Il regno e il giardino – AGAMBEN (V)

AGAMBEN, Giorgio. Il regno e il giardino. Vicenza: Neri Pozza, 2019. Resenha de: GOMES, Ana Suelen Tossige; MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Entre dois paraísos: a nova arqueologia filosófica de Giorgio Agamben. Veritas, Porto Alegre, v. 65, n. 1, p. 1-6, jan.-mar. 2020.

O mais novo livro de Giorgio Agamben – Il regno e il giardino – publicado recentemente pela Neri Pozza, vem incrementar as incursões do filósofo italiano na teologia cristã, demonstrando uma vez mais como o poder ocidental pode ser lido, arqueologicamente, a partir de paradigmas teológico-políticos. A obra é dividida em seis capítulos que se comunicam pelas analogias operadas em torno do tema central investigado, o qual é lido desde a literatura teológica tardo-antiga e medieval (e alguns de seus críticos heréticos), até a Divina Comédia de Dante, passando por lampejos de história da arte e de filosofia política.

Combinando a figura edênica do jardim – do paraíso terrestre – com aquela do reino – tema central do tão conhecido Il regno e la gloria (2007) –, Agamben reconstrói um paradigma que, ainda que já estivesse presente na reflexão teológica, “foi relegado às margens pela tradição ocidental”, qual seja, o paradigma do jardim do Éden (AGAMBEN, 2019, p. 10).

Agamben inicia seu percurso a partir da interpretação de Wilhelm Fraenger acerca do sentido contido no tríptico de Jheronimus Bosch – O jardim das delícias –, pintura que está na capa da primeira edição do livro (em detalhe). A interpretação dada pelo estudioso alemão considera que Bosch teria elaborado tal obra de arte no contexto da heresia do Livre Espírito, a qual professava que “a perfeição espiritual coincidia com o advento do Reino e com a restauração da inocência edênica da qual o homem gozara no paraíso terrestre”. Fraenger chama a pintura central do tríptico de O reino milenar em vez de O jardim das delícias, pois associa o reino à morada de Adão no paraíso terrestre, entrelaçando, dessa maneira, reino e jardim (AGAMBEN, 2019, p. 9-10).

O termo paraíso teria aparecido pela primeira vez em Xenofonte que, por meio de um neologismo grego-iraniano, toma do avéstico a palavra pairideza, que significa “amplo jardim fechado”, murado. Assim, a palavra “paraíso” teria origem propriamente na ideia de jardim, e daí a razão pela qual as traduções bíblicas, desde a Septuaginta, optarem por paradeisos. O Éden é traduzido também não apenas como o nome do lugar, mas como tryphe, isto é, delícia. E talvez esteja aí, nos aponta Agamben, o motivo pelo qual o grande doutor da Igreja, São Jerônimo, tenha traduzido Éden por voluptas.

Há certo processo, contudo, que opera uma transformação radical na interpretação do paraíso: de lugar da delícia e da justiça originária ele passa a ser visto como o lugar da queda, do pecado e da corrupção. E essa interpretação será decisiva para o paradigma do jardim e para a noção a ele atrelada, tão importante para a cultura ocidental, que é a de natureza humana. No Gênesis a questão primordial passa a ser não o jardim, mas a expulsão do homem dele. Tendo sido expelido de sua morada específica – o jardim –, o homem perde o seu lugar originário, o seu habitat. Por isso ele é o ser vivente que “se encontra pela Terra duplamente peregrino: não somente porque sua vida eterna será no paraíso celeste, mas também e sobretudo porque ele foi exilado da sua pátria edênica” (AGAMBEN, 2019, p. 17-19).

O paraíso outrora uno e benigno, aparece então dividido em paraíso terrestre (perdido para sempre) e paraíso celeste (distante e futuro). E esse “traumatismo originário” traz sequelas profundas para a cultura cristã e moderna, à qual importa menos o paraíso em si do que a perda do paraíso por parte do homem. Daí o porquê de a expulsão do paraíso assumir o lugar de mitologema central na gênese cristã, tornando-se o “evento determinante da condição humana e o fundamento da economia da salvação” (AGAMBEN, 2019, p. 17-19).

Tal deslocamento semântico no paradigma do jardim não teria sido possível sem a presença de certos dispositivos teológicos. Dentre eles, Agamben (2019, p. 21) elenca como sendo “o mais implacável” de todos aquele do pecado original, pois é ele que condena a natureza humana a uma corrupção impossível de ser expurgada. Com a doutrina do pecado original, levada a cabo especialmente por Agostinho, o ser humano passa a ser visto como uma existência desde sempre já culpada, pois até mesmo o mais inocente dos infantes carrega consigo a mácula do pecado original, transmitido geneticamente pelo seu primeiro ancestral, Adão. Na visão de Agostinho, apenas por meio da graça o homem pode alcançar a salvação. E com isso o filósofo da Igreja acaba opondo natureza e graça: o homem será sempre pecador, mas por meio da graça transmitida pelos sacramentos ele pode se salvar. O catolicismo torna-se, desse modo, condição essencial para sua (futura) vida eterna no paraíso.

Será um herético como Pelágio que colocará em questão esse dualismo. Segundo sua teologia, a graça seria exatamente a possibilidade de não pecar, um dom que o ser humano teria recebido de Deus e que decorreria do livre arbítrio. Seria, portanto, algo inerente à natureza humana, e essa, por sua vez, derivando daquele que a criou, não poderia ser privada de graça, pois seria algo “‘que pertence propriamente a Deus’” (AGAMBEN, 2019, p. 32-33). Enquanto para Pelágio a alma humana conserva a possibilidade de não pecar, permanecendo dessa maneira em relação com a justiça originária que possuíra no paraíso terrestre, para Agostinho se trata de extirpar qualquer ligação com a justiça edênica. Pois, se o próprio Agostinho dizia em De Genesi ad litteram que os fatos descritos em Gênesis deveriam ser interpretados em sentido próprio, literal, e não em sentido alegórico, admitir a possibilidade de não pecar no homem implicaria aceitar que o jardim – um lugar físico real na Terra – poderia ser a qualquer momento reatualizado. Contudo, o paraíso terrestre deve permanecer, segundo Agostinho, para sempre vazio, a fim de que se mantenha exclusivamente a promessa de um paraíso celeste, destinado aos eleitos (AGAMBEN, 2019, p. 42-46).

Embora a doutrina agostiniana do pecado original tenha se imposto de modo dominante no pensamento medieval, este também contou com a presença de vozes dissonantes que não entendiam a natureza humana como maculada pelo pecado. Exemplos disso são Escoto Erígena e o grande filósofo-poeta Dante Alighieri. O primeiro, negava qualquer divisão entre natureza (vida) e alma, fisiologia e psicologia, compreendendo a alma como una e indivisível. E, ainda, entendia o paraíso não como um lugar real, mas como a própria natureza humana (AGAMBEN, 2019, p. 60). Dante, por sua vez, teria descrito a divina floresta como uma alegoria do paraíso terrestre, no qual o exercício da virtude – a felicidade – coincide com o “uso da coisa amada”, isto é, coincide com um ato de amor. Por isso o paraíso terrestre para Dante – figura da beatitude terrena e da felicidade – é também o lugar da justiça original da natureza humana (AGAMBEN, 2019, p. 70-72).

Como aduz Agamben, o tema do paraíso terrestre em Dante é na verdade uma profecia acerca da liberdade do homem, discussão presente em toda a obra dantesca: “a ‘divina floresta espessa e viva’ é, desse modo, para Dante, uma profecia que concerne à possível salvação do homem per arbitrii libertatem, até alcançar aqui e agora aquela beatitude, que consiste ‘no uso da coisa maximamente amada’” (AGAMBEN, 2019, p. 85). Assim, a doutrina do paraíso terrestre como figura dessa beatitude contradiz a tese escolástica, reafirmada por Tomás de Aquino, de que não é possível para o homem nesta vida a felicidade.

Em questão nas discussões sobre o paraíso terrestre sempre esteve o problema da natureza humana. Há uma vez mais aqui, como nos diz Agamben, uma cisão, uma bipartição, que divide natureza humana e graça, de modo semelhante a outras passagens de sua obra, presentes sobretudo na série Homo sacer, nas quais o filósofo italiano revela, arqueologicamente, a função de díades, tais quais: reino e governo, zoé e bíos, nómos e anomia etc. Ambos os termos – natureza humana e graça – pressuporiam e remeteriam um ao outro, mas a natureza humana, como um resto, existiria apenas enquanto algo separado da graça. Daí a afirmação dos teólogos de que a graça seria como uma veste e, por isso, “Adão e Eva antes do pecado não se davam conta da sua nudez, não por inocência, mas porque ela era recoberta de uma veste de graça” (AGAMBEN, 2019, p. 92). Nesse processo, o dispositivo que manteria unidos natureza e graça seria o pecado, pois a natureza definir-se-ia apenas como o que resta depois do homem ter sido despido da graça. Na mesma perspectiva, sendo algo não natural, a graça afirmar-se-ia somente no seu não mais existir, por obra do pecado. Por isso Agamben afirma que “o verdadeiro sentido da doutrina do pecado original é aquele de dividir a natureza humana e de impedir que nela natureza e graça possam coincidir nesta vida. Como é evidente no título do tratado antipelagiano de Agostinho, ‘natureza’ e ‘graça’ não são outra coisa senão dois fragmentos que resultam da cisão operada pela transgressão adamítica” (AGAMBEN, 2019, p. 96). O dispositivo teológico separa o âmbito da vida do homem dos atos que ele pode realizar naturalmente. “E o faz não retirando, mas adicionando algo: a graça, de modo que, uma vez que ela tenha sido subtraída por meio do pecado, a vida e as ações humanas se transformam em pura naturalia, marcadas por lacunas e defectividade”. Ou seja, a aporia consiste na invenção da graça (como algo divino, não intrínseco à natureza humana) e na sua contemporânea exclusão pela existência do pecado. Desse modo, conforme o modus operandi da exceção, a graça é incluída e imediatamente excluída, o que faz com que a própria natureza do homem se torne, então, insuficiente (AGAMBEN, 2019, p. 100).

Nesse sentido, se voltarmos nosso olhar para os pensamentos de Erígena e Dante, veremos que eles contestam radicalmente tal doutrina. Para Erígena, Deus criou o homem no gênero animal porque quis criar nele toda a natureza: ele é em todos os animais e todos estes são no homem (AGAMBEN, 2019, p. 101). De modo semelhante, mas em tons políticos, o que é punido na Divina Comédia de Dante não é a natureza, mas as ações humanas. A natureza, segundo Dante, é – em Cristo – inocente e livre e, portanto, permanece incorruptível. Por isso, em sua visão, contrastante com a teologia escolástica e com Tomás de Aquino,2

2 Como afirma Agamben (2019, p. 101-102), tendo em vista essa posição de Dante, torna-se contraditório interpretar sua obra por meio de Tomás de Aquino e da teologia escolástica, como é feito pela tradição, pois “o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos”.o homem pode sempre reentrar no jardim, e ali encontrar Matelda, a figura do amor, da beatitude, da felicidade e da justiça original, que podem se realizar no paraíso terrestre. No sexto e último capítulo do livro o tema que retorna à discussão agambeniana é aquele do reino. Já estudado em seu Homo sacer II,2 Il regno  e la gloria – sob a chave da economia teológico-política trinitária, o tema do reino é agora tratado em sua relação com as teorizações sobre o paraíso.

O teólogo espanhol Suárez fez indagações sobre como seria a condição humana na hipótese de Adão não ter pecado, questionando, por exemplo, como se daria a reprodução humana no estado de inocência e como os homens governar-se-iam – a si mesmos e ao mundo ao seu redor – nessa condição. Interessa particularmente a Agamben o segundo ponto, o qual foi trabalhado por Suárez com fortes influências aristotélicas. Se a comunidade doméstica, dizia o teólogo, deve existir naturalmente em estado de inocência, como pensar a existência de uma sociedade política em um lugar em que não há inimigos e a família basta a si mesma para suprir suas necessidades? Em consonância com a Política de Aristóteles, contudo, Suárez afirma que em algum momento deveria surgir uma sociedade política, porque “a união dos homens em um Estado não acontece somente por acidente ou pela corrupção da natureza, mas convém aos homens em qualquer condição e concerne à sua perfeição” (AGAMBEN, 2019, p. 104).3

.Tal união traz a necessidade de se justificar certo tipo de governo, baseado em uma situação de domínio do homem sobre o homem. Todavia, na condição paradisíaca tal não implicaria o domínio proprietário tampouco a escravidão, mas apenas o domínio de jurisdição. Do mesmo modo que o homem dos tempos medievais tinha o poder de governo sobre sua esposa, seria necessário um governante – tal qual um príncipe – para guiar os súditos. Esse poder de governo não derivaria do pecado; ele seria intrínseco à natureza da comunidade, e estaria presente, portanto, seja no estado de inocência, seja no estado de corrupção. Sujeitar-se a esse governo não faria com que os súditos fossem privados do livre arbítrio, mas consistiria, na verdade, em “uma condição perfeita de vida” (AGAMBEN, 2019, p. 104-105).

A questão que Agamben coloca aqui é saber se o paraíso terrestre constitui um paradigma político para os teólogos da cristandade, especialmente, neste caso, para o referido Suárez. A resposta do filósofo italiano a tal pergunta é negativa. No entanto, ele ressalva que “uma antiga tradição, que os teólogos não podiam ignorar, tinha colocado em relação o paraíso terrestre com o conteúdo fundamental do anúncio evangélico: a basileia tou theou, o Reino de Deus” (AGAMBEN, 2019, p. 106). Nesse sentido, em duas das três passagens em que o termo “paraíso” aparece no Novo Testamento, ele é relacionado ao reino. Como aponta Agamben (2019, p. 107-108): “quando (em Lucas, 23, 42) o malfeitor crucificado ao seu lado lhe disse: ‘Recorda-te de mim quando ireis ao teu Reino (eis basileian sou)’, Jesus responde: ‘Hoje estarás comigo no paraíso (en toi paradeisoi)’”, reino e paraíso aparecem quase como sinônimos. E, ainda, “em Apocalipse, 2, 7, o Espírito anuncia que ‘ao vitorioso’ – isto é, àquele que tendo superado a prova escatológica, pode entrar no Reino eterno – ‘farei comer da árvore da vida que está no paraíso de Deus’”, novamente o paraíso vem ao lado do reino. Entretanto, podemos acrescentar à discussão agambeniana o fato de que tais passagens tratam do reino como sinônimo de paraíso, mas não remetem ao paraíso terrestre. Falam, na verdade, de um paraíso extramundano. Nesse sentido, quando, por meio da voz de outro evangelista, Jesus Cristo diz que “meu reino não é deste mundo” (João, 18, 36), a interpretação do reino como sinônimo de paraíso não se afasta da exegese dos teólogos escolásticos, reafirmando a ideia de que há um paraíso celeste que não coincide com o jardim edênico.

Depois de tal aproximação, Agamben dirá que não é de se espantar o fato de que “no silêncio dos teólogos sobre o assunto, movimentos religiosos chamados de heréticos (desde o Livre Espírito que teria inspirado o tríptico de Bosch) tenham identificado o paraíso terrestre com o Reino”. E afirma ainda que entre os primeiros padres da Igreja, “a relação apresentada entre Jardim e Reino é semelhante à tradição apocalíptica hebraica (de um reino terreno que precede o fim dos tempos)” (AGAMBEN, 2019, p. 108). A explicação de Ireneu, por exemplo, afastaria a contradição de que o paraíso celeste – o reino eterno de que trata o Novo Testamento – seria diverso daquele terrestre, pois segundo a sua teologia do reino “a beatitude temporal sobre a Terra deve preceder à beatitude eterna”. Nesse sentido, o reino seria “necessário porque os homens devem reencontrar na sua própria condição terrena aquela felicidade da qual foram nela mesma privados” (AGAMBEN, 2019, p. 110-111). No entanto, nos diz Agamben, a teologia do reino de Ireneu e dos primeiros padres teria sido eliminada progressivamente com o reforçar-se da institucionalidade da Igreja. Ocorre, então, “uma negação do reino terreno”,que coincide com “a exclusão da restauração da condição paradisíaca” (AGAMBEN, 2019, p. 113).

Assim também, neutralizando a ideia de um reino milenar que, próximo ao reino messiânico hebraico, desconhece uma separação entre o porvir e o tempo de agora, grandes padres da Igreja como Agostinho acabam por inaugurar um único tempo histórico, o qual torna possível a existência da historiografia cristã (AGAMBEN, 2019, p. 115-116). Com isso, impedem qualquer aproximação com a tradição messiânica, para a qual o reino que está por ser instaurado é já presente no aqui e no agora. Agamben não deixa de notar, nesse sentido, que o mesmo Evangelho que anuncia a presença imediata do reino sobre a Terra, o relega a um tempo por vir. O reino aparece como a atualidade dos atos de Cristo neste mundo, ao mesmo tempo em que é apresentado como escathon, ou seja, o tempo último (AGAMBEN, 2019, p. 117).

Perpassando outras analogias, a conclusão a que chega o filósofo ao final do livro é que paraíso terrestre e reino são duas realidades que se originam da tentativa dos teólogos em pensar a natureza humana e a sua possível beatitude. Ambos – paraíso e reino – cindem-se em um elemento pré-histórico, que seria o Jardim do Éden, e um elemento pós-histórico, o Reino, os quais, permanecendo separados e incomunicáveis, são inacessíveis ao homem. O jardim, enviado a um arqui-passado, é desde sempre inatingível, ao passo que o Reino projetado para o futuro coincide com o reino dos céus. Mas, como nos diz Agamben (2019, p. 120), Contra essa separação forçada dos dois polos, é necessário recordar, com os quiliastas e com Dante, que o Jardim e o Reino resultam da cisão de uma única experiência do presente, e que no pre­sente eles podem, portanto, se reunir. A felicidade dos homens sobre a Terra é tensionada entre esses dois extremos polares. E a natureza humana não é uma realidade preexistente e imperfeita, que deve ser inscrita por meio da graça em uma economia da salvação, mas é o que aparece toda vez aqui e agora na coinci­dência – isto é, no cair juntos – de Paraíso e Reino. Só o Reino dá acesso ao Jardim, mas só o Jardim torna pensável o Reino. Ou seja: acessa-se a natureza humana só historicamente através de uma política, mas esta, por sua vez, não tem outro con­teúdo que o paraíso – que, nas palavras de Dante, é “a beatitude desta vida”.

Esse conteúdo nada mais é do que a felicidade. Assim, a questão que se abre ao final do livro é sobre esse meio (ou, melhor dizendo, esse meio-sem-fim) da política, cujo conteúdo não se diferencia da “beatitude desta vida”, isto é, da felicidade. Reconectam-se, dessa maneira, temas caros ao autor, a exemplo da política como forma-de-vida, vislumbrada sob as figuras do reino e do jardim. O esquecimento do jardim – enquanto paraíso terreno – e a preponderância do reino demonstram, assim, o modo paradigmático com que o Ocidente tem pensado a política: uma política teleológica direcionada a uma prometida “paz perpétua” vindoura, mas que só pode chegar com a morte, com a negação da vida. Pensar diversamente, reinterpretando os Evangelhos e refletindo já talvez em termos de uma teologia política radical,5 significa abrir-se à possibilidade sempre latente de que o paraíso, que nada mais é que um “cair juntos” de jardim e reino, está desde sempre aqui. Basta que, em tons benjaminianos, modificando-se esta ou aquela coisa, ele seja habitado, e as delícias do corpo-alma possam definitivamente se fundir

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Il regno e il giardino. Vicenza: Neri Pozza, 2019.

AGAMBEN, Giorgio. Il regno e la gloria. Per una gene­alogia teologica dell’economia e del governo. Milano: Neri Pozza, 2007.

ARISTÓTELES. “Política” [Capítulo I, Livros I e II]. Trad. José Oscar de Almeida Marques. Departamento de Filosofia, IFCH-Unicamp [Online]. Disponível em: www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/politica.doc. Acesso em: 28/06/2017 BÍBLIA. Vol. I. Novo testamento: os quatro evange­lhos. Trad. do grego, apresentação e notas Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal, 2016.

BÍBLIA. Vol. II. Novo testamento: apóstolos, epístolas, apocalipse. Trad. do grego, apresentação e notas Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal, 2017.

GOMES, Ana Suelen Tossige; MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Da unidade/diferença à mo­dalidade: a arqueologia da ontologia no pensamento de Giorgio Agamben. Kriterion, Belo Horizonte, v. 59, n. 141, pp. 651-670, set/dez 2018. https://doi.org/10.1590/0100-512x2018n14101astg MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Repre­sentação política contra democracia radical: uma arqueologia (a)teológica do poder separado. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.

Notas

2 Como afirma Agamben (2019, p. 101-102), tendo em vista essa posição de Dante, torna-se contraditório interpretar sua obra por meio de Tomás de Aquino e da teologia escolástica, como é feito pela tradição, pois “o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos”.

3 Afirmação em consonância com a máxima aristotélica segundo a qual a melhor realidade possível para uma comunidade, a comunidade política – a cidade – é o télos para o qual ela se direciona. Cite-se: “Portanto, se as primeiras comunidades são um fato da natureza, também o é a cidade, porque ela é o fim daquelas comunidades, e a natureza de uma coisa é o seu fim: aquilo que cada coisa se torna quanto atinge seu completo desenvolvimento, nós chamamos de natureza daquela coisa, quer se trate de um homem, de um cavalo ou de uma família. [1253a] Além disso, a causa final e o fim (télos) de uma coisa é o que é o melhor para ela; ora, bastar-se a si mesma é, ao mesmo tempo, um fim e um bem por excelência. Essas considerações tornam evidente que a cidade é uma realidade natural e que o homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon)” (ARISTÓTELES. “Política” [Capítulo I, Livros I e II]. Trad. José Oscar de Almeida Marques. Departamento de Filosofia, IFCH-Unicamp [Online]. Disponível em: www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/politica.doc. Acesso em: 28 jun. 2017)

4 Tal como se vê da obra de Tertuliano, De ressurrectione (AGAMBEN, 2019, p. 112-113).

Ana Suelen Tossige Gomes – Mestra e doutoranda em Direito e Justiça pela Facul­dade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais, com período de Doutora­do-Sanduíche na Scuola Normale Superiore di Pisa (2018/2019) com bolsa da CAPES. Bolsista CAPES. Autora do livro O direito no estado de exceção efetivo (Belo Horizonte, D’Plácido, 2017).

Andityas Soares de Moura Costa Matos – Doutor em Direito e Justiça pela Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil) e Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona (Catalunya), com bolsa da CAPES. Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Professor Associado de Filosofia do Direito e disciplinas afins na Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG. Professor Visi­tante na Facultat de Dret de la Universitat de Barcelona entre 2015 e 2016. Professor Residente no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT/UFMG entre 2017 e 2018. Mais artigos em: https://ufmg.aca­demia.edu/AndityasSoares. Endereço para correspondência: Ana Suelen Tossige Gomes/Andityas Soares de Moura Costa Matos Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Direito Av. João Pinheiro, 100; Centro, 30130-180 Belo Horizonte, MG, Brasil

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A aventura – AGAMBEN (SO)

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Sofia, Vitória, v.8, n.2, p.232-236, jul./dez., 2019.

A tradução das obras de Giorgio Agamben (1942) para o idioma português é significativa para o avanço dos estudos acerca do pensamento desse filósofo contemporâneo que se põe a discutir temas de filosofia, religião, política, direito, economia, cultura. A diversidade temática, característica que perpassa as obras de Agamben, implica possíveis diferentes matizes através das quais se pode aproximar e abordar suas obras: elas não são um domínio exclusivo da filosofia, sendo discutidas também pelas ciências sociais e pelos braços que delas derivam, pela ciência da religião e pela teologia, pela ciência política e pelo direito. Isso é possível porque o conteúdo trazido por Agamben está vinculado à interpretação dos problemas contemporâneos, que, por sua vez, exigem distintas abordagens para que sejam compreendidos em sua integralidade. A aventura ( L’avventura ), obra originalmente publicada na Itália em 2015, não foge a essa caracterização geral.

Trazendo como tema central a aventura, a obra está organizada em cinco capítulos, seguidos de um posfácio, próprio da tradução brasileira, assinado por Davi Pessoa. Aventurar-se : esse é o título do posfácio, que, de acordo com nossa perspectiva, deveria ser a primeira parte da obra a ser lida por dois motivos. Primeiro, ele situa o leitor quanto à arqueologia, método muito caro a Agamben e utilizado pelo autor em uma perspectiva particular. A adequada compreensão da metodologia de investigação implica uma leitura menos propensa a equívocos interpretativos e, além disso, mostra que o método arqueológico não é utilizado na investigação do passado pelo passado, pois para o filósofo importa fazer confluir passado e presente. Conforme indica Pessoa, é preciso “saber viver o embate entre presente e passado para desativar as amarras do chronos , produzindo uma transformação por dentro da temporalidade linear através do uso errático do anacronismo” (PESSOA, 2018, p. 70). Segundo, o posfácio mostra que A aventura não é uma obra sobre um tema aleatório: justifica-se a realização de uma arqueologia da aventura no contexto das investigações de Agamben já publicadas. Esse é outro mérito do posfácio: trazer, mesmo que brevemente, outras obras de Agamben para mostrar a relevância de uma abordagem sobre o tema da aventura. Aí são citadas Signatura rerum: sobre o método (Boitempo, 2019), Ideia da prosa  (Autêntica, 2012) e Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Ed. UFMG, 2012). O posfácio ainda faz notar que ao tema da aventura está implícito o da história e o da linguagem, logo, o do surgimento do homem enquanto ser falante e histórico. Ao tema da aventura, então, está vinculado o da antropogênese, que, por sua vez, interessa a cada humano particularmente, pois diz respeito à sua condição de vivente. O posfácio, assim, traz e faz uma adequada introdução à obra no contexto que lhe é próprio.

Demônio : esse é o título do primeiro capítulo. Conforme indica a nota de tradução, o termo original utilizado por Agamben é demone , que, em italiano, guarda uma relação com o termo grego daímon . Note-se, então: a relação aqui pretendida é com a tradição grega e com o significado de daímon , que denota o caráter divino (transcendente) de um chamamento, tal qual acontece com Sócrates, por exemplo. Mantendo essa relação com um aspecto divino/transcendente, Agamben inicia sua obra fazendo menção às Saturnais de Macróbio e para o fato de que nelas se narra um banquete onde uma das personagens atribui aos egípcios a crença de que o nascimento de cada homem é presidido por quatro divindades: Daimon (Demônio), Tyche (Sorte), Eros (Amor) e Ananche (Necessidade). Cada homem, em vida, deve pagar o seu tributo a cada uma dessas divindades e “o modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética” (AGAMBEN, 2018, p. 12). É a essas divindades que Goethe, em Palavras originárias ( Urworte ) (1817), tenta pagar seu débito, acrescentando-lhes uma quinta: Elpis (Esperança). A leitura aí realizada por Agamben mostra que Goethe paga seu tributo somente a uma divindade, Daimon . O poeta tem consciência de sua fuga frente à responsabilidade de pagar tributo a cada uma das divindades e, por isso, acrescenta uma quinta, Elpis , que, de acordo com Agamben, nada mais é do que um disfarce de Daimon . Assim, Goethe mantém-se fiel a uma única divindade e espera dela a salvação. O capítulo se conclui com uma citação a um aforismo de Hipócrates no qual se encontram cinco palavras-chave: vida ( bios ), arte ( techne ), ocasião ( kairos ), experiência ( peira ) e juízo ( krisis ). De acordo com Agamben, essas cinco palavras guardam uma “secreta correspondência” com as divindades de Macróbio e Goethe. Aí está em “jogo a breve aventura da vida humana” (AGAMBEN, 2018, p. 23).

Aventure (em francês): esse é o título do segundo capítulo. Aqui Agamben recorre à literatura trovadoresca para falar da aventura, o que torna A aventura próxima de uma das primeiras publicações de Agamben, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG, 2007). Tal proximidade se nota, sobretudo, pela lida com obras de poetas trovadores, revelando, assim, sua importância para o pensamento de Agamben como um todo. É nesse capítulo que se inicia propriamente uma arqueologia da aventura. Trata-se, porém, não de uma arqueologia cronológica, mas kairológica, pois o que interessa ao autor é ir em direção à origem da palavra na condição de evento. Para tanto, importa compreender duas identificações realizadas ao longo do capítulo. A primeira é entre cavaleiro e poeta: a procura daquele por aventura é a mesma deste. O poeta, assim, narra-se no poema. Dessa maneira, não é possível pensar a aventura sem pensar na implicação de um “eu”. Não se trata, porém, de tomar a aventura como um objeto contraposto ao sujeito: não há antecedência de um ou outro aqui, tampouco a identificação do “eu” com um “sujeito”. A partir dessa primeira identificação, Agamben afirma: “a aventura é para o cavaleiro [logo, para o poeta] tanto encontro com o mundo quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto” (AGAMBEN, 2018, p. 29). A segunda identificação é entre evento e narração: o que se escreve é a narrativa, mas esta coincide com a aventura histórica, de tal modo que “aventura e palavra, vida e linguagem se confundem” (AGAMBEN, 2018, p. 32).

É com o exemplo de um poema de Maria de França que Agamben prossegue a arqueologia kairológica da aventura. O que aí surge em palavra é aventura e, ao mesmo tempo, verdade: verdade não no sentido apofântico da lógica, isto é, como coincidência entre evento e narrativa, mas verdade como advir. Assim, “aventura e verdade são indiscerníveis, porque a verdade advém e a aventura não é senão o advir da verdade” (AGAMBEN, 2018, p. 34). Outro exemplo por ele utilizado é o da identificação da aventura com uma mulher, Frau Âventiure : aqui a intenção de Agamben é fazer notar que a aventura não é algo que preexiste à história narrada. A aventura é a narrativa e está viva nela e através dela, sendo, por isso, o próprio evento da palavra. Se há uma identificação notável entre evento e narrativa, então a aventura não pode ser somente um termo poetológico, mas deve também possuir um significado ontológico: “se o ser é a dimensão que se abre para os homens no evento antropogênico da linguagem, se o ser é sempre algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (AGAMBEN, 2018, p. 38). O final do segundo capítulo aponta para uma interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger que será levada a cabo no quarto capítulo.

O terceiro capítulo — Eros — inicia-se com uma advertência: antes de tentar definir essa experiência do ser, deve-se “limpar o terreno das concepções modernas da aventura, que correm o risco de obstruir o acesso ao significado originário do termo” (AGAMBEN, 2018, p. 39). Essa advertência servirá de guia para os apontamentos críticos que Agamben irá fazer a respeito da concepção de aventura de Hegel, Georg Simmel e Oskar Becker, tidas por ele como concepções modernas, nas quais se encontra “a ideia de que ela [a aventura] seja algo estranho — e, portanto, excêntrico e extravagante — com relação à vida ordinária” (AGAMBEN, 2018, p. 41). O capítulo se encerra com uma crítica a Dante Alighieri: para este autor do medievo a vida do homem não é algo como uma aventura. Isso, de acordo com Agamben, significa uma traição consciente do sentido próprio do termo no período medieval, ou seja, ao não utilizar a aventura para narrar as experiências vividas pelos cavaleiros, Dante está afirmando que a vida não é tal qual a aventura. É a isso que Agamben se contrapõe, mostrando, assim, que a sua concepção é mais próxima dos poemas dos trovadores, onde há identificação de vida e aventura, do que dos modernos, onde a aventura é algo excêntrico.

O quarto capítulo — Evento — é onde Agamben apresenta a sua ideia do que seja aventura. Deve-se notar aqui a importância do segundo capítulo para que o quarto seja bem compreendido: estando mais próxima da concepção de aventura das trovas medievais, a ideia de aventura agambeniana não se identifica com elas, porém. Os apontamentos críticos do terceiro capítulo servem de baliza para a posição assumida por Agamben: nem medieval, nem moderna, mas em diálogo com ambas. Para compreender a sua posição é preciso estar atento a dois pontos característicos desse capítulo. Primeiro: a aventura sempre se dirige a um quem , que, por sua vez, não preexiste à aventura como um sujeito. Para Agamben, a aventura é o que se subjetiviza. Disso decorre a afirmação de que “eu”, “tu”, “aqui” e “agora” são categorias de locução e não categorias lexicais, isto é, são categorias que não podem assumir/possuir uma definição prévia definitiva. O evento, assim, é sempre evento de linguagem e a aventura se torna indissociável da palavra que a anuncia. Há, de fato, uma proximidade entre evento, aventura e linguagem. Por isso, a aventura/evento não exige uma decisão/escolha, logo, nela não há um problema de liberdade. É só assim que o vivente pode se apropriar do evento, ou melhor, ser apropriado por ele. Essa é uma tese que Agamben busca em Heidegger, seu principal interlocutor nesse momento da obra: o homem não possui a linguagem, mas a linguagem o possui. O homem serve-lhe de morada. A interlocução com Heidegger é o segundo ponto característico desse capítulo. Afirmando a ocorrência simultânea de apropriação de ser e homem que acontece no evento/aventura, Agamben coloca em questão o tornar-se humano do homem vivente: “o vivente se torna humano no instante e na medida em que o ser lhe advém” (AGAMBEN, 2018, p. 57). O evento/aventura é antropogênico e ontogênico, pois nele coincide o tornar-se falante do homem com o advento do ser à palavra e da palavra ao ser. Há aí uma analogia entre aventura e Ereignis , termo chave do pensamento tardio de Heidegger. Agamben, na verdade, chega a sugerir que a tradução mais adequada de Ereignis é aventura, deflagrando, com isso, seu aspecto ontológico.

A aventura tem a ver, então, com um vivente tornar-se humano, isto é, falante, o que guarda relação direta com duas obras de Agamben, a saber, O aberto: o homem e o animal (Civilização Brasileira, 2017), na qual o que está em jogo é como o homem se diferencia do animal, e Ideia da prosa (Autêntica, 2012), na qual o tema central é a linguagem e a sua indissociabilidade do pensamento. Descobre-se, desse modo, o que está em causa em A aventura : o evento antropogênico, que, em si, “não tem história e é, como tal, inapreensível” (AGAMBEN, 2018, p. 60). Esse é o principal resultado da arqueologia kairológica: como não pode ser definido definitivamente, o evento antropogênico (e ontogênico) é sem história .

Elpis : esse é o título do quinto capítulo. Aqui o autor volta a falar do significado de Demônio e, com isso, regressa ao ponto inicial da obra, fechando-a tal qual um círculo. Já não fala mais de Goethe, mas o exemplo lá utilizado pode ser aqui percebido nas entrelinhas. Por isso, interessa entender a importância do manter-se fiel ao demônio: “o demônio é a nova criatura que as nossas obras e a nossa forma de vida colocam no lugar do indivíduo que acreditávamos ser segundo nossos documentos de identidade” (AGAMBEN, 2018, p. 62). Daí a importância de Goethe: a vida poética é aquela que se encontra como tal e, com isso, rompe com uma pseudo-identidade. “Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o momento da despedida — que, no momento em que o encontramos, devemos nos separar de nós mesmos” (AGAMBEN, 2018, p. 62). No limite, o exemplo inicial de Goethe orienta toda a reflexão de Agamben. O demônio não é um deus, mas semideus, isto é, sempre possibilidade, potência, e nunca atualidade do divino. A potência que regenera, ou seja, liga-rompendo, é Eros , amor, à qual está ligada a esperança, Elpis , trazida por Goethe como a quinta divindade, mas que, na verdade, se mostra como uma outra face do Demônio .

Desse modo, em A aventura, o que está em causa para Agamben não é a mera arqueologia de um termo, abordando-o desde uma perspectiva que faz implicar filosofia e literatura. Ao realizar uma arqueologia da aventura, Agamben traz à tona uma nuance específica do evento antropogênico e ontogênico do tornar-se humano: o fato dele ser sem história . Desde nossa perspectiva, esse é o ponto culminante do texto e, justamente por isso, tem-se, a partir dele, uma chave de leitura muito interessante fornecida pelo próprio Agamben contra concepções historicistas que se acercam de sua obra. Por fim, recomenda-se a leitura de A aventura , pois somente assim o leitor ficará a par da complexidade e da qualidade da discussão aí trazida por Agamben.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Brasil. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com

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Creazione e anarchia. L’opera nell’età della religione capitalista / Giorgio

Pubblicato nel 2017, Creazione e anarchia è una raccolta di cinque conferenze tenute dall’Accademia di Agamben nella Accademia di Architettura di Mendrisio, Università della Svizzera Italiana, tra ottobre 2012 e aprile 2013. Quella considerata nel volume non è, quindi, una tematica inesplorata o non correlata al suo pensiero ma un asse centrale di articolazione e di confronto con idee espresse in opere precedenti, qui attraverso le categorie di creazione e anarchia, in vista o concezione del lavoro in prospettiva della “religione capitalista” debitrice degli scritti di Walter Benjamin. I cinque contributi analizzano la connessione tra i concetti di principio, creazione e comando. In Archeologia dell’opera d’arte, primo testo del volume, Agamben avverte che l’archeologia è “la sola via di accesso al presente” (p.9). Ereditando da Foucault il metodo che usa il passato come lanterna per alleggerire il presente, Agamben indica la crisi dell’Europa in relazione al suo passato, nella considerazione odierna dell’opera d’arte. Seguendo le orme di Wittgenstein, egli afferma che i problemi filosofici sono in fondo domande sul “significato delle parole” (p. 11), e che quindi bisogna capire se il significato di “opera” sia qualcosa di fatto dall’arte e appartenente ad essa, o qualcosa che dipende dall’arte e dal suo significato.

Agamben si interroga sulla situazione dell’opera d’arte in tre momenti storici. Il primo è individuato nella Grecia classica: i greci non hanno distinto “il lavoro e l’attività produttiva dall’opera, perché, ai loro occhi, l’attività produttiva risiede nell’opera e non nell’artista che l’ha prodotta” (p. 14).

Nel libro Theta della Metafisica, Aristotele si concentra sul problema del potere (dynamis) e dell’atto (energeia), affermando che l’opera d’arte appartiene “costitutivamente alla sfera dell’energeia, la quale, d’altra parte rimanda nel suo stesso nome a un essere-inopera” (p. 15). Quindi l’opera d’arte risiede nell’opera, e non nell’idea dell’artista.

Il cambio di prospettiva sorge nel Medioevo, quando l’opera d’arte risiede nell’idea dell’artista. L’ipotesi di Agamben è che ergon ed energeia “sono nozioni complementari e, tuttavia, incomunicanti, che formano, con l’artista come loro medio, quella che propongo di chiamare la ‘macchina artistica’ della modernità” (p. 20), punto nodale che unisce opera, artista e operazione. Riferendosi al monaco tedesco Odo Casel come figura decisiva per il movimento liturgico nel suo paese, recupera la genesi della liturgia come un evento in sé. Stabilisce quindi un’analogia tra la sacra azione liturgica e quella delle avanguardie artistiche contemporanee, che sembrano esercitare un vero rituale nell’esecuzione delle loro opere.

Agamben menziona il ready-made di Duchamp, che era consapevole di non agire come un artista: i suoi interventi potevano essere considerati una sorta di profanazione della macchina “opera-artista-operazione’, come l’esposizione di un orinale in un museo – un’esplosione dell’arte senza un artista che rivela il conflitto tra arte e opera, energeia ed ergon. Il punto che l’arte contemporanea prende come oggetto di analisi è come i viventi sperimentano se stessi e diventano uno stile di vita (p. 28).

Le idee esposte nel secondo capitolo, Che cos’è l’atto di creazione?, vengono alla luce in Il fuoco e il racconto, ispirate all’intervento di Deleuze nel 1987, quando si avvicina all’atto di creazione quello di resistenza. Agamben riflette sul fatto che la potenza prodotta dall’atto della creazione deve essere inerente a quello stesso atto, e che in qualche modo questo è l’atto di resistere.

Ancora una volta ritorna il riferimento al pensiero aristotelico, nel recupero, da parte di Agamben, della nozione di hexis: non una potenza generica, ma una potenza che può essere messa in atto e sospesa mantenendola intatta.

L’aporia aristotelica consiste nel fatto che il potere è definito dal suo nonesercizio (p. 36), e quindi ogni potere è anche l’impotenza dello stesso in relazione a sé stesso. In questo caso l’impotenza (adynamia) è potere-di-non, non mancanza di potere, inoperosità piena di potenziale creativo.

Agamben propone che in ogni atto di creazione resiste qualcosa che non è espresso: il potere è ambiguo perché contiene in sé la capacità di agire, ma una resistenza rimane (p. 38). Il termine “inoperosità” appare nelle riflessioni sull’atto della creazione, e Agamben evoca “una politica – dell’inoperosità” (p. 47). Tornando all’Etica Nicomachea, si chiarisce che ergon definisce l’energeia, cioè quell’attività dell’essere-in-atto che è propria del e che si riferisce all’uomo (p.47-48). In Aristotele, l’essere non possiede un argos, una vocazione che lo definisce, un’idea che Agamben accetta e riprende attraverso Kazimir Malevic in L’inoperosità come verità effettiva dell’uomo. L’inoperosità è un potere di tipo speciale, un atto di creazione (p.49-50), in cui si contempla il potere dell’azione stessa. Le categorie di contemplazione e inoperosità sono “gli operatori metafisici dell’antropogenesi, che, liberando il vivente uomo da ogni destino biologico o sociale e da ogni compito predeterminato, lo rendono disponibili per quella particolare assenza di opera che siamo abituati a chiamare ‘politica’ e ‘arte’” (p.50-51).

Il terzo saggio, L’inappropriabile, discute il concetto della rinuncia alla proprietà, già esaminato in Altissima povertà con riferimento al movimento francescano (p. 56). In questo caso, il paradigma di uso è quello che ha dato la forma-di-vita di questo ordine monastico. La proposta è di pensare alla povertà oltre a questo contesto, in una prospettiva filosofica e ontologica, “in relazione all’avere, ma anche soprattutto in relazione all’essere” (p.59). In questa direzione l’autore si riferisce a una conferenza di Heidegger, Die Armut, del 1934, e a un frammento di Benjamin, del 1916. Nell’analisi dell’intervento di Heidegger, Agamben si sofferma sulla comprensione della povertà nella sua essenza. Non solo un “non avere” e una mancanza del necessario, ma molto di più: si tratta di sentire una mancanza” si consiglia di mettere un punto qui e iniziare una nuova frase “Poi si considera la prossimità di tale nozione con le considerazioni francescane (p. 62). Vengono anche esaminati i corsi heideggeriani del 1929-30 e del 1941-42: nella prima si considera la relazione tra uomo e animale e nel secondo la povertà come rinuncia alla ricchezza. Nella conferenza del 1945, Heidegger specula sulla ricchezza spirituale riprendendo l’idea di Hölderlin che nel momento in cui si diventa poveri si diventa ricchi, perché saremmo nella sovrabbondanza dell’essere (p. 65). Questo riavvicinamento tra l’animale e la sua povertà di mondo ha per oggetto “il rovesciamento dialettico della povertà in ricchezza, della necessità materiale in superfluità spirituale” (p. 65). Agamben critica la dipendenza di Heidegger da una definizione negativa di povertà e analizza il testo benjaminiano Appunti per un lavoro sulla categoria di giustizia, evidenziando come non si usi qui il concetto di povertà, e come si usi invece al suo posto una definizione di giustizia come un bene che non si può possedere. La giustizia è pensata da Benjamin al di fuori di una sfera di doveri e virtù e acquisisce “il significato ontologico di uno stato del mondo” (p. 67), considerato inappopriabile e “povero”. Sulla scorta di queste considerazioni Agamben riflette che “essere povero significa: tenersi in relazione con un bene inappropriabile” (p. 68). L’esempio dei francescani è quello di uno stile di vita in cui i poveri si relazionano con un mondo inappropriabile, i cui strumenti sono corpo, lingua e paesaggio (p. 69).

Nel quarto contributo, Che cos’è un comando?, Agamben sottolinea che nella nostra cultura l’archè è sinonimo di comando (p. 93) e che ci sono due ontologie: l’affermazione apofantica, espressa dall’indicativo, e il comando, dall’imperativo (p. 103). Ciò vuol dire che l’ontologia occidentale può essere considerata una macchina bipolare, “in cui il polo del comando, rimasto per secoli nell’età classica all’ombra dell’ontologia apofantica, a partire dall’età cristiana comincia ad acquisire progressivamente una rilevanza sempre più decisiva” (p. 104). Come esempio di questa inversione di posizioni Agamben ricorre all’ipotesi che sotto il velo “dell’invito, dell’avvertimento dati in nome della sicurezza” (p.106) il comando sia eseguito dal soggetto stesso. Come una sorta di “compagno clandestino” per l’investigazione del comando, sorge il filo della volontà, e così in questa considerazione è richiamata una delle tesi fondamentali del pensiero nietzscheano, per cui la volontà è in realtà desiderio di comando (p. 107), di dare una direzione al potere della natura. L’autore sottolinea che il concetto di volontà non esisteva nel mondo classico e che invece appare solo con lo stoicismo romano, raggiungendo il suo apice con la teologia cristiana (p. 107). Tuttavia, Agamben nota come il concetto di volontà derivi in realtà da un altro concetto di filosofia greca: la potenza (dynamis). In questo modo “mentre la filosofia greca aveva al suo centro la potenza e la possibilità, la teologia cristiana – e al suo seguito la filosofia moderna – pongono al proprio centro la volontà” (p. 108). Agamben riprende un’idea presentata in Karman affermando che mentre l’uomo antico è quell’essere del potere che può, quello moderno è un essere di volontà, che vuole, che rappresenta la rottura in cui il verbo volere ha luogo di potere.

Esponendo la discussione sull’onnipotenza divina nel contesto della teologia cristiana, l’autore si sofferma sulla strategia degli scolastici, che ricorrono alla divisione aristotelica della potentia absoluta e potentia ordinata per risolvere l’impasse in cui si erano trovati i primi Padri. Il potere absoluto è quello attraverso cui Dio può fare tutto, mentre la potentia ordinata, responsabile per l’economia divina nel mondo, opera attraverso la volontà che sottomette il potere, limitando l’azione divina.

Questo dispositivo “imbriglia” il potere. Agamben riprende la concezione nietzscheana secondo la quale volere significa comandare e si riferisce a Bartleby, protagonista della celebre novella di Herman Melville, colui che “sembra ostinatamente indugiare all’incrocio fra la volontà e la potenza” (p. 112). Il dispositivo della volontà è quindi, secondo l’autore, la forma trovata dalla macchina bipolare occidentale cristiana per comandare il potere. Poiché il potere in Nietzsche appartiene all’ordine della natura, e non a quello della volontà, Agamben concorda con il filosofo tedesco che il potere è sinonimo di comando. Questa è una lettura agambeniana di Nietzsche, perché per il filosofo italiano il potere è quello della matrice aristotelica, aperta alla contingenza attraverso il potere-di-non, diverso dalla volontà di potenza, che opera invece a livello fisiologico.

Nel quinto contributo, Il capitalismo come religione, Agamben riprende la matrice benjaminiana. Esponendo le radici della decisione sovrana di Nixon di sospendere la convertibilità del dollaro in oro, egli considera lo svuotamento del valore del denaro, che ha assunto un carattere autoreferenziale.

Dopo aver esposto le caratteristiche che resero il capitalismo una sorta di religione della modernità sviluppata “in modo parassitario a partire dal cristianesimo” (p. 117), egli asserisce che questo sistema non è mai finalizzato alla redenzione, ma alla colpa, alla disperazione e alla distruzione. Cita “i tre grandi profeti della modernità (Nietzsche, Marx e Freud)” (p. 118), che per Benjamin sono solidali con questa religione della disperazione. Uno dei problemi della lettura offerta da Agamben è il fatto che la considerazione benjaminiana del superuomo come colui che per primo realizza il capitalismo non è però fedele al significato attribuito a questa figura negli scritti di Nietzsche. Questo perché il superuomo rappresenta la capacità di superare il tipo decadente e aggrappato alla logica del risentimento, caratteristiche intrinseche di colui che perpetua il culto del capitale. Non è chiaro quindi in che senso sottomettersi alla logica del capitalismo sarebbe una condizione necessaria per il superuomo per affermarsi nel suo divenire. In ogni caso, il riferimento di Agamben al superuomo rischia di apparire contraddittorio: l’ultimo uomo, e non il superuomo, è quello più vicino allo spirito di gravità dell’apparato capitalista.”

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita.  Vicenza: Neri Pozza, 2011.

AGAMBEN, Giorgio. Karman. Breve trattato sull’azione, la colpa e il gesto, Torino: Bollati Boringhieri, 2017.

AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero, Vicenza: Neri Pozza 2010.

ARISTOTELES. Metafísica. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2012.

BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Org. R. Tiedemann und H. Schweppenhauser. Frankfurt: Suhrkamp, 1974. (Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft, v. 1).

COLLI, Giorgio; MONTINARI, Mazzino (hrsg). Friedrich Nietzsche: Samtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Berlin: Neuausgabe, 1999. Walter de Gruyter, 1967-77 und 1988.

Notas

1 A presente resenha foi publicada pela autora originalmente na Universa. Recensioni di filosofia Rivista del Corso di Dottorato di Ricerca in Filosofia dell’Università degli Studi di Padova – Università degli Studi di Padova – UNIPD, Itália. Disponível em: http://universa.padovauniversitypress.it/2018/2/2.

Márcia Rosane Junges – Doutora em Filosofia Política pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, e pela Università degli Studi di Padova – UNIPD, Itália, em cotutela através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior – PDSE, da CAPES, de março a setembro de 2017. Professora tutora na UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil. http://orcid.org/0000-0001-9224-2071. E-mail: mjunges@unisinos.br Giorgio Agamben , Crea zione | Márcia Rosane JungesUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Endereço postal: Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Campus São Leopoldo Av. Unisinos, 950 – Bairro Cristo Rei, São Leopoldo – RS, CEP 93020-190.

AGAMBEN, Giorgio. Creazione e anarchia. L’opera nell’età della religione capitalista. Vicenza: Neri Pozza, 2017. 140 p. Resenha de: JUNGES, Márcia Rosane. Veritas, Porto Alegre, v. 64, n. 2, Abr. – Jun. 2019. Acessar publicação original

O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com

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[DR]

 

Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura – AGAMBEN (A-EN)

AGAMBEN, Giorgio. Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura [Categorias Italianas. Estudos de poética e de literatura]. Bari: Editora de Laterza, 2010. Resenha de: GUERENI, Andréia; MULINACCI, Roberto. Um filósofo nos meandros da literatura: Agamben e as categorias italianas. Alea, Rio de Janeiro, v.12 n.2, jul./dec., 2010.

Giacomo Leopardi, em algumas passagens do seu Zibaldone di Pensieri (1817-1832), reflete sobre a relação entre o poeta e o filósofo. Em um trecho de 1821, o autor de “L’Infinito” afirma que “quem não tem ou nunca teve imaginação, sentimento, capacidade de entusiasmo, heroísmo, de ilusões vivas e grandes, de fortes e várias paixões, quem não conhece o imenso sistema do belo, quem não lê ou não ouve, ou nunca leu ou ouviu os poetas, não pode absolutamente ser um grande, verdadeiro e perfeito filósofo […]”.

Esse não parece ser o caso de Giorgio Agamben, que, no recém-publicado Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura [Categorias italianas. Estudos de poética e de literatura], demonstra possuir uma profunda afinidade com temas literários, ser um grande conhecedor de obras, escritores, críticos e ter sensibilidade para discutir sobre o “belo”. Aliás, em Nudità (2009) Agamben diz que “uma obra crítica ou filosófica, que não está em algum modo em relação essencial com a criação, está condenada a ficar no vazio, assim como uma obra de arte ou poesia, que não contém em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento”.

Foi com Italo Calvino e Claudio Rugafiori que Agamben, entre 1974 e 1976, pensou em um projeto de revista para a editora Einaudi. A única coisa acordada entre os três, como o próprio Agamben conta, é que uma das seções da revista deveria se dedicar ao esboço conceitual das assim chamadas “categorias italianas”, visando, portanto, a abranger, através de uma série de pares dicotômicos, as características fundamentais da tradição cultural italiana, em particular a literária. O projeto acabou não dando certo, mas Agamben, continuando fiel aos princípios teóricos que o tinham norteado, publica, em 1996, pela editora Marsilio, uma primeira versão de Categorie italiane, onde ele dá justamente forma, embora parcial e provisória (enquanto parte de uma tentativa de sistematização mais ampla, ainda por cumprir), à tensão dialética entre aquelas “estruturas categoriais” cuja definição, na realidade, transcende – apesar de os textos analisados serem quase todos italianos, com a única exceção dos sirventeses do provençal Arnaut Daniel – o seu específico e explícito âmbito de referência nacional. De qualquer maneira, como o livro estava esgotado há muito tempo, no início de 2010, felizmente, a editora Laterza colocou no mercado editorial italiano uma edição nova e atualizada, que, conforme declara o autor na “Avvertenza alla presente edizione” [Advertência à presente edição], é um livro “substancialmente novo”, devido ao “número e à importância dos textos acrescentados” (p. v), como, de resto, se pode verificar ao final do livro, na “Nota ai testi” [Nota aos textos], contendo as informações precisas de onde cada ensaio foi publicado ou apresentado, qual é inédito, qual não é. Além disso, na qualidade de uma autêntica mais-valia exegética, esta nova edição conta ainda com um belo posfácio, de sabor tipicamente agambeniano (“Profanare il dispositivo”/Profanar o dispositivo), assinado por Andrea Cortellessa, um dos mais brilhantes representantes da nouvelle vague da crítica italiana.

No entanto, na impossibilidade de dar conta, em conjunto, de uma coleção de ensaios tão instigante, talvez valha a pena destacarmos alguns deles, em que esse método analítico por meio de categorias antitéticas se revela hermeneuticamente mais produtivo, a partir, por exemplo, daquela oposição tragédia/comédia sobre a qual se constrói o primeiro “exercício de leitura” do volume, tendo como objeto nada menos que o maior clássico da literatura italiana: a Divina Comédia, de Dante Alighieri. De fato, no texto intitulado justamente “Comedia”, Agamben retoma a velha questão do título da obra, que foi bastante subestimada pela crítica e que, a seu ver, ainda hoje mereceria estudos mais aprofundados, pois Dante, com toda a sua erudição, não teria decerto escolhido este nome, que indica um gênero literário específico, sem algum critério bem fundamentado. É nesse sentido que o autor de O que é contemporâneo? se debruça sobre o “problema” da aparente contraditoriedade de uma titulação cômica para um projeto poético que, na esteira de outras obras dantescas, parecia nascer sob o signo do trágico (pense-se, por exemplo, no De Vulgari Eloquentia) e cuja explicação não pode se contentar, então, com o lugar-comum crítico da oposição entre tragédia e comédia do ponto de vista da matéria, isto é, da diferente articulação interna do conteúdo, distinguindo entre o início “próspero” e o fim “horrível” (típico da tragédia) e seu contrário (o início horrível e o fim próspero, tão característico da comédia). Com efeito, essas categorias de trágico e cômico, que o próprio Dante, na sua célebre carta a Cangrande della Scala, tinha contribuído a cristalizar em uma oposição conteudística condizente essencialmente com os ditames das poéticas medievais, se rede-finem agora não só no quadro temático da inocência e da culpa, vistas da perspectiva do subiectum (para o qual tragédia e comédia não passam de modalidades literárias de seu percurso de condenação ou salvação individual), mas também no contexto de outro dualismo irredutível, aquele entre natureza pessoa, ou seja, cindindo a culpa natural da culpa pessoal e transformando, assim, o conflito trágico entre inocência pessoal e culpa natural na “conciliação cômica da inocência natural e da culpa pessoal”. Considerado por esse ângulo, o título da Divina Commedia – no centro da qual está a justificativa do culpado ao invés da punição trágica do justo – não se limita a ser “perfeitamente coerente”, como se torna também revelador da íntima tendência anti-trágica da cultura italiana que Dante vai passar para a posteridade.

Mas se o diálogo de Dante com a poesia provençal constitui o imediato elo de ligação unindo “Comedia” ao texto sucessivo, “Corn: dall’anatomia alla poetica” [“Corn: da anatomia à poética”], no qual Agamben relê alegoricamente o debate diacrônico em torno daquela controversa palavra epônima (corn) usada pelo trovador Arnaut Daniel – que, diferentemente da sua interpretação literal, se torna, antes, o equivalente semântico de rima não encadeada (convertendo, dessa forma, o suposto tema obsceno do sirventês num problema métrico) –, é sobretudo esse curto-circuito vertiginoso entre filologia e filosofia que marca uma das principais linhas de continuidade ao longo dos textos. Basta ver, por exemplo, os dois ensaios logo a seguir, “Il sogno della lingua” [O sonho da língua] e “Pascoli e il pensiero della voce” [“Pascoli e o pensamento da voz”], onde o eixo filológico da dicotomia entre língua viva e língua morta acaba sendo ressemantizado no horizonte filosófico de uma experiência de linguagem que se situa para além das línguas, naquele não lugar entre o que foi (língua morta/voz) e o que ainda não é (língua viva/significado), delimitando assim uma dimensão negativa aberta tanto para o ser quanto para o abismo da nada. Não é por acaso que, no primeiro elemento desse díptico ensaístico, vale dizer em “Il sogno della lingua”, ao tratar de um incunábulo impresso em Veneza em 1499, Hypnerotomachia Poliphili, e do estranhamento que o leitor tem ao ler tal obra, pois não sabe em qual língua está lendo (“se em latim ou em vulgar ou em um terceiro idioma”, p. 46), Agamben fala de “um unicum monstruoso” decorrente da fago-citação lexical do latim por parte da estrutura frásica do italiano, embora essa contaminação linguística encontre seu pleno sentido só na reflexão metalinguística que ela contém acerca do bilinguismo (não apenas quatrocentista) enquanto condição inerente à qualquer palavra humana (daí o sonho, justamente, com uma “língua desconhecida e novíssima” que está por detrás da história de Polia e Polifilo e no qual o leitor vai ouvir ressoar a lição benjaminiana da “reine Sprache”…).

Sempre a relação entre língua morta e língua viva continua sendo o âmago da questão em “Pascoli e il pensiero della voce”, conquanto, desta vez, a língua morta não seja mais o latim como a língua da poesia em geral, na qual cabem também aquelas célebres glossolalias e onomatopeias tão ao gosto do lírico decadente italiano. Só que estas, longe de serem a expressão de uma linguagem pré-gramatical – conforme a classificação do crítico italiano Contini – representam, pelo contrário, a gramaticalização daquela voz da natureza, cuja morte está inscrita mesmo nas letras das palavras, como uma intenção de significado a se realizar, porém, unicamente na linguagem articulada. Contudo, retomando algumas observações que estavam já presentes no seu ensaio de 1982, Il linguaggio e la morte [A linguagem e a morte], Agamben não identifica aqui a Voz com a mera phoné, mas sim com aquela vontade de significação permitindo a passagem para o logos, de modo que a letra dos poemas pascolianos se torna afinal, na leitura dele, uma experiência de morte: morte da voz que, ao se inscrever nos signos linguísticos, morre como puro som (onomatopeia) e morte da língua que, ao se reduzir a som, marca a sua saída da dimensão semântica (glossolalia). Mas se, “a poesia é experiência da letra” – conclui o filósofo – pode existir uma experiência da palavra (como também da poesia e do pensamento) que vai para além da letra?

A esta pergunta, Agamben responde indiretamente em “Il dettato della poesia” [O ditado da poesia], onde aborda a relação entre vida e poesia, ou melhor, aquela oposição biografia/fábula, a qual pressupõe, justamente, a relação mais problemática entre vida e palavra. Nessa análise, o autor passa pela tradição teológica, pela literatura dos séculos XIII e XIV até chegar ao século XX, com a poesia de Antonio Delfini, que tenta recompor aquela fractura entre realidade e literatura, antes que ela, mutatis mutandis, se proponha de novo, na poesia de Caproni (“Disappropriata maniera” [Maneira desapropriada]) sob a forma da divaricação entre estilo e maneira. A mesma lógica de análise se dá no capítulo 7, no qual Agamben fala da poesia de Andrea Zanzotto e da sua peculiar e indissolúvel reflexão sobre língua e prática poética. Já em “Il torso orfico della poesia” [Anatomia órfica da poesia], temos a discussão sobre o caráter elegíaco da poesia, principalmente a do século XX. Segundo ele, esta pode ser definida através da contaminação entre hino e elegia. No último texto do livro, intitulado “La fine del poema” [O final do poema], Agamben trata, como o título do capítulo sugere, do final do poema, pois os estudos sobre o assunto são praticamente inexistentes. Aqui, o filósofo, na tentativa de elaborar uma teoria própria, fala da relação entre poesia e verso, rima e metro, som e sentido, a ponto de afirmar que “se o verso se define através da possibilidade do enjambement, disso segue que o último verso da poesia não é um verso” (p. 141). O resultado disso será “uma verdadeira e própria crise de vers, em que está em jogo a sua própria consistência” (p. 141).

Esse grande interesse de Agamben pela poesia em seus mais variados aspectos vai, guardadas as devidas proporções, na mesma direção proposta por Leopardi, pois a poesia e a filosofia estão no mesmo nível, andam lado a lado e são, nas palavras de Leopardi “o ápice do humano espírito[…]”.

Embora os capítulos 8, 10 e 11 não tratem de poesia, discutem temas afins e que podem se relacionar aos assuntos mostrados acima. No capítulo 8 entra em cena a relação entre literatura e política, através da análise do léxico (teológico/político) do escritor Giorgio Manganelli. No capítulo 10, Agamben discute a paródia, através da análise de textos não tão clássicos como L’isola di Arturo (A ilha de Arturo. Tradução e apresentação de Loredana de Stauber Caprara. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2005.), de Elsa Morante, em que o gênero paródia é o protagonista do livro. Por fim, no capítulo 11 o autor trata da relação entre literatura e filosofia, especialmente da presença de Spinoza em textos de Elsa Morante.

Uma das características recorrentes dos ensaios do livro é a forma “adorniana” de coordenação dos elementos com que Agamben constrói os seus escritos, que aqui podem ser lidos autonomamente. Também o conjunto de textos parece formar um pequeno “sistema” das categorias literárias italianas, que serão úteis para refletir sobre a literatura italiana, mas também sobre outras literaturas, porque Agamben utiliza a forma comparada de análise. Aliás, o ex-professor de filosofia da Universidade de Veneza sabe que a literatura pode ser vista como um eterno “corso-ricorso” viconiano, simplesmente porque “qualquer coisa acaba para sempre e qualquer coisa começa, e aquilo que começa, começa apenas naquilo que acaba” (p. 95).

Esperemos que essa obra de Agamben, autor muito traduzido entre nós, ganhe em breve uma edição brasileira. Como costuma ocorrer com os textos dele, Categorie Italiane agradará tanto os estudiosos de literatura, quanto os que não estão satisfeitos com o especialismo por vezes um pouco asfíxico da crítica literária e gostam de novos horizontes epistemológicos, conscientes de que – como dizia Barthes – “passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra, mas sua própria linguagem”.

Andréia Guerini – Universidade Federal de Santa Catarina

Roberto Mulinacci – Università degli Studi di Bologna

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