Leituras de Áfricas: epistemologias, ancestralidades, corporiedades e processos educativos em tempos pandêmicos | Perspectivas e Diálogos: Revista de História Social e Práticas de Ensino | 2021

2021 foi um ano de muitos enfrentamentos. Até o momento, 619.065 mil pessoas morreram de COVID-19. Um número assustador e motivo de indignação em qualquer país. O Brasil, no entanto, não se configura como qualquer país. Todo e qualquer indicador social necessita ser atravessado pela questão étnica e de gênero para se atingir as camadas mais profundas da realidade e o problema ser desnudado.

Estudo realizado pela Rede de Pesquisa Solidária (Jornal da USP, 2021) apontou que as desigualdades raciais e de gênero aumentam a mortalidade da COVID-19 no mesmo grupo ocupacional, sendo que as mulheres negras morrem mais que homens negros, homens brancos e mulheres brancas na base do mercado de trabalho. Leia Mais

Leituras de Áfricas: epistemologias, ancestralidades, corporiedades e processos educativos em tempos pandêmicos | Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino | 2021

2021 foi um ano de muitos enfrentamentos. Até o momento, 619.065 mil pessoas morreram de COVID-19. Um número assustador e motivo de indignação em qualquer país. O Brasil, no entanto, não se configura como qualquer país. Todo e qualquer indicador social necessita ser atravessado pela questão étnica e de gênero para se atingir as camadas mais profundas da realidade e o problema ser desnudado.

Estudo realizado pela Rede de Pesquisa Solidária (Jornal da USP, 2021) apontou que as desigualdades raciais e de gênero aumentam a mortalidade da COVID-19 no mesmo grupo ocupacional, sendo que as mulheres negras morrem mais que homens negros, homens brancos e mulheres brancas na base do mercado de trabalho. Leia Mais

Áfricas: um continente, múltiplos olhares | Ars Historica | 2018

A área de História da África cresceu muito nos últimos anos no Brasil. Aqueles que, como eu, pesquisam e são docentes nesse campo há mais de duas décadas podem com certeza reconhecer a expansão vivida e o adensamento das pesquisas e debates. A legislação incidindo sobre o currículo de História na Educação Básica e nos cursos de formação de professores contribuiu de forma inegável, com a lei 10.639/2003 e as diretrizes curriculares originadas no parecer do Conselho Nacional de Educação (2004). Mas, também concorreu para tal a ampliação das demandas e interesses do público estudantil, reivindicando cursos menos eurocêntricos e a inserção de temas e discussões que trouxessem referências sobre a história da África e da diáspora africana, bem como leituras da produção intelectual daquele continente. O movimento negro, em suas diversas formas de expressão, agente fundamental nesse processo, junto aos NEAB (Núcleos de Estudos Afro-brasileiros) e, em tempos mais recentes, os coletivos negros estudantis, se tornaram uma força de pressão positiva que veio a intensificar esse crescimento. E a continuidade dessa demanda, com a consequente sofisticação e diversificação do universo temático das pesquisas, a qualidade da produção científica no campo e o vigor dos debates, fizeram com que o campo de estudos se afirmasse e se consolidasse cada vez mais no nosso espaço acadêmico. Leia Mais

Áfricas e suas diásporas / Revista Transversos / 2017

A Revista Transversos em sua 10a edição floresce a partir de múltiplos esforços. Seiva, fibra e ritidoma1 vêm de resultados da linha de pesquisa Áfricas e diásporas negras do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES), que contempla os estudos africanos, assim como, problematiza a diáspora negra a partir das manifestações políticas e culturais no Brasil.

Por obstinação, analisa-se as matrizes discursivas que definem as identidades culturais e as reinvenções da África e africanidades no Brasil a partir da Lei Federal 10.639 / 03.2 Esta edição é incensada pela atuação de autores angolanos, brasileiros, estadunidenses, que, pela diversidade dos temas, promovem a pluralidade como cariz desse dossiê. O prazer motivado pelos laços, reencontros e resistências, iluminam as diferentes histórias das Áfricas e suas diásporas. Por lá e por aqui, homens, mulheres e crianças experimentaram histórias singulares em suas trajetórias de vida.

A arte do jovem artista-historiador José Victor Raiol traduz esse sentimento de ser e espargir. A árvore da vida, um baobá estilizado, mostra a dimensão de uma África robusta, diversificada e propagadora. Enquanto, suas folhas proliferam vidas, sujeitos, discursos e experiências. O baobá e suas folhas tramam o fio condutor dessa edição: o entrecruzamento da África –com suas raízes históricas e suas vias repletas de seivas- e a heterogeneidade das diásporas com – o vento que conduz suas folhas, sua transformação e sua continuidade.

São laços que unem as duas margens do mundo afro-atlântico-americano; reencontros como formas de multiplicar os objetos de estudos; e por fim; ampla resistência. Afinal, africanos, africanas e as identidades diaspóricas lutaram os mais diversos combates em prol das suas histórias. E ainda lutam!

Logo de início, o dossiê faz um registro de solidariedade a luta dos professores, técnicos, bolsistas, discentes e da comunidade que resistem aos ataques à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Um baobá das políticas afirmativas, em nosso país, a UERJ diasporizou seu sistema de cotas aos afrodescendentes por outros espaços do Brasil. Além disso, não podemos esquecer da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Em 2017, a UNILAB sofreu com os cortes de incentivos estudantis aos alunos dos países africanos. A partir da luta, a comunidade da UNILAB reconquistou a garantia dos estudantes de ingressar na Universidade. Em nome da Revista Transversos, obrigado por vocês existirem e resistirem. Continuemos na luta!

Esse pensamento como ação nos direciona para a produção de uma escrita da História Africana como definida por Carlos Lopes: uma pirâmide invertida. Segundo o guineense:

Uma história que se vai concentrar nas mudanças sociais, na contribuição africana, na resistência ao colonialismo e no conceito de iniciativa local. Uma História que tentará demonstrar que se a civilização ocidental bebeu no conhecimento grego, não é por acaso que Platão, Eudore e Pitágoras viveram no Egito entre 13 e 20 anos. Egito visto como uma civilização negra por excelência.3

Uma História da África feita por africanos / as e demais pesquisadores / as sensíveis as particularidades das múltiplas historicidades daquele continente. Uma narrativa ativa e altiva das singularidades das experiências africanas. Já a heterogenia das diásporas segue as pistas do Atlântico negro de Paul Gilroy em que:

No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo.4

Espalhar-se não significa manter uma identidade cristalizada e homogênea. Assim como Gilroy, os nossos estudos combatem a essencialização, que muitas vezes – nos desejos da naturalização – persistem nos estudos diaspóricos. Não se trata, exclusivamente, de entender a vida de africanos e africanas fora da África, mas de analisar o saber / conhecimento desses sujeitos hibridizar / espargir-se nas várias partes do mundo.

Com saber / sabor os artigos nos embalam e instigam. Nas pistas do baobá estilizado e o espargir de suas folhas, a 10a edição é inaugurada com o artigo de Judith Carney e Rosa Acevedo – Plantas de la diáspora africana en la agricultura del Brasil. As autoras examinam as plantas de origem africana que se tornaram fundamentais para a subsistência e economia no período da escravidão. Ao traçarem o perfil dessas plantas, analisam as distorções nas narrativas da troca colombiana, que permaneceram centradas na agência europeia. Em destaque, a ênfase colocada no conhecimento botânico africano e sua expressão em paisagens de escravidão.

Alair Figueiredo Duarte e Maria Regina Candido no artigo Será possível, na atualidade, escrever a História Antiga da África?- analisam como construir um olhar alternativo afastado da narrativa eurocêntrica hegemônica, repleto de preconceito sobre o continente africano, considerado uma sociedade primitiva sem escrita, sem passado e sem história. Com ousadia propõem um rompimento, de vez, com os estereótipos que tentam impingir a História da África.

Condições políticas da era de ouro da Dhimmah na história do Egito islâmico (séculos IX e X AD) de Alfredo Bronzato da Costa Cruz percorre o período de governo fatímida do Egito (969-1171). O texto reconstitui algumas tramas que compuseram a complexa conjuntura política do Egito e do Levante no interior do ecúmeno islâmico dos séculos IX e X AD que permitiu afirmar como o mais tranquilo e próspero período para os judeus e cristãos desde a conquista islâmica do Vale do Nilo até a Contemporaneidade.

Vivian Santos da Silva escreve sobre O Conflito Tuaregue ao norte do Mali: a geopolítica da resistência no Sahel Africano. O artigo analisa o conflito a partir da crítica da geopolítica, em que se apreende o poder e sua relação com o espaço de forma multidimensional. Por meio dessa perspectiva, a autora possibilita uma maior compreensão do complexo movimento de resistência, de insurgência e de luta pela emancipação política.

Vestígios de uma fábrica britânica em fotografias de seus trabalhadores de Rute Andrade Castro estuda a exploração britânica de recursos minerais e humanos num contexto imperialista do século XIX, em uma vila do sul da Bahia – Brasil. A partir de fotografias do empreendimento britânico, a autora adensa as possibilidades dos usos históricos daquelas imagens.

Gian Carlo de Melo Silva investiga o batismo, e sua dinâmica numa sociedade marcada pela escravidão, como uma das formas de alforrias existentes no período colonial no artigo “Dizia que forrava a dita criança”: os forros na pia batismal no Recife Setecentista.

Já em Africanas, libertas e seus filhos em narrativas de violências e outros dramas entre a escravidão e o pós-abolição no Sul da Bahia, Cristiane Batista da Silva Santos nos traz histórias de adversidades femininas vivenciadas por africanas e suas descendentes – escravizadas, libertas ou livres pobres – em situações de violência nas mais variadas formas entre as décadas finais da escravidão e período posterior a abolição.

A parceria de Alan Augusto Moraes Ribeiro e Deivison Mendes Faustino no artigo Negro tema, negro vida, negro drama: estudos sobre masculinidades negras na diáspora revisam um conjunto de estudos publicados em língua portuguesa e língua inglesa que tratam do tema masculinidades negras. Nesse processo, refletem sobre como raça, gênero, classe, etnia, sexualidade e nacionalidade foram articulados para falar sobre homens negros nessas literaturas.

O artigo Museu Afro Brasil: a querela da identidade, de Ana Carla Hansen da Fonseca, debruça-se sobre os avanços e limites do trabalho do museu na construção de memórias, identidades, na preservação do patrimônio africano, e nas formas de representação dos africanos que foram escravizados.

Mario Eugenio Evangelista Silva Brito com o artigo Uma leitura desde a diáspora sobre historiografia africana independentista: a década de 1950, os casos de K. O. Dike e C. A. Diop faz um estudo sobre a historiografia acadêmica africana (feita por africanos), enfocando as obras: Trade and Politics (1956), de Kenneth Onwuka Dike e L’Afrique Noire Précoloniale (1960), de Cheikh Anta Diop. Desta forma, o articulista expõe a especificidade dessa historiografia nos diferentes contextos de sua produção, além de debruçar-se sobre a trajetória socioespacial desses historiadores.

Em O papel da Comissão do Golfo da Guiné na segurança marítima em África, Rita Suriana Amaro Gaspar analisa a questão da segurança marítima na região do Golfo de Guiné. A partir das recomendações das Organizações das Nações Unidas à União Africana, a autora avalia de que forma a garantia da defesa e segurança da região tem sido feita tendo por orientação as diretivas do “Código de Conduta de Yaoundé”.

Abordar as representações sobre relações raciais erigidas por diplomatas estadunidenses, autoridades portuguesas, nacionalistas angolanos e militantes pelos direitos civis nos EUA é o objetivo de Raça e diplomacia: a correspondência diplomática estadunidense sobre Angola, 1960-1961 de Fábio Baqueiro Figueiredo. O autor baseia sua análise a partir das correspondências consulares estadunidense sobre Angola entre 1960 e 1961, num momento de ascensão política mundial das discussões sobre raça.

Karina Ramos em A angolanidade literária nas páginas da Revista Mensagem (1951- 1952), apresenta as propostas de construção de uma identidade cultural para Angola do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA) por meio da revista literária Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1951-1952). No universo discursivo da revista Mensagem, a autora problematiza as formas de construção de uma angolanidade literária.

Encerrando o dossiê, temos o artigo Cultura, identidade e neoliberalismo na Ruanda pós-genocídio: em busca de um novo homem ruandês escrito por Danilo Fonseca. O autor estuda as propostas realizadas, no âmbito de práticas e valores culturais, pelo governo da Frente Patriótica Ruandesa após o genocídio ruandês de 1994 cometido contra tutsis e hutus moderados. Assim, analisa as mudanças nas questões que envolvem o patriotismo, a unidade nacional e o mundo do trabalho.

Na sessão de artigos livres, Victor Hugo Abril em Um estudo sobre os Governos interinos no Rio de Janeiro (séculos XVII e XVIII) esquadrinha os governadores coloniais interinos no espaço-tempo da cidade do Rio de Janeiro, c. 1680 – c. 1763. Em sua análise, privilegia os agentes nas suas trajetórias, não só no reino, como nas colônias.

Merece destaque também Other Views on the African Diaspora: An Interview / Outros olhares sobre a diáspora africana: uma entrevista com o Prof.º Robert Voeks, da Universidade da Califórnia, realizado por Gustavo Pinto de Sousa e Rogério da Silva Guimarães.

Convidamos a seguir os leitores e leitoras a descortinarem as próximas páginas. Afinal, “somos cultura que embarca”5. Enfim, que os artigos inquietem, provoquem e sejam compartilhados. Em tempos africanos e diaspóricos: desejamos caminhos abertos!

Notas

  1. Camada externa da casca das árvores e outras plantas lenhosas. Cuja função, entre outras, é proteger a planta. In: < http: / / dicionarioportugues.org / pt / ritidoma>.
  2. Atualmente, a Lei 10.639 / 03 foi reformulada pela Lei 11.645 / 08 que além dos estudos de História e Cultura Africana e Afro-brasileira também contempla a História e Cultura Indígena.
  3. LOPES, Carlos. A pirâmide invertida – historiografia africana feita por africanos. In: Actas do colóquio Construção e ensino da história da África. Lisboa: Linopazas, 1995. p.26
  4. GILROY, Paul. Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001. p.11.
  5. Você Semba de Lá, Que Eu Sambo de Cá- o Canto Livre de Angola. GRES Vila Isabel, 2012.Autores: Evandro Bocão, Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Artur Das Ferragens. Disponível em: http: / / liesa.globo.com / 2017 / por / 09-colocacoes / 2012.html

Gustavo Pinto de Sousa (UFOPA)

Rogério da Silva Guimarães (UERJ)


SOUSA, Gustavo Pinto de; GUIMARÃES, Rogério da Silva. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 7, n.7, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Áfricas / Cantareira / 2016

A fase de escolha para a temática que irá compor um dossiê perpassa uma série de questões que visam dialogar com as constantes demandas sociais, acadêmicas e de ensino que circundam o nosso meio. Nesse sentido, ganhar mais esse espaço para o debate acerca dos estudos africanos, principalmente ao considerarmos que esse espaço é produzido por estudantes que transitam entre a graduação, pós-graduação e magistério de ensino básico, vem comprovar o quanto os estudos sobre a África cresceram e vêm se consolidando no Brasil. Embora muito tenhamos para percorrer, aos poucos a África mitificada e ocidentalizada vai ficando para trás. Em diálogo com os novos debates historiográficos, o estudo das tradições e a valorização da oralidade permitem novas significações para a história do continente.

No Brasil, essa temática vem sendo fortalecida desde a obrigatoriedade do ensino de África nos bancos escolares com a lei 10.639 / 2003. De lá pra cá, muito se avançou. A História da África vem sendo pensada, sobretudo, a partir de uma perspectiva do africano como sujeito de sua história, o que abriu novas possibilidades para construirmos a historicidade das sociedades africanas. À medida que o objetivo passa a ser romper com os esteriótipos que marcaram a visão sobre o continente desde a Antiguidade, passamos a enxergar no “lugar das essências, os processos históricos, dinâmicas sociais e culturas em movimentos”, em que as identidades passam a ser vistas a partir da sua pluralidade.

Dessa forma, é interessante notarmos que os artigos que integram o presente dossiê buscam repensar a história do continente a partir da perspectiva do africano como sujeito, ampliando a imensa diversidade cultural desse povos. A multiplicidade dos significados que se abrem com a generalização do termo africano vai, aos poucos, dando lugar às especificidades dos grupos locais que compõem o continente.

Ao iniciarmos o dossiê nos voltamos para os artigos de Fabiane Miriam Furquim, “A Permanência do Lobolo e a Organização Social no Sul de Moçambique”, e de Fernanda Bianca Gonçalves Gallo: “Para Poderes Viver Como Gente: Reflexões Sobre o Persistente Combate ao Modo de Vida Disperso de Moçambique”. Os debates acerca das tradições africanas aparecem sobre uma nova perspectiva, que traz como proposta se afastar das simplificações existentes e problematizar as relações de poder locais, as formas de organização e legitimação que envolvem essas populações. Dessa forma, ampliamos o nosso olhar para as dinâmicas e conflitos particulares que fazem parte do dia a dia dos diferentes povos existentes e buscamos conhecer, a partir das questões internas, os processos históricos que nos conduzem a uma África sem essencialismos. A prática do Lobolo no artigo de Furquim nos conduzem a novas conceituações de tradição e modernidade, em que um não exclui o outro mas se modificam constantemente, trazendo à baila a complexidade existente. Da mesma maneira, Fernanda Gallo aponta para as resistências locais às imposições de uma política de Estado que via suas práticas como um atraso à modernidade.

Em seguida, o artigo de Rodrigo Hotta “Juízo de Inconfidência em Angola: A Conspiração dos Degredados em Luanda, 1763” traz como proposta repensarmos as trocas culturais existentes entre os africanos e portugueses a partir de uma prática política comum à época: os degredados. Ainda pouco estudado, o cumprimento do degredo em Luanda é problematizado a partir de uma conjuração que busca aterrorizar a administração local. Um importante trabalho para nos atentarmos para as fissuras coloniais existentes no período e as trocas existentes entre o colono e o colonizador, que estão muito além dos binarismos impostos. Essas tensões coloniais também estão presentes no artigo de Jéssica Evelyn Pereira dos Santos, “Guerra e Sangue Para uma Colônia Pacificada: A Revolta do Bailundo e o Projeto Imperial Português para o Planalto Central do Ndongo (1902-1904)”, em que a ocupação dos portugueses sobre o território angolano se coloca como complexa à medida que também se propõe mostrar a participação dos povos locais nessa empreitada, marcada pelas disputas de memória sobre o evento.

Ainda dentro do diálogo colonial entre angolanos e portugueses, Marilda dos Santos Monteiro das Flores em “Angola: Rememorando as Idas e Vindas de um Lugar Desconhecido” traz como proposta, a partir dos debates teóricos que cercam a memória, refletirmos sobre a saída de portugueses para a Angola no contexto da guerra colonial na década de 1970. Ressaltando um novo contexto das migrações portuguesas para Angola, a chegada em terras angolanas representa um novo começo, cercado de disputas.

Já no texto de Patrício Batsîkama “A Mulher na Luta de Libertação e na Construção de Estado-Nação em Angola”, as lutas pela independência de Angola são repensadas a partir de uma perspectiva interna, que parte dos atores sociais angolanos para problematizar os meios de resistência à política colonial no território. A participação das mulheres é colocada em evidência a partir de um estudo de caso: Luzia Inglês, o que ressalta uma abordagem que aos poucos vem se fazendo presente nas pesquisas acadêmicas.

O crescimento dos estudos culturais na historiografia também vem contribuindo para novas problematizações sobre a história do continente africano. Com o artigo intitulado “Safi Faye: Cinema e Autorepresentação”, Evelyn dos Santos Sacramento traz uma abordagem da cineasta senegalesa que envolve uma reflexão sobre intelectualidade e diáspora a partir da produção cinematográfica abordada. Ainda dentro de um debate diaspórico, Paola Vargas em “Aka de Camarões, Cazumbá do Maranhão e Marimonda de Barranquilla: Diálogos Entre História e Culturas Sul-Atlânticas” nos brinda com um trabalho comparativo sobre as expressões culturais de grupos que se constituíram no processo da diáspora atlântica.

Para finalizarmos o dossiê, três trabalhos trazem como proposta refletir sobre os debates e desafios teóricos e metodológicos que cercam a pesquisa e o ensino de África. Álvaro Ribeiro Regiani e Kênia Érica Gusmão Medeiros refletem sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura afro-brasileira em “A Negação da Filosofia Africana no Currículo Escolar: Origens e Desafios”. O diálogo interdisciplinar aí presente tem como objetivo abordar como o ensino de África está sendo aplicado nos livros didáticos de História e Filosofia, contribuindo para os debates contemporâneos. Dentro de um mesmo diálogo, Lucival Fraga dos Santos em “Que África se Inscreve e se Ensina no Brasil?”, contempla os impactos do ensino de África na cultura brasileira, principalmente a partir da obrigatoriedade do seu ensino com a lei 10.639 / 2003, ressaltando de que modo ela vem contribuir com a quebra de esteriótipos. Por último, o artigo de Fabrício Cardoso de Mello “Reflexões Críticas sobre o Debate em torno dos Movimentos Sociais na África”, traz uma discussão de âmbito acadêmico acerca dos processos de mobilização social no continente africano. Para isso, o autor dialoga com diferentes vertentes teóricas a fim de colocar os movimentos sociais da África dentro dos debates conceituais presentes sobre o tema.

Compõe ainda o dossiê a seção artigos livres, composto pelas pesquisas de Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa, Tomás de Almeida Pessoa, Marcus Castro Nunes Maia, Cláudia de Andrade Rezende e José Ernesto Moura Knust. A partir de diferentes temáticas, suas pesquisas contribuem para enriquecer nossas análises historiográficas. Da mesma forma, recebemos a contribuição de Michel Ehrlich com a resenha do livro do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho (UFF) “Ditadura e Democracia”, dialogando com o cenário político atual.

Por fim, é com grande prazer que agradecemos a participação da professora Flávia Maria de Carvalho da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). A jovem pesquisadora e professora universitária traz um pouco da sua história na entrevista que nos concedeu, ressaltando os caminhos que lhe levaram à História da África e como os seus anos de estudante na Universidade Federal Fluminense (UFF), contribuíram para o seu amadurecimento na pesquisa do tema.

Espero que a publicação do dossiê venha colaborar para a abertura de novos caminhos para os estudos africanos. Foi um prazer poder dialogar com os autores e pareceristas que participaram dessa produção. Agradeço à equipe da Revista Cantareira todo o carinho e dedicação para colocarmos mais um número no ar.

Boa leitura a todos.

Carolina Bezerra Machado – Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes e pesquisadora do grupo Interinstitucional Áfricas. E-mail: lowbezerra@gmail.com


MACHADO, Carolina Bezerra. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.25, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Áfricas: história, literatura e pensamento social / Revista Transversos / 2016

História, Literatura e Pensamento Social

Esse número da Revista Transversos, além da costumeira seção de artigos livres, vinculada, em sua maior parte, às discussões problematizadas no Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades (LEDDES), responsável por esse periódico, oferece-nos dossiê intitulado Áfricas: história, literatura e pensamento social, com destaque para a seção Notas de Pesquisa. Essa duas partes do periódico são fruto de desdobramentos das atividades do grupo de pesquisa Áfricas – LEDDES (UERJ), vinculado a esse laboratório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bem como de parcerias com outros núcleos de estudos, pesquisa e extensão, tais como o Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assim, como o tecido africano estampado na capa deste número da Transversos, o seu dossiê e notas de pesquisa tecem tramas com fios policromáticos: há uma diversidade de objetos e abordagens relativos à multifacetada África, mas que de certa forma, giram em torno do trinômio história, literatura e pensamento social africano, tema deste dossiê.

A trama inicia-se com o debate sobre a importância do documentário como fonte para a história angolana a partir da análise de Oxalá cresçam pitangas! Numa implícita formação discursiva fundamentada por Robert Rosenstone, que assinala que o cinema pode “transmitir um tipo de História séria (com H maiúsculo)”, a historiadora Paula Faccini de Bastos Cruz, pesquisadora do LEÁFRICA, ilumina como a aludida película cinematográfica explicita as resilientes identidades de luandenses após as guerras infindáveis, entre 1961 a 2002. O filme permite nos tornarmos testemunhas oculares de vidas vulnerabilizadas pelas sequelas persistentes dos conflitos e da desigualdade social.

Mas, os africanos não são só assujeitados pelas estruturas, pois geraram eloquentes lideranças na luta pelas transformações sociais. Seguindo essa motivação a historiadora Raquel Gomes, doutora pela UNICAMP, recorre a um romance histórico sul-africano Mhudi, An Epic of South African Native Life a Hundred Years Ago para urdir o pensamento e a práxis social do político, literato e jornalista sulafricano Sol Plaatje durante as décadas de 1910 e 1920, logo após o surgimento do domínio inglês da União Sul-Africana. É o único artigo do dossiê que se desvia da tendência predominante na historiografia brasileira sobre o continente: os estudos sobre as regiões africanas tocadas ou colonizadas pelos portugueses.

Por outro lado, Jane Rodrigues dos Santos, pós-doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e uma das participantes da Oficina “Literatura, História em contextos africanos” oferecido pela linha “Áfricas” em 2015, abre uma nova tonalidade na trama, articulando as possibilidades dialógicas entre história e literatura, por meio da discussão comparativa entre as obras Becos da Memória da brasileira Conceição Evaristo com Amkoullel, o menino fula do africano Amadou Hampâte Bã.

Os três artigos que se seguem discutem diferentes dimensões de aspectos ligados à história e à literatura angolana, bem como ao pensamento social do escritor Uanhenga Xitu, um dos autores abordados naquela oficina. Assim sendo, Letícia Villela Lima da Costa, doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), analisa as distintas formas de se contar a história por meio da tradição oral, fazendo por isso uma análise sobre um conto de Xitu.

Já o pensamento social deste autor é analisado de forma comparativa ao do também angolano Luandino Vieira por Maria Cristina Chaves de Carvalho, pós-doutoranda pela Universidade Federal do Espirito Santos (UFES). Em seu artigo, ela analisa o quanto os dois apresentam, de forma ambivalente, o colonialismo no qual estavam inseridos.

A seção termina com o artigo de Itamar Pereira de Aguiar, pós-doutor pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor Titular da Universidade do Estado da Bahia (UESB), juntamente com Nathalia Rocha Siqueira, pesquisadora do grupo Áfricas do LEDDES e Washington Santos Nascimento, doutor em História Social (USP) e professor da UERJ. Nesse artigo, os autores verticalizam a análise do pensamento social de Xitu, acerca das suas leituras sobre o universo kimbundu e as simbologias religiosas esquadrinhadas de maneira comparativa com o Brasil.

O primeiro artigo livre é um ensaio de Egbert Alejandro Martina, um intelectual elaborador do blog Processed Life e de Patricia Schor, pesquisadora afiliada à Universidade de Utrecht, Holanda, traduzido por Daniel Mandur Thomaz, pesquisador vinculado à Universidade de Oxford. Os autores trabalham com populações racial e etnicamente segregadas pelo planejamento urbano e gestão espacial holandeses. Um ensaio rico que certamente incitará ao leitor brasileiro comparações com os processos de vulnerabilização alicerçados em raça e classe existentes em nosso país e como eles também se espacializam em nossas cidades.

A História Econômica, campo que sofreu uma certa retração na produção recente da historiografia brasileira, diferencia-se neste número mais preocupado com questões culturais e sociais, com o artigo de Daniel Henrique Rocha de Sousa, Professor de Economia do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), sobre os Monetaristas X Papelistas: Modelos Econômicos Importados e Inaplicáveis ao Brasil da Transição Republicana. Parafraseando o título do fundante artigo de Robert Schwarz, podemos dizer que Daniel de Souza aponta como vários modelos econômicos que se tentaram então aplicar no Brasil eram políticas econômicas “fora de lugar”.

Fechando a sessão de artigos livres, volta-se a abordagens caras à linha de pesquisa “Vulnerabilidades e Controle Social” também do LEDDES como a dos filósofos Nietzsche, Foucault e Deleuze. Esses autores são operados por Kássia de Oliveira Martins Siqueira, assistente social, doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), para contraditar as práticas de atendimento a adolescentes portadores de câncer em um hospital público do Rio de Janeiro.

Retomando o entrançar com as temáticas de nosso dossiê, a seção Notas de Pesquisa abre-se com o projeto de pesquisa de Angélica Ferrarez de Almeida, doutoranda (UERJ), assentado na literatura oral dos griôs senegaleses, recolhida entre 1960 e 1980, momento em que se está estruturando o Estado senegalês. Inquietado com as relações entre a linguagem, a memória e o poder, o projeto põe em alto relevo uma série de questões para solucionar.

Enlaçando a nossa africana teia, Carolina Bezerra Machado, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), propõe-se sondar as relações de poder na sociedade angolana, tais como são imbricadas em quatro romances de um dos maiores escritores de Angola, Pepetela. Os textos desse intelectual revelam que a literatura não é apenas “ficção”, mas pode nos oferecer os enredos que transpassam das macroestruturas do Estado à porosidade das micro- relações de poder que se entrelaçam na sociedade civil angolana.

Por fim, Marilda dos Santos Monteiro das Flores, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), propõe analisar Uma Cena: O uso do filme como estratégia para (re) construção da identidade dos Retornados de Angola (2005-2010). Sua pesquisa versa sobre como um filme e um livro, esse último, fruto de entrevistas jornalísticas, de investigação em arquivos e em jornais portugueses, são utilizados como dispositivos da preservação da memória e da ideação identitária dos retornados de Angola a partir do estertor do processo de descolonização.

Esperando termos entretecido belas e policrômicas narrativas como as texturas estampadas em nossa capa, desejamos uma saborosa leitura a todos, despertando novas reflexões e inauditos debates.

Silvio de Almeida Carvalho Filho – Professor Doutor (LEÁFRICA / UFRJ)

Washington Santos Nascimento – Professor Doutor (AFRICAS – LEDDES / UERJ)

Rio de Janeiro 22 de março de 2016.


CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 6, n.6, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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