Conversa sobre a fé e a ciência: com Waldemar Falcão – BETTO; GLEISER (EPEC)

BETTO, F.; GLEISER, M. Conversa sobre a fé e a ciência: com Waldemar Falcão. Rio de Janeiro: Agir, 2011. 334 p. Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. Uma conversa a considerar no ensino de Ciências? Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 14, n. 01, p.285-288, jan./abr., 2012.

Ciência versus religião é tema que não se ausenta na literatura da área de ensino de ciências. Seja em relatos de pesquisa ou ensaios teóricos, sob diferentes referenciais ou linhas de pensamento, não são poucas as discussões que recaem sobre esse tema. Então, pode-se previamente imaginar que uma conversa sobre fé e ciência entre um religioso dominicano e um cientista agnóstico tenha inf luências formativas e ideias tão divergentes e consolidadas que, no mínimo, constitua-se em algo contraproducente, inútil e, portanto, não traga contribuições de relevo para o ensino de ciências.

Isso seria realidade se não fossem os atores dessa conversa quem são e o tipo de diálogo ético travado entre ambos. Por certo, contra-producente e inútil não são adjetivos aplicáveis à Conversa sobre a fé e a ciência entre Frei Betto e Marcelo Gleiser.

Transformada em livro, essa conversa mediada por Waldemar Falcão ocor reu no Rio de Janeiro, durante quatro dias, em meados de 2010. A conversa é inteligente e inst igante, pois não são po ucas as vezes que no seu percu rso mob iliza o le itor, fazendo-o usar a memória pa ra resgatar pe rsonagens, fatos históricos ou algum as situações apontadas em obras diversas da literatura, da cinematografia, das artes plásticas e, até mesmo, de histórias em quadrinhos. Personag ens da ciência, como Descartes, Einstein, Fer mi, Hawking, Galileu, Newton, Kepler e Plank, de modo pertinente na conversa de ambos, dividem espaço com persona- lidades diversas, como Marx, Paulo Freire, Jacques Maritain, Tristão de Athayde, Santo Ag ostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa de Ávila, Dalai Lama, Isaac Asimov, Arthur Clarke, Lula e Obama. As menções sobre literatura (Drácula, de Bram Stoker; 1968 – o ano que não terminou, de Zuenir Ventura; O pequeno príncipe, de Saint Exupér y; O li vro que ninguém leu, de Owen Gingerich; Minor ity Report e Caçador de Androi des Blade Runner –, de Philip K. Dick; Frankenstein, de Mary Shelley; Contato, de Carl Sagan; 2001e 2010, de Arthur C. Clarke) também dividem espaço com menções a peças teatrais (Hair ; O rei da vela), filmes (Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton; Entrevista com o vampir o; 2001, uma odissei a no esp aço, de Kubrick, Contato, de Zemeckis) e histórias em quadrinhos (Asterix; Abraracurcix). Quem proporciona isso à conversa, auxiliando para tor ná-la ainda mais ag radável, são os dois protag onistas, que apresentam conhecimentos de áreas diversas das suas, conseguindo fazer interessantes conexões nos argumentos que constroem, sem cair em relativismos ou desordens nas ideias.

O conteúdo do livro mantém, na íntegra, um formato de diálogo que flui sem desgastes e cujo desenho estrutural perpassa os seguintes tópicos do sumário: “Apresentação” (p. 9 – 17); “Trajetórias” (p. 19 – 79); “Ciência e Fé” (p. 81 – 155); “O poder” (p. 157 – 257); “Até o Fim (do Mundo, do Universo) (p. 259 – 334)”.

No entanto, como se trata de uma conversa, não há um percurso unidirecional, pois um assunto puxa outro, e as conexões temáticas vão se formando também pela retomada de assuntos mencionados – às vezes, prévia e superficialmente – em momentos anteriores.

Os assuntos tratados são diversificados. Não necessariamente nesta ordem, e com graus distintos de aprofundamento, fazem parte da conversa o big bang, o poder e a hegemonia da religião e da ciência na linha histórica, conceito de vida, criação, clonagem, células-tronco, campo magnético da Terra, fenômenos paranormais e meditação. Em certo momento, também pós-modernidade e modernidade entram na discussão de forma sutil (como pano de fundo), quando Frei Betto e Marcelo Gleiser se posicionam sobre o avanço da ciência e as respectivas relações de felicidade e melhora de vida das pessoas.

Nas concordâncias ou discordâncias, o diálogo se mantém aberto, crítico e sem preconceitos. Nos argumentos difundidos por todo o texto acerca de diferentes questões, como foi citado em exemplos anteriores, ambos apresentam suas ideias utilizando as áreas que atuam, além de se manifestarem sobre outras áreas (filosofia, literatura, arte), que, afinal, no conjunto, constituem as diferentes formas como o ser humano constrói os seus conhecimentos.

Pode-se dizer que o diálogo entre Frei Betto e Marcelo Gleiser não se reduz a um conjunto de ideias que leve a uma mera classificação, ou seja, a uma determinação a respeito de ciência e religião, se são metodológica e epistemologicamente incompatíveis, complementares ou incomensuráveis. Ainda que isso possa ser feito pelo leitor, a síntese do diálogo extrapola tal categorização, ou seja, traz outras contribuições na maneira simples, mas balizada e crítica, com que os enunciadores falam de ciência e fé um para o outro: “No fundo, ambas, a fé e a ciência, estão servindo como um veículo de transcendência da condição humana, de ir além, de explorar uma dimensão desconhecida” (Marcelo Gleiser, p. 87); “De intenção, de intencionalidade, exato! E a ciência não lida com isso, é uma narrativa que explica como funciona o mundo, e não por que o mundo funciona” (Marcelo Gleiser, p. 98); “Pois é, mas a religião não pode ter a pretensão de expli-car o como” (Frei Betto, p. 99); “Há que se admitir que ciência e fé são duas visões do mundo. Melhor dizendo, duas mundividências. A ciência procura compreender a natureza desse mundo em que vivemos, como ele se originou, quais os seus elementos e as leis que o regem. Já a fé nos induz ao Transcendente, nos faz ‘apalpar’ o Mistério e concede-nos os óculos sobrenaturais que nos permitem compreender a relação de Deus conosco e com o Universo” (Frei Betto, p. 327); “Seria atestado de suprema ignorância negar o papel da ciência nas nossas vidas […]. Não podemos ignorar também o papel da fé. Ela oferece uma outra ótica de encarar o mundo e a vida” (Frei Betto, p. 328); “Eu gosto de dizer que o ateísmo radical é logicamente inconsistente, […] prefiro adotar a posição agnóstica: mesmo que não veja evidências para a existência de entidades sobrenaturais, não posso descartá-las a priori. Sabemos pouco sobre o mundo” (Marcelo Gleiser, p. 333).

As divergências de ideias, de posicionamentos sobre algumas questões polêmicas e os aspectos formativos de ambos não atrapalham a conversa. Pelo contrário, enriquecem as discussões de tal maneira que, às vezes, o leitor fica com a impressão de que também um debatedor está aprendendo com o outro.

Apesar de haver interessantes pontos convergentes, ambos expõem suas divergências em uma perspectiva que nos faz pensar na ética discursiva habermasiana.

Haber mas (1999) coloca a argumentação no lug ar da ação teleológica, ou seja, por meio da linguagem, busca-se o consenso de uma forma livre de toda coação externa e interna. Nesse caso, a base da ética discursiva habermasiana está na autenticidade dos participantes, entendimento mútuo pela argumentação, simetria de participação e ausência de coação. Essa é uma colocação superficial e recortada da teoria de Habermas, mas serve como um indicativo de que “Conversa sobre a fé e a ciência” se dá numa dimensão da ética discursiva.

Quanto à mediação do diálogo, cumpre-se bem o seu papel. Ainda que algumas interferências dispensáveis tenham aparecido pelo meio do caminho, no geral, a condução é positiva.

Por fim, cabe dizer que o exposto nesta resenha é intencionalmente uma resposta afirmativa ao título questionador que escolhemos (Uma conversa a considerar no ensino de Ciências?). Conteúdo e for ma, além da concordância ou não concordância com as ideias apresentadas na conversa, po r si só, já abrem interessantes e diferentes possibilidades para o ensino de ciências (educação básica, licenciatura, formação continuada). No entanto, se a resposta de outros leitores for negativa, ainda assim, valerá a leitura.

Referências

HABERMAS, J. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

Júlio César Castilho Razera – Doutor em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié. E-mail: juliorazera@yahoo.com.br

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Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945) – SHIRER (CTP)

SHIRER, William L. Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945). Tradução Pedro Pomar e Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Agir, 2008. Resenha de: SHIRER, William L. Os Bastidores do Terceiro Reich.    Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06–06 de janeiro de 2012.

A obra Ascensão e queda do Terceiro Reich foi publicada em 1960 e tem como autor o jornalista internacional e historiador William L. Shirer (1904-1993). Nascido em Chicago, Shirer trabalhou realizando reportagens sobre o nazismo para CBS e a Universal News Service e fazendo cobertura sobre a queda do Terceiro Reich como correspondente de guerra. É autor de alguns romances e livros de não-ficção, entre eles, Berlin Diary (1941) e The Collapse of the Third Republic (1969). Suas pesquisas para a realização do livro Ascensão e queda do Terceiro Reich começaram em 1925, quando foi para Alemanha e o escreveu em cinco anos e meio. O trabalho foi divido em dois livros: Ascensão e queda do Terceiro Reich Vol. 1: Triunfo e cosolidação1933-1939 e Ascensão e queda do Terceiro Reich Vol. 2: O começo do fim 1939-1945. Se no primeiro o autor focaliza a ascensão e consolidação do nazismo na Alemanha entre 1933-1939, a segunda obra, a ser aqui resenhada, se preocupa com tramas vividas pelo Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Em “O começo do fim”, o autor relata os principais fatos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no que se direciona na ação dos alemães. Suas observações são feitas com base no que ocorria nos bastidores, ou seja, as principais decisões e ações dos governantes e generais dos Terceiro Reich, principalmente o ditador Adolf Hitler. Assim, ele intercala as medidas da cúpula do Partido Nacional-socialista e as conseqüências dessas no campo de batalha e nos países derrotados como também nos vencedores. Shirer usa como fontes os arquivos dos nazistas apreendidos depois do conflito, tais como documentos secretos, telegramas, memorandos, diários, mensagens, entre outros, como também depoimentos nos julgamentos de Nuremberg depois do conflito.

Primeiramente, há uma narração das vitórias da Alemanha no Ocidente, mostrando como a tática de Adolf Hitler e seus generais fora um sucesso para conquistar a Polônia, a Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e França. Observa-se também que nesse primeiro momento houve a preocupação de Hitler em lutar apenas na frente Ocidental, para isso muita das vezes se sujeitou as exigências da União Soviética como aliada. Porém, já com a Itália foi o inverso, pois, esse país muitas das vezes acabou ofuscado pelas vitórias dos nazistas, até mesmo nas conferências, quando o ditador alemão quase sempre dominava a fala em relação a Mussolini.

Diante de tantas vitórias alemãs a Inglaterra acabou ficando isolada e Adolf Hitler acreditava veemente que a guerra no Ocidente já estava ganha. Assim, desejou fazer um acordo de paz com Churchill para dominar completamente o Ocidente e depois se preocupar em derrotar os soviéticos, afinal, lutar em duas frentes não seria nem um pouco vantajoso. Porém, o primeiro-ministro britânico não aceitou as exigências do Nacional-socialista, em consequência, Hitler resolveu invadir a Inglaterra e ainda tentou convencer ao mundo de que a paz não foi estabelecida por culpa de Churchill.

Todavia, para desembarcar na Inglaterra os alemães precisavam passar pelo mar, pois sua maior força era terrestre. Na marinha e nos ares os britânicos mantinham a supremacia. Assim, a Alemanha não atingiu seu objetivo de invadir a Grã-Bretanha. Em seguida, Hitler comete um dos seus maiores erros, decide atacar a URSS dividindo seu exército em duas frentes. Tal decisão já tinha sido tomada muito antes, enquanto fazia acordos com os soviéticos, inclusive já estava até preparando suas estratégias, mas matinha em segredo, até mesmo de seu aliado Mussolini, mostrando assim, como a Itália esteve de lado dos planos nazistas. A princípio teve sucesso em sua invasão, porém, o inverno rigoroso da Rússia os fez recuar.

Em 1941 começou seu conflito contra os EUA e, assim, a Alemanha cometeu outro erro. Adolf Hitler não queria esse conflito até que o Leste fosse conquistado, mesmo que subestimasse a força americana. Porém, os japoneses jogaram com os nazistas e atacaram Pearl Harbor, logo, o Führer esteve obrigado a declarar guerra aos estadunidenses. Assim, a guerra que estava quase ganha para os nazistas mudou de curso, pois, a partir desse ano começa o fim do Terceiro Reich com sucessivas derrotas. Muitas dessas perdas foram graças à mente doentia do ditador nazista, que não aceitava recuar, deixando suas tropas serem liquidadas, mesmo com tantas sugestões de seus generais.

Outras medidas abordadas no livro são as atrocidades que os nazistas, através da SS com Himmler ao comando, cometeram contra judeus, prisioneiros de guerra, principalmente os russos e povos conquistados, com mais perversidades contra os do Leste. Foram milhões exterminados através de fuzilamentos cometidos pelos Einsatzgruppe, campos de concentração e câmeras de gás, além de experiências médicas e coleções de peles. Cometeram Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06–06 de janeiro de 2012.

Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos, Rodovia Marechal Rondon, s/nº, sala 06 do CECH-DHI, Bairro Jardim Rosa Elze, São Cristóvão – SE, CEP: 49.000-000, Fone: (79) 3043-6349. E-mail: caderno@getempo.org   ainda pilhagem e saques nos países derrotados e trabalhos forçados. Essas barbaridades foram alimentadas pela ideologia que Hitler pregava da superioridade do povo ariano e que os demais, considerados como desprezíveis, deveriam ser exterminados.

Primeiramente entrou em ação Einsatzgruppe nos fuzilamentos de milhares de vítimas. Mesmo assim, os nazistas queriam exterminar de uma vez por todas os judeus e os russos iniciando o genocídio, principalmente dos primeiros, através das câmeras de gás. Inclusive mulheres e crianças, as quais Himmler proibia que fossem fuziladas para que morressem apenas com o envenenamento. Tais pessoas eram levadas aos campos sem saber o que as esperava. Algumas ainda eram vítimas de experiências médicas grotescas. Houve diminuição de mortes quando se necessitou de mão-de-obra escrava.

Finalmente a ofensiva dos Aliados avança cada vez mais e a Alemanha sofre sucessivas derrotas. É vencida na África, na Rússia, na Normandia, além da queda de Mussolini. Muitos dos governantes alemães sabiam que as condições para seu país eram cada vez desfavoráveis, mas Hitler ainda acreditava que venceria e em nome da honra não poderia recuar. Para piorar a situação a maioria dos militares mantinha severa lealdade a seu Führer e cumpria suas ordens doentias, que levariam ao fim do Terceiro Reich. Poucos pretendiam tirar o ditador do poder e os que tentaram tiveram seus planos fracassados, seja pela falta de competência como pela má sorte.

Os últimos dias de Adolf Hitler e o Terceiro Reich foram em Berlim no subsolo da Chancelaria, acreditando fielmente que a culpa de seu fim foi graças às traições. Ao final, muitos revolveram deixar sua lealdade de lado e se salvarem. O estado mental do líder nazista chegou a um ponto de desejar que toda a Alemanha fosse destruída já que ele também seria como, por exemplo, ordenou que se destruíssem as fábricas do país. Por fim, os soviéticos dominaram completamente a capital da Alemanha e o ditador alemão suicidou-se.

Um dos grandes pontos positivos dessa obra é que o autor trabalha as fontes colocando o leitor em contato com elas, através de transcrições de alguns fragmentos de tais documentos. Assim, Shirer comprova suas interpretações com passagens das próprias falas dos principais personagens do Terceiro Reich. Outro aspecto importante é a narração dos principais fatos como consequências das ações dos governantes, ou seja, como se tramava os bastidores do governo alemão em relação à Segunda Guerra Mundial.

Porém, o autor predominantemente coloca a culpa das atrocidades nazistas em Adolf Hitler e seus militares e esquece que o povo alemão foi conivente e apoiou o Partido Nacional-socialista. É claro que esses governantes foram os grandes responsáveis, mas é necessário observar que os próprios alemães mantinham severa lealdade ao Führer e nada fizeram para acabar com o extermínio. Portanto, faltou observar o comportamento da sociedade alemã frente aos acontecimentos trágicos de mortes e sofrimentos.

Por fim, observa-se que este livro é essencial para professores, alunos e pesquisadores da Segunda Guerra Mundial. Tanto para estudos direcionados ao governo alemão como qualquer outro que pretende realizar pesquisas relacionadas a diversos aspectos do conflito mundial. Essa obra oferece um panorama geral sobre o tema, sendo importante para se conhecer o plano de fundo de trabalhos direcionados à Guerra de 1939-1945.

Nota

Referências

SHIRER, William L. Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945). Tradução Pedro Pomar e Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

Raquel Anne Lima de Assis – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista PIBITI/FAPITEC do Projeto Portal Segunda Guerra:aspectos do cotidiano em Aracaju. Integrante do Grupo de Estudo Presente (GET/CNPq). E-mail: raquel@getempo.orgOrientador: Prof.Dr. Dilton Cândido S. Maynard.

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Mussolini e a ascensão do fascismo – SASSOON (H-Unesp)

SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Trad. De Clovis Marques. São Paulo: Agir, 2009, 200 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Em obra traduzida recentemente ao português, o sociólogo Michael Mann concluiu pela impossibilidade política de reaparecimento vigoroso do fascismo. A não ser pela eclosão dispersa de agrupamentos neofascistas na Europa Ocidental que teriam como princípio de ação o antiimigrantismo, Mann enumerou alguns fatores que desmotivam uma revitalização acentuada de tais movimentos.1

Parece-nos, no entanto, que o fascínio pelo tema é contínuo devido à preocupação crescente de historiadores e demais cientistas sociais, em estabelecerem marcos conceituais cada vez mais precisos para estudá-lo, classificando-o não somente dentro do seu contexto imediato de referência histórica, isto é, entre o fim das duas guerras mundiais do século passado, e, sim, como uma categoria ampla e de permeabilidade sócio-histórica significativa. Esta dupla razão tem implicado em que as interpretações sobre o fascismo sejam conduzidas pela originalidade na análise dos materiais e nas descrições tipológicas do fenômeno, consolidando-se daí, conteúdos de alcance multidisciplinar.

Não se cogitaria da mesma forma, em uma retomada pura e simples dos estudos sobre o fascismo que viesse a suprir apenas ambições intelectuais, se tomarmos em consideração os argumentos ainda presentes de Renzo De Felice, eminente historiador do fascismo e também, biógrafo de Mussolini. 2 Em meados da década de 1970, Renzo De Felice produziu uma clássica revisão historiográfica do fenômeno, e explicou que as primeiras tentativas de interpretação do fascismo correram contemporâneas a ele e seguiram o processo de sua afirmação. Segundo De Felice, foi apenas por breve período e imediatamente após a segunda guerra que a cultura européia, esgotada com um problema trágico que se queria esquecer e encerrar optou por um distanciamento de curta duração.3 A angustiante necessidade de entender o fascismo e suas variantes de ação e representação, sua violência, rituais e manifestações regionalizadas, fez com que o tema voltasse a ser objeto de indagações com renovada intensidade já no início dos anos 1960.

Desse modo, ao contrário de recuar, ou de ser eclipsada por modismos, a historiografia do fascismo exibe uma notável tendência de avanço e adensamento analítico constatada por recentes traduções que são recepcionadas em nosso meio.

Mussolini e a ascensão do fascismo, estudo de Donald Sassoon, professor de História Comparada da Europa na Universidade de Londres, se constitui como exemplo de excelente síntese de história política sobre a elevação do fascismo a regime político na Itália, berço do movimento.

Numa análise envolvente, ágil e de fôlego, Sassoon traça um painel conjuntural de uma Itália pós primeira guerra sendo rapidamente engolfada pelo fascismo. É dentro desse contexto que o autor estabelece o debate sobre as questões centrais, divididas em cinco capítulos de uma uniformidade ímpar. Sassoon está menos preocupado em investigar as razões de consolidação de uma ditadura e suas raízes intelectuais e ideológicas, ou nem sequer é atraído em saber por que Mussolini conseguiu manter-se durante vinte anos como Chefe de um Estado totalitário. A questão consiste em saber por que Mussolini chegou ao poder, ou seja, o motivo, considerando-se as circunstâncias relatadas, de um líder de um partido eleitoralmente impopular, sem apoio nacional nem controle dos militares, ser nomeado primeiro-ministro e receber o beneplácito da monarquia e de outras fontes de poder social.

Atento a esse problema,Sassoon se empenha em relativizar certos mitos legitimadores do fascismo. Um deles é a lendária “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922; o outro é a suposta penetração eleitoral dos fascistas. Neste segundo aspecto, embora o número de adeptos e militantes do fascismo viesse aumentando de forma constante nos primeiros anos da década de 1920, chegando em maio de 1922 a aproximados 322 mil membros, o fascismo nunca se caracterizou por ser uma força eleitoral antes da tomada do poder. Pressionado entre os dois maiores partidos italianos da época, o PPI (Partito Populare Italiano, católico) e o Partido Socialista, representante dos trabalhadores urbanos e da nova intelligentsia, o movimento fascista teve que recorrer a alianças. Reiterando os argumentos enunciados pelos estudos de Robert Paris e Stanley Payne,4 Sassoon indica que foi a aproximação com liberais e nacionalistas de direita o elemento favorável ao crescimento do fascismo:

Em termos eleitorais, o fascismo não fora um grande sucesso. A primeira eleição de que participaram, em 1919, revelou-se um desastre. (…) Os fascistas saíram-se um pouco melhor na eleição de maio de 1921, mas só porque estavam integrados ao blocco nazionale de Giolitti, juntamente com liberais e nacionalistas de direita. Não se pode dizer que Mussolini fora levado irresistivelmente ao poder numa onda de apoio eleitoral (p. 18-19).

A superestimação da “marcha sobre Roma” também é alvo da crítica de Sassoon. Pontuada de fina ironia, a descrição do autor sugere que a linguagem de Mussolini e seus acólitos para justificarem a chegada ao poder pintava um quadro de sublevação e celebrava a violência revolucionária. Impressões falsas que se legitimaram através das duas décadas do regime, destroçando a lembrança de que Mussolini fora designado primeiro ministro dentro de um quadro de legalidade constitucional, malgrado a crise política e econômica atravessada pela Itália no início dos anos 1920.

Neste sentido, é sombrio constatar com Sassoon, que boa parte do programa preliminar fascista visando recuperar e estabilizar a Itália depois da tremenda crise gerada pela primeira guerra, tinha pontos assemelhados, para mais ou para menos, com alguns itens do conteúdo programático de correntes liberais e socialistas. O autor assinala que o programa dos fasci não era abertamente de direita, pois encampava uma série de reivindicações que fugiam aos programas nitidamente conservadores, como, por exemplo: extensão do sufrágio às mulheres, recuo da idade de voto para 18 anos, abolição do Senado, salário mínimo, jornada de trabalho de 8 horas, representação dos trabalhadores nas empresas, imposto sobre a riqueza, confisco de bens da Igreja, imposto especial sobre os lucros da guerra (p. 63-64).

Dois substanciais fatores combinados ajudam a explicar, segundo Sassoon, a razão de ter o poder caído nas mãos dos fascistas: os resultados insatisfatórios da primeira guerra, e as fragilidades históricas do sistema parlamentar italiano.

Considerada uma potência imperialista de segunda classe no começo do século XX, a Itália aderiu à primeira guerra como aliada de franceses e britânicos por injunções e pressões dos entusiastas intervencionistas a favor do conflito, e pela promessa de futuras compensações financeiras e territoriais estabelecidas pelo Tratado de Londres, assinado em 1915. Tão logo encerrado o conflito, produziu-se um descontentamento generalizado em razão de o verdadeiro espólio de guerra recebido estar muito aquém das expectativas italianas. Esta herança mal digerida pelos promotores da presença italiana no conflito foi resumida pelo poeta D’Annunzio em poema no qual aludia à “vitória mutilada”, e à humilhação sofrida por toda uma geração de jovens combatentes. Sassoon explicita que os beneficiários da guerra foram os grupos que formavam o grande triângulo industrial da Itália: Ansaldo (aço), Fiat (veículos), Pirelli (borracha). Enquanto a indústria italiana mostrava-se, como sempre, dependente do governo que era o seu principal comprador, o Estado se escorava nos bancos credores e nos impostos dos contribuintes para equilibrar seus orçamentos. Por seu lado, as associações de veteranos de guerra, além da construção de forte sentimento de comunidade, exigiam mais espaço político, e reconhecimento pelos sacrifícios que a experiência de violência e brutalidade de uma guerra tinham representado: “O número de baixas italianas na Grande Guerra foi muito alto: 650 mil mortos e um milhão de feridos” (p. 46).

Já, as debilidades do sistema parlamentar italiano são detectadas por Sassoon como algo enraizado na cultura política italiana, pelo menos, desde o processo de unificação na segunda metade do século XIX. Sem partidos fortes e estabelecidos, e com uma monarquia que pouco sensibilizava a audiência pública, o Estado italiano era, por conseguinte, um Estado fraco. O parlamento era basicamente uma arena em que os representantes dos interesses fundiários e os industriais entravam permanentemente em disputa em torno de cada lei ou medida financeira:

Da noite para o dia, adversários podiam ser transformados em aliados mediante suborno direto ou indireto – razão da designação pejorativa “transformismo” ser aplicada ao sistema. (…) Desenvolveu-se um sistema de “clientelismo”, no qual os políticos prometiam empregos aos eleitores e seguidores, proteção e um constante fluxo de dinheiro público. Esse tipo de proteção pessoal dificultou o desenvolvimento de partidos políticos modernos e centralizados (p. 71-72).

O avanço do fascismo foi projetado, justamente, nesse quadro crônico de crise social e política em desdobramento. As primeiras percepções sobre o que era o fascismo foram casuais, fortuitas, e críticos antifascistas do futuro próximo, como os líderes comunistas Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti apenas faziam menção breve sobre a violência dos fascistas, e, provavelmente, não viam nele, uma real possibilidade de vir a se tornar uma força política estável e candidata à governabilidade.

Através do emprego da violência, o fascismo foi gradativamente angariando adeptos nas zonas rurais e nas classes médias urbanas. Ao eleger o antiesquerdismo e o antisocialismo como fontes de todas as mazelas da Itália, Sassoon sublinha que o fascismo destruiu em pouco menos de dois anos a estrutura institucional do socialismo italiano. A uma velocidade que ninguém poderia ter previsto, descortinou-se aos proprietários de terras a perspectiva de ver o odiado sindicalismo rural liquidado por um movimento, o de Mussolini, que parecia mais capaz de representar suas aspirações de longo prazo: a defesa da propriedade privada, uma política externa nacionalista e a realização de obras públicas para fomentar a economia rural.

Ministros como o velho líder liberal Giollitti, e mais tarde Nitti, foram reiteradamente demonizados pagando o preço da excessiva concentração nas necessidades do setor industrial: “Relegados, os proprietários fundiários das províncias do norte e do centro contra-atacavam, tendo como arma principal os esquadrões do fascismo” (p. 103).

Sassoon reconhece que uma das grandes forças internas do fascismo foi seu expressivo contingente de jovens, sistematicamente propagandeado por Mussolini. Esta força também se materializou na base social do eleitorado fascista constituído por esmagadora maioria do sexo masculino. A juventude fascista enxergava a si como vanguarda imbuída de uma missão épica germinada na experiência dos conflitos, batalhas e da ruína da primeira guerra. Tal demografia juvenil, aliás, é fundamental para percebermos que a ideologia do fascismo, longe de ser difusa ou marcada pela assimetria, era sedutora por estabelecer fronteiras claras no discurso que reforçava as antinomias novo / velho, moderno / arcaico. O fascismo anunciava a construção do homem novo, apropriava-se das filosofias vitalistas e voluntaristas da época, opondo-se à direita tradicional, mais fiel aos valores conservantistas.

Sassoon pretendeu capturar o inusitado do acontecimento fascista a partir da cumplicidade construída pelo conjunto das elites italianas, que por sua posição de visceral antisocialismo preferiu fortalecer o que julgava ser um “mal menor”, e temendo por suas posições consolidadas em face de possíveis avanços de socialistas e comunistas, não aceitaria que a Itália fosse um espelho dos recentes acontecimentos na Rússia. Segundo o autor, essas elites pretendiam transformar Mussolini em “criatura”. As questões que as preocupavam eram a governabilidade e a “ordem pública”, e Mussolini, que pouco tempo antes era apenas uma figura secundária e inexperiente na cena política, num momento estratégico apareceu como o “instrumento” a garantir a tranquilidade dos industriais, não atrapalhar os proprietários rurais, apascentar os sindicatos.

O estudo de Sassoon nos esclarece que a ascensão de Mussolini ao posto de primeiro ministro se não foi recebida com entusiasmo por algumas correntes políticas que, naquele momento, comungavam de projetos aparentados com o fascismo, pelo menos, recebeu desses mesmos setores uma adesão implícita, tornando-os ainda mais cúmplices, seja por omissão deliberada, seja por engajamento escancarado: “Assim, quando Mussolini assumiu, ouviu-se um coro de aprovação, oscilando entre o franco entusiasmo (os nacionalistas e a direita em geral) e a aceitação resignada do fato como um mal necessário (os liberais)” (p. 145). Isto é, antes Mussolini, do que a esquerda.

Embora a conciliação com a Igreja tenha representado uma árdua tarefa para os fascistas, ela se realizou plenamente em fevereiro de 1929. Neste ano, o Estado italiano selou a paz com o Vaticano assinando a Concordata e pondo fim à “questão romana” que se arrastava desde a unificação nas décadas de 1860/70. O acordo reconhecia a soberania do Vaticano, estabelecia indenizações a serem pagas à Igreja pelas perdas sofridas em 1870, reconhecia o catolicismo como “religião de Estado”, determinava o ensino da doutrina católica em todas as escolas oficiais: “Não surpreende que o papa Pio XI considerasse Mussolini o homem ‘que a Providência nos enviou'” (p. 152).

A contínua rediscussão do fenômeno fascista seja como evento historicamente localizado, ou como “grande unidade de análise”, como bem posicionou Francisco C. Teixeira da Silva,5 encontra no estudo de Donald Sassoon um respaldo bibliográfico e metodológico de inegável contribuição. A partir de suas análises, os estudiosos motivados pelo tema podemos localizar hipóteses de trabalho, e insights reflexivos para (re) construir discursos derivativos e / ou elementos comparativos do fascismo. Além do que, podem-se estabelecer pontos de contato entre as múltiplas clientelas filofascistas que agem na cenografia política da contemporaneidade. Não obstante, sobre o fascismo, ou em relação ao que vem sendo chamado de neofascismo, devemos guiar-nos sempre pelas dúvidas e desconfianças quanto aos modelos teóricos que fecham a questão sobre os setores supostamente restritos que abraçam unicamente uma das possíveis tendências do fenômeno.

Notas

1 Dentre os fatores que o autor cita como potentes inibidores dos fascismos estão: 1) a democracia liberal consolidada em toda Europa ocidental; 2) a União Européia, cuja exigência de democracia é um pré-requisito para a entrada dos países pretendentes. Cf. MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

2 Cf. DE FELICE, Renzo. Mussolini il rivoluzionario 1883-1920. Turim: Einaudi, 1965. Cf. _____. Mussolini il fascista. La conquista del potere 1921-1925. Turim: Einaudi: 1966.

3 Renzo de Felice também alude a certa inércia intelectual relacionada às três interpretações que se cristalizaram a partir da década de 1920: a liberal, a radical e a marxista. Essa cristalização teria impedido que os estudos a respeito do fascismo não somente deixassem de avançar para novos problemas, como também teria gerado posições acomodatícias por satisfazer adeptos das três correntes, num período marcado pela extrema ideologização da cultura política. Cf. DE FELICE, Renzo. Explicar o fascismo. Lisboa: Edições 70, 1977.

4 Cf. PARIS, Robert. As origens do fascismo. Tradução de Elisabete Perez. São Paulo: Perspectiva, 1993. Cf. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Traductor: Fernando Santos Fontela. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

5 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os fascismos. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste. (Orgs.). O século XX. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. 4. ed. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Marcos Gonçalves – Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas – Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá – FAFIPAR – Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – 83203-280 – Paranaguá – PR – Brasil. E-mail: paideia_mg@yahoo.com.br.