do que os primeiros. De acordo com Buvalovas, o Diário também “sonega dados” (p.24), não só em razão de ser uma escrita pessoal, não precisando, assim, esclarecer tudo, mas também porque tem intenção clara e deliberada de omitir nomes, fatos, opiniões, relacionamentos. Mesmo sendo um documento não oficial, está permeado por filtros, omissões e pela auto- censura (como as de motivações políticas).

Este exemplo é particularmente interessante para reforçar os questionamentos, presentes em trabalhos historiográficos contemporâneos, sobre a ideia de fidedignidade das fontes, independentemente do tipo de documento em questão. No caso específico da literatura de viagem, a relativização passa pela discussão do caráter extremamente ambíguo dessa documentação, que trafega entre a materialidade da experiência e a subjetividade do olhar. Para o estudioso que lida com esta fonte, tudo parece ser motivo para dúvidas, e o fato do viajante declarar ter visto, ouvido, sentido, experimentado, nem sempre é suficiente para garantir a credibilidade da narração. Com a viagem e o Diário de Hipólito da Costa não haveria de ser diferente.

Apesar de usar fontes diversificadas, o Diário pessoal de Hipólito da Costa é o documento primordial da pesquisa, que norteia o desenvolvimento dos capítulos, com exceção do primeiro – intitulado A serviço do rei – , que cumpre a função de apresentar as origens familiares e sociais do autor e o contexto histórico no qual se inseria. Neste primeiro capítulo a autora perfaz a trajetória do personagem desde o seu nascimento, na Colônia do Sacramento, em 1774, até se tornar agente da Coroa Portuguesa. Também procura analisar aspectos da história familiar de Hipólito, entremeada nos conflitos entre lusos e castelhanos. Em 1777, quando os portugueses foram expulsos de Sacramento, Hipólito da Costa tinha três anos. A família seguiu para o exílio em Buenos Aires e aí permaneceu até 1778, partindo para Rio Grande de São Pedro, onde Hipólito viveria até os 18 anos, antes de rumar a Portugal.

A respeito deste capítulo, cabe destacar a preocupação da autora em distanciar-se do modelo biográfico. Sua intenção não é saciar a curiosidade a respeito da vida do periodista (p.31-32). A pergunta norteadora no caminho que constrói para explorar as origens de Hipólito da Costa é de cunho social. A autora parece questionar a ideia, por demais geral e talvez banalizada, de que ele fazia parte da elite. Assim, tenta recompor historicamente as condições de vida de seus familiares: as dificuldades enfrentadas pelo lado materno da família, como primeiros lavradores na região da Colônia do Sacramento no início do século XVIII; as inseguranças e deslocamentos a que a família foi submetida em razão das disputas fronteiriças entre lusos e castelhanos, o que resultou na necessidade de exílio em Buenos Aires, onde aparentemente as condições também não foram nada satisfatórias. Uma situação mais favorável só se concretizaria com a mudança para a Vila de Rio Grande, região que se desenvolveu, a partir de fins do século XVIII, seja pela concessão de sesmarias, fruto do processo de demarcação de fronteiras, seja pelo comércio irregular de animais entre os dois lados da fronteira. Na parte referente à fase da vida de Hipólito da Costa como estudante em Coimbra aborda, sobretudo, o contexto de desenvolvimento das reformas ilustradas em Portugal, que acabaram dando ensejo à inserção no circuito das viagens científicas.

Os capítulos que se seguem são primordialmente marcados pela experiência da viagem aos Estados Unidos e calcados na análise das fontes desta viagem. Pode-se dizer que um dos intuitos da autora nos capítulos dois a quatro é identificar as diferentes “vozes” que ajudaram a compor as ideias de Hipólito da Costa e contribuíram para a construção de suas representações. Dessa maneira, temas como a maçonaria, a imprensa, a religião e a política perpassam estes capítulos.

No capítulo 2, intitulado a Aurora da Filadélfia, analisa a “profusão de papéis” que permeiam a construção do Diário de Hipólito da Costa. Segundo a autora, a imprensa fazia a “mediação entre a experiência e a representação da realidade” (p.61). Isto é, entende que o Diário “falava” também por intermédio dos impressos, não sendo compreendido como um tradutor fidedigno da realidade. A ênfase do capítulo é sobre a apropriação que Hipólito fez da gazeta Aurora General Advertiser no Diário. Fundada em 1790, por Benjamin Franklin Bache (neto de Benjamin Franklin), o jornal defendia os republicanos jeffersonianos, grupo no interior do qual alguns emigrados radicais que não tinham espaço na Europa vieram se instalar. Este foi o caso de Willian Duane, diretor do jornal após a morte de Fanklin Bache. A sobrevivência da gazeta se deveu a uma insistência do próprio Thomas Jefferson, que via nela uma chance para a perpetuação da causa republicana.

O contexto político é o da disputa entre os federalistas e republicanos. Ao descrever cada uma das tendências, talvez por forte envolvimento com sua fonte, a autora acaba por tecer um perfil mais simpático dos republicanos, entre os quais se envolveu Hipólito da Costa. De acordo com sua descrição, os federalistas advogavam pelo fortalecimento da União, reuniam grupos do norte, representantes da aliança entre o grande capital e o comércio. Os republicanos, por seu turno, eram adeptos do autogoverno e autonomia em relação ao poder central, concentrados mais ao sul do país e praticantes da agricultura e auto- suficiência da indústria doméstica, incluindo aí o sistema de plantation. Os jeffersonianos criticavam os federalistas pela centralização política, pela cobrança de novos impostos e formação de um exército permanente e apoiavam as liberdades e direitos individuais, o trabalho intelectual, a austeridade moral, o mérito e não os privilégios. A Aurora vinha nesta esteira, denunciando o perfil aristocrático dos federalistas com acusações de um desejo recolonizador. Há algumas questões neste rol de características que merecem ser evidenciadas. Como conciliar a crítica aos privilégios e o apoio às liberdades e direitos individuais com o sistema de plantation? Não haveria interesses concretos, defendidos pelos republicanos, ao criticarem, por exemplo, as propostas federalistas de especularem comercialmente com as propriedades rurais? Até que ponto o perfil assumido pela pesquisadora em relação aos republicanos não reproduz, com pouco distanciamento, a posição mantida por Hipólito no próprio Diário, que possivelmente não diferia da propaganda do próprio partido e os seus partidários?

O livro não trata apenas da política stricto senso. A política, na perspectiva da autora, está entremeada a questões de ordem cultural. É esta compreensão que permite trafegar entre temas como os ideais de limpeza, asseio, simplicidade, austeridade e trabalho, defendidos pelos quacres, entre os quais Hipólito circulou. Também explora temas correlatos, expressões dos republicanos jeffersonianos e da Aurora da Filadélfia, como a crítica ao luxo e ao ócio e a valorização da virtude em oposição à degeneração, ao mundanismo, ao exagero.

Todos estes elementos são recuperados no Diário e explorados pela autora que, recompondo uma trama delicada, consegue enxergar as articulações entre religião, política, partido e imprensa. Situa então o texto do autor num ideário próprio a denominações do protestantismo anglo-americano, entendendo, entretanto, que a leitura religiosa estava conectada com a política. O ideário de ordem, limpeza, trabalho e austeridade estavam presentes também no discurso republicano democrata da Aurora.

No terceiro capítulo explora a presença de uma tendência da maçonaria – a chamada Maçonaria Antiga – nas entrelinhas do Diário de Hipólito. Ele fora admitido entre os “Antigos” da Filadélfia em 1799. Esta ala da maçonaria surgiu em Londres, em meados do século XVIII, formada por irlandeses e ingleses dissidentes da Grande Loja da Inglaterra, que condenavam os “Modernos” por adulterarem antigos rituais da ordem. Do ponto de vista social eram constituídos por grupos menos favorecidos, como os artesãos urbanos, e politicamente eram mais combativos do que os “Modernos”. A corrente prosperou nos Estados Unidos – sobretudo na Pensilvânia –, que acolheu exilados políticos de diferentes partes da Europa (França, Escócia, Irlanda). Ali, associavam-se aos quacres e também aos políticos republicanos. Atuariam politicamente contra os federalistas.

A entrada na maçonaria propiciou a integração de Hipólito da Costa a uma rede de sociabilidades que reunia, além de maçons, republicanos, quacres e refugiados europeus. Sua participação nesta rede garantiu acesso a fontes privilegiadas para a realização de seus encargos. As viagens que faria in loco para estudos e pesquisas teriam sido, de acordo com a autora, poupadas pelo fato de ter conseguido pesquisar material já sistematizado por outros cientistas. No lugar de viajar para coletar espécimes, teria conseguido importá-las por meio de intermediários, para o que seus contatos sociais teriam sido muito úteis. O foco do capítulo é a rede de proteção que a maçonaria significava, que estava interligada aos emigrados, aos quacres e aos republicanos. Para cumprir a tarefa de investigar esta rede, teve que perscrutar as trajetórias dos personagens com quem Hipólito da Costa se relacionou, o que contribuiu, inclusive, para a compreensão de suas afinidades políticas.

Finalmente, o quarto e último capítulo está dedicado a analisar temas que continuariam a ter repercussão no trabalho periodístico de Hipólito da Costa, como o projeto de emancipação gradual dos escravos e a imigração. Nestes pontos, conclui que a experiência nos Estados Unidos foi uma referência importante para o autor, e é esta permanência que Thais Buvalovas busca explorar na análise que faz tanto do Diário, quanto das páginas do Correio Braziliense.

O Diário dá mostras de como o seu antiescravismo pode ter sido assimilado pela via do quacrismo, com a qual conviveu na Filadélfia. Dentre os registros sobre o tema destaca uma visita realizada à Penitenciária da Filadélfia, administrada por quacres. Ali, descreve o clima de relativa tolerância que se impunha como norma, entre brancos e negros, ainda que transparecesse um resquício de segregação. A explicação deste resquício a autora busca na visão de mundo quacre, segundo a qual, a despeito da convivência com a diferença, se mantinha um sentido de diferenciação e de valorização das próprias qualidades em relação à sociedade como um todo.

Ao analisar as ideias antiescravistas no Correio, elenca duas principais possíveis inspirações: uma, de origem quacre, segundo a qual a escravidão destruía a moral de seu senhor, transformando-o num déspota, e a outra, pautada na perspectiva iluminista, por meio da qual a escravidão era considerada um inimigo do Estado e da sociedade. A conclusão da autora é de que a primeira perspectiva pesou fortemente sobre a concepção do autor, o que confirma a sua hipótese em relação ao importante papel que a viagem jogou na constituição de sua ideias.

Por outro lado, parecem discrepar com isso as considerações do autor quando esteve em Nova Iorque. Nesta parte, curiosamente, Hipólito da Costa afirma que os negros eram mais bem tratados no sul do que no norte, onde a agricultura se encontrava decadente, as terras incultas e sem recursos para o cultivo. Afirmações como essa, de acordo com a autora, se deviam ao fato de Hipólito ter também como interlocutores os republicanos, que, além de se posicionarem contra o grande comércio do norte, eram aliados dos escravocratas do sul, que davam apoio a Jefferson. De qualquer maneira, o quacrismo parece ter sido preponderante nas defesas que faria posteriormente, de não sujeição e de abolição gradual da escravidão, nas páginas do Correio Braziliense.

Assim, se confirma a relevância do périplo pela América do Norte na formação do pensamento do autor. Para além disso, se atesta ainda um caminho circular percorrido por suas idéias, pois o Correio Braziliense foi escrito na Inglaterra, isto é, ambiente de origem do ideal de insubmissão defendido pelos quacres, que fora herdado de sua origem leveler. Um jogo interessante e não linear se constrói aqui: o exílio londrino está à frente, na escala cronológica e na biografia do autor estudado; contudo, no universo de pensamento esta viagem é retrospectiva, pois une, por caminhos espiralados e tortuosos, as duas pontas – norte-europeia e norte-americana – de um pensamento de tradição anglo-saxã. Uma curiosa aventura, boa para dar nós nas imagens muito lineares que se possa fazer da história.

Para retomar o título desta resenha, trata-se de uma viagem iniciática. Mas a quê, afinal de contas, a viagem de Hipólito da Costa aos Estados Unidos deu início? Entre a primeira fase da vida (capítulo um) e sua experiência nos Estados Unidos (capítulos três a quatro) parece haver um hiato. A leitura parece sugerir que suas origens luso-brasileiras, com o tempo, vão ficando para trás, num lugar recôndito, para o qual, aliás, o autor nunca mais voltou. Seguindo uma sugestão de Isabel Lustosa, Buvalovas afirma haver, em certas temáticas presentes no Correio Braziliense, como é o caso da escravidão, “pouca identidade [do autor] com o mundo luso-brasileiro”. (p.135).

A viagem, de acordo com esta interpretação, não parece ter sido só experiência cumulativa de conhecimentos. Indica também certo distanciamento em relação a sua origem luso-brasileira e uma incursão profunda numa diferente tradição; enfim, um exercício de resignificação das origens, que marcaria sua trajetória dali por diante. O livro propõe a importância de se entender os caminhos e descaminhos de Hipólito da Costa durante sua viagem aos Estados Unidos para melhor compreender as idéias do editor do Correio Braziliense.

Stella Maris Scatena Franco Vilardaga – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: stella.franco@unifesp.br


BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). Imprensa, maçonaria e cultura política na viagem de um ilustrado luso-brasileiro aos Estados Unidos. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: VILARDAGA, Stella Maris Scatena Franco. Uma viagem iniciática. A experiência norte-americana na constituição do pensamento político de Hipólito da Costa. Almanack, Guarulhos, n.3, p.143-148, jan./jun., 2012.

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Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864) | Milton Carlos Costa

Concebido originalmente como trabalho de conclusão de curso em História pela Universidade Católica de Leuvan, na Bélgica, em 1979, a pesquisa do Prof. Milton Carlos Costa vem a público somente agora. O objetivo é reconstituir e analisar as visões políticas do Brasil imperial a partir dos escritos produzidos por representantes belgas que visitaram o país entre 1834, data da chegada do primeiro diplomata, Benjamin Mary, e 1864, momento marcado pela eclosão da Guerra do Paraguai. Para tanto, analisa um corpus documental constituído pelo Dossiê 1192 – Correspondência Política (1831-1870), reunido em cinco volumes, e pelos dossiês pessoais dos representantes belgas no Brasil, a saber, os diplomatas Benjamin Mary, Auguste Ponthoz, Joseph Lannoy, Eugene Desmaisières, Borchgrave d’Altena, Oscar Du Mesnil e Edouard Anspach, além dos cônsules Edouard Tiberghien e Edouard Pecher. Neste amplo trabalho de pesquisa realizado nos Archives du Ministère des Affaires Étrangères de Belgique, o autor percorre temas caros à historiografia brasileira.

Primeiramente, as relações da monarquia brasileira com outros países. A serviço da Bélgica, país industrializado e interessado em expandir seus mercados, os diplomatas e cônsules ocuparam grande parte dos seus escritos examinando-as. O Brasil pós 1822 aparece como integrado no sistema de dependência. Nas relações Brasil-Inglaterra, esses informantes elencaram dois focos de conflito, a Questão Christie e a repressão ao tráfico negreiro. Esta última seria uma tentativa de impedir o desenvolvimento agrícola brasileiro, interpretação que os aproxima da forma como essas problemáticas são tratadas historiograficamente. A análise revela, ainda, uma preocupação com a expansão estadunidense no continente americano, a percepção do imperialismo em gestação, e o sentimento de pavor representado pelo sistema republicano dos países do Prata. Notório, entretanto, é o fato de Costa identificar nessas correspondências um aspecto pouco conhecido das relações Brasil-França, que é a repressão francesa ao comércio de escravos.

Diretamente ligado a isto, um segundo tema de relevo é a questão escravocrata – e suas interfaces. Longe de um consenso, nota-se entre os informantes a existência de posições divergentes acerca deste ponto nevrálgico da sociedade brasileira. Para Tiberghien e Jaegher, a escravidão era uma necessidade indispensável, vital para o Império, ao passo que Lannoy enxergava aí um entrave à expansão capitalista. Assim, emerge a defesa da colonização por imigrantes e a rejeição à colonização assalariada enquanto solução para resolver a crise da agricultura cafeeira e açucareira que adviria do fim do tráfico negreiro. Esta defesa, no entanto, era um meio de servir aos interesses dos países industrializados europeus, como bem frisou Costa.

Adentramos, pois, à interpretação da realidade brasileira propriamente dita. O Brasil aparece como semicivilizado, principalmente nas regiões interioranas, cujo estado de organização parecia deixar a desejar, e para o que defendiam a necessidade de uma reforma institucional. A dificuldade de aplicação das leis é atribuída a influência da extensão territorial e o fato de que as diversas regiões do país viviam em “idades históricas” distintas, com desenvolvimentos desiguais. A economia era tida como rudimentar; a Câmara como verborrágica, indolente e ineficaz; e o Senado, conservador por excelência. Quanto aos partidos políticos, pelos quais demonstravam aversão, foram taxados como violentos, ressentidos e politicamente anêmicos, estando a organização do governo fadada ao revezamento entre conservadores e liberais.

Sob a ótica dos representantes belgas, havia uma clara contradição entre os princípios constitucionais, democráticos, e a realidade político-social brasileira, oligárquica. O “esquema das classes sociais no Brasil” aparece tripartido, hierarquizado em dominantes, dominados e ociosos. As massas, enquadradas nesse último grupo, são descritas como apáticas e ignorantes por razões intrínsecas ao formato da monarquia no Brasil. Singular em sua própria gênese, era antes um sistema passivo, um poder fraco e instável, que culminava na precariedade da vida cultural e do nível de civilização da massa da população, e seria, segundo Jaegher, a causa geral das rebeliões e revoluções do período regencial. De acordo com os informantes, esse problema estrutural teve ramificações profundas na constituição da sociedade brasileira – e aqui passamos a uma terceira questão que convém destacar na obra. Costa pontua a crença, por parte dos diplomatas e cônsules, da existência de um “caráter brasileiro”, constituído pela inconstância, espírito de trapaça, aversão aos estrangeiros, indolência e excessiva vaidade.

Em verdade, a defesa contundente da causa monárquica – e consequentemente dos interesses europeus – permeia o teor de todas as análises, principalmente acerca do que representaria um grande perigo à sua sobrevivência, como o sistema político de Rosas, as relações com os EUA, as conturbações das Regências, a dita “saúde frágil” de D. Pedro II e seu “despreparo” para a política. A lente conservadora e etnocêntrica com que enxergaram o universo brasileiro, conclui Costa, não impediu, porém, de registrarem a realidade do país de “maneira minuciosa, problemática e extremamente crítica” (p.187).

Em que pesem as três temáticas – relações internacionais, escravidão e identificação do “caráter brasileiro” –, inicialmente pode parecer que estamos diante de mais uma pesquisa que busca apreender a história do Brasil a partir de uma perspectiva europeia. E, com efeito, o material deixado por estrangeiros que visitaram o país no século XIX constitui, desde há muito, importante fonte para os estudiosos do Império brasileiro. Que o leitor não se engane, pois é justamente aí que reside o grande mérito da obra em questão. Ao elencar os relatórios enviados a Bruxelas pelos diplomatas e cônsules encarregados de compor um mapeamento das relações entre Brasil e Bélgica, o autor traz a lume um conjunto de estrangeiros se não totalmente desconhecidos da historiografia brasileira, ao menos pouco estudados.

No quadro de europeus que registraram suas impressões sobre o Brasil no Oitocentos, esses representantes belgas são marcados por uma singularidade. Em seus escritos, há pouca ênfase nas “riquezas naturais” brasileiras, muito embora a agricultura fosse vista como a base da prosperidade. Uma provável explicação para isso é o fato de que seus interesses eram fundamentalmente econômicos. O conhecimento científico do território não estava em seus horizontes. Importava antes analisar as possibilidades de expansão das relações comerciais à diversidade ecossistêmica do Brasil, tão exaltada pelos viajantes do século XIX. Em outras palavras, se para estrangeiros como Auguste de Saint-Hilaire, Georg Heinrich von Langsdorff, John Emmanuel Pohl e Carl Friedrich Philipp von Martius o Novo Mundo apresentava-se como um espaço para ampliação dos saberes da História Natural, ainda que voltada ao uso utilitário da natureza, para os diplomatas e cônsules era um mercado em potencial.

O contexto em que foi produzido também faz deste um trabalho pertinente. Escrito na década de 1970, em uma universidade europeia, insere-se num momento bastante significativo do ponto de vista da historiografia mundial. A terceira geração dos Annales, já em fins da década de 1960, ao advogar em favor de um maior contato da História com as variadas disciplinas das Ciências Sociais, abriu o campo de possibilidades, trazendo novas temáticas para o cotidiano do historiador e renovando o interesse pelas problemáticas do político e da política, as quais passaram a ser trabalhadas em uma outra perspectiva. O imaginário social, as representações, o comportamento coletivo, o inconsciente, as sensibilidades, entre outros, são, então, incorporados à investigação histórica sob a chave da Nova História Política, que entende o político como domínio privilegiado do todo social (RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.9-11).

A opção metodológica adotada por Costa é influenciada por este movimento. Por um lado, o reinteresse pela História das Mentalidades, que marca o período, faz-se presente na estruturação dos capítulos, nos quais é possível identificar a convergência dos dois caminhos propostos por Lucien Febvre para a compreensão do real, isto é, o individual e o social. À contextualização biográfica – incluindo os planos intelectuais, pessoais e profissionais – dos representantes belgas são somadas as relações pessoais mantidas com outros diplomatas, ministeriais e representantes de governo, e traços de caráter, como a franqueza de Mary, a sociabilidade de Jaegher, a firmeza de Lannoy, e a inteligência de Anspach. Por outro, o diálogo com a Antropologia histórica é perceptível na noção de alteridade. Ainda que o cônsul Pecher seja singular por ver o Brasil do ponto de vista do próprio país, o parâmetro de análise dos relatórios diplomáticos e consulares é europeu. Esses elementos, pessoais e coletivos, ajudam o autor a compreender melhor a percepção da realidade brasileira sob a ótica dos representantes belgas, muitas vezes de maneira comparativa.

Nesse sentido, Visões Políticas do Império dialoga com importantes trabalhos da historiografia brasileira. Caio Prado Jr, Nelson Werneck Sodré e Maria Odila Leite da Silva Dias são chamados quando da identificação das problemáticas comuns entre eles e as análises dos representantes belgas. E são tangenciados os estudos de Raymundo Faoro, cuja tese, “Os Donos do Poder”, sobre a sociedade patrimonialista, empresta nome a um dos subcapítulos, e de Ilmar Rohloff de Mattos acerca da formação do Estado nacional e dos partidos políticos brasileiros. O leitor tem em mãos, portanto, um sólido trabalho de pesquisa documental, metodologicamente embasado e historiograficamente relevante aos estudiosos do Império brasileiro.

Fabíula Sevilha de Souza – Mestranda no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL/UNESP – Assis/Brasil). E-mail: fsevilhas@yahoo.com.br


COSTA, Milton Carlos. Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864). São Paulo: Annablume, 2011. Resenha de: SOUZA, Fabíula Sevilha de. Política, Economia e Sociedade: o Império Brasileiro sob a perspectiva belga. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 149-151, jan./jun., 2012.

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Camino a Baján | Jean Meyer

Alguns meses depois, diante do pelotão de fuzilamento, o padre Miguel Hidalgo tinha de recordar aquele dia em que conclamou seus fiéis, às portas da igreja de Dolores, em Guanajuato, a lutar por uma liberdade que parecia simultaneamente óbvia e difícil. Com o estandarte da Virgem de Guadalupe na mão, Hidalgo transformou o 16 de setembro de 1810 num marco da luta pela independência do México. Ele também iniciava, ali, aos 57 anos, uma impressionante transformação pessoal, que o colocaria na história e que, para o bem e para o mal, redefiniria o sentido de sua fé. O sucesso da ação emancipacionista parecia, no princípio, inevitável, mas as reações dos realistas e da Igreja, a guerra brutal, as traições, as idas e vindas da política, com suas muitas armadilhas, fizeram com que sua trajetória fosse breve e trágica: em março de 1811, o padre foi preso e, em quatro meses, julgado, condenado e executado. Um pouco antes, porém, de enfrentar o pelotão, Hidalgo sentiu os últimos prazeres da comida e da oferta: tomou seu chocolate – reclamando do parco leite que justo no dia da morte lhe serviam—, caminhou até o paredão e então se lembrou dos doces que esquecera no quarto. Parou, pediu que os buscassem e esperou. Quando os trouxeram, retomou seu caminho, comeu alguns deles e repartiu os demais com os soldados que o executariam. Convictamente. Serenamente.

É apenas aparente, no entanto, a tranquilidade do Hidalgo que Jean Meyer nos apresenta numa surpreendente ficção histórica: Camino a Baján (México: Tusquets, 2010), romance que parte da história, dialoga ininterruptamente com ela, retorna a ela. Uma primeira versão do livro saíra em 1993 com o título de Los tambores de Calderón (México: Editorial Diana). Ambos os títulos mencionam lugares decisivos para o desfecho da luta de Hidalgo e metaforizam seu fim: a Ponte de Calderón, onde teriam rufado os tambores, foi o local da decisiva derrota que levou o padre a fugir na direção dos Estados Unidos; Acatita de Baján, a meio deserto, foi a cidade em que o aprisionaram. Seu caminho para Baján é, portanto, mais do que uma fuga; é uma marcha para a morte.

Jean Meyer não buscou Hidalgo por acaso. Pesquisador da história do México e membro da Academia Mexicana de História, já escreveu dezenas de trabalhos sobre temas distintos e próximos, como a Revolução de 1910, as relações entre Estado e Igreja, as revoltas dos cristeros, o sinarquismo e as lutas camponesas. Publicou, em 1996, uma breve biografia de Hidalgo (México: Clio). Circundou o personagem, portanto, cercando-se de farta documentação e de denso levantamento bibliográfico, para traduzir a figura e a trajetória do padre numa ficção.

O livro é de leitura agradável, dispensa esclarecimentos e notas que justifiquem ou legitimem suas afirmações, solta-se dos rigores acadêmicos e historiográficos, inventa seu próprio estilo, valoriza a dimensão imaginativa e cogita possibilidades históricas de incabível comprovação. Meyer combina o discurso indireto e as descrições – registros habituais da historiografia – com discurso direto ou indireto livre, marcas correntes da ficcionalização. Atenua, dessa forma, o efeito da narração em terceira pessoa e da preocupação de assegurar, com seus longos trechos informativos, que o leitor acompanhe o movimento da história e se certifique da veracidade de muitos dos fatos apresentados. Tal compromisso com a verossimilhança aproxima Camino a Baján do romance histórico tradicional, ao mesmo tempo que demonstra o reconhecimento do primado da literatura em relação à história, dada sua capacidade de sondar o que poderia ter acontecido, mas não aconteceu, e não apenas de se ater ao que foi efetivamente vivido.

A obra, no entanto, tem outro lado – historiográfico – porque, embora se trate de um romance, o autor não o escreve apenas como ficcionista. Recorre a estratégias da narrativa de imaginação, mas mantém os pés solidamente fincados no terreno da pesquisa histórica. Recorre fartamente à documentação do período, hesita em se lançar a especulações carentes de sustentação ou em produzir mitificações baldias. Ou seja, ao mesmo tempo que Meyer se preocupa em construir um relato organizado e articulado sobre os últimos meses da vida do padre Hidalgo, ele também evita as simplificações que tanto a história quanto a ficção muitas vezes produzem quando privilegiam a fluidez do relato em detrimento de sua densidade e se isolam em rituais endogâmicos. Ao rejeitar as barreiras que separam as narrativas e situar sua obra na fronteira entre a ficção e a história, o autor se vale das vantagens de ambas e, mais importante, das perspectivas inesperadas e inusuais que o diálogo entre elas oferece. Fronteiras disciplinares ou narrativas, afinal, não são apenas – nem prioritariamente – espaços de separação; ao contrário, são zonas de transição, de porosidade. Nelas, as características mais destacadas de cada lado podem se atenuar e cresce a oportunidade da contaminação, da mistura. Manifesta-se, de maneira categórica, a necessidade de reconhecer a presença do outro e sua perspectiva distinta.

Num livro importante, Carlo Ginzburg (Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) recorre a uma metáfora de Marcel Proust para defender o valor dos diálogos disciplinares e metodológicos e recusar a banalização da realidade – e, em decorrência, das representações que se fazem a partir dela. O historiador italiano lembra do esforço de um personagem de Em busca do tempo perdido, “para expor as coisas não como ele sabia que eram”. Ele é pintor e pinta “ao revés”: escapa do óbvio, de si mesmo, e assume a perspectiva que lhe é inversa com todas as suas possibilidades. A representação do presente ou do passado —nos ensinam Proust e Ginzburg— é, assim, aprimorada pelo “estranhamento” que podemos sentir ao olhar para um tempo, um episódio ou processo histórico, um personagem. Não é diferente quando encaramos um tipo de narrativa a partir de terreno distinto, quando nossa perspectiva da história é orientada pelo prisma da ficção, ou vice-versa. Em outras palavras, as implicações cognitivas do “olhar de fora”, da distância, nos ajudam a evitar os relatos simplistas, os reducionismos de quaisquer ordens, os tão convenientes, limitados e insuficientes esquemas explicativos. Elas alargam a compreensão e aprofundam o necessário caráter interpretativo e crítico da história.

O Hidalgo de Camino a Baján ilustra com precisão tal movimento. Ele não é apenas o idealista corajoso, o religioso com preocupações sociais ou o emancipacionista convicto que muitos relatos sobre a independência do México sugerem. O Hidalgo de Meyer é um personagem bem mais complexo; é um mito disposto a agir, capaz de enfrentar forças e instituições extremamente poderosas e de acreditar no valor intrínseco de sua ação, mas é também um homem entre homens, perdido na confusão cotidiana, sujeito a instabilidades e temores, um homem tantas vezes hesitante, tantas vezes angustiado. Sua serenidade, expressa no gesto final de comer e partilhar doces, era, de fato, simples aparência. Uma angústia mais funda e mais crua cortava a imaginação e a consciência religiosa e humanista do padre: por que tanta violência, por que tanto sangue na busca da liberdade? Por que a revolução precisava se alimentar continuamente da morte?

Esse Hidalgo – no meio do caminho entre a história e a ficção – convive, sobretudo, com uma profunda divisão interna, que o atormenta: ele se arrepende de muito do que fez, arrepende-se da escolha do caminho da revolução, da violência desmedida, dos incontáveis mortos que sua ação foi deixando para trás no caminho rumo à própria morte. A entonação humanista de sua dúvida atinge o leitor e amplia a ambiguidade: a luta pela justiça pode ser injusta, a busca da igualdade pode resultar iníqua? Eis um mistério talvez tão profundo quanto os da fé que em suas orações o padre preservava e, nas pregações, difundia. Qual é o caminho, então, para que nos libertemos e sejamos capazes de reconhecer a nós mesmos e aos próximos?

A história da independência do México não oferece respostas, pelo menos à primeira vista. O destino de Hidalgo foi exemplar, da mesma forma que o foram os de outros líderes da luta contra a Espanha: José María Morelos morreu igualmente fuzilado, assim como Ignacio Allende, Vicente Guerrero e até o instável Agustín de Iturbide. O redemoinho da história consumiu-os, um a um. A luta emancipacionista para além do sul do México tampouco poupou de morte triste e de aflições profundas outros líderes políticos e militares: é quase inevitável, durante a leitura do livro de Meyer, relembrar a agonia final e a dilaceração íntima de Simón Bolívar, patente em suas últimas cartas e reconstituída com vigor na biografia fictícia em que Gabriel García Márquez o representou (O general em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record, 1989).

As respostas para a busca da liberdade e do autorreconhecimento – se existirem – estão na capacidade de visitar e revisitar o passado ininterruptamente, de questioná-lo, de investigar as opções políticas e históricas feitas pelos personagens ilustres e pelos personagens comuns. Essas respostas só podem vir do reconhecimento da complexidade de todo trabalho de representação e da percepção dos inúmeros desvãos que ele nos oferece. Da aceitação de que a realidade é prolixa – envolvida pela neblina do passado – e intangível em sua plenitude, da mesma forma que nenhuma justiça presente ou passada é pura e completa. De que a iniquidade é multifacetada e misteriosa.

Era inevitável que um autor como Jean Meyer, com a obra historiográfica consistente e significativa que já produziu, ao visitar a ficção, o fizesse de forma admirável e não se limitasse a escrever – o que, reconheçamos, não seria pouco – uma boa biografia imaginativa de um dos personagens mais instigantes da história latino-americana. Ultrapassando o terreno da história, Camino a Baján nos oferece uma ótima leitura e uma reflexão profunda sobre o terreno amplo, fértil e atraente das relações e contaminações entre ficção e história.

Júlio Pimentel Pinto – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil). E-mail: juliop@uol.com.br


MEYER, Jean. Camino a Baján. México, D.F: Tusquets, 2010. Resenha de: PINTO, Júlio Pimentel. O mistério da iniquidade. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 157-159, jan./jun., 2012.

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Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano | Javier Fernández Sebastián

Não seria exagerado dizer que o Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, constitui-se em uma das iniciativas de trabalho coletivo mais ousadas e meritórias das últimas décadas no campo da história do mundo ibérico e americano entre os séculos XVIII e XIX. Diante da atual profusão de incentivos à produção histórica sobre o período, alavancada pelas comemorações dos bicentenários das Independências na América e do translado da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, o presente volume pode ser considerado um dos seus mais sólidos produtos. Primeiramente, por reunir pesquisadores de vários países, do Novo e do Velho Mundo, no projeto internacional El mundo atlántico como laboratorio conceptual (1750-1850) – ainda em andamento, e do qual este é um primeiro volume de resultados –, apostando na elaboração coletiva da reflexão histórica, infelizmente ainda pouco comum na nossa área de maneira geral. Mas a maior prova da importância e pertinência do projeto está, sem dúvida, na sua atual capacidade de gerar novas e pulsantes demandas historiográficas. O que significa dizer que hoje, quando se fala em história dos conceitos, é impossível não se remeter ao volume.

A problemática geral do volume – discutida por Fernandez Sebastián na preciosa introdução à obra – parte da teoria de Reinhart Koselleck que, de forma fecunda, consolidou caminhos de análise da profunda mutação no universo léxico-semântico verificada no período anunciado, a qual evidenciava grandes transformações políticas, institucionais e mentais em curso no mundo ocidental. A síntese desse processo está na sua concepção de nascimento da “modernidade”, caracterizada fundamentalmente pela percepção, entre os coevos, de uma ruptura temporal em relação ao passado e abertura de possibilidade de futuro como um tempo marcado por instabilidade e incerteza. Sua base era a crise de legitimidade das antigas monarquias, e mesmo da História como campo capaz de ensinar pelas experiências do passado, ou seja, como “mestra da vida”.

Se tal “terremoto conceitual” foi amplamente analisado para a Alemanha (e parte da Europa meridional e América do Norte) no magistral dicionário histórico de léxicos políticos e sociais do qual o próprio Koselleck foi um dos organizadores – o Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, publicado na década de 1980 em nove volumes – , sua análise global para o mundo ibero-americano era uma tarefa de fôlego ainda a ser feita. Nesse sentido, a presente obra tanto demonstra a vitalidade das assertivas koselleckianas para se pensar transformações estruturais em curso na Espanha, em Portugal e em seus antigos domínios, como enfatiza sua unidade no mundo occidental, numa perspectiva de interconexões. Nas próprias palavras de Fernández Sebastián, um dos objetivos da obra é:

ensayar uma verdadeira historia atlântica de los conceptos políticos. Una historia que tome em cuenta el utilaje conceptual de los agentes – individuales y colectivos – para lograr así una mejor comprensión de sus motivaciones y del sentido de su acción política (p.25).

Dimensão atlântica que, cada vez mais valorizada pela historiografia nos últimos tempos, tem como grande mérito romper com as fronteiras estabelecidas pelas historiografias nacionalistas desde o século XIX, em especial daninhas para análise do período em que as definições e soluções dos novos Estados fizeram parte de um processo de luta política em curso. O que para o caso brasileiro é ainda pior, haja vista que a construção do discurso da sua excepcionalidade, de um “Império entre repúblicas”, remonta ao próprio Oitocentos e continua a ser uma fonte de retroalimentação de desavisadas análises, a despeito de sua desconstrução crítica por parte de recentes trabalhos historiográficos. Um dos possíveis perigos das abordagens que privilegiam a história atlântica, o de se não respeitar os problemas específicos dos processos que se pretende ver em sintonia, é rechaçado pelo Diccionario, pois que a análise de cada contexto político permite o estabelecimento, bem como a problematização, da relação entre o geral e o particular. Ainda assim, é fato que partir da concepção de uma unidade atlântica pode encerrar outros questionamentos, como veremos adiante.

A escolha dos conceitos aqui tratados partiu de algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, do esforço em abandonar definições excessivamente normativas que, concebidas posteriormente, ainda impregnam de um ideal valorativo muitas das palavras aqui analisadas. Daí a ênfase na discussão dos seus significados coevos, bem como dos usos que os homens fizeram delas, ambos tensionados pela profunda reviravolta que se viveu no mundo ibérico, sobretudo, após os anos de 1807-1808. Entendendo que discurso e prática políticos são indissociáveis, poder-se-ia falar em uma verdadeira “guerra” de palavras como uma das dimensões da própria política, cuja esfera ampliava-se significativamente nas décadas aqui tratadas.

Nesse sentido, os termos selecionados justificam-se por terem sido fundamentais no vocabulário político da época, ou seja: sem cada um deles, toda a arquitetura argumentativa encontrar-se-ia comprometida. No entanto, a despeito de se considerar que os coevos se serviram de novas linguagens, sabedores de que as antigas apenas parcialmente lhes serviriam na busca de soluções à crise que se desvendava diante de seus olhos, a obra não se propõe a entender os conceitos como parte de um conjunto coerente, canônico e articulado de significados, aos moldes das proposições consagradas por John Pocock e Quentin Skinner. Ao contrário, é exatamente a fluidez e polissemia dos termos, sua apropriação por vozes e protagonistas de projetos políticos dissonantes, que são tidas como pontos de partida centrais para sua análise. Referenda-se assim, a não menos sugestiva definição koselleckiana do que são conceitos: palavras que unificam em si diversos significados, ao mesmo tempo “concentrados de experiência histórica” e dispositivos de antecipação de soluções futuras. A essa amplitude semântica soma-se um nível de generalização/abstração dos mesmos termos que, servindo a uma grande variedade de usos e interpretações, tendem a uma forte ideologização.

À luz de tais definições, dez foram os conjuntos de conceitos considerados fundamentais e prioritários na composição do volume: América/ americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/ republicanismo. A cada um deles foi dedicado um capítulo que contém uma síntese transversal e comparativa das transformações ocorridas nos termos para o mundo ibero-americano, além de nove textos de referência, um para cada espaço geográfico ou país previamente selecionado. Estes últimos, longos verbetes, foram na sua grande maioria elaborados por especialistas na história das Independências e serviram de base para elaboração das sínteses. O que, de fato, se pode chamar de um investimento de pesquisa coletivo.

Foram elaborados verbetes para: Argentina (Rio da Prata), Brasil, Chile, Colômbia (Nova Granada), Espanha, México (Nova Espanha), Peru, Portugal e Venezuela. Ou seja, a área contemplada é extensíssima, o que mais que justifica a enorme abrangência do Diccionario. A edição traz também um apêndice cronológico para cada um desses espaços, o que muito ajuda o leitor em função da profusão com que os acontecimentos políticos espelham o turbilhão de alternativas e soluções então colocadas em prática. Mas não há como negar que a ausência da América central (incluindo Cuba), banda oriental, Alto Peru (Bolívia) e Paraguai pode ser lamentada. O que, sem dúvida, tem mais relação com o estado da arte das pesquisas e volume de desenvolvimento das historiografias de cada um dos países, do que com a concepção de história que informa o presente volume. O mesmo pode-se dizer sobre o fato das análises se centrarem nos centros urbanos, tratando muito mais do universo dos crioulos do que de grupos indígenas e de africanos e seus descendentes, cuja inserção no processo político foi inegável ainda que seus discursos e práticas tenham sido menos analisados, e que suas trajetórias sejam mais difíceis de reconstruir historicamente.

A despeito do Diccionario seguir a periodização da “modernidade” proposta por Koselleck (1750-1850), há aqui o cuidado em se marcar que ela se trata apenas de uma referência geral. É notável como para o mundo ibero-americano, a maior ruptura política ocorrerá a partir dos anos de 1807 e 1808, como desdobramento dos acontecimentos que impedirão o monarca tradicional de governar na Espanha, e farão com que a Família Real portuguesa tome a direção de seus domínios americanos. O que pode ser claramente visto nas análises de cidadão, constituição, federalismo, nação, opinião pública e povo. Também fica evidente que muitos dos conceitos tendem a uma maior radicalização na década de 1810, e serão dotados de maior moderação a partir das seguintes que, não à toa, coincidem com a maioria das tentativas de consolidação dos novos Estados independentes na América.

Análises bastante profícuas dos conceitos levam em conta os termos/ideias correlatos a ela. É o que se pode ver claramente no texto sobre federação/federal/federalismo, cuja síntese transversal é de autoria de Carole Leal Curiel. A princípio, esses termos aparecem nos discursos coevos somente após 1810, mas a opção feita também pelo rastreamento da dupla conceitual de confederação/federação, bem como da problematização em relação à questão da (des)centralização que existe desde fins do século XVIII nos Impérios ibéricos, mostra-se muito profícua para no seu desvendamento. Nesse sentido, ainda que tais conceitos tenham sido ainda mais prioritários para as repúblicas ibero-americanas, os problemas que eles evocam tiveram importância central também nos debates que permearam as trajetórias das monarquias brasileira, portuguesa e espanhola.

De todos os termos, marca-se uma possível especificidade para América/americanos, cuja análise abre o volume. Como bem questiona João Feres Júnior em seu artigo transversal, em termos teóricos, ambos poderiam ser considerados “contraconceitos”: primeiro, pelo fato do seu uso ter sido valorizado em oposição às antigas metrópoles, ganhando muita força nos anos de consecução das Independências; além disso, haja vista sua decadência em termos políticos, sobretudo a partir da década de 1830, com a consolidação nacional dos novos Estados (quando todos os outros termos demonstram terem se transformado em essenciais para o debate político). No entanto, é pena que a análise não tenha valorizado a dimensão identitária contida no termo “americano”, a qual dialoga com vários dos vocábulos que passaram a definir os vínculos de pertencimento dos indivíduos e sua relação com os projetos políticos em disputa em cada um dos espaços geográficos aqui analisados. Assim já o demonstraram, de maneira profícua, os trabalhos de José Carlos Chiaramonte para o caso das tensões entre os termos “rioplatense”, “hispanoamericano” e outros termos provinciais (questões devidamente incorporadas por Nora Souto no verbete do Diccionario dedicado à Argentina), bem como os de István Jancsó que tratam de sua importância para se entender as rupturas presentes no processo de construção nacional no Brasil. Nessa chave, trata-se de lugar comum a afirmação de que a América portuguesa teria mantido sua unidade após a Independência, ao contrário da espanhola (Feres, p.64); as clivagens identitárias permitiriam se entender como “pernambucanos”, “baianos”, “maranhenses”, etc., que poderiam ser mais ou menos associados com “americanos”, além de revelarem as disputas políticas endêmicas à unidade nacional do Brasil. Raciocínio, em linhas gerais, válido também para toda a América espanhola.

O universo das tensões entre ibero-americanos e peninsulares logo fica explícito nas pujantes análises dos vocábulos constituição e nação. Na primeira, o texto transversal de autoria de José Portillo Valdés, evidencia com acuidade como a utilização do conceito é chave para entendê-las. Assim o faz analisando como, desde meados do século XVIII, predominava na Espanha, e igualmente em Portugal (conforme os verbetes do próprio Portillo e de Nuno Gonçalo Monteiro, respectivamente), uma percepção da necessidade de reformas para se corrigir o desajuste político e econômico de ambos os Estados no âmbito europeu. A economia política seria vista como um desses instrumentos, e o apego à constituição um “antídoto” para se evitar os posteriores acontecimentos revolucionários. Desde então, a percepção da desigualdade entre espanhóis e portugueses de distintos hemisférios é fortemente sentida; mas revelar-se-á especialmente contundente diante da necessidade de se pensar um arranjo constitucional comum após a instalação das Cortes de Cádis, em 1810, e das de Lisboa, em 1820 – já que constituição passava, cada vez mais, a ser sinônimo de projeção de novos governos. Nas décadas seguintes, seu sentido de disciplina social, com o intuito de tornar o Estado presente, acabaria por se sobrepujar ao anterior, evidenciando o sentido de moderação que o uso do termo viria a adquirir.

Na análise do vocábulo nação a percepção dos conflitos em torno dos projetos políticos em disputa são ainda mais evidentes. Conforme salientado na síntese de Fábio Wasserman, desde meados do século XVIII é possível delinear um sentimento dúbio, vivido de forma distinta em ambos hemisférios e expresso pela tensão no uso dos termos nação e coroa: se na Península os letrados deixavam evidente existirem diferenças entre o reino e suas conquistas, na América tal sentimento seria vivido com certo desconforto, e alimentaria iniciativas de defesa das especificidades locais, de “patriotismo crioulo” (p. 856-7). Com a ressignificação do conceito a partir de 1808, e a difusão de uma concepção unitária de nação, associada à soberania e à definição de novos pactos políticos, os embates no seu uso passam a ser imprescindíveis na definição das alternativas políticas. De forma bastante precisa, a América portuguesa (analisada no verbete de autoria de Marco Antonio Pamplona) não é aqui tratada como exceção em função da associação entre monarquia e nação que, mais do que continuidade, aquela pôde ser aqui lida como uma recriação. À exemplo do que ocorre com constituição, mesmo antes da década de 1830 já era possível observar-se em nação a perda do sentido de soberania popular, e uma ênfase na sua associação com um esforço de institucionalização e consolidação do poder.

Movimento semelhante ocorre com os termos cidadão/vecino. O primeiro sofre profunda politização a partir dos acontecimentos de 1808, ainda que o ritmo das mudanças tenha sido muito mais rápido na América do que na Península, conforme analisado por Cristóbal Aljovín de Losada (p.183). Na primeira, é digno de nota como o desafio da cidadania enquanto paradigma universal de direitos e de igualdade perante a lei possui uma série de questões que passam por clivagens raciais, em toda parte presentes. Mas o conceito traz em si mesmo ambiguidades, sendo uma delas a incorporação de diferenças pautadas pelas desigualdades entre direitos civis e políticos durante praticamente todo o século XIX – pouco analisadas por Losada, mas já profundamente discutidas, para o caso francês, por Pierre Rosanvallon em mais de uma de suas obras. Desse modo, não nos admira que tenha sido possível a definição de quem eram os cidadãos mesmo em um Império escravista como o Brasil. Obviamente que suas contradições, pensadas no âmbito da modernidade, continuariam a ser evidentes.

A análise dos termos povo/povos e opinião pública nos remete diretamente a clivagens na construção dos projetos políticos. É notável a duração mais curta na utilização do termo povos, sua maior abrangência na América espanhola logo após os desdobramentos das Cortes de Cádis, e sua associação com projetos de autonomia local e corte federal. A predominância do vocábulo no singular, no entanto, passa a ser efetiva nas décadas seguintes, conforme salienta Fátima Sá e Melo Ferreira na síntese transversal. Nesse sentido, opinião pública, expressão que ganha imensa expressão após a crise de 1808 (na América portuguesa, sobretudo, após 1820), é inicialmente utilizada para se defender os direitos dos mesmos povos. Mas veja-se como já nos anos 1820 ela é predominantemente evocada como “rainha do mundo”, fonte de legitimidade para defesa de posicionamentos políticos diversos. Nas décadas seguintes, no entanto, sua utilização também traz uma desconfiança ou perda de entusiasmo em relação à sua força inicial transformadora, com o termo associando-se igualmente a visões pejorativas.

É o texto transversal de autoria de Noemi Goldman que insere a opinião pública numa perspectiva altamente instigante. Partindo das análises de Elías Palti, a autora a insere no universo intelectual da época, discutindo como a defesa de unanimidade, representada de forma paradigmática pela evocação de “uma verdadeira opinião”, não era estranha aos coevos no século XIX (p.988). Ao contrário, ela está inserida num verdadeiro afã pela criação de assertivas e verdades objetivas que pudessem guiar a construção do futuro; ao menos, assim se imaginava possível, obviamente. Isso nos faz pensar no enquadramento geral de praticamente todos os conceitos aqui analisados, cuja polissemia só viria a comprovar a importância dos embates em torno dos significados por eles expressos.

O sentido de projeção de futuro que o uso das palavras coloca a nu nesse momento é especialmente desvelado na análise do termo liberalismo. É possível que seja esse o conceito que mais carrega o peso de uma tradição histórica normativa que impede, muitas vezes, a apreensão de seus significados específicos e coevos. Por essas razões, a síntese transversal assinada por Javier Fernández Sebastián salienta elementos especialmente significativos para sua compreensão: de como o termo contemplava, no momento em que ganha evidente sentido político (a partir de 1808), um respeito à tradição monárquica, e não sua completa negação; mas, ao mesmo tempo, serviria à afirmação de um governo representativo que pretendia a “regeneração” da Península e a construção de novos Estados na América. É notável que o ideal de “triunfo da civilização” e a crença no progresso que o mesmo termo viria a contemplar, fossem alvo, especialmente a partir da década de 1830, de clivagens marcadas pelas novas filosofias da história, com a ascensão de projetos que falassem em nome de uma maior moderação. Sem dúvida é essa uma chave para compreensão dos próprios “partidos” que, muitas vezes equivocamente, são por toda parte classificados como “liberais” e “conservadores” em função de imputações anacrônicas. Sua relevância para observarmos, por exemplo, a eclosão do chamado “Regresso conservador” brasileiro num universo mais amplo da Ibero-américa é evidente (perspectiva de análise para a qual desconhecemos quaisquer outros estudos para além das conexões aqui estabelecidos a partir do verbete de autoria de Christian Lynch).

Isso nos remete à questão das comparações, e do quanto elas podem ser válidas na perspectiva adotada pelo Diccionario. É igualmente Fernandez Sebastián que, na introdução, destaca a importância dos estudos comparados para se romper com uma historiografia nacional, tanto por meio da observação de um substrato comum na cultura política no mundo ibérico e americano, como pelas diferenças contextuais que explicariam diversidades de usos e de significados dos conceitos (p.31). No entanto, o mesmo autor é consciente de riscos dessas aproximações: por exemplo, o de valorizar os principais traços de cada país concebendo-os como distintos e específicos em relação a outros e, dessa forma, reforçar bases de historiografias nacionais (p.41, nota 14). É verdade que essa tendência aparece em alguns textos da obra, mesmo em algumas das sínteses transversais que foram pensadas justamente como uma forma de evitá-la; mas o resultado geral, construído sob o desafio de uma história comum, compensa amplamente sua ocorrência.

Diante disso, vale retornar ao tema da unidade atlântica. Ao defender um único processo revolucionário, global, a obra se volta contra uma definição apriorística de centro e periferias como categorias prévias para entender clivagens entre os espaços ibérico e americano. No entanto, sagazmente também se faz a ressalva de que tais ideias podem ser adequadas ao propósito da obra, ao menos quando elas se converterem em parte do próprio imaginário dos atores estudados, das representações mentais que constituem o presente objeto de estudo (Fernandez Sebastián, p.697). Em função disso, pode ser aparentemente banal a crítica ao tratamento homogêneo demais que aqui se dá a uma imensidade espacial, marcada por complexas e desiguais relações nos mais de 300 anos de colonização da América. Só nos arriscamos a seguir avante nessa ponderação, diante dos vários indícios que o pujante Diccionario nos oferece quanto aos diversos sentidos de modernidade no Novo e no Velho Mundo.

As análises dos termos história e república, especialmente, nos conduzem a tais questionamentos. Quanto ao primeiro, Guillermo Zermeño Padilha, autor da vigorosa síntese transversal, parte da premissa de que o termo é, em si mesmo, um conceito de temporalidade, e nos apresenta uma irretocável discussão historiográfica sobre sua relação com a construção da modernidade como uma ruptura temporal. Ao analisar os usos do vocábulo, arrisca marcar uma diferença estrutural na emergência de seus significados entre a Europa e a Ibero-américa. Na primeira, eles se articulariam a um processo de reflexão interna dos letrados, autorreferente em relação ao seu passado e consequentemente ao seu futuro – é notável como nos verbetes sobre Espanha e Portugal, de autoria de Pedro José Chacón Delgado e de Sérgio Campos Matos, respectivamente, as independências da América não parecem exercer nenhuma influência na ressignificação do conceito. No Novo Mundo, no entanto, o uso da palavra não resulta de algo imanente, e seu futuro se apresentaria, nas palavras do próprio Zermeño, “como um cheque em branco ao portador” (p.576). Seguindo sua cautelosa análise, seria mesmo excessivo afirmar que na Ibero-américa não teria existido um campo de “espaço de experiência” aos moldes koselleckianos; mas a tarefa de edificação dos novos Estados nacionais, aliada à negação/incorporação do passado colonial, teve, evidentemente, impasses particulares. O que serve para explicar a sensação de desconforto no esforço de construção de histórias locais americanas, desde meados do XVIII, e mesmo na emergência de crítica à condição colonial que, no mesmo período, extrapolavam a ela.

O termo república igualmente explicita grande parte dos desafios impostos aos coevos quanto à construção do futuro. Conforme analisado por Georges Lomné a partir dos verbetes específicos, é um equívoco associar seu uso apenas a uma forma de governo, conforme praticaria a historiografia posteriormente e que, no caso do Brasil, persistiria em vê-lo apenas como uma completa exceção. O que significa dizer que, nem mesmo onde acabariam por vigorar sistemas republicanos, o sentido do termo não se impõe necessariamente desde sempre – veja-se como no caso da Ata Constitutiva dos “Estados Unidos Mexicanos”, em 1824, o termo usado é “federação” e não “república” (conforme demostra Alfredo Ávila p.1339). Em, Portugal, de outro modo e na mesma época, se podia falar da “monarquia como a melhor das repúblicas” (Rui Ramos, p.1361). A matização do modelo norte americano como base para o significado do termo vem associada à exploração de sua associação aos sistemas representativos opostos à democracia, com a defesa da importância que a invenção republicana ibero-americana teve na sua ressignificação em todo mundo ocidental. Talvez por isso, Lomné não enfatize suas representações vinculadas às leituras e imagens da antiguidade, conforme destacam Gabriel Di Meglio (p.1272) e Alfredo Ávila (p.1333), para os casos da Argentina e do México, respectivamente.

A chave da projeção republicana como utopia de futuro é uma das mais contundentes para que se revalorize as clivagens estruturais entre esses mundos unidos pelo Atlântico. Vale dizer que várias das análises dos conceitos aqui apresentadas apontam para evidentes diferenças na sua utilização nos distintos hemisférios, conforme já indicado por nós. No entanto, república carrega para os americanos uma questão de fundo, que se generaliza amplamente em meados do século XIX: o da sua incompletude. Era dessa forma que Juan Batista Alberdi, em 1852, e uma vez derrotado Juan Manuel Rosas na Argentina, sustentava que:

la república deja de ser una verdade de hecho em la America del Sur, porque el Pueblo no está preparado para regirse por esse sistema (Apud Di Meglio, p.1278) Ou seja, para além da dimensão utópica comum à modernidade ocidental, faz-se presente um sentido de travamento em sua efetivação, por condições objetivas que, de uma forma ou de outra, remontam à história da América, dos seus homens e da sua sociedade. Não é de se espantar que mesmo o “progresso” pudesse aparecer, por vezes, como “decadência” (Zermeño, p.568), ao lado da sempiterna esperança de se alcançar os melhores frutos da civilização. Noção não apenas dos coevos, mas que engendrou raízes na modernidade pelas nossas bandas do mundo. Questão que, como outras, a magnitude do presente Diccionario nos permite pensar.

Andréa Slemian – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: slemian@unifesp.br


SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano. Madrid: Ministerio de Cultura, 2009. Resenha de: SLEMIAN, Andréa. Unidade e diversidade das experiências políticas no mundo iberoamericano: Iberconceptos, 1750-1850. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 160-167, jan./jun., 2012.

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O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850 | Dilton Oliveira de Araújo

Nos últimos anos, os estudos sobre a conformação política do Estado e da Nação brasileiros no Oitocentos têm fornecido valiosas contribuições para a compreensão das experiências vivenciadas por homens e mulheres em um período fortemente marcado por amplas transformações políticas. Ao se debruçarem sobre temas relacionados à dinâmica da vida política no Brasil do século XIX, sobretudo no que diz respeito à diversidade de buscas de alternativas em meio a um conturbado processo de construção do Estado nacional nas primeiras décadas desse século, as pesquisas apontam para uma sociedade rica em manifestações políticas de variado tipo, cujo elemento central indica um acentuado aprendizado coletivo e individual resultante dos muitos confrontos políticos que, não raras vezes, saíram dos gabinetes e dos espaços institucionais para ocuparem as ruas e as praças públicas do Brasil Imperial. Felizmente, aos poucos começa a adquirir solidez o entendimento de que a constituição do Estado nacional, formalizado enquanto corpo político em 1822, não foi um projeto conquistado sem grandes atritos nas diversas províncias que compunham o vasto território da antiga América portuguesa. É, nesse sentido, que se insere o livro de Dilton Oliveira de Araújo, O tutu da Bahia: transição conservadora e formação da nação, 1838-1850, fruto da sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia, onde atua como professor.

O que chama a atenção, de imediato, no livro de Dilton Araújo é o título – O tutu da Bahia – adotado para exemplificar o clima tenso e de suspeição que se instalou na província nos anos seguintes à derrota da Sabinada. Conforme esclarece, tutu significava medo, pavor, algo que provocava nos indivíduos o receio de que alguma coisa temível estava para acontecer. “A insurreição era uma tutu para meter medo aos legalistas”, dizia o Correio Mercantil de 19 de junho de 1838, poucos meses depois de as tropas do governo reconquistarem a cidade de Salvador do controle dos sabinos. E aqui reside, certamente, a originalidade do seu trabalho. A violenta repressão que se abateu sobre os rebeldes que promoveram a sabinada foi suficiente para varrer da província baiana novas tentativas de contestação? O que aconteceu com as personagens centrais – e outras menos conhecidas – das lutas rebeldes ocorridas nas décadas de 1820 e 1830? Quais as dificuldades, antigas e novas, encontradas pelas autoridades locais para selar o pacto político necessário à conformação da unidade nacional? Essas são algumas das questões que o autor busca responder ao se debruçar sobre a conjuntura política que marcou a Bahia nos anos de 1838-1850. Para isso, recorre, principalmente, aos periódicos que circularam no período, responsáveis, em grande medida, por dar vazão ao clima de insegurança presente naqueles anos. Mas, em que medida, essa instabilidade política tinha correspondência na realidade?

A hipótese levantada pelo pesquisador é que a tão propalada pacificação da Bahia após os anos 1840 foi um objetivo duramente perseguido pelas autoridades políticas – tanto da província quanto em âmbito nacional – associadas às elites econômicas locais. No entanto, a pulsação da sociedade baiana, evidenciada pela documentação, delineava um quadro oposto ao desejado: “A pacificação, mais do que uma realidade consumada, era um devir histórico, que foi, a posteriori, incorporado ao discurso dos historiadores e, anacronicamente, imputado a uma época à qual não pertencera” (2009, p.22). A conquista da estabilidade política após um período de grande turbulência foi, portanto, fortemente almejada por grupos políticos e econômicos e variados foram os caminhos utilizados para a sua efetivação.

Uma das primeiras constatações importantes feitas por Dilton Araújo é que a historiografia sobre o período pós-Sabinada deixou um imenso vazio sobre o tema. A rigor, os estudos que têm a questão política como foco de análise se dirigiram quase que exclusivamente para as rebeliões ocorridas em 1798 e 1838. Quando muito, as abordagens sobre a dinâmica política na província baiana restringiram-se aos espaços institucionais sem fazer alusão ao que ocorria fora desses ambientes. Afora isso, a ênfase é dada nas questões econômicas ou culturais. Desse modo, o que sobressai nas obras analisadas pelo autor – inclusive em estudos clássicos sobre a história da Bahia a exemplo daqueles produzidos por Braz do Amaral e Luiz Henrique Dias Tavares e que serviram como referências importantes em trabalhos posteriores –, é a incorporação reiterada da ideia de pacificação da província e, em decorrência, a omissão, com raras exceções, de posicionamentos distintos aos projetos políticos capitaneados pelos governos local e central.

Na esteira das pesquisas recentes que buscam recuperar a historicidade de categorias como nação, federalismo, centralização, o historiador parte da concepção de que o processo de unificação da nação brasileira se deu em meio às distintas identidades políticas coletivas que anteriormente compunham o território da América portuguesa. Os empecilhos para se concretizar a unidade nacional foram uma constante após a ruptura política com Portugal em 1822 e o estabelecimento da autoridade monárquica sob o comando dos herdeiros da casa de Bragança. A Bahia, ao lado de outras províncias como Pernambuco e Pará, foi palco privilegiado de diversas manifestações de descontentamento com a linha política centralizadora assumida pelas autoridades situadas no Rio de Janeiro. De fato, as décadas de 1820 e 1830 expressam da maneira mais veemente que a constituição da nação não seria conquistada pelo recém-Estado independente senão à custa de virulenta repressão às atitudes e práticas oposicionistas. No entanto, a complexidade dessa dinâmica política somente pode ser apreendida em suas conexões mais amplas quando associadas às fortes mudanças do período decorrentes da expansão das ideias liberais e nacionalistas no mundo Ocidental, às condições políticas vivenciadas pelo Brasil nesse contexto e, sobretudo, às especificidades de uma província que detinha um papel importante – tanto econômico quanto político – na construção do Estado imperial.

Importante notar que a despeito das linhas centrais de contestação dos movimentos ocorridos nos anos 1830, com exceção da rebelião escrava dos malês, serem definidas pela crítica ao processo de centralização política, as motivações dos participantes não se restringiam a isso. Militares, homens pobres livres e de cor buscavam, cada qual a seu modo, inserir-se na cena política de maneira a solucionar os seus problemas imediatos, seja àqueles relacionados aos baixos e atrasados soldos, seja as condições precárias de sobrevivência marcada por uma estrutura econômica fortemente desigual e restritiva. A combinação da insatisfação política e social aparecia assim como um elemento impulsionador tanto no que se refere à adesão dos segmentos menos favorecidos, quanto na radicalidade a que estavam dispostos a assumir. Para estes, as novas condições políticas abririam amplas possibilidades de inserção, contrariamente ao intento das elites dirigentes. No projeto de Estado e de Nação a ser efetivado, nem todas as aspirações poderiam ser contempladas ou, dito de outro modo, era preciso ceifar as propostas desagregadoras de modo a afirmar a unidade política e territorial do Império do Brasil sem maiores sobressaltos. Dilton Araújo mostra que, no caso da Sabinada – uma experiência que afrontou fortemente os poderes local e central tendo em vista que os rebeldes ocuparam a cidade de Salvador por alguns meses (7 de novembro de 1837 a 16 de março de 1838) –, a repressão não se restringiu ao período subsequente à derrota do movimento. Pelo contrário, os anos que se seguiram foram testemunhas de um processo intermitente de erradicação de possíveis lideranças e das práticas rebeldes, no qual, autoridades políticas e camadas economicamente dominantes firmaram alianças para assegurar a tranquilidade pública e desobstruir o caminho rumo à desejada unidade nacional.

Em que medida a derrota dos sabinos significava a impossibilidade de ocorrência de novos movimentos rebeldes? Esta parece ter sido uma questão frequentemente formulada pelas autoridades. O estudo de Araújo se apoia fortemente na visão dos periódicos para demonstrar que, na opinião da imprensa conservadora e legalista, o tutu não poderia ser menosprezado, razão pela qual, o castigo infligido aos rebeldes deveria ser exemplar sob o risco de que novas rebeliões pudessem ocorrer caso o governo se mantivesse leniente. Esta é a posição do Correio Mercantil que, de maneira permanente, insistiu na necessidade de o Estado não descuidar da vigilância e acentuar os modos de enquadramento dos desviantes. Não obstante a intensidade da repressão contra os envolvidos, evidenciada em número de mortos, presos e deportados pela justiça, os editores desse periódico não se davam por satisfeitos assim como alguns dos seus correspondentes, a exemplo do Lavrador do Recôncavo, que conclamava os defensores do trono e do Império a se unirem contra os opositores da ordem, além de defender a centralização do poder nas mãos do Imperador. A fala do Lavrador expressa a insatisfação com os rumos políticos trilhados pelo Brasil sobretudo no que se referia à legislação imperial, com os seus variados códigos legais, assim como a atuação do parlamento, incapaz de apresentar soluções compatíveis com as exigências demandadas pela sociedade. A Bahia, mais uma vez, enfrentava uma forte crise política, momento propício para a emersão de posições conservadoras que encontravam guarida na imprensa e, certamente, possuíam muitos adeptos entre determinadas camadas sociais da província. O período de reação, como aquele vivenciado logo após a derrota dos sabinos, motivava a exposição dessas posturas, cujas denúncias potencializavam a falta de segurança das propriedades e das liberdades caso as instituições não agissem com rapidez e eficiência, como afirmavam os signatários das representações à assembleia geral em 1839, publicadas pelo Correio Mercantil. Para além de uma preocupação meramente local, essa movimentação das classes proprietárias revela um interesse com as novas formas de organização política do Estado que, em seus contornos mais amplos, apontavam para as articulações entre o centro e os poderes regionais, necessárias para debelar as inquietudes locais, sem perder de vista, no entanto, as aspirações políticas e econômicas da elite baiana.

Essa interlocução entre o governo local, as elites econômicas da província e o poder central – questão a exigir maior aprofundamento – denota que a almejada eficácia das formas de ordenamento político era um projeto difícil de ser consolidado. O autor busca extrair das fontes documentais que a apregoada paz política no pós-Sabinada não condizia com o quadro de intranquilidade delineado a partir dos próprios discursos das autoridades e reforçado pela imprensa local. A frequência com que as notícias sobre possíveis inquietações aparecem nesses registros na década de 1840 informa sobre um período no qual o desejo de pacificação da província estava longe de ser concretizado. Os distúrbios poderiam ser promovidos por escravos, homens livres pobres, índios, militares ou até mesmo ex-integrantes da sabinada à espera do momento mais apropriado para voltarem à ativa. O fato de não ter ocorrido um evento de maior envergadura no período não retira a gravidade das tensões sociais e políticas que colocaram o governo em estado permanente de alerta. Prova disso, foram as medidas para intensificar a segurança na província, além do cerco em torno dos suspeitos de envolvimento em ações ameaçadoras da ordem e o combate à imprensa oposicionista, sobretudo, o Guaycuru, cuja contundência da crítica formulada aos governos local e central levou seus editores a enfrentarem alguns processos judiciais. Dilton Araújo mostra como foram variadas as tentativas para legitimar a nação brasileira, seja por meio das comemorações cívicas das datas consagradoras do futuro promissor da Bahia e do Brasil, ao tempo em que outras deveriam ser menosprezadas, seja pela desaparição, alijamento ou cooptação de antigas lideranças dos movimentos rebeldes. Sobressai da leitura de O tutu da Bahia, a constatação de que as profundas alterações ocorridas com a independência e a organização do Estado imperial não foram suficientes para resolver problemas antigos, que em meados do século XIX apareceriam renovados em meio a um processo de experiência e aprendizado também compartilhado pelas elites.

Com base em uma pesquisa rigorosa na documentação, com destaque para os dois importantes periódicos da época – o Correio Mercantil e o Guaycuru –, a dinâmica política da Bahia nos anos 1840 retratada por Dilton Araújo não somente preenche uma lacuna nos estudos sobre a complexa formação do Estado e da nação brasileiros, quando vista sob outras perspectivas, como também aponta possibilidades para novos estudos sobre uma sociedade oitocentista em busca da construção de uma unidade nacional obstaculizada pelas muitas contradições geradoras de conflitos outros, nas quais a província da Bahia, com a sua tradição de lutas e rebeldias, adquire particular relevância.

Maria Aparecida Silva de Sousa – Professora adjunta no Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Vitória da Conquista/Brasil). E-mail: sousa.mariap@gmail.com


ARAÚJO, Dilton Oliveira de. O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850. Salvador: Edufba, 2009. Resenha de: SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Tempos de paz, tempos de tensão política. A Bahia no pós-Sabinada. Almanack, Guarulhos, n.2, p.147-150, jul./dez., 2011.

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O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves

O título do livro soa pomposo. A quem os autores chamam de Epaminondas Americano? Logo nas primeiras páginas vimos não se tratar de um pseudônimo, mas de um dos heterônimos assumidos por um português, o bacharel em Direito Manoel Paixão dos Santos Zacheo, em vários escritos que fez publicar, nos decênios de 1820 e 1830, manifestando seus posicionamentos nos debates ocorridos no Maranhão, após a Revolução do Porto (ou Vintismo) e nos primeiros tempos da constituição do Estado brasileiro.

Esse advogado é um personagem intrigante. Na Universidade de Coimbra, onde estudou, seu nome consta como Manoel Paixão dos Santos, mas o sobrenome Zacheo ou Zaqueu já estava incorporado nos documentos que atestam sua chegada ao Maranhão em 1810, e permaneceu nos registros posteriores. Os autores do livro levantam a hipótese de ele ter querido associar sua imagem à conotação hebraico-religiosa do termo “zacheo”, que significa “puro”. Quanto ao heterônimo Epaminondas, supõem ser uma possível “referência ao general tebano, que liderou a vitória contra as tropas espartanas na batalha de Leuctras (371 a. C.)”. E explicam:

Vencedor de lutas sangrentas – que lhe custaram a vida –, Epaminondas também ficara conhecido como homem de larga cultura e pelo princípio de jamais mentir. Coragem, conhecimento e sinceridade, aliadas à “pureza” pregressa, parecem compor a base da personalidade assumida por Manoel Paixão dos Santos – o Zacheo-Epaminondas –, forma de legitimar uma imagem de si e desqualificar a de seus oponentes (p.27).

A autoimagem favorável aparece em outro heterônimo que usou em duas publicações – o Arguelles da província. Para este, os autores levantam a hipótese de uma “provável alusão a Augustin de Arguelles Alvarez, deputado espanhol às Cortes de Cadiz, instância na qual ficou conhecido como o ‘divino’, dada a qualidade de sua oratória” (p.28).

No Maranhão, Zacheo não tardou a se integrar em várias redes de sociabilidade. Quando seus escritos vêm a público, dez anos após sua chegada, está casado com uma moça da terra, é advogado do Tribunal da Relação do Maranhão, juiz demarcante dos julgados do Mearim e das vilas de Viana, Tutóia e Icatu, além de declarar-se dono de fazendas e escravos em Rosário e Alcântara. Atuava, portanto, na capital da Província, a cidade de São Luís, situada numa ilha costeira, e em localidades do continente.

Em abril de 1821, foi um dos oito cidadãos que votou contra o prolongamento da administração de Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca – o último governador da província do Maranhão antes do Vintismo – e defendeu a instalação de uma junta governativa. Em janeiro daquele ano, uma representação de sua autoria havia sido lida nas Cortes portuguesas. Outras foram apresentadas nos meses seguintes. Denunciava tramoias do governador e fazia sugestões para o trabalho dos constituintes. A oposição a Pinto da Fonseca levou-o a refugiar -se na vizinha província do Grão-Pará e Rio Negro, para escapar da prisão que este lhe decretara. Retornou ao Maranhão no ano seguinte.

No início de 1823, como essa província permanecesse fiel a D. João VI, Zacheo foi um dos deputados eleitos para a segunda legislatura das cortes portuguesas. Viajou para Lisboa, mas não assumiu o cargo, pois encontrou as Cortes dissolvidas e o antigo regime restaurado. Permaneceu alguns meses em Portugal. Em 1º de janeiro de 1824, a bordo da escuna que o trazia para o Brasil, participou de um ato solene de juramento à independência do novo país. Retornando ao Maranhão, retomou as atividades políticas. Continuou com os escritos inflamados; os opositores acusavam-no de ter “má língua”. Apoiou o conturbado governo de Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce, o primeiro presidente nomeado pela Coroa brasileira para a província. Criticou D. Pedro I, mas dedicou-lhe um trabalho de quase cem páginas, para subsidiar os Códigos Civil e Criminal que o Brasil precisava elaborar. Elegeu-se deputado para o Conselho Geral da Província e integrou o Conselho Presidial (ou de Governo).

A singular personalidade de Zacheo, sua trajetória de vida e o teor dos escritos que publicou o tornam um objeto de estudo privilegiado. Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves, professores da Universidade Estadual do Maranhão, foram extremamente felizes ao escolhê-lo, especialmente porque puderam potencializar o capital cultural acumulado em outras vivências intelectuais. Galves defendeu, em 2010, na Universidade Federal Fluminense, a tese de doutorado em História, intitulada “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826). E Costa fundamenta-se na dupla formação de historiador e bacharel em Direito.

Os autores foram felizes também na maneira como apresentam os resultados do estudo realizado. Organizaram o livro O Epaminondas Americano em duas partes. Na Parte I – Advogado, Proprietário e Político –, estruturada em quatro capítulos, a proposta é fazer um “recorte biográfico”, entremeado pelas tensões de “ação individual” e “contexto” (p.19). Na Parte II – Documento, nos presenteiam com a reprodução facsimilar de um exemplar existente na Fundação Biblioteca Nacional – Brasil da publicação, que certamente é a mais importante entre as lançadas pelo advogado: Projectos do Novo Código Civil e Criminal no Império do Brasil, oferecidos ao Senhor D. Pedro I, Imperador Constitucional seu Protector e Defensor Perpétuo e ao Soberano Congresso Nacional e Legislador.

Na Introdução, avisam aos leitores que tratarão apenas da atuação pública de Zacheo no Maranhão, principalmente dos dois decênios em que publicou seus trabalhos. Mas fazem bem mais que isso. No primeiro capítulo da Parte I, Um publicista irrequieto, traçam uma narrativa biográfica que informa sobre a família, o local de nascimento e o período em que o biografado esteve em Coimbra; especulam acerca dos significados dos nomes que adotou; delineiam suas múltiplas inserções na vida política da Província e contextualizam as polêmicas em que ele se envolveu e que geraram seus escritos, além de outros aspectos de sua vida pública.

No segundo capítulo, O bacharel e as leis, enveredam pela cultura jurídica luso-brasileira da época. A intenção é situar a produção de Zacheo nos dois processos em que ele foi partícipe: a “modernização da cultura jurídica em Portugal” e a “construção organizacional e legislativa do Brasil independente”. É também buscar entender as “práticas e as representações que se originam no (ou perpassam o) campo jurídico e dão sentido à atuação de profissionais do Direito (p.43)”, em Portugal e no Brasil.

Expõem o teor da reforma acadêmica implantada na Universidade de Coimbra, a partir da década de 1770, e as principais mudanças que a reforma trouxe nas concepções e nas práticas jurídicas na metrópole e em sua possessão na América. Adotam a periodização da História do Direito Português, elaborada por Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, que lhes permite situar nosso advogado na transição do período de influência iluminista (que vai da metade do Setecentos à Revolução de 1820) para o período de influência liberal e individualista (dessa revolução liberal ao início do Novecentos). Mostram que Zacheo conviveu com a crítica ao Direito românico e à tradição medieval canônica, com a valorização do Direito nacional (o então chamado Direito pátrio), a formulação do Direito natural moderno e as concepções ilustradas sobre o Estado e o indivíduo. Veem em sua obra diferentes concepções teóricas, fruto da formação acadêmica e das experiências vividas na América Portuguesa. Era, por exemplo, um entusiástico defensor do constitucionalismo, julgando-o perfeitamente conciliável com a monarquia e a escravidão. Entendia que as “boas leis” eram fruto do intelecto humano, e não deveriam servir apenas para nortear as ações dos governantes, mas ser um meio de viabilizar “a distribuição da ‘felicidade’ no corpo social” (p.41). Além disso, seriam boas as leis que tivessem redação clara e simples, de modo a permitir compreensão correta e eficaz execução. E Zacheo procurava seguir esses princípios nas sugestões que enviou a legisladores e governantes.

Os autores entendem que ele, informado e formado nestes e por estes debates intelectuais e jogos políticos, procurou ser um cidadão participante, como jurista, publicista e político, tanto em relação ao Estado português quanto ao Estado brasileiro que via nascer. E historiam suas múltiplas atuações e analisam-lhe as publicações, dialogando com a literatura que trata das ideias presentes nos projetos políticos em discussão no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos.

No terceiro capítulo, Da justiça ou da falta dela, a análise dos escritos e da atuação de Zacheo volta-se mais para as denúncias que ele fez a homens públicos da província do Maranhão. Foi um áspero crítico dos desmandos das autoridades judiciais, acusando-as de negligência, abuso de poder e conluio com os governantes. Fundamentava as acusações com casos vivenciados como advogado no Tribunal da Relação dessa província e chegou a sugerir a extinção não só deste, como dos demais Tribunais da Relação, justificando que desembargadores, corregedores e juízes tinham práticas espúrias.

Mas sua ira não se voltava apenas para os togados. Era vigilante em relação aos jogos políticos e às ações dos ocupantes dos altos cargos do Executivo. Abordando essa faceta do biografado, os autores entram nos meandros da história da imprensa no Maranhão. Como a primeira tipografia da província foi instalada na administração de Pinto da Fonseca e sob os auspícios do governo, por ser desafeto dessa autoridade e crítico de outras pessoas gradas na política local, Zacheo precisou publicar a maior parte de seus primeiros escritos em outros lugares.

Esse capítulo analisa também as posições do advogado acerca do sistema escravista, criando a ocasião para Costa e Galves entrarem nos debates que tratam da história das ideias sobre a escravidão. Mostram que Zacheo, como muitos outros declarados adeptos do liberalismo àquela época, não via qualquer possibilidade de “grandeza” e “opulência” para o Brasil sem o recurso do braço escravo. A familiaridade dele com a obra de Antonil é notada não apenas na utilização desses dois termos; revela-se ainda na metáfora consagrada pelo padre de serem os escravos os “braços” e “pernas” de quem almejasse ser proprietário por essas terras. Assim, não propunha o fim da escravidão nem do tráfico humano transatlântico. Julgava que o constitucionalismo monárquico não era afetado pela existência de escravos, pois estes eram naturalmente inclinados ao cativeiro. Aliava este argumento – baseado na concepção milenar da “servidão natural”, que subordina alguns povos e/ou pessoas – a outros com base religiosa e racionalista. Desse modo, a inferioridade e a preguiça que atribue serem inatas aos “negros” e “índios” não resultariam apenas da vontade divina. Deus criara todos com o livre arbítrio de “obrar ou não obrar”. Foram eles que decidiram não trabalhar e permanecer na ociosidade e na libertinagem (p.98). No “estado natural” em que se encontravam, tornavam-se “cidadãos impossíveis”.

O quarto capítulo da Parte I, A adaptação aos novos tempos: o Zacheo “brasileiro”, aborda a inserção dele na política, após o retorno de Portugal, quando o Maranhão já fazia parte oficialmente do Império do Brasil. Os autores especulam sobre as razões que o teriam levado a optar pela volta.

Em tal decisão, talvez tenham pesado, de um lado, a guinada absolutista da política portuguesa; e de outro, a perspectiva constitucional brasileira, corporificada pela reunião de uma Assembleia Constituinte. Porém, não é possível ignorar outras razões, como os vínculos familiares que criou na província, o patrimônio que acumulou e a legitimidade que conquistou, como fatores de seu regresso (p102).

Seguindo indícios encontrados em escritos de Zacheo e de outros publicistas da época, consideram que ele integrava e (ou) apoiava o grupo político que subiu ao poder na Província, com o presidente Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce (1824-1825), após a adesão à Independência. O curto governo de Bruce foi bastante tumultuado. Por mais de uma vez os opositores tentaram derrubá-lo; houve repetidas sublevações da “tropa” e do “povo”; além de ter sido acusado de apoiar a Confederação do Equador. Acusação que recaiu também sobre nosso advogado, que conta em um de seus escritos ter sido preso em São Luís, no ano de 1824, possivelmente num dos motins contra esse governo.

Nesse capítulo o foco é no Zacheo que jurou a independência do Brasil e participou das tramas políticas em momentos de fortes manifestações de antilusitanismo na Província, quando a expulsão de portugueses constava da pauta das reivindicações dos movimentos populares. Inclusive, ele integrava o Conselho Presidial da Província, quando houve a Setembrada (em 1831) e participou das deliberações sobre as principais exigências dos rebelados: “expulsão dos postos militares dos ‘brasileiros por Constituição’; expulsão dos ‘brasileiros adotivos’ de todos os empregos civis, de Fazenda e Justiça […]“ (p.111).

Por fim, à guisa de introdução da Parte II, no texto Os Projetos de Zacheo e seu tempo, os autores fazem ainda uma análise do documento reproduzido, cotejando-o com outros projetos que lhe foram contemporâneos, à luz da discussão historiográfica sobre os assuntos abordados.

O Epaminondas Americano insere-se, portanto, na profícua produção acerca do processo de independência, da construção do Estado e formação da nação brasileira. Embora essas temáticas possuam lugar cativo nos clássicos da História do Brasil, nas últimas décadas foram retomadas com renovado interesse, devido ao fortalecimento da “nova história política” e à diversificação das abordagens no campo histórico. O vigor dos debates pode ser visualizado nos balanços historiográficos sobre a produção clássica e a recente, bem como na grande quantidade de novos títulos publicados, entre os quais este livro vem ocupar importante lugar.

Regina Helena Martins de Faria – Mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (CFCH/UFPE – Recife/Brasil), e professora no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (CCH/UFMA – São Luis/Brasil). E-mail: rhfaria@yahoo.com.br


COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche. O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão. São Luís: Café & Lápis / Editora UEMA, 2011. Resenha de: FARIA, Regina Helena Martins de. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 151-155, jul./dez., 2011.

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Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista. La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colonia a la ocupación portuguesa | Ana Frega

Ana Frega Novales é docente e historiadora na Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de Universidad de La República de Montevidéu, onde é Profesora Titular y Directora del Departamento de Historia del Uruguay.

A Introducción (p.11) adianta que o principal objetivo do trabalho é superar as visões que prefiguram o Estado Oriental e Artigas como seu “herói fundador”. Observa a importância de autores como Barrán, que destacou o encobrimento do protagonismo popular de Artigas, de Chiaramonte e sua ênfase nas províncias como unidades políticas do século XIX, além das pesquisas de Gelman sobre a demografia da Banda Oriental. Ana Frega apresenta as partes do livro numa ordem cronológica: a conformação da região de Santo Domingo Soriano no antigo Vice-Reino do Rio da Prata; a constituição da Província Oriental desde a perspectiva de Soriano durante a Revolução (1810-1820); e a dominação portuguesa, desde 1818 no caso de Soriano.

A Primeira Parte, Una región de la Banda Oriental a comienzos del siglo XIX, é formada por dois capítulos. O Capítulo 1 (p.19), Características de la región de Santo Domingo Soriano, trata da formação deste espaço nas disputas fronteiriças entre Espanha e Portugal. O subcapítulo 1 (p.23), El espacio geográfico y La evolución de La población, destaca o papel estratégico de Santo Domingo Soriano, nas margens do Rio Negro, sua centralidade em relação às localidades de Mercedes e San Salvador, e sua influência até o Paysandú, ao norte. No sub-capítulo 2 (p.31), Explotación y apropriación de los recursos naturales, aborda a evolução de Soriano de redução de indígenas na colônia, para incorporar-se à extração florestal e, posteriormente, à pecuária depois. Aqui aparece a “insegurança na campanha”, ameaçada pelos “infiéis” e desertores.

O Capítulo 2 (p.53), La crisis metropolitana y los poderes locales, tem três sub-capítulos. No primeiro (p.54), El cabildo como fortaleza de los poderes locales, historia a importância desta instituição desde a colônia, não apenas no controle das riquezas, como também no enfrentamento com os comandos centrais, usando exemplos concretos. O subcapítulo 2 (p.64), Conflictos jurisdicionales de Santo Domingo Soriano con Capilla Nueva de Mercedes y Paysandú, trata das disputas provocadas pela política expansiva de Soriano. Na medida em que cresciam os núcleos de povoação, eles tendiam a enfrentar-se na obtenção de privilégios. No subcapítulo 3 (p.70), La desestructuración del régimen colonial, é enfatizada a colaboração de Soriano com Buenos Aires nas invasões inglesas de 1807, o como isto influiu na disputa entre os defensores do livre comércio com os monopolistas.

A Segunda Parte, La constitución de la Provincia Oriental en el marco de la Revolución, 1810-1820, é formada por três capítulos. O Capítulo 3 (p.83) Guerra y Revolución en Soriano, 1810-1812, aborda a presença em Soriano de forças realistas, patriotas e até luso-brasileiras, bem como requisições, saques e levas de soldados. No subcapítulo 1 (p.88), La crisis revolucionaria desde una perspectiva local, mostra a submissão de Soriano ao governo realista de Montevidéu, e como os notáveis procuraram regularizar a apropriação da terra. Mas foram as milícias formadas localmente que garantiram a sublevação dos “pueblos orientales”.

O subcapítulo 2 (p.107), El “ejército nuevo”, inicia com a arrancada da insurreição em Mercedes (28/2/1811), o famoso “Grito de Asencio”, nome de um arroio que banhava a povoação. Artigas dirige suas atenções para Mercedes no início de abril de 1811. Havia ainda a questão do abastecimento, vestuário, armas, munições, erva-mate e tabaco. A mobilização das massas preocupava as autoridades portenhas, para quem as “gentes de Artigas” ou “Montoneras” tinham pouca noção de autoridade. Esta condição de “libres” criava sentidos de “pátria” e de “nação” desvinculados do território, mas associados a governos e leis novas para a plebe do campo.

O subcapítulo 3 (p.127), Existir y resistir durante la Revolución, mostra Soriano como um lugar estratégico que era objeto das diversas facções combatentes. Na luta, as milícias populares criaram uma nova “cotidianidad”, onde a questão da propriedade trazia expressões e conflitos sociais novos que solapavam as hierarquias. A mobilização criava uma identidade “americana”, em equivalência à de “oriental”.

No subcapítulo 4 (p.141), Identidades en Soriano en los comienzos de la Revolución, Ana Frega aborda a guerra depois do armisticio entre autoridades de Montevidéu e Buenos Aires. A presença luso-brasileira na Província Oriental tornava óbvio o caráter “estrangeiro” do acordo, e a luta por “independência” oporia os “orientais” à fidelidade que Buenos Aires tinha a Fernando VII. Assim, no chamado “Êxodo do Povo Oriental”, quando as massas rurais seguiram Artigas na sua retirada para Entre Rios, afastamento das decisões do Triunvirato de Buenos Aires tornava os “orientais” um “pueblo en armas” a um passo da ruptura social, que transcendia a disputa entre diferentes grupos.

O Capítulo 4 (p.167), Lecturas locales de la “soberanía particular de los pueblos”, tem como um de seus eixos as pesquisas de Chiaramonte, especialmente no que diz respeito às “províncias” na crise revolucionária, às quais ele atribuiu o caráter de “soberanías independientes”. Aqui, Ana Frega propõe examinar a formação da Província Oriental a partir do “pueblo libre” de Soriano.

No subcapítulo 1 (p.174) Una aproximación a la noción de “soberanía particular de los pueblos”, a autora inicia pela concepção de soberania a partir de vários filósofos da Ilustração, como a legitimidade – associada ao uso da força – garantida pelo “Direito Natural das Gentes”. Tais ideias circularam pela Província Oriental através de letrados, clérigos, militares, pela edição de folhas soltas, gazetas ou manuscritos; elas formaram as bases tanto para aprofundar a participação popular, quanto para freá-la. Além disto, tinha havido um antecedente significativo no cenário platino que antecedeu a Revolução durante as invasões inglesas, na formação das milícias locais.

O subcapítulo 2 (p.194), Una provincia compuesta de “pueblos libres” trata da grande novidade na ideia de soberania, predicando que o novo Estado independente da metrópole se estabelecesse desde a base, os “pueblos libres”, e esta seria a proposta dos “orientais” para a Asamblea General Constituyente (ou Asamblea del “Año Trece”). Para Artigas este encontro teria que garantir a representação e liberdade de todos “pueblos”, vilas e cidades, raízes de independência, república, confederação, separação dos poderes, liberdade civil e religiosa, a constituição da Província Oriental em território próprio, e a exigência de que Buenos Aires não fosse a capital.

No subcapítulo 3, Entre La unión y La unidad: intereses sociales y alianzas políticas (p.214), Ana Frega afirma, de início, que o artiguismo impulsionou a “soberanía particular de los pueblos” como o verdadeiro dogma e o objeto principal da Revolução, o que contrariava a concepção de uma soberania da nação que se procurava criar, subordinada às decisões do Triunvirato de Buenos Aires. Marcava-se a radicalização das diferenças entre a Província Oriental e as Províncias Unidas do Rio da Prata.

O subcapítulo 4, Los cabildos en la construcción de un gobierno provincial (p.226), trata da participação dos “pueblos”, caso de Santo Domingo Soriano, na organização da Província Oriental. Em 1815, acentuava-se a tensão entre a proposta de Artigas e o cabildo de Montevidéu em relação à eleição de representantes dos “pueblos”, já que agora, os cabildos, além das funções judiciais e municipais, exerciam funções legislativas. Na reinstalação dos cabildos em 1816 repousava a “soberanía particular de los pueblos”, com eleições populares incorporando as variadas povoações e jurisdições. Estas mudanças não foram aceitas em várias partes. Soriano, por exemplo, procurou beneficiar os “títulos primordiais”. As exigências de mais sacrifícios em função da guerra provocavam reclamações do “vecindario”, mostrando que as relações tensas destes com Artigas eram atravessadas por conflitos sociais anteriores, como as referências novamente a “vagos” e “malentretenidos” para os milicianos artiguistas.

O capítulo 5 (p.259), Identidades y poderes en la etapa radical de la Revolución. Una mirada desde Santo Domingo Soriano, acentua no sub-capitulo 1 (p.267), Una aproximación a la etapa radical de la revolución, que as etapas radicais dos processos revolucionários se deram quando ocorreu a busca por igualitarismo, também em relação aos direitos de propriedade. Durante a Revolução circularam as ideias de Tom Paine: em “Justiça Agrária”, ele defendia os princípios de igualdade e propriedade comum da terra aos homens. Também a experiência jacobina francesa criticando o direito à propriedade privada da Declaração Universal de 1789 era trazida à baila: Robespierre, baseado em Rousseau, afirmava que a liberdade era um “direito natural”, enquanto a propriedade era uma instituição da sociedade. Também alguns “curas patriotas”, como Montessoro, teriam influenciado o Reglamento de Artigas.

O subcapítulo 2 (p.283), Los conflictos por la propiedad y la justicia revolucionaria, aprofunda muito as propostas constantes na Memoria de Félix de Azara de 1810, porque propõe o confisco e distribuição de terras dos melhores campos da Província Oriental, não apenas os da região fronteiriça. Além disto, o privilégio dado a “los más infelices” pelo Reglamento de Artigas, se configurava como uma peça chave na “pedagogia revolucionária”, se estendendo a todas as províncias da liga artiguista. A seguir a autora trata de Soriano, exemplificando reações distintas ao programa agrário.

No subcapítulo 3 (p.312), Construcción de identidades en el proceso de la lucha, Ana Frega discorre sobre as relações sociais que se desenvolveram entre os participantes da Revolução, e de como esta experiência coletiva transcendeu àqueles laços anteriores de família, compadrio ou mesmo amizade. Neste sentido, foi gerada uma identidade destes setores populares com Artigas, em contrapartida a um desencanto com as novas autoridades que se impunham desde Buenos Aires e aliados. Assim, a expressão “Oriental” passou a ser muito mais que um lugar, passando a significar uma ativa atuação política, justificando o título dado a Artigas de “Jefe de los Orientales”, assim como Revolução viria a ser chamada de “tiempo de los orientales”.

A Terceira Parte, La ocupación portuguesa, é formada apenas pelo Capítulo 6 (p. 329), La “soberanía particular de los pueblos” en el “Estado Cisplatino, 1818-1822, sempre com referência empírica a Santo Domingo Soriano. O sub-capítulo 1, Soriano ante la invasión luso-brasileña, trata da legitimação que buscava a Coroa portuguesa para interferir nas questões da Província Oriental. O propósito de liquidar com a “anarquia” representada por Artigas, tinha também a intenção de atrair apoios desde as Províncias Unidas e mesmo de orientais já temerosos dos rumos que tomava o artiguismo. A convocação dos paisanos à resistência não impediu que a Província Oriental fosse sendo ocupada, e Soriano caiu em 1818.

No subcapítulo 2 (p.336), Espacios de resistencia y negociación de los poderes locales, Ana Frega mostra como se acentuou o processo de formação de um “estado provincial” na Banda Oriental, fortemente centralizado em Montevidéu, ocupada desde o início de 1817. Nos antigos “pueblos libres”, como Soriano, Mercedes e San Salvador, foram instaladas autoridades locais, os alcaldes. No Congreso General Extraordinario convocado em 1821, compareceram representantes de todas as povoações, evitando as reuniões e comícios populares do artiguismo. Reconstituía-se o “verdadeiro corpo político”, usando os cabildos para resolver os danos da Revolução. Além dos conflitos pela terra, entre latifundiários e os beneficiários do Reglamento, havia a questão dos luso-brasileiros que se aboletavam nas suas terras.

O subcapítulo 3 (p.354), Identidades luso-brasileñas en territorio oriental, salienta as relações que existiam desde muito tempo entre populações fronteiriças, e que muitas vezes se colocavam acima das questões políticas. Desta forma, os conflitos se deveram muito mais a razões de Estado, antes e depois do processo de independência. Uma expressão disto era a presença em Santo Domingo Soriano de um terço de sobrenomes portugueses na população.

Em Síntesis y conclusiones (p.363), a autora recupera o propósito do trabalho em examinar a Revolução de Artigas em três escalas: uma “micro”, em Santo Domingo Soriano; uma “média”, referida à Província Oriental; e uma “macro”, considerando o espaço do antigo Vice-Reino do Rio da Prata. A pesquisa foi focada na “soberanía de los pueblos”, investigando seu papel para a legitimidade que esta autonomia conferia ao processo de independência. A reconstituição de um espaço regional como Soriano mostrou uma complexa trama de alianças, direitos e hierarquias sociais, que encobriam uma longa história de resistência. Portanto, a “soberanía particular de los pueblos” significou um projeto igualitário que se reportava a antigos direitos reclamados pelas camadas populares.

O livro de Ana Frega se constitui, assim, numa sofisticada obra que alia a cuidadosa investigação empírica a um avanço interpretativo em relação às produções anteriores sobre o radicalismo do Projeto de Artigas. Lucía Sala e seu grupo determinaram o caráter social do artiguismo, centrando-se na questão da apropriação da terra e sua redistribuição aos trabalhadores rurais. Barrán e Nahum acentuaram o papel de Artigas como representante de um movimento social que ia muito além da busca de uma mera autonomia provincial, encoberta pela ideia do “herói fundador”. O livro Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista, da forma como foi concebido e realizado, a partir do “pueblo” de Soriano traz, à tona a construção de uma cidadania a partir de uma proposta revolucionaria que, de baixo para cima, pretendia uma nação que, além de contrariar os interesses centralizadores do grupo exportador de Buenos Aires, comprometia a organização do latifúndio pecuário. Mais que autonomia e federalismo, Artigas trazia a ameaça da insurreição popular.

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (CFCH/UFRJ – Rio de Janeiro/Brasil) e Professor Associado no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH/UFRGS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: cguazza@terra.com.br


FREGA, Ana. Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista. La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colonia a la ocupación portuguesa. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2007. Resenha de: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Soriano, Província Oriental: Revolução Artiguista revisitada. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 156-159, jul./dez., 2011.

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O Brasil imperial | Keila Grinberg e Ricardo Salles

Esses três volumes dividem a história da monarquia brasileira em três fases distintas: 1808-1831, 1831-1870 e 1870-1889; ou seja, da transferência da Corte portuguesa à abdicação do primeiro imperador; da Regência até o fim da Guerra do Paraguai; e deste conflito até a queda da monarquia. Cada volume é composto por onze capítulos, escritos, individualmente ou em colaboração, por 36 historiadores.

Coleções são, notoriamente, difíceis de organizar. Os colegas, com frequência, têm dificuldade de cumprir prazos ou hesitam em aceitar sugestões e correções. Os resultados, amiúde, variam consideravelmente de capítulo a capítulo. Essa coleção de três volumes é, contudo, excepcionalmente sólida, pelo alto nível geral de conhecimento que apresenta, por sua abrangência e pela clareza da escrita e, como José Murilo de Carvalho observa em sua elegante introdução, expressiva das conquistas do país na última ou nas duas últimas gerações. A coleção pode ser considerada uma celebração da maneira como a história do Brasil tem sido escrita e ensinada nesse período. As referências bastam para tornar os volumes indispensáveis, tanto para o graduado quanto para o profissional da área. O estilo e a abordagem são, muitas vezes, tão convidativos que também o leigo poderá se beneficiar. Embora fique evidente que Grinberg e Salles não exerceram uma coordenação autoritária (abordagens, extensões e graus de sucesso variados sugerem que se limitaram a selecionar colegas e tópicos), eles devem ser felicitados e reconhecidos por esse triunfo ímpar na historiografia.

São dois os precedentes desses volumes. A imprescindível série A história geral da civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Hollanda e, depois, por Boris Fausto, durante os anos 1960 e 1970; e os magistrais capítulos sobre o Brasil na Cambridge History of Latin America [CHLA], composta em grande parte na década de 1980 (sendo que as contribuições mais recentes foram feitas ainda em 2008) e organizada por Leslie Bethell. A primeira foi escrita por especialistas brasileiros e americanos como uma narrativa tanto para leigos quanto para acadêmicos, com um mínimo de referências. A segunda fornece análises densas e narrativas sintéticas, feitas por especialistas de três continentes. Sua linguagem sugere que foi escrita para acadêmicos ou graduados, e, embora careça seriamente de referências, cada capítulo é reforçado por um ensaio bibliográfico bastante útil, que abrange as pesquisas em todos os idiomas indispensáveis. A coleção em mãos difere de ambos os precedentes. Com uma exceção, Dale Tomich, todos os autores são brasileiros. Alguns dos textos são fundamentados tanto em fontes primárias quanto em bibliografia, e todas elas recebem notas (não há bibliografia no final dos capítulos). Muitos dos autores, assim como os da CHLA, sintetizam e colocam referências somente nas fontes bibliográficas; na verdade, muitos dos trabalhos citados são os mais recentes na área e estão em teses e dissertações não-publicadas. Lamentavelmente, há, reiteradas vezes, espantosas lacunas nas citações. Referências a importantes contribuições em inglês variam de autor para autor; mas, com frequência, estão ausentes ou desiguais, e, com muita frequência, trabalhos mais antigos escritos em qualquer idioma são negligenciados. Em geral, esta poderia ser definida como uma coleção feita por e para acadêmicos brasileiros dessa geração e da anterior, com ênfase na pesquisa realizada nesse período.

Dos três volumes, o primeiro e o terceiro são os mais irregulares em termos de qualidade. No primeiro, podem-se considerar problemáticos o segundo capítulo e os capítulos de quatro a sete, por várias razões. O capítulo de Iara Schiavinetto sobre o período joanino apresenta escassa narrativa sobre a época e poucas evidências para seus argumentos. Em vez disso, a autora pressupõe um público erudito e enfatiza as expressões culturais e simbólicas. O texto de Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira sobre o Primeiro Reinado negligencia as ligações entre líderes políticos e seguidores populares, não faz distinção entre os interesses e as ações dos vários elementos que compõem as massas e, no fundo, tende a confundir pessoas de cor, libertos e filhos de escravos em argumentações que se esforçam para persuadir o leitor quanto à agência popular. O ensaio de Patrícia Sampaio sobre política indigenista é surpreendentemente decepcionante; um estudo de relatórios ministeriais que presta pouca atenção ao que aconteceu na realidade concreta. O capítulo sobre tráfico de escravos, escrito por Beatriz Mamigonian, é ambicioso, até por suas conclusões provocativas e problemáticas em um ponto ou outro. Seja como for, suas novas proposições (de que o tráfico esteve sujeito a intensos ataques jurídicos, os quais impactaram a escravatura e os próprios africanos) são apenas expostas, e não satisfatoriamente demonstradas. Por fim, o capítulo sobre rebeliões de escravos pré-1850, escrito por Keila Grinberg, Magno Borges e Ricardo Salles, fornece um estudo e uma bibliografia úteis. Ainda assim, o argumento (de que as rebeliões e a violenta resistência dos cativos eram o aspecto distintivo do regime escravista, as quais impunham temor e pânico generalizados sobre os livres) fundamenta-se em evidências problemáticas e, por vezes, contestadas por fatos comprovados (por exemplo, a primazia da resistência pela fuga e por quilombos, a reduzida dimensão e o caráter efêmero das revoltas, suas seguidas repressões e, sobretudo, o êxito e a expansão do sistema escravista em todas as regiões e classes sociais).

A maior parte do volume, contudo, é bem mais consistente. O primeiro capítulo, uma introdução de Cecília Helena Oliveira para todo o período, é uma síntese sólida, que expõe a narrativa e os argumentos com destreza. Falta-lhe apenas uma melhor análise sobre as bases regionais e socioeconômicas por trás da divisão política da época. O capítulo de Piedade Grinberg sobre arte e arquitetura é uma apresentação culta e instrutiva, com notas explicativas e referências úteis. Embora ele já seja bastante proveitoso, seria bem-vindo alguém capaz de estender sua abordagem para os possíveis paralelos com escolas literárias e outras instituições de inspiração francesa, tais como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Colégio Dom Pedro II e também o papel de mecenas do monarca. O capítulo de Lúcia Maria Bastos P. das Neves sobre o Estado e a política na época da Independência faz hábil uso de fontes coevas em um percurso muito bem sucedido pela historiografia, ao qual se segue uma análise útil e, por vezes, revisionista, da narrativa. O capítulo de Eduardo França Paiva sobre Minas no século XIX é um estudo magistral, um tour de force que utiliza as pesquisas mais recentes para ressaltar a importância racial, demográfica e de desenvolvimento da província – é uma pena que ele não aplica o mesmo esforço para fazer as relações com a história política do período. Gabriela Ferreira compensa essa negligência, tão comum nestes capítulos, em seu engenhoso texto sobre a história diplomática no Prata. A autora fornece um relato útil e necessário sobre a consolidação do Estado entre 1837 e a década de 1850 e utiliza essa análise como estrutura indispensável para sua síntese narrativa. Fundamentado tanto em clássicos quanto em trabalhos recentes, este é um estudo que não para de surpreender e informar. Por fim, o capítulo de Guilherme Pereira das Neves, sobre a religião na monarquia, conclui o volume com um estudo amplo e útil, contextualizando a história da Igreja com um uso erudito de fontes em diversos idiomas e criteriosas referências a debates parlamentares. Só se poderia desejar que o autor houvesse tido espaço para aprofundar o tema da maçonaria ou a questão dos bispos, depois de tê-los apresentado.

O segundo volume é, no geral, o mais consistente. É verdade que o capítulo introdutório de Ilmar Rohloff de Mattos não aprimora muito seu clássico estudo sobre o período. Fazendo referência a uma bibliografia ampla e seletiva, sem o benefício da pesquisa de arquivo, sua análise digressiva evoca O tempo saquarema, frequentemente citado em outras partes por seus colegas, no qual se confunde a monarquia, o Estado e as classes dirigentes, sem uma clara noção do processo, da articulação ou das distinções partidárias, tão importantes na tentativa de compreender esse complexo passado. O estudo de Magda Ricci sobre a Cabanagem pode ser mais bem recomendado, se bem que com hesitação. A autora não apresenta nenhuma pesquisa de arquivo e presume que o leitor está familiarizado com a narrativa – os que desconhecem o assunto talvez ficarão confusos. No entanto, sua síntese de uma ampla gama de trabalhos apresenta a mais devastadora das revoltas regenciais, geralmente ignorada ou desconhecida por muitos de nós, e suas citações de obras relativamente obscuras da historiografia amazônica são úteis. O capítulo de Jaime Rodrigues acerca do fim do comércio atlântico de escravos é surpreendente, devido à erudição do autor. Ele pressupõe que o debate central permanece no tema das motivações britânicas versus motivações nacionais e geralmente ignora a contenda mais atual, que aponta como causas a agência escrava e a febre amarela. Embora forneça uma fascinante história intelectual da polêmica e da crítica parlamentar ao tráfico, ele o faz sem atentar ao seu impacto sobre a decisão de terminar o tráfico, às opiniões daqueles que realmente tomaram esta decisão ou à história política, essencial para compreender o contexto desta decisão. Por fim, o capítulo de Márcia Gonçalves sobre o Romantismo pode ser considerado como uma oportunidade perdida. É um trabalho sobre os conceitos fundamentais da escola e pressupõe um interesse na análise teórica de tais conceitos e um conhecimento do período e de suas figuras literárias. Há uma excelente bibliografia sobre os temas abordados e sobre autores canônicos brasileiros. No entanto, não há preocupação em mostrar como a sensibilidade e os literatos românticos se encaixavam no meio literário, social e político da época. Na verdade, a chance de demonstrar a relação entre a alta cultura e os interesses de outros historiadores – ou até mesmo dos leitores – foi perdida.

Outros capítulos são verdadeiramente valiosos. Nenhum período é mais importante ou seminal para a história da monarquia que a Regência, e a introdução de Marcelo Basile a esse período é deveras admirável, devido à sua clareza e maestria, beneficiando-se da ótima pesquisa, tanto de fontes primárias quanto de bibliografia. Embora seja preciso notar que ele negligencia a questão crucial do impacto socioeconômico no início da formação dos partidos, deve-se recomendar este texto bastante sólido e provido de úteis notas explicativas. O texto de Sandra Pesavento sobre os farroupilhas inclui uma útil narrativa, embora a necessária análise contextual da revolta seja atrapalhada, aqui e ali, por hipóteses e conclusões equivocadas. Estas são bem menos relevantes que a provocativa investigação que a autora faz da construção literária e historiográfica da identidade e do imaginário gaúchos e de sua importância. O capítulo de K. Grinberg sobre a Sabinada também tem valor evidente. Pode-se discordar da autora em algumas passagens, quanto a fatos e interpretações, mas o texto é, em si, útil por seu caráter provocativo e pela centralidade das questões que apresenta. Ela usa essa destacada revolta para ilustrar como o debate sobre discriminação racial veio à tona e depois foi suprimido na década de 1830. Ao fazê-lo, discute explicitamente os aspectos raciais do movimento, a oposição que lhe fez Antônio Rebouças e as carreiras deste e de Sabino. Embora a autora procure se concentrar na questão da raça, sua bela pesquisa mostra que os fatores políticos, de classe e de carreira se entrelaçam com o fator racial consistentemente. De fato, as generalizações políticas e raciais que ela sugere nem sempre se ajustam com a carreira de Rebouças ou com as de Justiano José Rocha, Francisco Otaviano, Aureliano e Paula Brito. O texto de Vitor Izecksohn sobre a Guerra do Paraguai faz um sólido resumo da guerra e fornece uma excelente bibliografia. Além das várias linhas de pesquisa cuidadosamente sugeridas na conclusão, outras são indicadas pela bem elaborada análise política: qual foi o impacto da guerra na política doméstica em termos de reforma urbana e dificuldades financeiras? Qual foi a base dos temores do gabinete quanto à mobilização política entre liberais e veteranos depois de 1870? A conclusão de Ivana Lima para o volume dedica-se ao tópico aparentemente pouco auspicioso da língua nacional. Ainda assim, por mobilizar uma gama impressionante de bibliografia e textos coevos publicados, pode-se considerá-la muito útil para se pensar a formação cultural multiétnica, os aspectos culturais da sociabilização e o seu impacto político e as intenções políticas da cultura literária e o uso da língua. Por exemplo, a autora mostra a intenção senhorial de usar a língua para manter a hierarquia social, mas também demonstra os usos da língua para inclusão dos subalternos e para a mobilidade social. É uma introdução cuidadosa e atraente a um tópico que a maioria de nós ignora.

Dois capítulos deste volume são especialmente admiráveis por suas contribuições: o capítulo de Marcus Carvalho sobre movimentos sociais pernambucanos e a análise de Rafael Marquese e Dale Tomich sobre a produção cafeeira do Vale do Paraíba no contexto mundial. Nenhuma província era mais atingida pela instabilidade e pela violência que Pernambuco naquele período. Nenhuma era mais importante para compreender o significado nacional tanto da Regência quanto do Regresso. A análise de Marcus Carvalho aborda todas essas questões em uma mostra singular e impressionante do ofício do historiador. É exemplar por sua habilidosa conjugação de uma vasta gama de fontes de arquivo com bibliografia; por sua atenção à interação entre classes e cores de pele e entre a província e a Corte; e pela clareza de sua exposição. Modelo de como lidar com os complicados elementos em jogo na política e nas revoltas provinciais do início da monarquia, o artigo demonstra quão indispensável a história social é para a história política, a história política é para a social, e quão crucial a apreciação das contingências e das especificidades de tempo e lugar é para a compreensão e o encadeamento dos processos políticos. É invejável o evidente domínio de Carvalho sobre as questões no plano empírico e na historiografia; espera-se ansiosamente o dia em que forem feitas análises similares sobre todas as províncias do Império. Marquese e Tomich, em uma notável demonstração que combina um extraordinário entendimento das tendências gerais a uma atenção focada no detalhe local, colocam em contexto a emergência das plantações de café escravistas, em uma síntese magnífica, baseada em uma fundamentação historiográfica excepcionalmente extensa. Seu vigor específico provém da maneira pela qual insere as exportações do café brasileiro no contexto global, expondo, sem dificuldade, números e análises acerca do mercado do produto, da competição e da relação de ambos com o cultivo e a mão-de-obra no Brasil. Com excelentes números e preocupação com a cronologia, essa dupla ilustra, de forma ousada, os fatores vários que permitiram que o Brasil se lançasse à frente de rivais contemporâneos, como as ilhas caribenhas e Java. Mais que isso, a escrita e a organização dos autores é feita de tal modo, que aquilo que muitos de nós julgamos ser o aspecto mais desalentador da história torna-se dramático.

Como no primeiro volume, as contribuições do terceiro tendem a se agrupar em dois extremos – o dos problemáticos e o dos impressionantes. O texto introdutório de Hebe Mattos sobre raça, escravidão e política, por exemplo, focaliza as três principais leis abolicionistas de 1850, 1871 e 1888, mas se esquiva da complexidade da história política com generalizações simplificadas sobre a classe dominante e o reformismo desprezado e com a afirmação insatisfatória de que cada lei foi, em grande medida, resultado da mobilização dos escravos. O ensaio de Margarida Neves sobre o Rio é inesperado, baseado em uma considerável bibliografia sobre as exposições universais e, na maior parte, as impressões de Koseritz. A bibliografia sobre o Rio ou sobre a história urbana do final do século XIX é, em geral, ignorada, exceto pelos trabalhos de Chalhoub. Não há nada sobre assuntos como a dramática transformação demográfica da cidade, o declínio do escravismo, a nova opulência e as amenidades da era pós-1850, a economia que girava em torno da cidade, a infraestrutura que a sustentava ou os estilos arquitetônicos que a adornavam, o surgimento dos novos bairros elegantes, o impacto qualitativo e quantitativo das doenças contagiosas. O capítulo de João Klug sobre a imigração para o sul também não satisfaz. É menos uma síntese competente que uma tentativa fracassada de construir uma narrativa triunfalista. Preocupa-se quando o autor supõe que a política de Estado ou que a classe dirigente da nação não mudaram com as décadas, e, embora ele presuma que há uma lógica racial na imigração europeia, não faz qualquer tentativa de atrelar as mudanças na política de imigração às mudanças na política atinente ao tráfico de escravos africano e à escravidão. Por fim, o relato de Maria Helena Machado sobre a abolição da escravatura é igualmente decepcionante. A exemplar pesquisa de arquivo sobre eventos locais paulistas é maravilhosa, mas nota-se que a autora geralmente deixa de lado as fontes coevas abolicionistas publicadas e a tradição acadêmica sobre o movimento abolicionista para privilegiar o argumento de que as rebeliões escravas e o medo por elas espalhado impulsionaram o abolicionismo. Suas evidências são demasiado seletivas e, às vezes, podem ser lidas de modo bem diferente do que ela propõe. E, embora o próprio texto indique algo sobre a importância dos abolicionistas na fuga e na resistência dos escravos rurais, ela insiste em argumentar que os líderes abolicionistas eram marginais até 1888. Na verdade, a autora só menciona o movimento abolicionista uma única vez e, apesar de seu enfoque na desestabilização rural paulista nos anos 1880, ela se refere apenas de passagem a Antonio Bento. A agência escrava dos escravos é crucial para o entendimento tanto da escravidão quanto da abolição no Brasil, mas não há motivos para ignorar as realidades políticas nacionais ou a natureza do movimento nacional que, com êxito, se envolveu com essas realidades, promoveu e organizou a fuga e a resistência na década de 1880 e fez um uso político astuto e efetivo do impacto da agência escrava.

Há trabalhos bem mais interessantes nos outros capítulos do volume. Veja-se, por exemplo, o convincente relato de Martha Abreu e Larissa Viana sobre cultura urbana afro-brasileira. Bem escrito e envolvente, é resultado de uma persuasiva síntese da bibliografia atual e dos valiosos registros do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Pode-se perguntar, devido à pesquisa das autoras, por que elas ainda se sentiram compelidas a impor uma identidade “negra” a-histórica e uma política cultural consciente sobre os afro-brasileiros pobres. Afinal, essa imposição é, muitas vezes, contrariada pela especificidade e complexidade dos fatos que eles mesmos apresentam tão bem. Identidade negra, comunidade negra e comunidades e festividades negras são concepções post-facto com que eles cobrem uma realidade muito mais complexa – as variadas etnias africanas, a crioulização, a miscigenação racial, o hibridismo cultural e as metamorfoses nas festividades, o oportunismo, além da exploração, que eles detalham tão bem. O relato de Renato Lemos sobre republicanismo e o golpe de 1889 é uma síntese bastante útil e bem organizada de uma bibliografia considerável e variada. Apenas se poderia esperar que sua hábil análise se demorasse um pouco mais na ideologia e no papel crucial dos republicanos positivistas, no fracasso do reformismo democrático e agrário dos abolicionistas e nas divisões e recuos dos partidos tradicionais. Contudo, o artigo deve ser recomendado por sua discussão acerca da dissidência, da alienação e da politização dos militares – excepcional pela minúcia e clareza.

Os capítulos restantes são ainda mais consistentes, dois deles em particular. Embora se possa discordar da compreensão de Salles sobre a história dos saquaremas e da crise de 1871, deve-se recomendar a maior parte deste capítulo sem hesitação. Bem concebido e escrito, o texto faz uso de uma criteriosa seleção de bibliografia e de fontes primárias publicadas para fornecer um sofisticado tratamento da história política de meados do século e das figuras que o dominaram, com evidente conhecimento sobre o crucial contexto socioeconômico. Talvez um estudo mais rigoroso das fontes de arquivo e dos debates de 1871 pudesse explicar como e porque os saquaremas condenaram a Conciliação e pudesse fazer a clara distinção entre as políticas e a perspectiva do imperador e as dos saquaremas. Não obstante, esse é um trabalho notável e uma excelente base para um debate proveitoso. O texto de Ângela Alonso sobre as ideias e as correntes da Geração de 1870 é indispensável por vários motivos. Baseado em uma leitura cuidadosa de bibliografia e fontes coevas publicadas, é uma análise rica e original que requer (e recompensa a) leitura atenta, pois trata, com esmero, de influências, autores e preocupações. O artigo destaca o ponto crucial da adaptação do pensamento atlântico feita pelos intelectuais brasileiros e o papel decisivo que estes desempenharam como atores políticos engajados (e não como intelectuais descompromissados). A autora também esclarece que eles deixaram um importante legado, enfatizando a missão civilizatória do pensamento social e a ideia seminal de que as massas da nação eram um singular amálgama de três raças. De modo geral, o capítulo é fortemente recomendável. Mas, devido à ênfase no ativismo político, o leitor é surpreendido pela implícita decisão da autora por separar a história política da intelectual ao tratar da primeira sem a costurar com a segunda, na maioria das vezes. Isso pode explicar alguns deslizes: o artigo não aborda de modo satisfatório a natureza ou influência duradoura do radicalismo liberal pré-1870; afirma que o regime possuía uma ideologia aristocrática e católica, em contradição com as verdadeiras ideologias e políticas da monarquia; e seu foco sobre o positivismo e seus militantes é irresoluto, apesar da importância destes sobre os republicanos, sobre a queda do regime e sobre o regime seguinte.

Os capítulos remanescentes também são altamente recomendáveis. O texto de Maria Luiza Oliveira sobre São Paulo é exemplar; escrito com grande empatia e destreza, combina um estudo magistral sobre as abordagens e tendências da historiografia com um esboço útil da natureza, do ritmo e da direção das mudanças urbanas que transformaram São Paulo de centro intelectual provincial em núcleo agroexportador emergente. As referências indicam domínio dos clássicos e selecionam textos acadêmicos inéditos; a autora emprega, engenhosamente, fontes de arquivo para provar pontos específicos. Instrutivo e inspirador em todos os aspectos, o artigo é uma realização invejável. O mesmo talvez possa ser dito sobre o agradável ensaio de Leonardo Pereira sobre a literatura do período. Bem escrito, é um texto lúcido, que se vale da literatura e do célebre dito de Machado de Assis sobre o “instinto nacional” para traçar os meios pelos quais a literatura e os literatos pós-1870 se engajaram na transformação da política e da sociedade. Aqui encontramos um hábil tratamento da teoria literária coeva, das obras literárias e do meio político e social, além de uma demonstração competente de como esses aspectos se relacionavam. O leitor pode apenas imaginar o que um acadêmico tão talentoso haveria feito se sua tarefa houvesse sido estendida até o divisor de águas literário dos anos 1850, durante os quais tanto Alencar quanto Machado se formaram. Ainda que o uso das fontes primárias seja exemplar, o leitor fica intrigado com a decisão do autor em citar apenas textos bibliográficos selecionadas e muito recentes – o que surpreende, sobretudo, quando se leva em conta a grande força da história e da interpretação literárias brasileiras e brasilianistas ao longo das gerações. Por fim, José Augusto Pádua nos fornece um estudo bem sucedido sobre a história e o pensamento ambiental do período. Dominando as fontes e a bibliografia imprescindíveis, as quais ele discute com destreza, essa é uma contribuição revigorante e provocativa que sugere, implícita ou explicitamente, inúmeras possibilidades para pesquisas ulteriores nesse campo relativamente novo. Seria desejável, por exemplo, que o autor houvesse enfatizado com maior vigor o impacto da oposição (ou da indiferença) do Estado e das classes dominantes às críticas concernentes à natureza do modelo de desenvolvimento rural do Brasil. Como no caso dos abolicionistas até a década de 1880, brasileiros que se opunham ao modelo de produção agro-exportadora insustentável eram marginalizados, não importando quão proeminente fossem pessoalmente. Tudo isso faz o leitor relembrar algo que a obra clássica de Emília Viotti da Costa sobre a abolição da escravatura deixou evidente. Não é a ausência ou a presença de ideias esclarecidas o que explica práticas ruins em um período e práticas boas em outro. Mas, sim, as alterações favoráveis nas circunstâncias materiais e políticas.

A resenha de uma coleção desse porte pode ser comparada a um convite para um bufê de amigos. É preciso provar os diversos pratos e emitir uma opinião; felizmente, está claro que a maioria dos pratos aqui degustados é excelente ou, pelo menos, que vale a pena experimentá-los, apesar de uma ou duas objeções. Talvez agora o convidado possa notar que faltaram alguns pratos que ele gostaria que houvessem sido servidos – apenas para fazer algumas sugestões de pesquisas futuras para todos nós.

Faz sentido haver capítulos sobre o Rio, a capital nacional, e sobre o café e o Vale do Paraíba; também faz sentido haver um capítulo sobre Minas, devido à sua importância política, econômica e demográfica; sobre Pernambuco, dada a sua constante importância política e econômica, e sobre São Paulo, cuja primeira emergência no cenário econômico ocorre sob a monarquia e cuja proeminência ulterior no país chama atenção. Pode-se perguntar, porém, pela ausência de capítulos sobre Salvador e a Província da Bahia, pela falta de um capítulo sobre o açúcar ou pela ausência de um capítulo sobre a Amazônia.

Afinal, Salvador foi a segunda cidade do império ao longo do período e a Bahia foi economicamente significativa e politicamente crucial durante toda a monarquia. O açúcar, mesmo que sua exportação e participação no mercado internacional tenham recuado na época, dominou as exportações no início do período que os três volumes discutem e continuou sendo um item de exportação regional muito importante no nordeste e na baixada fluminense durante a monarquia. Embora comentários sobre isso estejam espalhados pelos volumes, um capítulo sobre a ascensão e o declínio do produto, com uma análise das várias consequências, seria, por certo, útil. Quanto à Amazônia, embora o capítulo sobre a Cabanagem tenha sido uma excelente ideia, o esquecimento no qual Belém, Manaus e a Amazônia caem logo na sequência da trilogia é lamentável. Embora o mesmo possa ser dito sobre o Rio Grande do Sul depois do capítulo sobre a revolta farroupilha, a importância econômica e política da província gaúcha pelo menos é abordada no capítulo sobre a diplomacia platina. O mesmo não pode ser dito sobre o norte; a antologia negligencia sua história após o início dos anos 1840. Ainda que a política de Estado tenha focalizado e se dedicado a outras áreas, ela demonstrou um esporádico, mas crescente interesse na região pelo menos a partir de meados do século. A Província do Amazonas data desta época, quando as marcas do ciclo da borracha, que atingiu seu pico por volta do ano 1900, começaram a se definir; além disso, toda a região é um interessante campo para conflitos diplomáticos, expansão da infraestrutura, penetração econômica e política indigenista. Embora o desdobramento de grande parte desses eventos ocorra um pouco mais tarde (1890-1914), sua preparação tem atraído e deve atrair maior interesse.

Outra lacuna se refere a uma atenção séria e constante ao pensamento econômico e às políticas financeiras sob a monarquia, com ênfase em uma escrita que seja acessível àqueles que não têm noções sobre economia. Tradicionalmente, historiadores do desenvolvimento e das finanças do Brasil asseveram que o século XIX foi significativo para o que aconteceu ou não aconteceu e por quê. Mais que isso, a monarquia é a época em que foram feitos avanços cruciais na infraestrutura e na qual o dramático incremento na produção, no comércio, nas comunicações e nos investimentos da nação ocasionou a inovação e o debate na política financeira e nas instituições. De fato, dívidas internacionais, demandas e crises atlânticas modelaram a política dos gabinetes e o debate parlamentar a partir dos anos 1850, com crescente importância e impacto doméstico desde a época da Guerra do Paraguai até a era do reformismo urbano e do abolicionismo. Sem dúvidas, esses assuntos solicitam nossa atenção.

Jeffrey D. Needell – Professor de História Brasileira no Departamento de História da Universidade da Flórida (College of Liberal Arts and Sciences/ UF – Flórida/EUA) e Professor Afiliado do Centro de Estudos Latino-Americanos (UF – Flórida/EUA). E-mail: jneedell@history.ufl.edu


GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil imperial. 3 Vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: NEEDELL, Jeffrey D. Uma celebração da História Imperial do Brasil. Tradução da resenha: LUCIANI, Fernanda Trindade. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 160-167, jul./dez., 2011.

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Almanack | UNIFESP | 2011

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Almanack (Guarulhos, 2011-) é uma revista acadêmica e interinstitucional especializada na história da formação dos Estados nacionais no Brasil e em todo mundo, entre os séculos XVIII e XIX.

Editada por especialistas nesta temática, ela possui pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras (Argentina, EUA, Espanha, França) entre seus editores e conselheiros executivos, e opera com um amplo espectro de avaliadores de dentro e de fora do Brasil.

As universidades brasileiras que a mantém são UNIFESP (sede institucional), USP, UFF, UNIRIO, UERJ, UFJF, UFOP, UFES, UFSJ, UFRRJ e PUC-RJ. Também é apoiada pela Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO).

Periodicidade trimestral

Acesso livre

ISSN 2236-4633 (Online)

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Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares

A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.

Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.

Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.

Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.

Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.

A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.

Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.

O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.

Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.

Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.

O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.

No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.

Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.

Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.

Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.

A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.

O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.

Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.

A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.

Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.

Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.

Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.

O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.

O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.

A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.

O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.

Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.

Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: diorio@usp.br


ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.

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Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte | Ronaldo Pereira de Jesus

Os estudos sobre a sociedade imperial do Brasil baseados em critérios de estratificação social de classe, desde sempre, é fato, ressoavam as concepções de mundo das classes dirigentes ou “dominantes”, ou “superiores”. Tal se dava seja porque se enaltecia, num primeiro momento, a “obra virtuosa” de edificação da Nação-Estado monárquica levado a cabo por sua diligente elite política; seja, depois, devido à análise crítica do papel dessas mesmas elites imperiais e sua obra: 1) a edificação do aparato jurídico do Estado pelos homens de letra e lei imperiais, consubstanciada em seus diplomas magnos que são a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830, o do Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850; 2) a construção de uma identidade nacional, costurada em ponto-cruz pelos artistas, com grande peso dos escritores, sob a luz romântica do século (aqui, de nosso romantismo indianista); e, 3) a direção política da máquina governamental, em particular durante o segundo reinado, sob a tutela da indefectível mão paternal do summa potestas imperial.

Pelo menos desde os anos 1980, porém, sob influência da recepção das diversas matrizes do que se batizou de history from Below ou history from the bottom up, em particular da história social britânica de E. P. Thompson e Eric Hobsbawm mas igualmente de outras vertentes da história cultural que têm as camadas populares como sujeitos privilegiados de análise, como a micro- história italiana, os historiadores brasileiros procuraram expandir os horizontes das concepções ou visões de mundo constitutivas dessa heterogênea sociedade brasileira do século XIX, um mosaico complexo e que se torna complexo devido à sobreposição de critérios de identidade dos indivíduos, que misturam elementos de caráter jurídico (escravos, forros, livres), de caráter político (baseada em padrões censitários como cidadãos ativos, não-ativos e não-cidadãos), de estratificação social de classe (escravos, senhores, trabalhadores livres), de estratificação social de ordem (religiosos, militares aristocratas, trabalhadores), e, como ainda acontece no Brasil errante de hoje, critérios de identidade étnica (pretos, brancos, índios, pardos (?)). Em verdade, essa historiografia renovadora que surgiu nos anos 1980 foi mais bem sucedida quando identificou seus sujeitos (não ousaria dizer aqui “objetos”) de estudo a partir de critérios de estratificação de classe, nomeadamente os escravos no século XIX. Nomes justamente conspícuos, modelares de nossa historiografia, como Kátia Mattoso, João José Reis, Eduardo Silva, Silvia Hunold Lara, Luiz Geraldo Silva, Manolo Florentino e tantos outros aqui deram e dão enorme contribuição. Porém, a rigor, não me vem à mente estudo bem sucedido quando aqueles critérios se diluem, trabalho que resta por fazer.

O livro de Ronaldo Pereira de Jesus soma-se a esse esforço coletivo de nossa historiografia no sentido do resgate dos modos de ver a instituição monárquica e a figura do imperador de uma perspectiva from below, do ponto de vistas das camadas populares. Este talvez seja um dos grandes desafios que não apenas Ronaldo Pereira, mas todos os pesquisadores que compartilham desta perspectiva enfrentam, ou seja, a definição criteriosa do que se encontra below: entre vários, o autor opera com termos como “população pobre”, “classes populares”, “camadas populares”, “gente comum”, “povo”, “setores subalternos” (no prefácio ao livro, Sidney Chalhoub fala da “gente miúda”). A composição desse segmento só pode ser abrangente, para conter “o setor mais diretamente ligado ao cativeiro, composto por escravos e libertos, negros e mulatos” (p.10). A estes se somam os “homens livres pobres (miseráveis, mendigos, ‘vadios’ ou ‘desclassificados’)”. Devem compor a “gente comum”, ainda, pequenos comerciantes, artesãos, “executores de ofícios indignos”, militares de baixa patente, funcionários públicos de baixo escalão e operários. Por certo que há subjacente um desafio metodológico. As “elites”, por mais ambíguo que seja este conceito mesmo, deixaram registros de sua experiência. O investigador pode mesmo nomear os membros das elites (sejam estas elites políticas, intelectuais, econômicas ou qualquer outro recorte); pode agrupá-los, pode resgatar sua rede de relações. Há tanto documentação como metodologia para isso (prosopografia, por exemplo). Trata-se daquela famosa metáfora brechteana: sabemos quase tudo do faraó de tal pirâmide, mas muito pouco dos escravos que a levantaram. De modo que as visões de mundo dessas classes subalternas chegam-nos muita vez enviesadas, por terem sido registradas pelos vencedores e produtores da memória oficial.

Porém subjazem aí, também, duas questões de ordem teórica: primeiramente, no que tange ao caráter generosamente inclusivo desse conceito de “pessoas comuns”. Compartilhariam todos aqueles segmentos das mesmas visões da monarquia? Em segundo lugar, não obstante o autor expressar sua opção pela análise da diferenciação social de classes e da dinâmica da relação entre elas, ao evocar a brilhante análise da “dialética da malandragem” de Antonio Candido sobre os três mundos (do trabalho, da ordem e da desordem) que justamente ordenavam o universo social das Memórias de um sargento de milícias, o autor ancora sua análise numa estrutura teórica que concebe a sociedade escravista monárquica em sua divisão em ordens e não em classes. O que, a meu ver, é efetivamente mais profícua para seus propósitos e lhe oferece bons frutos, ainda que persista a tensão conceitual.

Muito sagaz e bem realizada é a forma como Ronaldo Pereira de Jesus estruturou sua pesquisa e construiu sua narrativa. Depois de uma exaustiva recensão bibliográfica, as visões da monarquia, do monarca e do governo imperial (que muitas vezes se confundem), foram criteriosamente pesquisadas em diversos e complementares fundos documentais. Dentro do sistema paternalista em que se erigia a monarquia brasileira, os súditos recorriam à coroa para todo tipo de benefício pessoal. Num universo imenso de súplicas dirigidas ao monarca para obtenção de todo tipo de graça (prática comum desde o reinado de D. João e mesmo antes, na história da monarquia portuguesa), o autor coligiu as súplicas dirigidas ao monarca pelas pessoas comuns, lavradas cunho próprio ou por terceiros. Em seguida, procurou depurar aquelas visões da monarquia inscritas nas homenagens dirigidas à Coroa por inúmeras corporações de ofício e associações profissionais, de classe ou beneficentes (de auxílio mútuo, por categorias sócioeconômicas). Aqui, o autor sugere a existência do movimento de um proto-operariado organizado e portador de uma consciência de classe que, sábia de seus direitos, pugnava por estes direitos junto ao Estado (por isso, com Fausto, denomina-o “estatista”), desenvolvendo “práticas de contestação aliadas a uma discursividade radical ao longo da segunda metade do século XIX” (p.96).

As visões da monarquia são perscrutadas, em seguida, em três movimentos importantes do Segundo Reinado, como são a Revolta do Vintém, o Abolicionismo e os impactos da Abolição da escravidão propriamente dita sobre as visões da gente comum sobre a realeza. Um dos capítulos mais saborosos do livro, a narrativa sobre a Revolta do Vintém permite ao autor perceber uma alteração de percepção da monarquia, de protetora e paternal para sua crítica contumaz, que chega à mobilização coletiva e violenta, ao gosto dos riots estudados por Rudé e Hobsbawm. Para o autor, a Revolta do Vintém ensejou mesmo a “alteração radical e momentânea das atitudes e expectativas diante do regime político e do imperador”, mais do que “uma mudança significativa e duradoura no imaginário popular e nas representações das pessoas comuns acerca da Monarquia. A recuperação da participação popular (singela!) no movimento abolicionista, levada a cabo nas conferências realizadas na Corte nos momentos decisivos da campanha (1885-1887), nos festivais abolicionistas e na mobilização efetivamente popular consiste numa das grandes contribuições de toda a obra. Embora constatando que o Abolicionismo, como movimento formador de opinião pública, foi definitivamente um movimento de elite, o autor conclui “supondo que a profusão de imagens negativas do imperador e do regime monárquico abalou consideravelmente as percepções positivas do imperador e da monarquia entre as pessoas comuns da corte” (p.163). Porém, independentemente dessa gradação valorativa e essa é a tese recorrente do livro, para além dela subsistiria entre a gente comum da corte “o pragmatismo, a indiferença e o afastamento de sempre”. Ou seja, as pessoas comuns pouco se deixavam “contaminar” pelas visões positivas da monarquia e do monarca, como “pai dos pobres”, benevolente e justo estas sim imagens difundidas pelas camadas dominantes. Assim também, pouco alteraria o quadro a “outorga” da libertação dos escravos pela Princesa Izabel, já que todas as festas da abolição foram manifestações públicas das classes escravistas e de setores médios urbanos, expressões de “alívio e entusiasmo por não mais habitar um país escravista” (p.173). O povo, a gente comum, não foi senão espectador nessa festa. Espectador bilontra, mas espectador.

Afora pouquíssimos ruídos de edição, o texto de Ronaldo Pereira de Jesus é muito bem cuidado, bem escrito, prazeroso. Seu livro expressa mais uma contribuição séria e bem executada deste importante setor da historiografia brasileira que se dedica a escrever a história daqueles sujeitos que foram insistentemente esquecidos por ela.

Jurandir Malerba – Professor no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FFCH/PUC-RS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: jurandir.malerba@pucrs.br


JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. Resenha de: MALERBA, Jurandir. Vossa Alteza, vista cá debaixo. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.162-164, jan./jun., 2011.

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Monarquía y República en la España Contemporánea | Ángeles Lario

Monarquía y República en la España contemporánea, publicação coordenada por Ángeles Lario, é o resultado de um seminário realizado em 2006 na Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid), e reúne artigos de historiadores dedicados ao estudo da história do pensamento político e dos conceitos. A maior parte dos artigos são baseados em pesquisas anteriores dos autores e refletem, com freqüência, o tema trabalhado em livros próprios.

A introdução, feita por Lario, define o objetivo maior do livro:

La compreensión de las culturas y de los modelos políticos surgidos a lo largo de nuestra historia contemporánea, de los conceptos que los acompañaron, sus usos y significados, es el instrumento básico que todo ciudadano debería poder manejar actualmente, al menos se está interesado en analizar la viabilidad de nuestro modelo político actual y el sentido que pudiera tener la defensa de modelos alternativos (p.13).

Está explicitado desde o início que o livro é um estudo de história política, e mais especificamente, de sistemas políticos. Além disso, é dada a priori uma unidade histórica para a política da Espanha contemporânea: uma das mais turbulentas do mundo e que inclui monarquias de todos os tipos, repúblicas, anarquismo, ditadura, entre outras tentativas para a organização interna.

A obra também é uma confirmação do vigor que vem ganhando a nova história política desde os anos setenta. Uma história que busca abarcar conteúdos novos, com novos métodos e novas fontes, transformando-se, portanto, em uma teoria completamente diferente daquela do século XIX e começo do XX. Ela retoma a biografia e a luta pelo poder, os sistemas políticos e os intelectuais, mas também se volta a questões novas, como as culturas políticas, os imaginários, a “baixa política”, a identidade, entre outros objetos. Esta heterogeneidade está presente no livro, pois os autores são livres na escolha de temas e fontes, resultando numa agradável mistura dentro dessa abordagem política.

Monarquía y República en la España Contemporánea é dividido em seis partes: a primeira é uma apresentação geral e as outras cinco se sucedem em ordem cronológica. A primeira parte tem o objetivo de guiar a leitura dos capítulos posteriores, tratando, de forma sintética, o período ao qual os outros dedicam análises mais específicas.

Ángeles Lario, professora na UNED, esclarece no capítulo introdutório que a organização do livro busca uma articulação entre os artigos com base nas propostas da história dos conceitos de matriz koselleckiana (a autora, inclusive, integra um grupo de pesquisas com esse objetivo e que é coordenado por Javier Sebastián). Com base nessa filiação teórica, ela organizou o livro com o objetivo de definir os conceitos de monarquia e república, entendidos como antagônicos na Espanha contemporânea, e, além disso, trabalhar a formação do liberalismo como conceito chave para compreender a modernidade e, em especial, o século XIX.

Amparada nas proposições que embasam a história dos conceitos, Lario busca trabalhar a tensão entre o lingüístico e o extra- lingüístico, e esta preocupação acompanha toda a estrutura do livro. Assim, os conceitos analisados não são entendidos apenas como palavras que apreendem a realidade social e política mas, acompanhando a abordagem proposta por Koselleck, são vistos também como “seu fator”, pois nas palavras deste último autor “um conceito abre determinados horizontes, ao mesmo tempo em que atua como limitador das experiências possíveis e das teorias” (Koselleck, Futuro Passado, p.109, 2006). No interior dessa abordagem, destaca-se a idéia de que fazer história dos conceitos é tomá-los não apenas como determinados pela realidade, mas também como fator determinante.

Esse desafio sofre uma quebra, porém, já no capítulo subseqüente ao da organizadora. A autora inicia a obra procurando precisar o conceito de monarquia e cria a expectativa de que o mesmo seja feito para a república. No entanto, o artigo dedicado ao tema e escrito por Demetrio Castro, nos leva a concluir sobre a impossibilidade de fazer história do conceito de república durante o século XIX, pois, o radicalismo das classes populares teria inviabilizado a elaboração conceitual acerca dessa proposta política (Castro, p.66). Posto em comparação com o artigo sobre monarquia, o texto nos leva a pensar em uma defasagem na elaboração dos dois conceitos e em uma possível inferioridade das propostas republicanas na história da Espanha.

Seguindo esta parte introdutória, o livro se dirige ao momento de fundação da Espanha contemporânea: a revolução de 1808, a volta do rei Fernando VII em 1814 e a formação do chamado triênio liberal (1820- 1823). Os capítulos posteriores enfatizam que as Cortes de Cádiz (primeira constituinte espanhola reunida entre 1810 e 1814) estabeleceram os primeiros paradigmas constitucionais do governo espanhol e, por isso, são parte central na formação da realidade contemporânea. No entanto, não há no livro um artigo específico dedicado à Cádiz, e, talvez, o leitor necessite dessas informações.

Essa segunda parte é composta por apenas dois capítulos: um dedicado à França e outro ao México e, assim, não se refere diretamente à revolução liberal espanhola. Mas essas análises servem de patamar às duas partes subseqüentes, quando o livro fica mais harmônico e próximo do intuito enunciado na introdução. Nessas unidades, os capítulos sobre o liberalismo pós-revolucionário são pensados como complementares e conseguem aperfeiçoar o debate conceitual sobre monarquia e república durante o período. Os autores demonstram que a política espanhola da época, como em diversos lugares do mundo, estava dividida entre dois partidos – o progressista e o moderado – , cabendo o poder para o mais conservador deles.

Dois capítulos são dedicados a esses grupos políticos e apontam mais semelhanças do que diferenças entre eles porque “el punto de partida debería considerar que la monarquía constitucional no fue una concesión que los Progresistas hicieron a los moderados en aras del triunfo sobre el carlismo. El elemento monárquico formaba parte de su núcleo doctrinal” (Mateo, p.111). Ou seja, o rei não era o ponto de discórdia entre esses dois liberalismos, pois ambos estavam do lado da ordem. A defesa do princípio da soberania nacional feita pelo partido progressista aparecia como ponto de embate frente aos moderados, chocando-se com a defesa da soberania real.

Os artigos do livro sobre republicanismo insistem na falta de um projeto intelectual que acompanhe esse movimento, de forma que “la república, por su parte, se defendió más alrededor de dichos rasgos del Gobierno monárquico que a partir de sus cualidades intrínsecas como sistema político” (Peyrou, p.163). Os textos fazem ver um descompasso entre republicanos e monarquistas, em especial os conservadores, pois estes teriam um eficaz programa de governo.

No entanto, o artigo de Román Míguel Gonzáles aparece como contraponto a essa idéia, pois, ao analisar a breve experiência republicana de 1873, o autor identifica não apenas um projeto republicano, mas o embate entre vários:

Lo que ocurrió en 1873 no fue el fracaso de la primera experiencia republicana española debido a la carencia de proyecto claro por parte de un agente histórico republicano único, sino que la República Federal Española fue el marco de una lucha abíerta por la hegemonía en el proceso de construcción del Nuevo Régimen español (Gonzáles, p.248).

A harmonia conquistada nessas duas partes do livro começa a ruir, porém, quando a obra adentra o que denomina por sociedade de massas durante o final do século XIX e início do XX. Entretanto, podemos atribuir essa quebra a uma complexidade política maior do momento, a qual não foi possível apreender na mesma quantidade de páginas e capítulos das partes anteriores, forçando os autores a escolher objetos mais reduzidos de análise. Ao discutir o período isabelino (1833-1868) foi possível condensar as idéias sobre os conceitos de monarquia e república em três capítulos, divididos conforme as forças políticas correspondentes: progressistas, moderados e republicanos. No entanto, o desafio conceitual proposto pela organizadora se torna uma tarefa dificílima, porque os autores tratam de uma gama maior de opções políticas inscritas na realidade social e política posterior e concomitante à primeira república de 1873.

Os capítulos desta parte são completamente autônomos, dificultando o estabelecimento de um diálogo entre seus autores. Os temas trabalhados são exemplares da dificuldade em abordar a chamada sociedade de massas, pois tratam de dois partidos políticos que antes não existiam (o krausista e o socialista) e agregam a biografia de um rei, em uma abordagem que se distancia muito da proposta inicial baseada na história dos conceitos.

Os textos destacam a existência de krausistas e socialistas expressando uma nova relação com as idéias sobre monarquia e república, pois ambos não norteiam suas políticas para o estabelecimento dessas formas de governo e, de certa forma, utilizam as duas como instrumentos. Para os primeiros, o importante era estabelecer um estado de direito pleno, governado pela lei, e isto poderia ocorrer na monarquia ou na república. Para os socialistas espanhóis, que de início eram contra qualquer sistema político burguês, não havia necessidade de optar entre monarquia e república. Apenas com o decorrer dos fatos e com a perseguição infligida pela monarquia, esses socialistas foram forçados a uma remodelação teórica que acompanhava um movimento internacional. Passaram a apoiar a república, entendida agora como uma “superación de la monarquía” (Angosto, p.305), rumo ao fim último da humanidade, ou seja, o comunismo.

A obra nos mostra então que a sociedade espanhola de fins do século XIX “permitia” esses novos assuntos políticos, mas ainda era governada por um rei atuante. Javier Luzón demonstra que se tratava de um rei diferente – ativo e que buscava se identificar com a nação – , todavia sua conclusão, assim como outras antes no livro, faz-nos ver que a ditadura foi a etapa final da monarquia (Angosto, p.308), pois as idéias proclamadas pelo franquismo, para este autor, teriam sido gestadas durante o reinado de Alfonso XIII: “progreso económico y orden social en una España monárquica, católica, custodiada por el ejército, unida en su diversidad regional, reconocible en unas cuantas señas de identidad y con una notable presencia exterior” (Luzón, p.293).

Todos os assuntos convergem para a compreensão da segunda república (1931-1939) mas há apenas um artigo sobre esse período, o qual trata de Azaña, um dos principais líderes republicanos. O texto acaba por reforçar a figura de grande homem da época, por força da exclusividade do capítulo dentro do tema e por situar esse líder como defensor da democracia acima de tudo: “Parlamento, sufragio universal y prensa libre” (Egido, p.323).

O salto é feito, então, da segunda república para a transição da ditadura e, assim, o livro não aborda o franquismo (1939-1975). Essa é uma escolha questionável, mas talvez expresse a dificuldade em estudar uma época negra e tão recente na história espanhola e, dessa forma, o assunto é apenas tangenciado em capítulos isolados. Entretanto, o mais notável da última parte do livro é que os dois capítulos de história mais recente usam a imprensa como fonte documental primordial.

Assim, o livro reencontra o compromisso com a nova história política e apresenta um estudo sobre a imprensa, pensada não como reflexo da verdade ou como manifestação ideológica da classe dominante, mas como expressão de agentes políticos e diferentes apreensões da realidade.

O leitor de Monarquía y República deve se perguntar ao final do livro: qual projeto político venceu? O que é a Espanha contemporânea? Temos elementos para algumas conclusões. Em primeiro lugar, sabemos que o ditador Franco teve papel primordial na formação do novo regime, pois indicou seu sucessor – o rei Juan Carlos. Entretanto, constatamos também que o modelo político espanhol atual, a monarquia democrática, é diferente daquele implementado pelo regime ditatorial.

Os dois artigos que se dedicam à imprensa na transição do regime franquista confluem para uma conclusão similar: “Su papel [de la prensa] en la construcción de una imagen positiva del Rey y de una actitud social favorable hacia la monarquía es inegable” (Soro, p.346). Todavia, o capítulo de Javier Soro se diferencia por uma alusão clara ao presente e um posicionamento político definido. Talvez a questão colocada pelo autor esteja presente em todo o livro, implícita na maioria dos casos, e como posicionamentos políticos diferentes que incidem sobre o modo de escrita e o objeto historiográfico estudado.

De la transición española como modelo exportable y exitoso hemos pasado a revisar sus resultados en cuanto a la calidad de la democracia y sus silencios sobre lo que solemos llamar “memoria histórica”, mientras renace los círculos republicanos y en las manifestaciones surgen las banderas republicanas que se creía ya guardadas en los desvanes.

El recuerdo de la Segunda República supone no sólo una reivindicación histórica, ética y de justicia, sino que adquiere una intención política para el presente (Javier Soro, p.333. Grifos meus).

A organizadora, Ángeles Lario, também expõe uma posição na conclusão, conforme já havia anunciado em sua introdução. Nem monarquia e nem república, a luta política deve ser pela democracia: “Asi es que, cuando se dice que esta democracia es heredera de la republicana, tiene todo el sentido de poner en paralelo lo fundamental de ambos modelos, el fondo democrático, que es lo que nos debe preocupar para mejorarlo en su funcionamiento” (Lario, p.380).

Monarquía y República en la España contemporánea é uma leitura importante para aqueles interessados em história política, não só espanhola, pois é um importante demonstrativo das diversas tendências existentes no bojo dessa proposta historiográfica e retoma temas que remetem aos estudos constitucionais e outros aspectos de cunho cultural. Acredito que este é um grande mérito do livro, podendo ser compreendido por qualquer interessado, pois os autores se preocupam com uma certa “educação política”, patente na introdução.

Entretanto, o leitor deve ter consciência de que o desafio conceitual proposto não é esgotado e apresenta diversas lacunas. Os conceitos monarquia, república, liberalismo, constituição, entre outros, recebem relevantes abordagens iniciais, porém precisam ser mais trabalhados para adquirir a precisão desejada.

Lucas Soares – Graduando do curso de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil) e bolsista da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas desta Universidade em projeto sobre a imprensa espanhola e as emancipações da América. E-mail: lderman@uol.com.br


LARIO, Ángeles. Monarquía y República en la España Contemporánea. Madrid: UNED, 2007. Resenha de: SOARES, Lucas. Monarquía y República en la España Contemporánea: Um esboço de história dos conceitos. Almanack, Guarulhos, n. 1, p. 165-169, jan./jun., 2011.

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La nación y su historia. Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación: América Latina, siglo XIX | Guillermo Palacios

Nessa coletânea de artigos, coordenados pelo historiador Guillermo Palacios, os autores lançam um novo olhar sobre a história da historiografia oitocentista na América Latina e a sua emergência no contexto da formação dos Estados e da construção das nações e das identidades nacionais.

A obra, a partir de uma perspectiva comparada das diversas situações historiográficas ibero-americanas, se propõe também a dar lugar a futuras indagações e pesquisas sobre o tema, e ser útil tanto a investigadores como a estudantes universitários. Neste sentido, este trabalho vem se juntar a uma série de outros estudos publicados na última década, sobre a formação de Estados e nações na América Latina. Cabe chamar a atenção para o fato de que os autores preferem usar, em seus artigos, a expressão “relato historiográfico” e não história (muito embora este termo seja utilizado em um sentido lato em diversas ocasiões no decorrer da obra), com o intuito de “diferenciar lo que parece ser un momento pre-moderno de la práctica de narrar el pasado, y su profesionalización, ya em los últimos años del siglo o en los primeros del XX” (p.09).

O livro faz alusão, em seu subtítulo, às independências ibero-americanas, pois, segundo Palacios, elas se constituem em marco histórico nas visões que as elites regionais, produtoras dos relatos históricos, projetam sobre o passado com vistas ao futuro, “mas em uma operação que busca cimentar o poder no presente” (p.12). Portanto, as guerras de independência e os processos imediatos que as seguem são o ponto de partida das “histórias nacionais” na América Latina. A relação da “história nacional” (oficial) será matéria, em muitas ocasiões, de disputa entre liberais e conservadores, em sua luta pelo poder político nos recém estados instaurados ou em torno dos projetos diferenciados de Estado e Nação. Neste sentido, a partir da produção de relatos historiográficos que se pretendem nacionais, se trata de fixar o passado, de uma vez por todas no imaginário coletivo, sempre de acordo com as representações, aspirações e interesses das elites. Por isso, a questão da “verdade” histórica é um elemento central, o fio condutor, em muitos dos relatos analisados pelos autores da coletânea. Contudo, não só a questão da “verdade”, mas também o “esquecimento” histórico é objeto de análise dos diversos autores, no que se refere à (re) elaboração de histórias nacionais.

La nación y su historia se divide em nove capítulos e, grande parte dos autores, focaliza uma ou várias obras capitais da historiografia do século XIX dos diversos países da América Latina, visando analisar os sentidos que estas obras outorgam às sociedades pós-coloniais.

Elias José Palti, em La nación argentina: entre el ser y el acontecimiento, se ocupa da obra Historia de Belgrano y la independência argentina, de Bartolomé Mitre. Visando analisar a construção de narrativas genealógicas sobre a nação, fundamenta seus argumentos em autores como Ernest Renan, José Chiaramonte e Benedict Anderson. O artigo de Palti acaba por revelar o caráter controvertido que assumiu o processo de afirmação de um estado centralizado, edificado na Argentina, na segunda metade do século XIX, e vê como problemática a concepção de uma ideia de nacionalidade anterior à formação dos estados na América Latina. Sobre a historiografía colombiana, Juan Carlos Vélez Rendón sugere, em seu ensaio Las luchas narrativas de una nación escindida, uma reflexão sobre a obra pioneira de José Manuel Restrepo, Historia de la revolución de la República de Colombia en la América Meridional, editada em Paris, em 1827, considerada o marco explicativo da revolução de independência. Em um segundo momento do ensaio, Rendón analisa as releituras realizadas sobre a obra capital de Restrepo, elaboradas por historiadores como José María Samper, Joaquim Posada Gutiérrez e José Manuel Groot, no decorrer do século XIX.

Cada uma das (re)interpretações e (re)significações da Historia de la revolución de la República de Colombia por parte de Samper, Posada e Groot, se inscreve em meio a um processo político contencioso, de cisão política que atravessava a sociedade colombiana em meados do século XIX, e que, portanto, incidiu sobre as releituras desses historiadores. Neste sentido, Rendón centra-se em alguns temas, que foram objeto de reinterpretações e polêmicas historiográficas na época, e que descortinam, no plano historiográfico, as lutas entre as elites (liberais e conservadoras) acerca da forma pela qual se devia edificar e organizar o Estado, e quais deveriam ser considerados os elementos constitutivos da futura nação colombiana.

Por sua vez, Guillermo Zermeño Padilla, em Apropiación del pasado, escritura de la historia y la construcción de la nación en México, parte dos seguintes questionamentos: em que sentido e até onde um evento jurídicopolítico, a declaração de independência do México em 1821, pode afetar a forma de escrever a história? Como a história se torna um fato natural, essencial, que passa a fazer parte da linguagem de uma coletividade com a tomada do poder por uma elite ou grupo? Como os “novos mexicanos” se apropriaram do passado e converteram, de forma anacrônica, os cronistas espanhóis do período colonial em “historiadores mexicanos”? Para responder a tais perguntas, Padilla se vale da análise dos escritos históricos do jesuíta Francisco Javier Clavijero e das obras de historiadores como Lucas Alamán, José Justo Gómez de la Cortina, Carlos Bustamante, Garcia Icazbalceta, Vicente Riva Palacio e Justo Serra, buscando compreender os vínculos entre a formação do discurso histórico nacional e a formação política da nação no México.

No caso peruano, Mark Thurner, professor da Universidade da Flórida, no capítulo intitulado La invención de la historia nacional en el Perú decimonónico, a partir de uma perspectiva iconográfica, discorre sobre a historiografia e suas relações com a história nacional. Embasado em teóricos como Hayden White e Jacques Rancière, o autor centra-se no papel motriz que desempenha o nome próprio na narrativa histórica a partir da análise dos discursos históricos e iconográficos sobre o país realizados pelo filósofo e historiador espanhol Sebastián Lorente (1813-1884), considerado o fundador da história peruana. Segundo o autor, Lorente inventou a “história peruana” como o “relato completo” de todas as coisas memoráveis jamais alcançadas pelos “peruanos”, em um território literário ou imaginado, projetado de forma retroativa, mas com vistas ao futuro. O fez com um estilo inspirador e ameno, e com a aprovação do sistema educativo do Estado (p.114). Thurner analisa ainda as obras e ideias principais dos historiadores sociais do século XX peruano, como José de la Riva Aguero e Víctor Andrés Belaúnde, críticos da historiografia de Lorente. Cabe salientar que o aspecto central no artigo de Thurner é seu estudo sobre os elementos literários e conceituais que tornaram possível pensar, até a atualidade, que o Perú é, ao mesmo tempo, um sujeito coletivo e singular.

Fundamentar a existência histórica de uma nação, fruto de um mosaico de pertenças, foi o desafio encontrado pela historiografia equatoriana, no século XIX, analisada pela historiadora Ana Buriano no capítulo La construcción historiográfica de la nación equatoriana en los textos tempranos. Em realidade, conforme Buriano, tudo era complexo e desconcertante na realidade do país daquela época: o sentimento de pertenças múltiplas, o problema da fragmentação territorial-administrativa, o regionalismo e a superação das identidades regionais/locais, dentre outras dificuldades para promover uma só nação, um só Estado. Neste sentido, Ana Buriano analisa o papel de destaque dos historiadores (e da História oficial), na forja do amálgama nacional equatoriano no século XIX. Historiadores, como Velasco e Gabriel García Moreno que, apelando ao passado, desde o presente marcado por conflitos, buscaram selecionar elementos que dessem coesão e sentido de pertencimento ao coletivo social após a independência do país, e no contexto de instauração do regime republicano.

No sexto capítulo, El pueblo soberano versus la plebe proselitista, Marta Irurozqui parte da candidatura presidencial de Evo Morales, em dezembro de 2005, e dos comentários dicotômicos dos diversos meios de comunicação sobre a população indígena e sua vinculação com a política nacional, para analisar as relações entre discurso historiográfico e etnização política na Bolívia, no período compreendido entre 1825 e 1922. Irurozqui divide o tema em três partes, nos quais aborda: a origem dos males nacionais, os problemas enfrentados pelo regime republicano após a independência, e o processo narrativo de etnização. A autora enfatiza em seu estudo não os possíveis problemas ocasionados pela elaboração de estereótipos, mas a negação do indígena e do mestiço como sujeitos e agentes históricos, negação essa legitimada pelas “verdades” históricas e, na atualidade, pela reedição de essencialismos identitários que justificam novas exclusões dos agentes históricos. Contribuição importante para a reflexão acerca de outras realidades latino-americanas, nas quais a dubiedade existente entre preconceito social e racial obscurece a análise dos mais lúcidos teóricos e intelectuais.

O Brasil também é contemplado em La nación y su historia, com o esclarecedor texto de Maria Ligia Coelho Prado, intitulado Emblemas de Brasil en la historiografia del siglo XIX: monarquia, unidade territorial e evolución natural. Nele, a autora, a partir de uma perspectiva historiográfica, literária e iconográfica, analisa algumas questões relativas à concepção e à elaboração dos primeiros textos da “história nacional”. Segundo Maria Ligia Prado, a historiografia oficial brasileira nasceu da convergência de ideias e vontades políticas, com coerência de objetivos, repetição de imagens e ampla permanência de algumas de suas ideias cardeais, dentre elas, a da transição política não violenta. Assim sendo, a autora analisa o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) na configuração de um perfil da futura nação e na produção de uma visão homogênea do Brasil no interior das elites regionais. Além dos vínculos entre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o nascimento da historiografia nacional oficial, a autora menciona a importância da Academia Imperial de Belas Artes no conjunto produtor de imagens fundacionais do Brasil. Destaca a relevância da pintura histórica na construção da nação e de um sentimento de identidade no cenário político brasileiro do século XIX. Dentre os pintores, a autora privilegia a análise de alguns artistas e seus quadros, como o de Victor Meirelles, “A Primeira Missa no Brasil”, de 1861, mas também Pedro Américo e seu monumental “Independência ou Morte” e, ainda, Modesto Brocos, com “A Redenção de Cam”, de 1895. Um dos objetivos principais de Maria Ligia Prado é o de entender a construção de temas e a formulação de interpretações da História do Brasil pelos integrantes do IHGB. É, neste sentido, que a autora analisa as interpretações de Karl Friedrich Von Martius, de Adolfo Varnhagen, de Capistrano de Abreu, de Silvio Romero, de Manuel de Oliveira Lima e de Joaquim Manuel de Macedo, entre outros.

Prado examina três questões centrais alojadas no cerne da construção historiográfica nacional e que marcaram as gerações posteriores de historiadores como poderosas visões e concepções formadoras do imaginário social e como integrantes de mitologias políticas brasileiras (p.290). São elas: a elaboração da ideia de monarquia como garantia da unidade do território e da grandeza nacional, por oposição aos regimes republicanos das ex-colônias espanholas; a ideia de Brasil como uma sociedade única, resultado de mesclas raciais e culturais entre índios, brancos e negros; a construção da visão de História do Brasil como uma evolução suave e continua em que se destaca a ausência de rupturas violentas.

Rafael Sagredo Baeza, no oitavo capítulo da obra, proporciona ao leitor um estudo sobre a história nacional do Chile e sua relação com a História Natural. Baeza, através da análise de História Física e Política de Chile, do naturalista francês Claudio Gay, considerada a primeira narração histórica sobre o passado desse país, elaborada no período republicano. Portanto, neste texto original, Rafael Baeza destaca o papel determinante que os naturalistas tiveram no reconhecimento científico dos países que exploraram; mas também no papel igualmente significativo que tiveram na conformação de nacionalidades, no desenvolvimento de identidades regionais, na integração de povos e sociedades ou na identificação de um destino comum proposto pelos estados que se pretendem nacionais na América Latina oitocentista.

Por fim, Ezio Serrano Páez, no último capítulo da obra, contribui com uma discussão sobre os discursos e intervenções dos deputados liberais e conservadores que participaram em dois congressos constituintes: o Congresso de Valência (1830) e outro, também na mesma cidade, em julho de 1858. Discursos e intervenções essas carregadas de valor historiográfico, o que fez com que Serrano Páez buscasse determinar dentro da percepção do histórico, o lugar ocupado pelos conceitos de pátria, nação e estado nos contextos mencionados e elaborados pelas elites desse país.

Em suma, La nación y su historia, escrita em linguagem agradável por diversos autores ibero-americanos, e estruturada de forma coerente com a sua proposta inicial, alcançando a diversidade e o equilíbrio entre os diferentes estudos, trata-se de uma obra de crucial importância para todos os que compartilham de uma mesma inquietude: a compreensão das relações entre historiografia e a formação de nações, identidades e estados na América Latina no século XIX.

Janete Silveira Abrão – Doutora em História Contemporânea pela Universitat de Barcelona (UB-Barcelona/Espanha) e professora no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FFCH/PUC-RS-Porto Alegre/Brasil). E-mail: janete.abrao@pucrs.br


PALACIOS, Guillermo (Coord.). La nación y su historia. Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación: América Latina, siglo XIX. México: El Colegio de México/ Centro de Estudios Históricos, 2009. Resenha de: ABRÃO, Janete Silveira. Independências, relatos historiográficos e debates sobre a nação na América Latina. Almanack, Guarulhos, n. 1, p. 170-173, jan./jun., 2011.

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Buenos Aires en armas. La revolución de 1880 | Hilda Sabato

O livro Buenos Aires en armas da historiadora Hilda Sabato analisa um acontecimento decisivo na história da Argentina, a chamada Revolução de 1880, ocorrida na província de Buenos Aires, quando esta se levantou em armas contra as autoridades nacionais mobilizando milhares de homens e mulheres em duros combates que produziram centenas de vítimas. Na madrugada de 21 de junho, dois exércitos de uns 5.000 homens cada um se enfrentaram no que então eram as margens da cidade. As forças nacionais, lideradas pelo general Julio Roca, e as das milícias da província de Buenos Aires, com o governador Tejedor à frente, lutaram por mais de dez horas e ao final, ambos os grupos reivindicaram a vitória. Poucos dias depois a paz foi firmada, confirmando a derrota dos rebeldes portenhos. A província sofreu intervenção, a capital foi federalizada e as milícias colocadas sob o comando nacional. O caminho estava aberto para que o general Roca assumisse o cargo de presidente da república para o qual havia sido eleito meses antes.

Hilda Sabato parte da constatação de que este episódio de confrontação violenta não foi uma exceção na vida política argentina do século XIX, marcada por muitas sublevações, rebeliões e guerras civis, para interrogar o porquê desta recorrência às armas na vida política nacional. A pergunta sobre o sentido da violência é central neste livro e, para tentar respondê-la, a autora elege a Revolução de 1880, episódio sempre analisado mais pelos seus resultados do que pelas suas causas e características.

Ao centrar-se no problema da violência, Hilda Sabato problematiza a já tão conhecida e propalada questão da disputa entre as províncias e Buenos Aires no período de formação do estado nacional na Argentina. Mais que isso, a autora contribui substancialmente para a importante revisão historiográfica ocorrida nas últimas décadas, que vem questionando o papel central conferido à nação por uma historiografia nacionalista que durante muito tempo analisou a história da América no século XIX unicamente a partir deste viés. Com freqüência, esta historiografia considerou episódios como este de 1880 como interrupções no caminho progressivo que devia desembocar na consolidação do Estado nacional, o que deveria implicar, necessariamente, na concentração dos meios coercitivos e do monopólio do uso da força por parte de uma autoridade central, assim como na expropriação da violência da sociedade civil vista como um território sem conflitos. Sob esta perspectiva, os constantes levantamentos armados ocorridos ao longo do século XIX foram entendidos como obstáculos naquele caminho inexorável de construção do Estado nacional, conduzidos por uma elite bonaerense que não havia sido capaz de consolidar seu poder e o estava perdendo para uma nova constelação política com base nos governadores do interior e centro do próprio Estado.

Buenos Aires en armas avança sobre esta interpretação, interrogando pelo fato revolucionário mesmo e pelo uso das armas para resolver os conflitos que se colocaram em 1880. Hilda Sabato trata-o como um acontecimento singular, no qual se cruzaram e se encadearam de maneira única condicionamentos estruturais e contingências conjunturais, movimentos coletivos e ações individuais, tradições e inovações políticas, que deram lugar a um desenlace inesperado e desconhecido na origem do movimento, gerado no próprio desenrolar dos acontecimentos e produto das ações humanas. Neste sentido, compreende-se a utilização pela autora do conceito de revolução para referir-se aos acontecimentos de 1880, recuperando inclusive os usos e significados dados ao termo pelos seus próprios atores.

Apesar da constante recorrência às armas e à violência na vida política argentina do século XIX, Sabato chama a atenção para o fato de que este é um tema pouco tratado pela historiografia, e quando o é, as análises são superficiais e quase sempre preconceituosas. Para explicá-lo, lança-se constantemente mão de uma suposta tendência latino-americana à anarquia e à desordem política, causada por sua imaturidade ou por uma herança política. Neste contexto, guerras civis, revoluções, golpes de Estado e crimes políticos são evocados como evidências de uma trajetória traumática para a governabilidade e para a consolidação de formas civilizadas de convivência política. A origem dessa interpretação estaria, por exemplo, numa suposta natureza ou “cultura autoritária” que teria raízes na herança da colonização ibérica.

Predominam também interpretações tautológicas, que explicam as rebeliões como resistências de uma sociedade tradicional aos inevitáveis processos de modernização vivenciados pelas sociedades latino-americanas na segunda metade do século XIX. No que diz respeito a este aspecto, há uma forte tendência na América Latina a pensar sua história como um caminho ideal ou canônico, que haveria de levar uma sociedade tradicional a transformar-se em uma sociedade moderna. A essa transformação deveria corresponder o trânsito em direção à domesticação da violência, ou melhor, à apropriação e monopolização por parte do novo Estado moderno do uso legítimo da força. Neste esquema, o fato de que após as revoluções de independência tenha se iniciado um longo período de conflitos e experiências de formação de nações – durante os quais não parece ter havido um poder estatal que tenha conseguido monopolizar o uso da força -, foi interpretado como obstáculo ou resistência anárquica à modernidade liberal, ou como simples caos que demonstrava a incapacidade da região de transitar civilizadamente em direção ao progresso.

Essas interpretações mais generalizantes predominaram na historiografia argentina e só ultimamente ganharam mais espaço, indagações voltadas para a história particular de algumas guerras e rebeliões e para o estudo das diferentes formas de violência no marco das transformações mais gerais experimentadas na vida política daquele país ao longo do século XIX. Estas novas indagações questionam o senso comum acerca do caráter especialmente violento da história latino americana, demonstrando que a região não foi mais ou menos violenta que outras do mundo. Além disso, mostram que mais importante do que tratar de medir a violência política a partir de algum padrão universal, é analisá-la no contexto e tratar de entender suas características específicas e as razões de sua ocorrência. Nesse sentido, o livro Buenos Aires en armas, que dá continuidade às pesquisas da historiadora sobre a história política da Argentina no século XIX, resulta numa das mais importantes contribuições para a renovação historiográfica deste campo ocorrida na Argentina nas ultimas décadas.

Para contar a história deste episódio decisivo, Hilda Sabato utiliza-se de textos de atores e observadores da época, de escritores e ensaístas contemporâneos e também de análises e interpretações de historiadores. Por trás de uma impressionante narrativa que reconstrói os acontecimentos de maneira viva e detalhada, está presente uma profunda reflexão sobre os temas da violência política na modernidade e das revoluções, trazidos para o contexto argentino do século XIX. O interesse por estes temas é justificado também pela autora a partir da experiência política de sua geração que, segundo ela, acreditou profundamente na violência como “parteira da história” e sofreu de maneira devastadora seus efeitos quando esta foi exercida tanto por um terrorismo de Estado, como também como um meio de ação política cuja confrontação acabou em guerra. Essa experiência traumática levou uma boa parte de sua geração a reagir fortemente ao uso da violência, entendendo-o como antipolítico ou como substituto da política. Mas ela mesma ressalta que esta convicção não deve impedir o questionamento da relação entre política e violência, talvez o maior objetivo desta sua obra.

A inovadora estrutura do livro mostra-se muito apropriada para o desenvolvimento das questões apresentadas. Hilda Sabato alterna oito capítulos nos quais os acontecimentos são narrados detalhadamente mês a mês, às vezes dia a dia, através de narrativas cronológicas marcadas por um ritmo que busca “recriar os tempos da política”, com outros capítulos chamados “Entreatos”. Nestes últimos, a historiadora desenvolve aspectos importantes para a compreensão e interpretação daqueles eventos numa perspectiva mais analítica.

A narrativa começa no ano de 1879, véspera da revolução, com foco na campanha para a escolha dos candidatos que sucederiam Nicolás Avellaneda e que deu origem ao conflito. Seguem-se capítulos que se referem ao ano de 1880, a períodos cada vez mais breves no sentido cronológico – meses, semanas ou dias -, mas intensos em acontecimentos, passando pelo dia 21 de junho, ponto culminante para os contemporâneos e para a autora, até chegar ao desenlace do conflito, com a derrota definitiva dos portenhos.

No primeiro e um dos mais interessantes dos Entreatos intitulado “Fuerzas Armadas”, Sabato analisa a organização militar da Argentina do século XIX, dividida entre as milícias da Guarda Nacional e o Exército Nacional, questão central para a compreensão do episódio de 1880. Esta organização havia sido consagrada pela Constituição de 1853 e apoiava-se sobre dois pilares principais: o Exército de Linha e a Guarda Nacional, que juntos conformavam o Exército Nacional. O primeiro era de índole profissional e operava sob o comando supremo do presidente da República. Já a Guarda Nacional recrutava cidadãos e, ainda que em última instância devesse responder ao mesmo comando nacional, esteve em geral controlada pelos governos provinciais. Ambas as instituições tinham funções diferentes e, sobretudo, representavam formas distintas de entender o poder de coerção do Estado. Na Argentina do século XIX, como na América Latina em geral, muitas vezes se recorreu a uma combinação dos dois sistemas, dando lugar a uma coexistência geralmente conflituosa. Somente no final do século XIX o predomínio das posições centralistas levou ao fortalecimento do exército regular em detrimento das milícias, com o objetivo de assegurar ao estado o monopólio do uso da força.

Na contramão de uma história nacional que sempre privilegiou o processo de consolidação do exército como instituição chave no decurso da modernização do Estado, Sabato dispensa especial atenção às formas milicianas de organização militar. Recupera a história das milícias, desde sua criação no período colonial, passando por sua fundamental participação em episódios cruciais como a expulsão dos ingleses de Buenos Aires nos anos de 1806 e 1807 e as jornadas revolucionárias de maio de 1810, até sua subsistência no período posterior quando, com a instauração da forma republicana de governo, a instituição passou a considerar-se um pilar da comunidade política fundada sobre a soberania popular. A partir de 1853, Urquiza tenta dar forma a uma organização militar em escala nacional ao criar a Guarda Nacional sobre o mesmo princípio da cidadania em armas e ao propor a formação de um exército regular para a confederação que então se formava.

As milícias constituíam a cidadania em armas e eram integradas pelos mesmos cidadãos que formavam o eleitorado. As redes militares e políticas tecidas em torno delas desempenhavam assim papel destacado nas lutas pelo poder, tanto em tempos eleitorais como de revolução, tornando-as um âmbito chave na vida política argentina. A “virtuosa” milícia era formada por cidadãos livres com a obrigação de portar armas em defesa de sua pátria, uma obrigação que era por sua vez um direito e um privilégio. Tal retórica de ressonâncias republicanas em torno das milícias e, mais tarde, da Guarda Nacional era, assim, parte do imaginário coletivo de amplos setores da população que se identificavam com o papel de cidadão armado e conheciam as diferenças entre essa figura e a do soldado de linha.

As milícias também funcionavam como redes concretas de organização política. Elas se constituíam numa força parcialmente descentralizada que fragmentava o poder militar. Para Hilda Sabato, as disputas de 1880 mostram de forma clara até que ponto essa fragmentação resultou problemática e como foi necessário o uso da força para dirimí-la.

No Entreato 3 – “Voluntarios” – a historiadora se aproxima do mundo dos “cidadãos em armas” ao analisar como se dava o recrutamento para formar os batalhões de voluntários. A mobilização era promovida por dirigentes políticos com trajetória partidária e com experiências nas milícias, na Guarda Nacional e no exército de linha. A maior parte deles tinha prática na organização de forças partidárias, na mobilização de bases eleitorais e na direção de “cidadãos armados”. Estas bases eram recrutadas entre um amplo espectro da população da cidade de Buenos Aires que incluía desde jovens das classes proprietárias com aspirações políticas ou espírito de aventura, até homens provenientes dos setores mais baixos das classes populares. O êxito no recrutamento de voluntários logo transcendeu os limites dos que já militavam na vida partidária para estender-se a setores da população habitualmente pouco envolvidos nestas questões. Deste modo, quando chegou o momento dos enfrentamentos, a mobilização militar alcançava a todos os grupos sociais e não se limitava à população nativa incluindo uma boa parcela dos imigrantes que viviam na cidade de Buenos Aires.

Em “Viva Buenos Aires!”, o Entreato 4, Hilda Sabato reflete sobre o papel central que a cidade de Buenos Aires assumiu nos debates políticos que alimentaram os enfrentamentos revolucionários. O conflito político de 1880 começou com uma querela em torno de candidaturas, mas foi rapidamente mudando de caráter, até converter-se em uma confrontação entre o governo portenho e o nacional. Na visão dos contemporâneos esta oposição se deslocou com frequência para outra polarização que opunha a cidade de Buenos Aires ao resto das províncias argentinas. Isto não era novidade na vida do país e já fazia parte de suas tradições políticas. Até os anos 1880, esta rivalidade foi sendo acirrada por outra oposição, resultado do processo de consolidação do Estado, entre um governo nacional cada vez mais centralizador e os governos provinciais, incluído o de Buenos Aires, com aspirações autônomas.

Nesse cenário de antagonismos superpostos e em redefinição, os portenhos conformaram uma imagem de sua província e construíram um lugar simbólico para Buenos Aires que serviu de fundamento para a política de resistência. Os apoios oficiais à candidatura de Roca, somados ao centralismo na questão das milícias, serviram ao governador Tejedor e a seus seguidores para denunciar as ações do governo nacional como uma imposição à província e um ataque a suas liberdades, assim como para erigirem-se como representantes da “causa de Buenos Aires” e convocar para a resistência.

Com esta retórica, Tejedor recorria a uma figura central na linguagem e no imaginário coletivo da época, a do “povo de Buenos Aires”. Invocava-se a memória da participação deste povo nas jornadas revolucionárias de 1810, para reforçar a idéia de continuidade e do comprometimento. Além disso, desde a vitória de Mitre nos anos 1860, havia sido gestado e posto em prática um conjunto de práticas e representações que conferiam um lugar central à figura do povo de Buenos Aires como portador de virtudes cívicas e defensor das liberdades, unido em seu heroísmo e em seu compromisso com a República. Frente às ambições dos déspotas e aos males do caudilhismo que afetavam sobretudo as demais províncias, Buenos Aires se apresentava como a salvadora da pátria. A dinâmica dos fatos foi dando cada vez mais espaço a essa retórica que provou sua capacidade de mobilização sobre uma grande parte da população provincial, contribuindo substancialmente para a eclosão da revolução em 1880.

O Entreato 5 – “Revoluciones” – discute o conceito de revolução e sua centralidade para a análise do episódio de 1880, novamente na contramão de uma historiografia nacionalista que costumava interpretar as revoluções no continente como movimentos anacrônicos que interrompiam o caminho em direção à consolidação do Estado ou à modernização. Para ela, este conceito teve um lugar central na linguagem política da época e os acontecimentos associados a ele foram parte constitutiva da vida política daquela região. Em seu sentido mais difundido na época, a revolução se referia ao direito à resistência frente ao despotismo e se vinculava à figura da cidadania armada. Quando os governantes abusavam do poder, o povo tinha não só o direito como a obrigação, o dever cívico, de fazer uso da força para restaurar as liberdades perdidas e a ordem presumivelmente violada pelo déspota. Ao contrário do significado moderno do conceito que o relaciona a uma transformação das estruturas, naquele contexto seu uso estava referido à restauração de uma ordem anterior, identificada na América do século XIX a concepções pactistas e de cunho jusnaturalista. Estas concepções eram resignificadas em novas combinações com idéias provenientes das matrizes liberal e republicana e articuladas com outros conceitos-chave como os de representação e opinião pública. No plano das práticas políticas, a ação revolucionária formava parte do emaranhado da vida política argentina da época em suas diferentes dimensões.

Em todos os levantamentos armados ocorridos na segunda metade do século XIX que tiveram Buenos Aires como epicentro, seus protagonistas falavam em revoluções do povo desta província que se levantava em nome da liberdade e de seus direitos, cumprindo um dever cívico, contra um governo despótico. Mas Hilda Sabato observa que no caso dos episódios de 1880 houve uma mudança na retórica local. Nesta ocasião os portenhos usaram pouco o termo “revolução” preferindo falar em “resistência”, com sentido equivalente. Ela ressalta a importância dessa mudança e mostra como na história deste acontecimento o conceito de revolução e outros conceitos políticos foram questionados e resignificados por aqueles que buscavam introduzir mudanças importantes nas formas de se fazer política e de entender o Estado.

No último dos Entreatos, a antiga questão da capital, em especial a capitalização da cidade de Buenos Aires é retomada. Sabato nos lembra a longa história de disputas em torno deste problema e o insere na perspectiva mais ampla das diferentes maneiras de se conceber a organização política da república federal Argentina. Uma organização que supunha um compromisso entre o poder central e as soberanias provinciais, com a necessidade de definir uma sede para o primeiro. O centro da questão estava no grau de fortalecimento do poder central e isto vai aparecer com toda a força nos conflitos de 1880. Como havia ocorrido com o tema das milícias, a capitalização de Buenos Aires dividiu antigos aliados: os partidários de Roca levaram adiante a ofensiva centralizadora, enquanto no interior das fileiras do autonomismo houve grandes resistências à concentração de poder que a capitalização traria.

Como conclui a autora, se em junho o triunfo das armas nacionais no campo de batalha não conseguiu selar a unidade dos vencedores e impor sua vontade sobre os rebeldes, a ação política que se seguiu definiu o desenlace nos termos impostos por Roca e seus aliados políticos. O portenismo foi derrotado, a província de Buenos Aires perdeu em autonomia e a cidade foi federalizada. O que veio depois é bastante conhecido: Roca assumiu a presidência da República, o Partido Autonomista se impôs nas eleições da província de Buenos Aires que teve uma legislatura e um governador autonomista, e a cidade ficou sem governo próprio. Para além desses resultados imediatos, duas medidas coroaram a proposta centralizadora de Roca e mudaram o panorama político argentino para sempre: a federalização do município de Buenos Aires, separado da província e convertido em capital, e a lei que proibia às províncias a convocação das milícias, afirmando assim o monopólio estatal da força e sua concentração em uma única instituição, o Exército Nacional.

Sem dúvida a história contada por Hilda Sabato neste imperdível livro sugere novas e importantes chaves para responder à questão central sobre o recurso à violência no episódio da Revolução de 1880. As explicações dadas são de distintas ordens e estão vinculadas tanto ao plano das representações quanto ao das práticas políticas. De sua análise podemos concluir que o que ocorreu em 1880 foi o resultado de tendências de longo prazo e de tensões e disputas conjunturais, assim como da dinâmica própria dos acontecimentos, das decisões e indecisões de cada um dos atores, e dos efeitos e derivações, muitas vezes acidentais de suas ações. O que resultou não estava necessariamente inscrito na origem ou no cruzamento de tendências iniciais, mas foi o produto do desenrolar desse crucial acontecimento que foi a Revolução de 1880.

Maria Elisa Noronha de Sá Mäder – Professora no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (HIS/ PUC-RJ – Rio de Janeiro/Brasil). E-mail: maisa@puc-rio.br


SABATO, Hilda. Buenos Aires en armas. La revolución de 1880. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2008. Resenha de: MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá. Almanack, Guarulhos, n. 1, p. 174-179, jan./jun., 2011.

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