A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia – BENITO (RBHE)

BENITO, Augustin Escolano. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Campinas: Alínea, 2017. Resenha de: MAGALHÃES, Justino. Revista Brasileira de História da Educação, n.18, 2018.

Este livro é uma tradução do título La escuela como cultura: experiencia, memoria, arqueologia, de Agustín Escolano Benito. A tradução foi feita por Heloísa Helena Pimenta Rocha (UNICAMP) e Vera Lucia Gaspar da Silva (UDESC). No Prefácio, Diana Vidal adverte o leitor que, pelo tema, pela escrita do autor e pelo enlevo da leitura, está perante um livro ‘inescapável’. Na Apresentação, as tradutoras previnem que, na migração entre as duas línguas, a tradução foi por elas pensada como interpretação e adaptação consciente, no esforço de “[…] compreender as reflexões do autor e torná-las compreensíveis” (Escolano Benito, 2017, p. 18).

O livro é composto por Introdução – A escola como cultura– e quatro capítulos: Aprender pela experiência; A práxis escolar como cultura; A escola como memória; Arqueologia da escola. Termina com Coda: cultura da escola, educação patrimonial e cidadania.

Qual é o objecto do livro que Agustín Escolano agora publica? Em face do título enunciado, através da comparação A escola como cultura, o que fica de facto resolvido no livro – o assunto escola ou o objecto cultura? E o que contém o subtítulo Experiência, memória e arqueologia, que relação há entre estes enunciados? Mais: Que relação entre o subtítulo e o título? O subtítulo reporta à escola ou à cultura? Ou aos dois termos, estabelecendo dialéctica através de ‘como’, ou seja, dando curso à comparação? Experiência, memória e arqueologia não são termos de igual natureza, nem de igual grandeza. Reportarão a um mesmo referente? A escola é parte da vida e foi experienciada ou mesmo experimentada pelos sujeitos, individuais ou colectivos. Daqui decorrem marcas que constituem memória – a experiência. A arqueologia reporta à materialidade e simbologia que ganham significado a partir de um olhar externo, deferido no tempo. A operação arqueológica permite a (re)significação de marcas que sejam apenas reminiscências.

A interpretação mais subtil para o título reside porventura na capacidade ardilosa e densa de Agustín Escolano em conciliar educação e história através da escola como cultura. A substância e o sentido da escola residem na cultura. Em cada geração, foi como cultura que a escola se substantivou, e foi como experiência que se tornou significativa. Para as gerações actuais, a escola é cultura e experiência, mas é também memória e arqueologia. Como refere o autor, a escola-instituição foi por diversas vezes questionada, mas a educação precisou (e precisa) da escola, como fica assinalado pela confluência de diferentes variações pedagógicas.

A história e a historiografia acautelaram essencialmente o institucional. Agustín Escolano entende, todavia, que é fundamental e significativo no plano educacionale de cidadania salvaguardar o cultural. A cultura escolar apresenta materialidade e historicidade, constituindo uma fenomenologia do educável e desafiando a uma hermenêutica como currículo e como representação. Dialogando com uma constelação de disciplinas é na etno-história que o autor encontra a ‘episteme’ e a matriz discursiva para o estudo que apresenta.

Pode aventar-se que este livro é um ensaio-manifesto. Agustín Escolano procura dar nota de uma genealogia e de uma evolução da cultura e da forma escolar, compostas por distintas dimensões processuais e orgânicas, e comportando descontinuidades, contextualizações, adaptações que não comprometeram o que frequentemente designa de ‘gramática da escola’ ou de ‘forma escolar’. Refere que esse historial está plasmado nas narrativas sobre experiências e modalidades orgânicas, nos restos materiais e arqueológicos sobre a realização escolar, nas memórias individuais e colectiva, enfim, na arqueologia como substância e método para a reconstituição e a interpretação do passado. Tal como a entende Escolano, a etno-história congrega estas distintas instâncias, devidamente apoiada na arqueologia, na fenomenologia e iluminada por um labor hermenêutico, aberto à complexidade e à interdisciplinaridade.

A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia contém uma história da escola, mas é sobretudo uma argumentação sobre a articulação entre escola e cultura e sobre a (re)significação da história-memória da escola como cidadania.

Na Introdução, o autor procura justificar o título do livro focando-se no enunciado ‘a escola como cultura’. Incide fundamentalmente sobre as práticas, posto que são inerentes ao escolar e, em seu entender, não têm sido objecto de um labor apurado por parte da teoria educativa e da história. Tal vazio constata-se no que reporta aos fundamentos, mas torna-se sobretudo notório no que respeita à recepção, seja esse vazio alocado às instituições ou à mediação e adaptação de conteúdos e práticas por parte dos professores, ou seja, por fim, às práticas incorporadas e apropriadas enquanto pragmática da educação. O autor chama a si o ensejo de dar a conhecer como a práxis escolar se constituiu em cultura.Inerente à práxis, sua evolução e sua conceitualização, está uma praxeologia resultante de uma depuração e de uma espécie de darwinismo que intriga o autor. Se em cada momento a pragmática educativa foi um habitus, há que analisar a evolução semântica desta constante.

No primeiro capítulo ‘Aprender pela experiência’, Agustín Escolano coloca a inevitabilidade da inscrição espacial e temporal das práticas, mas admite também a linha de continuidade, sem o que não será possível uma racionalidade inerente à prática. Partindo da figura do professor, reforça a noção de experiência como contraponto à focalização externa. Recorrendo a Michel de Certeau, refere que as circunstâncias não actuam fora de um racional. A constituição da práxis em cultura e da cultura em experiência são inerentes ao escolar – “Como instituição social, a escola abriga entre seus muros situações e ações de copresença, que resultam em interações dinâmicas” (Escolano Benito, 2017, p. 77). A cultura escolar congrega aspectos vários, incluindo a dimensão corporativa e a grande parte das práticas escolares integram um “[…] regime de instituição” (Escolano Benito, 2017, p. 88). A cultura empírica da escola constitui uma ‘coalizão’ nomeadamente entre ideais, reformas educativas, ritos e normas, práticas experiências profissionais.

No segundo capítulo ‘A práxis escolar como cultura’, o autor procura inquirir em que medida a pedagogia como ‘razão prática’ poderá explicar ou governar a esfera empírica da educação, pois que, como disciplina formal e académica, tem permanecido associada aos sectores político-institucional. Nesse sentido, a cultura empírica afigura-se como ingénua e não científica, e o seu valor etnográfico reside no plano descritivo, a que foi sendo contraposta uma racionalidade burocrática. Numa perspectiva sócio-histórica, a escola é uma construção cultural complexa que seleciona, transmite e recria saberes, discursos e práticas assegurando uma estabilidade estrutural e mantendo uma lógica institucional. Mas, para Agustín Escolano, em articulação com a cultura empírica da escola desenvolveram-se duas outras culturas: “[…] uma que ensaiou interpretá-la e modelá-la com base nos saberes (cultura académica) e outra que intentou governá-la e controlá-la por meio dos dispositivos da burocracia (cultura política)” (Escolano Benito, 2017, p. 119). Na sequência, retoma vários contributos que convergem na centralidade da cultura empírica associada ao ofício docente, seja referindo-se-lhe, entre outros aspectos, como arte e ‘tato’/ prhónesis, seja referindo-se à formalidade escolar como gramática e ao recôndito da sala de aula como ‘caixa-negra’. Centra-se, por fim, no binómio hermenêutica/ experiência, associado à narratividade dos sujeitos, para sistematizar o que designa de etno-história da escola, cujas orientações metódicas resume a: estranhamento, intersubjectividade, descrição densa, triangulação, intertextualidade.

O capítulo 3, ‘A escola como memória’, permite ao autor glosar o que designa de hermeneutização das memórias – assim as dos professores, quanto as dos alunos. São diferentes quadros em que o material e o simbólico se cruzam, permitindo sistematizar o que Agustín Escolano designa de ‘padrões da cultura escolar’: atitudes, gestos, formas retóricas, formas de expressão matemática. “A escola foi das instituições culturais de maior impacto no mundo moderno” (Escolano Benito, 2017, p. 202), pelo que a memória escolar é interpretação e pode ser terapia. Hermeneutizar as memórias escolares é retomar as pautas antropológicas de pertença e é valorizar uma fonte de civilização.

Se toda a obra vai remetendo para o CEINCE – Centro Internacional de la Cultura Escolar – do qual Agustín Escolano é fundador-director –, o quarto capítulo, ‘Arqueologia da escola’, é um modo sábio e fecundo de apresentar, justificar e conferir valor patrimonial e significado educativo a um Centro de Cultura e Memória da Escola, na sua materialidade e na profunda razão de ser como lugar de história e antropologização da história, e como fonte de subjectivação. Repegando a arqueologia como desígnio, são ilustradas de modo singular as virtualidades do CEINCE.

Em modo de epílogo, o autor escreve ‘Coda – cultura da escola, educação patrimonial e cidadania’, na qual dialoga com a moderna museologia, buscando lugar, sentido e significado para a preservação do passado. Que fazer com os testemunhos do passado? Agustín Escolano, com legitimidade e com a propriedade que lhe assiste, não hesita em contestar a estreiteza da memória oficiosa da escola, que poderá servir objectivos de governabilidade da educação e até alguns ensejos patrimoniais, mas o Museu investe-se de novo sentido na medida em que combine o racional e o emocional, tornando possível uma educação patrimonial. A memória escolar é pertença de todos e a todos respeita.

Por onde viajam o pensamento e a escrita de Agustín Escolano? Como constrói o discurso, alimenta o texto, fundamenta o argumento? Que unidade no diverso? Que dialéctica? Ensaio, manifesto, narrativa? Originalidade, glosa, réplica?

Este livro é formado por textos que têm um mesmo quadro de fundo. Há referências de assunto e de autores que se repetem, dando a cada capítulo uma unidade. Mas há uma trama, uma unidade de conjunto, uma sequência e uma ordem que consignam o livro. O argumento evolui para a arqueologia como materialidade-testemunho e como ciência-tese. Preservar e hermeneutizar – eis dois verbos-chave para (re)significar a memória escolar. A história da escola é formada por permanência e mudança.

Agustín Escolano dialoga antes de mais consigo próprio, gerando enigmas, esboçando uma trama, fazendo evoluir uma tese. Os autores que revisita (e são muitos – porventura todos os que, domínio a domínio, podem ser tomados como principais) são interlocutores cujos enunciados servem o texto do autor, sem prevalências nem rebates desnecessários. São personagens de uma peça maior, quiçá interdisciplinar, que é a cultura escolar, ou melhor, a escola como cultura. Agustín Escolano escreve sem reservas. Referenciou os principais autores e compendiou os assuntos nucleares. Mas, sobretudo, escreve com a propriedade que lhe advém de uma tão ampla como aprofundada cultura erudita e pedagógica. Escreve com a soberania que lhe assiste enquanto senhor de uma materialidade e de uma cartografia representativas do institucional escolar, tal como foi sendo constituído, concretizado, globalizado desde a Antiguidade Clássica.

A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia é fundamental e disso se apercebe o leitor desde a primeira página. Não é necessariamente um livro consensual, mas um bom mestre é-o enquanto senhor de uma verdade que serena e fomenta novas questões. Agustín Escolano é mestre-exímio. Assim o presente livro seja acolhido com as virtualidades que lhe cabem.

Justino Magalhães – Historiador de Educação. Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Investigador Colaborador do Centro de História da Universidade de Lisboa. E-mail: justinomagalhaes@ie.ulisboa.

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Realidades da Educação Profissional no Brasil – BATISTA; MÜLLER (TES)

BATISTA, Eraldo Leme ; MÜLLER, Meire Terezinha (Org.). Realidades da Educação Profissional no Brasil. Campinas: Alínea, 2015. 290 p.p. Resenha de: LIMA, Julio Cesar França. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.2, maio/ago. 2015.

O livro Realidades da Educação Profissional no Brasil está estruturado em duas partes: “Aspectos da Educação Profissional” e “Movimentos Pontuais na Educação Profissional”, respectivamente, e organizado em torno de 13 capítulos que abordam diferentes aspectos teórico-práticos e períodos históricos da formação para o trabalho e da educação profissional no país. Seus organizadores são vinculados ao grupo de estudos e pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Abrindo a primeira parte da coletânea, Romeu Adriano da Silva discute a tendência de determinados estudos da área trabalho-educação, que, a partir de uma certa leitura da ´ontologia do ser social´ de Lukács, tomam a categoria trabalho como central para as pesquisas educacionais, porém com um viés predominantemente essencialista do trabalho. Dialogando com esses estudos, para os quais a práxis educativa não é trabalho, confronta seus argumentos com o de outros autores também tributários do pensamento de Lukács e com o próprio Lukács, para afirmar que o raciocínio daqueles autores opera sob a lógica da exclusão e não da contradição, a partir de uma leitura imanente e ahistórica da categoria trabalho. Para Romeu esse tipo de ´ontologia’, entre outras consequências, “parece afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, uma tese marxiana” (p. 28), o que leva não só ao imobilismo, mas na impossibilidade de se avançar em direção a uma educação de caráter emancipatório.

Em “Educação para a práxis”, de Hélica Silva Carmo Gomes e Eraldo Leme Batista, o foco são as contribuições de Gramsci para uma pedagogia da educação profissional. Partindo da crítica à pedagogia das competências que se ancora na filosofia do pragmatismo, os autores se propõem a repensar e buscar alternativas para a construção de uma nova pedagogia fundada na filosofia da práxis e que tem na escola unitária proposta por Gramsci o seu lócus de realização. Uma perspectiva antagônica ao pragmatismo, que se baseia no princípio da unidade teoria e prática, na articulação do saber para o mundo do trabalho com o saber para o mundo das relações sociais, que se preocupa com a autonomia, com o pensamento novo e independente do trabalhador, com a construção de uma nova forma de sociedade e que compreende três aspectos principais: a práxis técnico-produtiva, a práxis científico-experimental e a práxis histórico-política. Os autores reconhecem que a implementação dessa proposta no contexto atual está muito distante do real, o que não impede a necessidade de discutir a construção de caminhos possíveis para uma pedagogia da práxis que vai contra a adaptação ao existente e a coisificação do trabalho, a favor da formação de sujeitos sociais ativos e educados para a crítica da sociedade atual e da lógica compulsiva do mercado.

Justino de Souza Junior propõe atualizar o debate teórico da relação trabalho-educação com a discussão sobre “O princípio educativo da práxis”. Partindo do pressuposto de que a valorização da categoria trabalho acabou por subtrair o estatuto teórico da categoria práxis, Souza Junior resgata a sua importância para a reflexão dessa relação. Dialogando com Kosik, Konder, Paulo Netto e Vásquez, o autor aponta para a obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho, na qual a primeira é reduzida a trabalho e a segunda definida como práxis. Ao contrário, vai apontar que a práxis determina muito mais globalmente que o trabalho o ser social, pois, além do momento laborativo, a práxis envolve também o momento existencial. Baseado em Lukács, diz que “o trabalho é a práxis primeira, mas esta abre um processo que se complexifica cada vez mais e desenvolve o ser social criando outras formas de práxis que não são trabalho e se distinguem dele, mas atuam na formação e desenvolvimento do ser social (…)” (p. 77, grifo nosso). Enfim, para o autor, no debate marxista em torno da relação trabalho-educação, “a prioridade ontológica do trabalho não anula a importância da práxis social em geral para a formação do ser social, logo, ela não pode conduzir à ideia de exclusividade da importância do trabalho como princípio educativo” (p. 80). Entretanto, ao apontar que as outras modalidades de práxis, entre elas a educativa,não são trabalho fica a questão se estamos diante (ou não) de uma posição que contraditoriamente pode afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, tal qual discutida no primeiro texto dessa coletânea.

No texto “Problematização, trabalho cooperativo e auto-organização: possibilidades de procedimentos de ensino integrado”, o debate é sobre a didática da educação profissional sob a perspectiva integradora, ou da unidade indissolúvel teoria-prática sob a perspectiva dialética. Refutando tanto o tecnicismo como o politicismo, Ronaldo Marcos de Lima Araújo e Maria Auxiliadora Maués de Lima Araújo compreendem que as técnicas de ensino são mediações das relações professor-aluno, são condições necessárias, mas não suficientes do processo de ensino, pois devem estar subordinadas, política e metodologicamente, às finalidades e práticas sociais que a conformam. No caso, articuladas com um projeto educacional integrador e emancipador. Daí que tomam como referências para o trabalho didático a problematização, o trabalho coletivo e a auto-organização. Descartando a perspectiva de neutralidade da técnica, sustentam a possibilidade de sua ressignificação e seu potencial de desenvolvimento de emancipação social e da autonomia e capacidade criativa dos discentes. Desse ponto de vista, abordam o potencial de diversas estratégias de ensino-aprendizagem, tais como, a aula expositiva dialogada, os laboratórios e oficinas, o estudo do meio: trabalho de campo, o estudo dirigido e o jogo, e as estratégias e critérios para a avaliação do processo de aprendizagem.

A preocupação de Paulo César de Souza Ignácio em “A acumulação flexível no Brasil e suas demandas de qualificação da força de trabalho” é demonstrar que o grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas no Brasil na atualidade, apesar de ajustar os sistemas de formação do trabalhador no sentido da polivalência e flexibilidade, permite dialeticamente que a politecnia seja uma alternativa concreta a essa concepção de educação. Após discutir a crise estrutural do capital nos anos 1970, a emergência do novo padrão de acumulação flexível e a consequente linearização da produção, que está na base da flexibilização do trabalho operário, sua desespecialização e polivalência, o autor analisa o comportamento do mercado de trabalho no Brasil, a partir dos anos 1990, e as demandas do capital industrial pela universalização da educação básica aliada à formação profissional de base polivalente. Com base nessa análise, sustenta que a mesma materialidade histórica que impõe o perfil de formação de caráter polivalente também é a que permite que a concepção politécnica de ensino seja trazida novamente ao debate no âmbito das políticas educacionais.

Roberto Leme Batista discute “Trabalho, educação e a ideologia da cidadania” com base na análise de documentos que serviram de referência para a reforma do ensino médio e da educação profissional no Brasil a partir dos anos 1990. Da análise o autor destaca o uso de conceitos que supostamente seriam um passaporte para a construção, desenvolvimento e consolidação da cidadania, e outros que são omitidos ou desaparecem no discurso dos teóricos do capital. Para ele, os documentos da reforma do ensino médio e da educação profissional no país são impregnados de determinismo tecnológico e ancorados fundamentalmente nas necessidades do capital.

Encerrando a primeira parte da coletânea, Zuleide S. Silveira aborda a temática da educação tecnológica, indicando que desde o pós-Segunda Guerra Mundial esse ensino vem sendo progressivamente subordinado à dinâmica da política de ciência, tecnologia e inovação articulada com o movimento de internacionalização da economia brasileira, bem como voltando a escola para as necessidades estritas do mercado. Isso ocorre por meio das reformas educacionais, do processo de ‘cefetização’ e atualmente se expressa na instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, inspirada no modelo anglo-saxão de universidade moderna. Após identificar as duas concepções de sociedade e escola em disputa no país – o projeto liberal-corporativo e o projeto que visa a emancipação política do trabalhador, e o tipo de capitalismo dependente que articula o moderno e o arcaico, a autora aponta para a contradição do capital que, de um lado, exige maior qualificação para o trabalho, ou formação para o trabalho complexo, e de outro lado, a sua desqualificação, ou a formação para o trabalho simples.

O texto “A educação profissional no Brasil: análise sobre o centro ferroviário de ensino e seleção profissional – década de 1930”, de Eraldo Leme Batista, abre a segunda parte da coletânea com a experiência de formação profissional para esse setor, a partir da trajetória de Roberto Mange e dos estudos realizados na revista do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), do qual era representante, ao mesmo tempo que era diretor do Centro Ferroviário. Identificado como o principal intelectual orgânico da burguesia industrial brasileira nesse período e com grande prestígio junto aos educadores escolanovistas, Mange era um entusiasta das propostas de formar o ´trabalhador ideal´, ´comportado´, ´civilizado´, e ´colaborador´, fundamentada nos princípios da Organização Racional do Trabalho, de base taylorista/fordista, e no desenvolvimento do método psicotécnico e na racionalização dos métodos de ensino industrial. O seu projeto pedagógico era formar uma nova classe trabalhadora nacional, dócil, amável, educada, disciplinada e que vestisse a camisa da empresa, mas também difundir o discurso de uma nova sociedade capaz de enfrentar o atraso e o subdesenvolvimento.

O texto seguinte, de Meire Terezinha Müller, complementa a discussão acima na medida em que se debruça sobre a educação profissional realizada pelo Senai, criado em 1942, e, particularmente, sobre as Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), introduzidas no Brasil sob a liderança de Roberto Mange. Como ´método´, as SMOs “são definidas como o modelo que propõe o aprendizado a partir da decomposição das funções em várias fases, com grau crescente de dificuldade às quais os aprendizes iam tendo acesso ao vencer a série anterior” (p. 181). Eram utilizadas tanto nas disciplinas instrumentais como nas disciplinas de formação geral. Para a autora, esse ´método´ se aproxima dos postulados de Comte, Dewey e Comenius, mas se distancia do modelo de educação praticado pelas Corporações de Ofícios e das propostas de Pistrak e Makarenko. Desde sua implantação no Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, do qual Mange foi diretor na década de 1930, até a atualidade, as SMOs vêm sendo modernizadas em decorrência das mudanças operadas nos processos produtivos, mas não deixaram de ser uma educação subordinada às necessidades do capital, de base pragmática e necessária à neutralização da resistência operária e à despersonalização dos indivíduos, já que funcionam como uma barreira aos ´inaptos´ e minimiza qualquer postura crítica à rotina produtiva das empresas.

“Tempos ´Modernos’ no Brasil? O parque fabril brasileiro e as iniciativas senasianas”, de Desiré Luciane Dominschek, analisa alguns aspectos da constituição das escolas do Senai, fundado em 1942, tendo como pano de fundo o processo de industrialização na era Vargas e sua palavra de ordem ´a disciplinarização do trabalho’, bem como a reforma educacional de Gustavo Capanema. Aqui reaparece novamente a figura emblemática de Roberto Mange, primeiro diretor regional do Senai em São Paulo, e sua pedagogia industrial, baseada no método psicotécnico, na formação sequencial e nas séries metódicas. Essa proposta burguesa de aprendizagem profissional de forte apelo ideológico e que implica a taylorização e alto grau de padronização dos métodos de ensino está na base da constituição das escolas senasianas.

Talita Bordignon, em “O ´intento diferenciador´ das ações governamentais por meio do ensino técnico a partir de 1946”, discute o papel da Comissão Brasileiro-Americana para o Ensino Industrial (CBAI) e a influência do sistema educacional voltado à formação para o trabalho nas diversas esferas da vida do cidadão comum, a partir da segunda metade dos anos 1940, no contexto da ideologia nacional-desenvolvimentista. A partir da análise do Boletim do CBAI, órgão que funcionou entre 1946-1961, a autora indica que a preocupação central não se restringia à formação profissional, mas à formação moral, ideológica e cultural dos indivíduos inspirada no modelo norte-americano de viver. Além disso, aponta para o papel reservado aos médicos e psicólogos do trabalho em ´ajustar´ os indivíduos à sociedade e ao trabalho industrial, mesmo aqueles que tivessem ´capacidades reduzidas´ em relação à maioria considerada ´normal´.

O texto “O empresariado industrial nacional e seus projetos educacionais: a dialética da formação humana entre as décadas de 1970 e 1980”, de Jane Maria dos Santos Reis, problematiza a categoria formação humana na perspectiva dialética, a partir das demandas de trabalhadores pelo empresariado industrial no período considerado, visando identificar as representações dos empresários acerca da educação dos trabalhadores. Partindo da hipótese de que “os projetos educacionais do empresariado mineiro (…) são funcionais ao processo de acumulação do capital via desenvolvimento econômico de caráter dependente e combinado (…)” (p. 241), a autora conclui que os projetos educacionais visam subordinar o sistema educacional aos interesses do empresariado. Entretanto, considerando o debate proposto pela autora, a discussão ficaria mais rica com o aprofundamento sobre a improdutividade da escola produtiva, ou sobre os vínculos e desvínculos da relação trabalho-educação, e sobre a existência (ou não) de uma burguesia nacional.

Fechando a segunda e última parte da coletânea, Joice Estacheski e Rita de Cássia da Silva Oliveira discutem “A educação profissional de base politécnica: desafio para o estado do Paraná”, a partir de um olhar crítico sobre essa modalidade de ensino proposta pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Para isso, as autoras abordam as Diretrizes Curriculares da Educação Profissional do Estado do Paraná, construída em 2006, pautada no ‘trabalho como princípio educativo’ e nos pressupostos gramscianos da ‘escola unitária’ e apresentam uma pesquisa realizada com docentes dessa modalidade de ensino. Em relação ao primeiro aspecto, dizem que apesar das diretrizes apontarem para uma formação omnilateral, “as forças conjunturais do atual sistema de produção não permitiram sua concretude” (p. 263). O consenso predominante na estrutura da educação é o de se adequar às necessidades do mercado. Nesse sentido, a maioria dos cursos são na modalidade subsequente e não na modalidade integrada, se distanciando assim da perspectiva de romper com a lógica que articula a educação profissional diretamente ao mercado de trabalho. Em relação aos docentes pesquisados, na sua maioria dos cursos subsequentes, apontam que: não foram preparados para superar a visão mercadológica da formação humana; não há clareza sobre a visão ontológica do ser social e, consequentemente, da ‘educação politécnica’ e do ‘trabalho como princípio educativo’; se dividem quanto à existência ou não da dualidade educacional; e que as condições estruturais para a operacionalização dos cursos estão aquém daqueles necessários ao bom funcionamento de cursos que tenham por base a politecnia.

Julio Cesar França Lima – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: jcfflima@gmail.com

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A pesquisa em trabalho, educação e políticas educacionais – ARAUJO; RODRIGUES (TES)

ARAUJO, Ronaldo Marcos de Lima; RODRIGUES, Doriedson S. (Orgs.). A pesquisa em trabalho, educação e políticas educacionais. Campinas: Alínea, 2012. 188 p. Resenha de: TEODORO, Elinilza Guedes. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.1,  jan./abr. 2013.

O livro organizado por Ronaldo Marcos de Lima Araujo e Doriedson Rodrigues é uma coletânea de dez textos organicamente organizados e resultam de um colóquio de pesquisa realizado em abril de 2009 pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará.

O referido evento tomou como temática norteadora questões referentes à pesquisa em trabalho e educação, políticas educacionais e suas relações com a abordagem de pesquisa qualitativa e o materialismo histórico e dialético, chamando para essas discussões pesquisadores vinculados ao projeto Laborar – Laboratório em Rede de Políticas e Práticas de Formação do Trabalhador -, financiado pela Capes (Procad), e ao projeto As Práticas Formativas em Educação Profissional, financiado pelo CNPq.

As discussões ali travadas mostram que no âmbito das políticas educacionais na área de Trabalho e Educação duas perspectivas sociológicas as fundamentam, quais sejam: mercadológica e social e, sendo assim, os textos debatem questões especificas de estudo assumindo que a realidade social é tomada pelo que resulta das relações de produção presentes em nossa sociedade e pelos posicionamentos político-ideológicos de projeto societário que expressam. Contribuem ao final para melhor caracterização das investigações e estudos dentro da área de Trabalho e Educação, compreendendo políticas educacionais que fomentam práticas formativas emancipatórias e as que permitem a conformação de trabalhadores aos interesses do mercado.

No primeiro artigo, “Trabalho e formação profissional: desafios teórico metodológicos das comparações intranacionais”, Fernando Fidalgo destaca como principal desafio teórico-metodológico para as três pesquisas vinculadas ao Laborar, e seus respectivos grupos de pesquisa, o tratamento das peculiaridades produzidas em cada realidade local pela tendência a tratar as pesquisas de cunho crítico relativos a formação dos trabalhadores, apenas nos seus aspectos macrossociais. O texto contribui apresentando quatro dimensões a serem consideradas nos estudos que compõem o referido projeto que possibilitará a comparação entre eles e a consolidação de uma metodologia comparativa de realidades entre estados. Nesse sentido, o texto apresenta uma lista de 16 elementos balizadores aos estudos das políticas de gestão do trabalho e da formação profissional para possibilitar uma tipologia e finalmente apresenta o desafio de superar a visão binária de estudos dos sistemas públicos e privados, aproximando-se dos estudos de redes em sua complexidade e com as diversidades próprias da formação social em realidades distintas.

O segundo artigo “Demandas por qualificação profissional – Recife, segunda metade do século XIX”, de Ramon de Oliveira e Adriana Maria Paulo da Silva, trata das investigações no âmbito da História da Educação Profissional no estado de Pernambuco, em que objetiva analisar o perfil das demandas por qualificação profissional de trabalhadores e empregadores, ao mesmo tempo em que analisa a oferta de serviços de aprendizado de ofícios específicos, no recorte temporal que inicia na segunda metade do século XIX. A referida investigação também se situa no interior do projeto Laborar e tem como grande contribuição o aprofundamento dos aspectos teórico metodológicos no âmbito da pesquisa histórica em Trabalho e Educação, mais especificamente das demandas de qualificação profissional, possibilitando estudar e reconhecer a existência, e por vezes ausência delas, de diferentes políticas públicas de educação profissional.

Ana Waleska P. C. Mendonça, autora do terceiro artigo, “O ensino profissional no Brasil, contribuições das pesquisas sobre a história das instituições escolares”, enfatiza a renovada tradição de estudos sobre instituições escolares em países como Portugal, França e também Brasil e a quase ausência de estudos sobre escolas de ensino técnico ou profissional na França e também aqui. Para isso a autora recupera um estudo de Compére e Savoie (2005) e provoca com questões referentes ao motivo da ausência de tais estudos que muito contribui para pesquisas sobre história de instituições escolares na área de Trabalho e Educação. Tomando as referências ‘renovadas’, a autora afirma que dois grandes objetivos se colocam ao estudo da história de instituições escolares: evidenciar os aspectos organizacionais que definem o quadro educacional numa dada escola e identificar o modo diverso como os sujeitos dessa unidade escolar colocam em ação o programa institucional definido para ela. Nessa perspectiva, finaliza o texto com desafios que se colocam ao estudo historiográfico de modo geral e no campo do estudo de instituições escolares de educação profissional. Pode ajudar a enfrentar problemáticas que atravessam o debate sobre o ensino profissional, quais sejam: dimensão pluridimensional que requer o tratamento das relações da escola com seu entorno, consigo mesmo e com o poder central e lidar com a memória individual e coletiva para construir a memória institucional para alem da enumeração de fatos de modo descritivo.

“Apontamentos para o trabalho com documentos de política educacional” é o artigo de Olinda Evangelista e propõe elementos teórico-metodológicos para o estudo de fontes educacionais específicas: os documentos da política educacional, desde leis a documentos oficiosos, relatórios escolares, dados estatísticos, regulamentos, para dar alguns exemplos. A autora compõe suas considerações em três frentes: a posição do pesquisador em que aborda o sujeito pesquisador como produtor de conhecimento, a posição dos documentos que invariavelmente expressam determinações históricas a serem apreendidas pelo pesquisador e a posição da teoria que possibilita a mediação entre sujeito e realidade em estudo. O referido texto, por sua didática e clareza, contribui com jovens pesquisadores, pesquisadores em formação e mesmo pesquisadores experientes podem usufruir dos destaques apresentados pela autora em cada um das nuances presentes no exercício da pesquisa.

O quinto artigo “Trabalho e formação – crônica de uma relação política e epistemológica ambígua”, de José Alberto Correia, enfoca as relações entre experiência e formação com o objetivo de contribuir com a compreensão do trabalho de formação. Para isso, o autor discute a produção histórica de mudanças nas definições das relações entre experiência e formação, em seguida toma experiências de formação inovadoras para reequacionar as relações entre trabalho e formação e, finalmente, encerra o texto de forma não conclusiva, refletindo epistemologicamente sobre os processos de produção de saberes e possíveis alternativas.

“Ações em rede na educação, contribuições dos estudos do trabalho para análise de redes sociais” é o texto de Eneida Oto Shiroma. Apresenta resultados preliminares da pesquisa que estava desenvolvendo cujo objetivo era compreender os mecanismos pelos quais proposições internacionais são assimiladas e traduzidas no interior da escola e que evidenciou uma metodologia que possibilita visualizar articulações e relações entre global e local que muito significam para o estudo das mediações nas redes educacionais, pois são capazes de modificar e influenciar práticas, relações pessoais e gestão do trabalho docente no interior da escola.

O sétimo artigo “A pesquisa histórica em trabalho e educação”, de Maria Ciavatta, também trata resultados iniciais de uma pesquisa em andamento referente ao ‘pensar historicamente’, tratando questões referentes a como se elabora, no âmbito da pesquisa, a história da relação nominal entre Trabalho e Educação. Nesse sentido, a autora refuta as posições positivistas, a-históricas, generalistas e pós-modernas para reconstruir o real da relação entre trabalho e educação calcada nas referências marxianas para análise da realidade.

O texto seguinte “As pesquisas sobre instituições escolares: o método dialético marxista de investigação”, de autoria de Paolo Nosella e Ester Buffa, apresenta uma importante contribuição no tocante a referencial teórico e metodológico ao campo da historiografia de instituições escolares, ao apontarem que o estudo da totalidade histórica requer o uso do método dialético, pois ele permite aproximação do singular. Apresentam um balanço crítico dos estudos realizados desde 1950 até os dias atuais, as contribuições e características do método dialético e concluem reafirmando a defesa no investimento em estudos de instituições escolares conquanto apresentem percalços e possíveis perigos de desvios metodológicos, pois que esses estudos costumam mobilizar paixões que podem acender motivações para envolvimento em projetos de mudança social e elevação do nível de responsabilidade dos educadores por seus atos e gosto pelo estudo de história local e nacional.

O penúltimo texto do livro, “Trabalho e educação – o desafio para se construir uma política em rede para formação dos trabalhadores”, é de autoria de Gilmar Pereira da Silva. Levanta pontos relevantes a um trabalho de pesquisa em rede e os desafios que os pesquisadores terão que enfrentar. O autor descreve as bases em que os estudos estão acontecendo no âmbito do Projeto Laborar, que envolve a UFPE, A UFMG e UFPA, bem como as ênfases referentes ao estudo da educação de trabalhadores executado em cada uma dessas unidades e a diversidade metodológica necessária à execução do mesmo.

“O marxismo e a pesquisa qualitativa como referências para investigação sobre educação profissional” é o último texto do livro, de autoria de Ronaldo Marcos de Lima Araujo, que discute e combate uma ideia recorrente nos espaços acadêmicos da incompatibilidade entre pesquisa qualitativa e referencial marxista.

O livro representa, pois, uma importante obra no campo da metodologia de pesquisas sobre políticas de formação de trabalhadores sendo de interessante e proveitosa leitura porque trata as questões metodológicas por dentro dos relatos de estudos e experiências de pesquisadores distintos da área de Trabalho e Educação.

Elinilze Guedes Teodoro – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará, IFPA, Belém, Pará, Brasil. E-mail: elinilze.teodoro@ifpa.edu.br

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Capitalismo, Estado e Educação – LUCENA (TES)

LUCENA, Carlos (Org.). Capitalismo, Estado e Educação. Campinas: Alínea, 2008, 217 p. PREVITALLI, Fabiane Santana. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 2, p. 397-401, jul./out.2009.

Importante obra organizada pelo professor e cientista social, doutor em Filosofia e História da Educação, Carlos Lucena, lançada no segundo semestre de 2008 pela editora Alínea. Os artigos reunidos no livro apresentam um diagnóstico do processo de mundialização do capital que, na visão dos autores, ocorre sob a hegemonia das políticas neoliberais, das mudanças tecnológicas, bem como sob o discurso ideológico da valorização da educação.

Contrários às teorias que afirmam as regras do livre mercado como fatalidade ou, parafraseando Carlos Lucena, como sendo “o fim da História”, os autores analisam o intenso processo de mundialização do capital como processo histórico no âmbito das lutas de classes e problematizam seus impactos sobre o trabalho e a educação.

A obra está organizada em dez capítulos.

Os dois primeiros centram a análise na relação entre globalização e mundialização do capital e da educação. Olinda Maria Noronha, no primeiro capítulo, “Globalização, mundialização e educação”, enfatiza as ações dos organismos internacionais no sentido de promover um novo tipo de educação, de pedagogia e de formação de professores, os quais privilegiam um saber fazer pragmático e utilitário que é requerido pelo mercado. No segundo capítulo, “Globalização capitalista e apropriação”, Lucília e Janaína Machado relacionam a questão ambiental e da educação no âmbito do processo de globalização, ressaltando os desafios educacionais e ambientais em função da lógica do sistema de produção e circulação de mercadorias. Para as autoras, embora o desenvolvimento sustentável esteja sendo discutido como novo paradigma conceitual e político, são enormes as dificuldades para o cumprimento de resoluções e planos de ação em razão da racionalidade econômica capitalista à qual está subordinada a cidadania.

No terceiro capítulo, “Transformações no Estado-Nação e impactos na educação”, o autor José Luís Sanfelice faz uma síntese bastante elucidativa sobre o processo histórico de formação e transformação do Estado-Nação e demonstra como a educação, à medida que a globalização avança, vai se tornando um serviço privado e perdendo seu sentido fundamental que é permitir o acesso dos seres humanos à cultura e a conhecimentos disponíveis, assumindo assim um caráter acentuadamente mercantilizado. Nesse contexto, Sanfelice destaca o papel da ciência e da tecnologia como elementos de dominação na relação geopolítica entre os Estados capitalistas centrais e periféricos, contribuindo para que permaneçam intocadas as determinações estruturais da sociedade sob a lógica do capital.

A questão da ciência e da tecnologia também é abordada por Carlos Lucena, no quarto capítulo do livro. Sob o título “Mundialização, ciência e tecnologia”, o autor debruça-se sobre os pressupostos teóricos das crises do capitalismo e questiona a neutralidade da ciência e da tecnologia uma vez que a base das mesmas assenta-se na própria reprodução do capital.

Para Lucena, “a ciência não é uma invenção do capitalismo, até porque ela é tão antiga quanto a humanidade, mas o capitalismo inventou formas de explorá-la, subjugando seus resultados a seus interesses” (pág. 91).

O quinto e o sexto capítulos discutem a questão da reestruturação produtiva do capital era protagonizado pelos jesuítas, pautado pela aquisição do saber clássico acumulado pela civilização ocidental cristã. Era um ensino altamente refinado e eficiente para os fins sociais e culturais do poder hegemônico. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, os autores resgatam as reformas pombalinas, as quais transferiram a educação quase que exclusivamente a cargo das famílias pertencentes à aristocracia agrária escravocrata.

Com o advento da República, o traço elitista permaneceu. Foi somente na ditadura militar que a expansão do ensino tornou-se uma realidade ou, nas palavras dos autores, “que a sociedade brasileira deixou, na realidade, de ser uma ‘sociedade sem escolas’”. Todavia, o traço característico da constituição da educação brasileira é a sua dualidade: escolas de ensino precário para as classes populares e escolas eficientes para as elites.

O quinto e o sexto capítulos discutem a questão da reestruturação produtiva do capital e seus impactos no mundo do trabalho no contexto internacional e no Brasil, respectivamente. Em “La precariedad como paradigma de la reestrutucturación capitalista em la fase de la crisis estructural”, Luciano Vasapollo demonstra o quadro do desemprego, bem como o depauperamento das condições de trabalho e do aumento da pobreza, tomando como referência os Estados Unidos e a Europa. Ao caracterizar a reestruturação produtiva do capital, o autor foca sua análise na formação de um “novo sujeito do mundo do trabalho (…) que é determinado não somente pelas transformações nas atividades produtivas, mas também por sua configuração sócio-política e sua capacidade de organizar- se em um novo movimento sindical que saiba interpretar as necessidades de emancipação” (pág. 121-122).

Ricardo Antunes, em “Riqueza e miséria do trabalho no Brasil”, apresenta, a partir de um conjunto de estudos setoriais realizados por diversos autores, as principais tendências da reestruturação produtiva no Brasil sob a égide do neoliberalismo, apontando a centralidade do desemprego global, da flexibilização e da precarização do trabalho como fenômenos dominantes e como estratégias de dominação nessa nova fase do capital.

No sétimo capítulo do livro, “Estado, políticas públicas e educação no Brasil”, Antonio Bosco de Lima analisa a crise do Estado capitalista como um processo de revigoramento da reprodução do capital por meio do recurso de fortalecimento do mercado. O autor apresenta uma interessante análise do Estado na perspectiva do pensamento político liberal e da teoria marxista, tecendo contundentes críticas ao liberalismo e neoliberalismo. No centro dessa discussão está a escola pública que, para Bosco, “(…) é um aparelho do Estado que, de acordo com os neoliberais, precisa ser controlada pelo mercado” (pág. 147). Estabelece-se, portanto, uma disputa no campo político-ideológico em que, de um lado, encontra-se a comunidade educacional para quem há a necessidade de uma escola mais democrática e, de outro lado, o pensamento neoliberal dominante pelo qual é preciso tirar o conteúdo político das escolas.

Assim, segundo o autor, não é o conteúdo da escola que está em crise, tampouco a educação formal, mas o modelo de escola na sociedade regida pela lógica do capital.

Tendo como objeto de discussão a noção de dignidade e de direitos do homem, Robson Luiz de França, no oitavo capítulo “O trabalho como princípio da dignidade da pessoa humana”, destaca a degradação das condições de vida dos trabalhadores e o aumento do desemprego estrutural no âmbito da ascensão das políticas neoliberais.

Nesse contexto de aprofundamento das desigualdades sociais, de um “estilo de vida que se estabelece pelo não-comprometimento e pela ausência quase total da solidariedade social” (p. 168), a educação tende a tornar-se, crescentemente, em um meio de transmissão de princípios doutrinários neoliberais, assumindo um caráter adaptativo. Portanto, o que está em questão para o autor é a adequação da escola à ideologia dominante assim como as formas de resistência da mesma a esse processo.

No nono capítulo, “O Estado e o mundo do trabalho em mutação”, Maria Vieira Silva analisa as relações entre Estado-Nação e as ações do terceiro setor e seus impactos na educação.

Chama-nos atenção o argumento da autora, segundo o qual o terceiro setor é um espaço político de ruptura da cidadania e dos direitos públicos historicamente conquistados. De acordo com a autora, a educação escolar na década de 1990 tem sido um campo fértil para a consolidação de ações e proposições do terceiro setor.

Nesse contexto, Vieira defende uma concepção crítica da educação, voltada para o atendimento dos interesses daqueles que, ao longo de um processo histórico, ficaram à margem dos bens sociais e materiais produzidos coletivamente pela humanidade.

No capítulo que encerra o livro, cujo título é “Entre o real e o virtual”, Andréia Galvão aborda a reforma sindical e trabalhista em debate no governo Lula. A autora discute a flexibilização da legislação do trabalho como parte da estratégia do capital mundializado, com o objetivo de derrubar as formas de regulação sobre o trabalho, ou seja, a desconstrução de direitos sociais historicamente conquistados pelos trabalhadores. Para Galvão, o governo Lula tem mantido a flexibilização trabalhista, ainda que em ritmo menor que o verificado no governo FHC. A autora ainda destaca alguns pontos da reforma sindical, para demonstrar que ela vem para restringir a liberdade e a autonomia dos sindicatos. Nesse sentido, Galvão conclui que não há no governo Lula “um compromisso em assegurar e, muito menos, em ampliar os direitos trabalhistas” (pág. 215).

Assim, tratando de temas relevantes de forma instigante, o livro organizado por Carlos Lucena constitui-se num importante instrumento teórico para cientistas sociais, educadores e demais interessados em compreender criticamente os processos socioeconômicos, políticos e educacionais que regem a sociabilidade nas nações capitalistas neste inicio do século XXI. A sua leitura é fundamental para aqueles que desejam discutir, numa perspectiva crítica radical, as inter-relações entre trabalho e educação em tempos de globalização e mundialização do capital sob a égide de políticas fundadas no neoliberalismo.

Fabiane Santana Previtalli – Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. E-mail: fabianesp@netsite.com.br

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Políticas públicas educacionais – ROSÁRIO; ARAÚJO (TES)

ROSÁRIO, Maria José Aviz do; ARAÚJO, Ronaldo Arcos de Lima (Orgs.). Políticas públicas educacionais. Campinas: Alínea, 2008, 156 p. Resenha de: FERREIRA, Eliza Bartolozzi. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 2, p. 397-401, jul./out.2009.

Este livro é resultado de estudos e pesquisas empreendidos no interior do Programa de Pós- Graduação em Educação/Centro de Educação/ Universidade do Pará. É relevante a contribuição desta obra no conjunto da produção científica que estuda as políticas educacionais implantadas no último quartel do século XX e início do século XXI. As transformações políticas, econômicas e culturais resultantes do processo de globalização tiveram um impacto significativo na organização da educação brasileira, o que motivou uma produção relativamente extensa de conhecimento sobre as políticas educacionais, reunindo uma considerável contribuição para o pensamento e a prática educacional no país. Este livro se insere nesse quadro.

Em uma perspectiva teórica crítica, esta obra oferece um panorama das políticas públicas educacionais da atualidade, utilizando-se de diversos recursos metodológicos como estratégia de análise do objeto em questão, tais como: a historiografia para o estudo da organização escolar em Belém e para o debate da exclusão e elitização da escola brasileira; a hermenêutica como recurso para a compreensão do trabalho como princípio educativo, tema importante para os educadores, principalmente, devido à atual implantação da política de Ensino Médio integrado; e o estudo de caso, para a reflexão da formação de docentes na educação profissional no bojo das políticas do Programa de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), no Pará. Além disso, o livro conta com estudos sobre a política de avaliação institucional do Ensino Superior e sobre o caráter da política de autonomia escolar desenvolvida no quadro da reforma do Estado brasileiro.

“Se o trabalho foi sempre um fato educativo, em que sentido Marx pode ser considerado o fundador da pedagogia que elege o trabalho como seu princípio educativo fundamental?” Com essa pergunta, tem início o capítulo 1 do livro, sob o título “O trabalho como princípio pedagógico em Marx, Lênin e Gramsci e sua problemática na atualidade”. O texto é uma produção conjunta de Paolo Nosella e Elinilze Guedes Teodoro, os quais se utilizam do método hermenêutico ou histórico-filológico, pois o objetivo é o estudo de textos a partir dos sentidos das palavras escritas em seu contexto original.

Os autores tiveram como preocupação mostrar que a originalidade de Marx consistiu em transformar o fato universal em princípio teórico. Para comprovar essa assertiva, eles se pautaram na conhecida obra de Mario Alighiero Manacorda, Marx e a pedagogia moderna, que resgata os escritos de Marx, Lênin e Gramsci. Algumas clássicas teses marxistas são destacadas no texto: o trabalho é historicamente determinado e ligado à educação; uma nova sociedade deve unir o ensino ao trabalho produtivo das jovens gerações; uma escola politécnica suprime a divisão do trabalho entre os homens e entende que a relação entre escola e trabalho produtivo inscreve-se numa concepção de cultura desinteressada, de longo alcance cientifico, humanística e moderna. Esta problemática, posta na realidade contemporânea do pós-industrialismo, é aprofundada porque implica na superação das graves condições sociais.

O capítulo 2, “Formação de docentes para a educação profissional e tecnológica: por uma pedagogia integradora da educação profissional”, escrito por Ronaldo Marcos Lima de Araújo, objetiva refletir sobre a formação de docentes na educação profissional, a partir das experiências de pesquisa desenvolvidas no âmbito do Proeja e do Projovem. O autor resgata os conhecimentos produzidos pela didática e adota o materialismo histórico como referência teórica. Seu estudo afirma sobre a necessidade de uma didática para a formação do docente da educação profissional, que deve incluir a articulação dos saberes técnicos específicos da área, dos saberes didáticos e do saber do pesquisador.

Essa formação, segundo o autor, deve ser feita nas universidades e nos centros de educação tecnológica – atualmente, Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). Não obstante salientar a importância do Proeja e do Projovem como política social, o autor destaca as dificuldades desses programas no que diz respeito à sua execução, pelo fato de o quadro docente não atender aos referenciais teóricos necessários de formação em uma educação profissional comprometida com a emancipação do trabalhador.

O capítulo 3, “A organização do ensino público primário de Belém-PA – 1930/1937: projeto político-educacional”, de Maria José Aviz do Rosário, busca compreender as raízes da organização escolar em Belém ao resgatar o movimento político do período varguista de 1930 a 1937. Nessa época sob o domínio de interventores políticos com perfil coronelista, o município de Belém tinha uma rede de ensino relativamente grande, em que pesava a ausência de uma autonomia política e financeira.

O projeto político-educacional empreendido em Belém, no período em questão, é revelado pela autora a partir da análise de documentos primários que registram a opção dos interventores pela modernização do ensino à moda da escola ativa. Nesse passo, a organização escolar do município de Belém seguiu as orientações do escolanovismo como estratégia de acomodação da correlação de forças políticas da época.

Com a discussão sobre a importância, complexidade e ambiguidade presentes na correlação de forças políticas na sociedade contemporânea, a autonomia da escola é posta em questão no capítulo 4. Com o título “Autonomia da escola pública: diferentes concepções em embate no cenário educacional brasileiro”, Antonio Cabral Neto e Luis Carlos Marques Sousa traçam uma análise crítica do contexto histórico vivido no Brasil após a década de 1990, conhecido pela adoção de políticas neoliberais, com o objetivo de identificar suas implicações na ressignificação do conceito e da prática da autonomia nas escolas públicas do país. Segundo os autores, a apropriação indevida do conceito de autonomia empreendida pelas políticas educacionais das duas últimas décadas dificulta o processo de democratização da gestão educacional, pois sua ênfase se dá na desconcentração de responsabilidades para as unidades escolares, sem a devida descentralização do processo de tomada de decisão. Essa tendência segue o caminho oposto das lutas dos educadores iniciadas no movimento histórico ensejado pelos pioneiros da educação nova.

A política de avaliação do Ensino Superior é o tema abordado no capítulo 5, “A avaliação institucional como política pública”, escrito por Olgaíses Maués, com ênfase na análise do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). A autora faz uma reflexão crítica do contexto de regulação implantado no processo de reforma do Estado brasileiro após a década de 1990, no qual a avaliação institucional é alçada como uma estratégia de controle e de formalização da lógica privatista dominante no mundo ocidental. A reforma do Estado pode ser caracterizada como estratégia de implantação de um Estado regulador e avaliador.

O conceito de regulação é desenvolvido pela autora como formas que o Estado busca para exercer seu controle sobre a sociedade.

Para tanto, o gerencialismo é uma estratégia utilizada no lugar do modelo burocrático dominante na maioria dos Estados capitalistas. Nesse modelo, o Estado deixa de controlar o processo e passa a centrar seu interesse apenas nos resultados e, com isso, adota práticas mais flexíveis na definição dos processos e uma maior rigidez na avaliação da eficiência e eficácia dos resultados.

A nova regulação, portanto, tem como objetivo a realização de um ajuste de acordo com o mercado, mediante a desconcentração das ações. A autora ressalta que a avaliação institucional deveria assumir uma concepção progressista, tal como defendida pelos movimentos organizados, sendo aquela referenciada nas demandas da sociedade e responsabilizada em acompanhar todo o processo institucional ao permitir o ajuste de percurso com a finalidade de cumprir as metas sociais de uma qualidade emancipatória. Ao centrar a análise no Sinaes, a autora destaca sua congruência com a concepção de regulação hegemônica, pois apresenta caráter somativo e punitivo, distante da proposta inicialmente elaborada pelo governo atual.

O capítulo 6 é uma produção conjunta de Amarílio Ferreira Jr. e Marisa Bittar, intitulado “Elitismo e exclusão na educação brasileira”.

Ao passo que a exclusão da escolaridade, para a maioria da população brasileira, foi arquitetada pela classe dominante, a educação foi considerada um privilégio dos poucos que constituíam a elite nacional. Os autores defendem que a sociedade brasileira, até o início da década de 1970, era uma “sociedade sem escolas”, não obstante o país sempre ter contado com a existência da instituição escolar. Os argumentos dos autores são construídos com base na historiografia da educação brasileira, cujo movimento se inicia no período colonial. Neste, o ensino era protagonizado pelos jesuítas, pautado pela aquisição do saber clássico acumulado pela civilização ocidental cristã. Era um ensino altamente refinado e eficiente para os fins sociais e culturais do poder hegemônico. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, os autores resgatam as reformas pombalinas, as quais transferiram a educação quase que exclusivamente a cargo das famílias pertencentes à aristocracia agrária escravocrata.

Com o advento da República, o traço elitista permaneceu. Foi somente na ditadura militar que a expansão do ensino tornou-se uma realidade ou, nas palavras dos autores, “que a sociedade brasileira deixou, na realidade, de ser uma ‘sociedade sem escolas’”. Todavia, o traço característico da constituição da educação brasileira é a sua dualidade: escolas de ensino precário para as classes populares e escolas eficientes para as elites.

Eliza Bartolozzi Ferreira – Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: eliza.bartolozzi@gmail.com

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Territórios deprimidos: desafios para as políticas de desenvolvimento rural – ORTEGA (HP)

ORTEGA, Antônio César. Territórios deprimidos: desafios para as políticas de desenvolvimento rural. Campinas-SP: Ed. Alínea; Uberlândia-MG: Edufu, 2008. Resenha de: OLIVEIRA, Régis Borges de. Desenvolvimento Rural: enfoque territorial. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 22, n.41 – Jul./Dez. 2009.

A temática do desenvolvimento territorial, nos anos recentes, constituiu-se importante e vasta área de debate no meio acadêmico, com importantes transbordamentos para a prática de gestão de políticas públicas. De caráter multidisciplinar, este campo vem chamando a atenção de economistas, sociólogos, geógrafos e pesquisadores de áreas afins, possibilitando uma visão mais dinâmica das possibilidades e potencialidades do desenvolvimento econômico-social. O enfoque territorial se destaca por sua forma de percepção da realidade através do re-ordenamento espacial do território, sendo este entendido não só estritamente do ponto de vista geográfico, mas agregando características econômicosociais que conferem a algumas regiões características singulares.

A partir dessas singularidades são analisadas as formas de intervenção Estatal (modelo top-down) e o processo de gestão participativa, com demandas locais, coadunando as proposições top-down com as do tipo button-up. Não se trata, portanto, de uma defesa ao localismo. O mote do livro, nesse espectro, é mostrar a importância do capital-social enquanto detonador do processo de gestão participativa, porém, devidamente alicerçado pelo aparato Estatal, concatenando os interesses subnacionais com os de âmbito nacional.

Neste sentido, o autor trabalha esses conceitos aplicando-os à diversa e complexa realidade rural do Brasil, identificando as fragilidades, os retrocessos e os avanços no que diz respeito à trajetória de desenvolvimento rural brasileiro. É de suma importância a ressalva feita pelo autor, que trata o meio rural não apenas como lócus da produção agropecuária. Conforme apontado por Veiga (2002), também são considerados rurais aqueles municípios de baixa densidade demográfica, pequena população e predominância de atividades ligadas a agropecuária.

O livro, referência obrigatória para pesquisadores da área e gestores das políticas públicas, se divide em dez capítulos, abarcando desde discussões preliminares acerca do conceito de desenvolvimento até estudos de caso como mostram os capítulos finais 9 e 10, apresentando as experiências mexicana e chilena, respectivamente, no que tange à descentralização e estratégias de desenvolvimento. Segundo o próprio autor, trata-se de uma obra motivada fundamentalmente pela experiência das aulas nos cursos de graduação e pós-graduação em Economia, sendo portanto, num primeiro momento, de intuito didático. No entanto, o livro vai além das salas de aula, trabalhando de forma precisa a temática proposta, sendo referência para estudos e planejamento de políticas públicas.

No primeiro capítulo, como substrato da discussão geral do livro, Ortega faz uma síntese da evolução conceitual da ideia de desenvolvimento, resgatando desde as escolas positivistas até Keynes e seus sucessores, estabelecendo uma relação entre a ideia de desenvolvimento e seus respectivos períodos históricos.

O capítulo lança luz sobre o esvaziamento do planejamento centralizado e a emergência do planejamento descentralizado, apontando as raízes históricas dessa reversão. É interessante notar como já mencionado, as duas estratégias de planejamento com vistas à adoção de políticas públicas de desenvolvimento territorial, quais sejam: i) uma orientada de cima para baixo (top down), em que o desenvolvimento local é planejado fundamentalmente pela esfera federal; e ii) outra onde a dinâmica é de baixo para cima (button-up) e os planos de desenvolvimento local são elaborados de forma descentralizada, com participação das esferas públicas e privadas locais. Segundo o autor, a segunda estratégia possui maior potencial de desenvolvimento social, caracterizando-se por uma gestão participativa, entre governo e sociedade local. A grande questão é que esta estratégia requer um grau elevado de organização da sociedade-local, interagindo e apresentando propostas/ demandas ao governo central. De extrema lucidez teórica, o livro aponta ainda para as dificuldades em se combinar as duas formas de desenvolvimento local. O ideal seria uma forma de governança mista, com participação local, mas que não se reduza ao localismo ingênuo.

O capítulo segundo está centrado na discussão entre descentralização e capacidade de promoção do desenvolvimento endogenamente. Analisando a América Latina, são considerados os exemplos práticos das estratégias desde baixo (button-up) e desde cima (top-down). O autor questiona a capacidade dos territórios deprimidos em promoverem um processo de desenvolvimento endogenamente, dadas as assimetrias na correlação de poder e interesses. Essa questão se liga umbilicalmente à ideia de embededdness (enraizamento) das relações sociais no território, visto que a racionalidade dos indivíduos não é ilimitada, mas sim restringida pelo contexto social. Ainda assim, existem diferenciações no que diz respeito à habilidade social, chave para cooperação dos atores.

No terceiro capítulo são abordadas questões referentes à concepção de território e territorialidade, mostrando como o enfoque territorial se tornou importante ponto de partida para análises dos fenômenos econômicos. Com a globalização, a ideia era de que o mundo estaria sofrendo um processo de desterritorialização, com rompimento das fronteiras de acumulação do capital. É factual que o processo de acumulação capitalista rompe com as limitações geográficas, porém, justamente apropriando-se das diferenciações regionais, territoriais e espaciais. Alicerçado em diversas visões/autores e confrontando as contribuições seminais sobre a questão dos territórios, Ortega finaliza o capítulo mostrando que o território deve ser concebido a partir de uma perspectiva integradora, articulada em múltiplas escalas, levando em conta as hierarquias, o poder, as classes sociais, elementos macroeconômicos, etc.

A quarta parte se dedica à análise do meio rural brasileiro, apontando suas transformações recentes. É de grande importância reter que o rural deixa de ser sinônimo de produção agrícola, ou melhor, deixa de ser entendido enquanto mero lócus de produção agropecuária. O intuito deste capítulo é mostrar como essas alterações sofridas no meio rural brasileiro devem condicionar a forma de pensar políticas públicas para o campo. O autor aponta para a superação da dicotomia rural-urbano, pois existem municípios cuja dinâmica é fundamentalmente comandada por atividades agropecuárias e, portanto, não faz sentido classificá-los como urbanos. O rural dever ser compreendido enquanto espaço, lócus de conflitos e não como setor da atividade econômica. Por fim, o autor mostra como a agricultura familiar pode contribuir com a construção de pactos territoriais rurais, mostrando a importância dessa agricultura no total da produção agropecuária brasileira e sua inserção competitiva no mercado, comparando a experiência brasileira com a estratégia de desenvolvimento rural europeia, analisando o programa Leader. Com base na experiência europeia, lança os caminhos e desafios do enfoque do desenvolvimento territorial rural (DTR) para a América Latina e o Caribe.

A questão da representação de interesses rurais é tratada no capítulo quinto. Grosso modo, com o processo de modernização da agricultura (adoção dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde), principalmente a partir das décadas de 60 e 70, há a fusão do capital industrial com o capital agrícola, conformando uma agricultura cada vez mais integrada com a indústria. Dessa união capitalista emergem os complexos agroindustriais, ou seja, cada produto gera em torno de si uma cadeia produtiva, demandando políticas específicas e insumos cada vez mais voltados para suas especificidades. Tem-se então o complexo agroindustrial da soja, do café, da cana-de-açúcar, da pecuária de corte, da pecuária leiteira, e assim por diante. Neste contexto a relações de poder e interesses se complexificam, pois, cada complexo agroindustrial defende políticas e incentivos ad hoc.

No sexto capítulo, o autor apresenta a experiência dos conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável (CMDRS).

O processo de modernização da agricultura brasileira foi fortemente concentrado, tanto regionalmente como em alguns tipos específicos de culturas. A grande maioria do crédito subsidiado, destinado à modernização da agricultura, foi canalizada para região centro-sul do Brasil, e para grandes produtores, principalmente de produtos exportáveis, ou seja, grãos e pecuária. Neste sentido, cabe observar que os pequenos e médios produtores ficaram à margem desse processo. Muitos sucumbiram diante da onda modernizante e outros sobreviveram enquanto pequenos produtores.

Pela sua representatividade, tanto em termos de pessoas ocupadas quanto no que diz respeito à produção de insumos e alimentos, a agricultura familiar necessita de políticas públicas que garantam a reprodução e a estabilidade dessas famílias nesse importante segmento da agricultura brasileira. Partindo desse ponto, em 1995 o Governo Federal lança o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), estabelecendo três linhas principais de financiamento: Capacitação; Infra-estrutura e Serviços e Crédito. O autor analisa especificamente cada uma das três linhas, com ênfase nas duas últimas (Infra-estrutura e Serviços e Créditos) por entender que estas têm uma maior relação com políticas de desenvolvimento territorial. Através do estudo de alguns casos, Ortega explicita a importância do PRONAF como instrumento de desenvolvimento rural, cumprindo um papel de mitigação da pobreza nas regiões mais deprimidas do país.

Ainda assim, o autor deixa claro que seria providencial uma maior interação das políticas públicas, coadunando fatores econômicos e sociais, como por exemplo, saúde e educação.

O sétimo capítulo se dedica a apresentação e avaliação das políticas de desenvolvimento territorial em execução no país. A inserção das estratégias de desenvolvimento local na prática de políticas públicas brasileiras teve início nos anos 90, por meio da criação dos Territórios Rurais da Secretaria de Desenvolvimento Territorial ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. São investigadas as principais ações do governo Fernando Henrique Cardoso e as políticas mais recentes arquitetadas no governo Lula.

O texto apresenta com clareza as diretrizes e os objetivos do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (PNDRS), arvorado na criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, em 1999. Além disso, apresenta as experiências no âmbito do desenvolvimento local do governo FHC, como: i) o Programa Comunidade Solidária, cujo mote era ocupar um espaço intermediário entre o governo e as organizações da sociedade civil, tornando-se um espaço de debates entre os governos e a sociedade, tendo em vista a convergência de projetos a serem implementados mediante a formação de parcerias; ii) o Programa Comunidade Ativa, conclamando a sociedade civil através de fóruns locais de concertação visando o combate a pobreza e a promoção do desenvolvimento. No governo Lula é analisada a política territorial rural, consubstanciada nos Territórios Rurais e no programa Territórios da Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Por fim, o autor tece considerações sobre as rupturas e continuidades do desenvolvimento territorial rural brasileiro, pontuando que parcela expressiva dos territórios ainda se depara com sérios problemas na condução de processos “autônomos” de desenvolvimento, o que exige maior atenção das políticas públicas, fortalecendo e mobilizando as sociedades locais.

O desenvolvimento territorial rural está, obviamente, ligado à questão da segurança alimentar. Políticas de desenvolvimento territorial devem atentar para a questão da insegurança alimentar e pensar estratégias para mitigação da fome e da pobreza. Nesta perspectiva, o capítulo oitavo se encarrega de estudar os Consórcios Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSADs), cujo objetivo principal é contribuir com o enfrentamento da pobreza e das desigualdades sociais, visto que a questão da insegurança alimentar é, sobretudo, uma questão de (falta de) acesso, ou seja, de insuficiência de renda. Foi concebido por meio dos CONSADs, no Governo Lula, o Programa Fome Zero, buscando desenvolvimento local e segurança alimentar. O autor apresenta toda a arquitetura dos CONSADs e do PFZ, com o devido mapeamento da população sujeita a insegurança alimentar, bem como aponta os avanços e deficiências desses programas.

No nono e décimo capítulos são abordadas as experiências de descentralização e desenvolvimento rural do México e Chile, respectivamente. No México, destaca o caso do Programa PROGRESA– OPORTUNIDADES como estratégia de desenvolvimento rural. Em linhas gerais, inicialmente o Programa Educação, Saúde e Alimentação (PROGRESA) foi um programa de transferência de renda, lançado em 1999 pelo governo mexicano com o objetivo de garantir que famílias carentes tivessem acesso a níveis suficientes de nutrição e saúde. Passando por modificações, o PROGRESA, que era dirigido estritamente para áreas rurais, se estende para conglomerados urbanos mudando seu nome para oportunidades.

No caso do Chile, cuja experiência no âmbito da descentralização é mais antiga, porém impulsionada nos anos recentes, não há intermediação dos governos municipais com o governo federal na gestão dos programas de desenvolvimento territorial rural. O autor destaca que o processo de descentralização chileno foi peculiar, conformando uma divisão político-administrativa diferente, por exemplo, do caso brasileiro. O processo de consolidação da descentralização chileno vem fortalecendo a criação de representações da sociedade civil, que passaram a atuar mais intensamente com poderes políticos constituídos em nível subnacional.

Aliado ao programa de formação de territórios e desenvolvimento rural, o Chile, assim como o Brasil e o México, possui atuação também no âmbito social através do Programa Chile Solidário.

Criado em 2002, o programa tem como objetivo o combate a pobreza por meio de três etapas envolvendo as famílias beneficiadas.

Na primeira fase, chamado de Programa Ponte (apoio psicossocial) e Aporte Solidário há um processo de acompanhamento da família com o objetivo de construir um “espírito” de superação na unidade familiar. Paralelamente a esse programa, as famílias selecionadas recebem subsídios monetários, e por meio do acesso preferente aos programas sociais; estas têm acesso preferencial aos programas sociais, públicos e privados. Por fim, é feito um balanço comparativo das diversas experiências, analisando os diferenciais e aspectos positivos a serem considerados na formulação de programas sociais.

A quantidade de informações e o núcleo teórico utilizados em “Territórios Deprimidos: desafios para as políticas de desenvolvimento rural” fazem dessa obra importante marco na forma de pensar políticas públicas de caráter estruturalistas de combate efetivo às, historicamente marcantes, desigualdades sociais do Brasil em específico e da América Latina em geral. Em um contexto de esvaziamento da atuação do Estado e de foco conjunturalista das políticas públicas, o livro lança luz sobre questões fundamentais, chamando a atenção para a mobilização da sociedade civil e para a indispensável e providencial atuação do Estado, sobretudo, naqueles territórios onde o grau de organização social é incipiente.

Régis Borges de Oliveira – Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Uberlândia, atualmente é aluno do programa de Mestrado em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente da Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq.

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