High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich | Norman Ohler

O livro High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich foi lançado em 2015, pelo romancista, roteirista e jornalista alemão Norman Ohler, e tornou-se imediatamente um bestseller na Alemanha, EUA e Grã-Bretanha, sendo traduzido até o momento para mais de 25 países. Essa é a primeira obra não ficcional do autor, que assume no prólogo que não pretende conceber um ensaio historiográfico, mas sim “uma perspectiva inconvencional e distorcida” ( Ohler, 2017 , p.13).

Embora Ohler tenha se valido de fontes documentais inéditas e valiosas, ao não adotar um procedimento teórico-metodológico mínimo, acaba por fazer afirmativas sem respaldo empírico. A polêmica obra descreve em tons fortes e com linguagem jornalística a necessidade crescente da utilização de estimulantes sintéticos pela sociedade alemã em geral e pela cúpula do Terceiro Reich em particular no período de 1933 a 1945. Além disso, o autor apresenta um amplo panorama no qual aborda historiograficamente a grande importância do segmento industrial químico-farmacêutico alemão na síntese de anfetaminas e “narcóticos que marcaram os acontecimentos no Estado nazista e nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial” ( Ohler, 2017 , p.12). Leia Mais

O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista – OBENGA (CTP)

BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Resenha de: AGUIAR, Fábio Fiore. Münchener Post: o Periódico que Combateu o Nazismo. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 16, p. 80-82, maio/julho 2014.

Este livro de Silvia Bittencourt abre caminho para uma reflexão sobre a resistência alemã na imprensa contra o regime nazista. O livro trata do periódico Münchener Post, que durante as décadas de 20 e 30 do século XX combateu Hitler e seus correligionários durante a ascensão do regime nazista.

A autora conheceu o Münchener Post por meio do livro do jornalista Ron Rosenbaum, intitulado Para entender Hitler. Ela afirma que nesta obra, Rosenbaum faz um desafio para que algum alemão narre à história daqueles homens do Post. Ela aceita o desafio. Jornalista brasileira, mas morando a mais de 20 anos na Alemanha, Silvia Bittencourt realiza uma grande pesquisa nos arquivos do Münchener Post, e o resultado é o agradável livro A Cozinha Venenosa.

Em sua introdução, a autora chama atenção para o fato de ser uma história desconhecida, nunca relatada na história do jornalismo, sendo seu livro uma obra pioneira sobre os anos de resistência do Münchener Post ao regime nazista. A autora mostra que “a maioria dos netos e bisnetos dos redatores, colaboradores e advogados do jornal sabe muito pouco da atividade audaciosa, arriscada e persistente de seus avôs e bisavôsII”. Tal fato torna a pesquisa de Bittencourt ainda mais importante, pois muda a memória ou lacuna de esquecimento que se tinha sobre a resistência alemã em relação à ascensão nazista.

As décadas de 1920 e 1930 foram marcadas pela instabilidade política do pós-guerra, sendo uma época de radicalizações políticas, terreno em que Hitler e o NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) encontrariam espaço para difundir suas ideias de ódio e seu antissemitismo. No entanto, ao contrário do que se sabia até o lançamento deste livro, o partido nazista encontraria forte resistência na imprensa, pela parte do jornal de esquerda, vinculado ao partido social-democrata, o Münchener Post.

Era um jornal local, circulava na cidade de Munique, tendo uma tiragem modesta. No início da década de 1920, chegou em sua melhor fase, “a rodar tiragens de 60 mil exemplares, com 12 páginas diárias. O Crash de 1929, entretanto, pôs tudo a perderIII”. O jornal foi empastelado, destruído pelos nazistas por duas vezes, na última, em 1933, após a tomada de poder pelos nazistas foi fechado de vez.

O Post foi o primeiro jornal a alertar sobre o perigo do discurso antissemita de Hitler e do NSDAP, e logo o elegeu como principal adversário político a ser derrotado. O Post estava ligado ao partido social-democrata, representando em suas páginas a luta e as bandeiras do partido. Da mesma forma, contudo, o partido nazista também utilizava a imprensa para divulgar seu programa de governo, através do periódico Völkischer Beobachter. Quando a SA (tropa de assalto nazista) destruiu a sede do Münchener Post, o jornal de Hitler noticiava: “A cozinha venenosa na Altheimer Eck foi demolidaIV”. Cabe dizer que o jornalismo deste tempo se difere em muito do praticado atualmente, que mesmo sendo influenciado por patrocinadores, não serve como plataforma política de um partido, ou ao menos não deveria.

Adolf Hitler se referia ao Münchener Post como Münchener Pest, ou “a cozinha venenosa”. “Cozinhar, no jargão da imprensa, é reescrever um texto já publicado. No caso do Post, Hitler dizia que o jornal preparava seus textos com venenoV”. E o Post era realmente sensacionalista, em uma época de extremos o mais importante é vencer o inimigo, os meios para isso não precisam ser os mais corretos. Assim, o Post publicava matérias sem realmente ter certeza de sua fonte de informação, de maneira sensacionalista o importante era flechar o golpe. Um caso citado por Bittencourt foi o ataque do Münchener Post a sexualidade do comandante da SA Ernst Röhm. Era de conhecimento geral que o líder das tropas de assalto nazista era homossexual, contudo não se haviam provas. No entanto chegaram às mãos do Münchener Post cartas que provavam a homossexualidade de Röhm. O Post se viu em um dilema, “era oficialmente a favor da descriminalização do homossexualismo. Para os jornalistas da Altheimer Eck, no entanto, a tentação de atingir uma das figuras mais próximas de Hitler falou mais alto do que o dilema moralVI”.

Após a tomada de poder pelos nazistas o Münchener Post foi destruído, e seus editores presos. Alguns conseguiram fugir da Alemanha e o regime nazista finalmente detinha exclusividade na divulgação de notícias. De acordo com Bittencourt, “até o final de 1936, entre quinhentas e seiscentas publicações desapareceram no país, fechadas pela horda nazistaVII”.

O livro traz um conjunto de fotografias da época e uma coletânea de algumas matérias publicadas pelo Post. Apresenta boa escrita, certamente uma leitura interessante e agradável.

O debate sobre a imprensa durante a Segunda Guerra é de interesse geral, assim como a obra de Silvia Bittencourt. Sua pesquisa pode clarear nosso presente, trazendo ao público uma história que ficou desconhecida, mas que sobremaneira não deveria. Atualmente não há no antigo prédio do Münchener Post uma placa ou homenagem aos jornalistas daquele jornal. O livro de Silvia Bittencourt vem fazer justiça àqueles homens que lutaram contra o regime nazista, um monumento em homenagem aos jornalistas do Münchener Post. É o tipo de história que vale a pena ser contada, que move o presente, e não só faz justiça aos jornalistas deste periódico, como acrescenta linhas de resistência à história alemã contra o regime nazista. “Quem passeia hoje pela Altheimer Eck, distraído, está desfrutando da herança deixada por aqueles homens, que nunca perderam a esperança na construção de uma Alemanha livre e pacífica”.8

Notas

2 BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013, pp. 9.

3 Ibidem, p. 16.

4 Ibidem, p. 144.

5 Ibidem, p. 13.

6 Ibidem, p. 232.

7 Ibidem, p. 238.

8 Ibidem, p. 308.

Referência

BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

Fábio Fiore de AguiarMestrando em História pela UEL. Bolsista da CAPES.

Acesso à publicação original

La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica – VIÑAS (H-Unesp)

VIÑAS, Ángel. La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica. Barcelona: Crítica, 2012. 406p. Resenha de: AVILA, Carlos Federico Domínguez. História [Unesp] v.31 no.2 Franca July/Dec. 2012.

O livro de Ángel Viñas é uma síntese de 40 anos de pesquisas sobre a traumática guerra civil espanhola (1936-1939). Após décadas de estudos, investigações e publicações em numerosos países, Viñas entrega aos leitores – especialistas e leigos – uma obra de notável valor intelectual, de altíssima consistência teórico-metodológica e de exemplar transcendência historiográfica.

A guerra civil espanhola foi um dos acontecimentos mais dramáticos do século XX, em particular, e da história contemporânea, em geral. Seu impacto e desdobramentos ainda provocam debates e polêmicas no cotidiano do povo espanhol – eis os casos da recente exoneração do juiz Baltazar Garzón ou da questão separatista da Catalunha – e das dezenas de milhares de espanhóis e descendentes que, logo após a derrota da República, tiveram que se exilar em outros países e continentes, especialmente na França e no México.

A obra de Viñas é particularmente convincente ao estudar a dimensão exógena do conflito – afinal, trata-se de livro de história das relações internacionais. Ao longo de mais de 400 páginas, o historiador espanhol explora documentalmente as convergências e divergências entre as principais potências com vínculos e interesses do devir daquela conflagração. A esse respeito, cumpre mencionar que o livro aborda detalhadamente as percepções, as prioridades e as políticas instituídas pela Alemanha de Hitler, pela Itália de Mussolini, pelo Portugal de Salazar, pela União Soviética de Stalin, pela França de Blum, pelo Reino Unido de Baldwin e de Chamberlain e, em menor medida, também pelos Estados Unidos de Roosevelt e pelo México de Cárdenas. Evidentemente, Berlim, Roma e Lisboa apoiaram de forma alta e crescente o esforço bélico do lado franquista; Moscou e, modestamente, Paris ajudaram o lado republicano-democrático. Outrossim, o livro questiona duramente a atitude ambivalente e, finalmente, favorável ao franquismo, do governo inglês.

A dimensão endógena da guerra civil espanhola é explorada de forma menos intensa. Mesmo assim, personalidades e organizações políticas, sociais e militares de diferentes orientações ideológicas são discutidas com propriedade e equilíbrio. Lembremos que o conflito espanhol foi particularmente complexo ao envolver atores com uma imensa e polarizada diversidade de propostas e alternativas, inclusive os seguintes: socialistas, republicanos, comunistas, falangistas, monarquistas, anarquistas, ruralistas, integristas católicos, regionalistas (catalães e bascos), e militaristas.

E da interconexão das dimensões endógena e exógena da guerra civil surge, vale reiterar, uma obra paradigmática. Em outras palavras, o livro de Viñas é uma obra magistral, e seus resultados são mais que satisfatórios.

Na conta dos aspectos problemáticos ou negativos, mencionem-se fundamentalmente algumas ponderações excessivamente desdenhosas que o autor do livro utiliza para criticar as publicações de autores pós-franquistas. Salvo melhor interpretação, essa tentativa de caçoar ou denegrir o trabalho alheio – mesmo quando se trata de publicações acadêmicas de desafetos – acaba sendo um despropósito.

Em conclusão, a obra de Ángel Viñas é sumamente importante, inclusive para os autores brasileiros. Em consequência, fazemos votos de que esse livro seja eventualmente traduzido para o português. E que sua leitura incentive novas pesquisas de historiadores brasileiros sobre um assunto de grande relevância e, a meu ver, pouco investigado nos arquivos do País.

Carlos Federico Domínguez Avila – Doutor em História das Relações Internacionais, Docente do Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro e do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília – UNICEUB.

Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin – SYNDER (LH)

SYNDER, Timothy. Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin. New York: Basis Books, 2010. 524 p. Resenha de: LOI, Stefano. Ler História, n.62, p. 206-210, 2012.

1 Uma parte importante da historiografia contemporânea é constituída pelos estudos que se debruçam sobre o confronto político e bélico entre as ideologias – e os Estados construídos em volta delas – que marcaram profundamente a vida europeia da primeira metade do século XX, nomeadamente o comunismo na sua realização russa e as ideologias de extrema-direita como o fascismo e, especialmente, o nacional-socialismo alemão. A obra de Timothy Snyder inscreve-se nesta corrente historiográfica, pois tenta oferecer novas perspetivas sobre as consequências que a aplicação das ideologias políticas acima referidas teve na população que as experienciou e que viveu o confronto bélico entre os países moldados por estas ideologias, ou seja, a União Soviética e a Alemanha. Daí a ambivalência do título da obra do historiador americano: as Bloodlands não foram só as zonas das batalhas europeias da II Guerra Mundial, numa Europa dominada pelas figuras de Hitler e Estaline. Elas foram, de uma forma mais vasta, o espaço geográfico compreendido entre o rio Oder e a Roménia, no Oeste, e Leningrado e Estalinegrado, no Leste, onde os Estados nazi e comunista colocaram em prática os princípios ideológicos do comunismo e do nacional-socialismo. Foram, depois, o lugar físico onde se confrontaram militarmente a União Soviética e a Alemanha durante a II Guerra Mundial. As «Terras Sangrentas» são, portanto, os lugares politica e militarmente disputados por Hitler e Estaline, ou seja, a Europa, numa declinação política do confronto entre o ditador austríaco e o ditador georgiano, com destaque no Leste europeu, em particular, na vertente sobretudo ideológica e militar deste confronto, um espaço mais limitado no coração da Europa Oriental.

2 O objetivo principal da obra de Snyder é a descrição dos eventos que marcaram as «Terras Sangrentas» entre 1933 e 1945, período em que, com a evolução política em sentido ditatorial da Alemanha hitleriana, a interação política entre Alemanha e União Soviética marcou o início de uma nova fase da vida europeia. O mesmo autor sugere uma cronologia da dúzia de anos que analisa: a primeira fase, entre 1933 e 1939 é marcada por uma mais acentuada atividade de repressão por parte do regime soviético, com destaque para a grande carestia na Ucrânia entre 1932 e 1934 e a Grande Purga de 1936-1938; a segunda fase, entre 1939 e 1941, é a fase da aliança entre as duas ditaduras através do Pacto Molotov-Ribbentrop, fase caracterizada por uma ação militar ofensiva e repressiva comparável entre as duas potências; enfim, uma terceira fase, entre 1941 e 1945, na qual é a Alemanha nacional-socialista a causar o maior número de mortos e na qual se enquadra o drama da Shoah. Ainda mais, o campo de investigação do historiador americano limita-se à violência desencadeada nas Bloodlands no período acima referido, excluindo as vítimas dos combates entre os exércitos alemão e russo começados com a invasão da Polónia pela Wehrmacht e acabados em maio de 1945, com o cerco de Berlim pelo Exército Vermelho. Snyder quantifica os holocaustos contra a população civil e os judeus nas Bloodlands em cerca de 14 milhões de mortos.

3 A ampla obra de Snyder estrutura-se num prefácio, introdução, onze capítulos e conclusão. O objetivo do prefácio é enquadrar a obra, explicando o que são as Bloodlands, o que lá aconteceu, quando aconteceu, e introduzir os «protagonistas» da obra: Estaline, Hitler e as vítimas do furor ideológico dos ditadores. A introdução e os onze capítulos do livro constituem uma ampla descrição dos eventos que marcaram a história das «Terras sangrentas» entre a tomada do poder por parte de Hitler até à queda de Berlim, em 1945, com algumas referências à situação política na Europa oriental entre o final da I Guerra Mundial e 1933 – o período em que se criaram os pressupostos políticos e sociais para o desenvolvimento do estalinismo e do nacional-socialismo – e alguns aspetos da política interna soviética entre a queda de Berlim em 1945 e a morte de Estaline em 1953. Do ponto de vista de escrita histórica, ao corpo central da obra de Snyder faltam muitos aspetos de problematização dos acontecimentos, sendo a narração orientada quase exclusivamente para a descrição sic et simpliciter dos holocaustos que foram perpetrados nas regiões da Europa Oriental. Deste ponto de vista, os objetivos de síntese e descrição que o autor estabeleceu são cabalmente cumpridos através da análise minuciosa de um amplíssimo conjunto de fontes primárias e secundárias que exploram os testemunhos diretos dos massacres e obras de síntese sobre os principais acontecimentos daqueles anos. A capacidade de síntese de Snyder emerge da sua habilidade em criar um fio condutor entre política, economia, ideologia e imanência dos acontecimentos bélicos que contribuíram para a criação das «Terras sangrentas».

4 Como já foi referido, o problema principal na introdução e no corpo central da obra é a falta da problematização dos factos históricos. A escrita do autor segue os princípios da historiografia descritiva, adotando uma estrutura dos capítulos recorrente, resumível na tríade dos números – quantos mortos houve na fração temporal examinada –, descrição dos factos e apresentação dos testemunhos através das suas próprias palavras. A problematização dos acontecimentos, as razões dos eventos e o cruzamento com o devir histórico estão ausentes da maior parte da obra, embora se coloquem questões interessantes que, todavia, não foram aprofundadas: é o caso das ligações entre o tratamento dos judeus e dos prisoneiros de guerra soviéticos por parte das autoridades nacional-socialistas consoante a dicotomia necessidade de alimentos / necessidade de mão de obra; a avaliação das várias «soluções finais» previstas por Hitler e seus colaboradores perante a «ameaça judaica»; a ligação entre os massacres e os momentos de crise na União Soviética e na Alemanha nacional-socialista; o papel desempenhado pelos outros países beligerantes no que diz respeito aos massacres contra as populações civis e os judeus no período da aliança entre Alemanha e União Soviética, bem como nas fases finais da guerra.

5 A falta de problematização histórica no corpo central do livro virá a ser recuperada nas conclusões, provavelmente a parte mais fecunda de toda a obra. Aí o historiador americano, para além de um resumo das cifras de mortos no período analisado, tenta problematizar os acontecimentos e explicar mais em profundidade as razões que o levaram a escrever o livro. Entre os problemas historiográficos mais interessantes que o autor refere vale a pena citar a ideia dos massacres como resposta natural de ambas as ditaduras perante uma «falha», ou seja, um resultado não alcançado ou um desvio dos planos estabelecidos que, por causa da rigidez das ideologias, não podia ser pensado (unthinkability nas palavras de Snyder) e que, desta forma, era considerado como uma conspiração de alguém contra a ordem estabelecida e contra a tentativa de desenvolvimento destas sociedades. Para além desta «teoria dos massacres», Snyder propõe nas conclusões uma interessante comparação articulada entre os sistemas político-ideológicos nacional-socialista e comunista, referindo-se também aos estudos de Hannah Arendt e de Vasily Grossman. Segundo Snyder para reconhecer as diferenças entre os dois sistemas é necessário reconhecer os pontos em comum. Por fim, Snyder explica melhor os meios que os nazistas – sobretudo as Waffen-SS – usaram para perpetrar os massacres contra os judeus e os prisoneiros de guerra, especialmente entre 1941 e 1945, tentando assim quebrar um conhecimento aproximativo dos acontecimentos, dos meios e das razões que levaram aos massacres nos campos de concentração e nos locais da morte (killing sites) de milhões de pessoas, conhecimento esse que se encontra difundido na maioria do público não académico interessado pela história da II Guerra Mundial.

6 Provavelmente a perspetiva mais interessante do livro encontra-se nas últimas páginas das conclusões, onde se referem os objetivos mais profundos que levaram o autor a escrever a obra. O assunto sobre o qual o autor se interroga diz respeito ao uso dos números na narração histórica. O historiador americano expressa claramente e inteligentemente que os números, como no caso das vítimas dos massacres da II Guerra Mundial, servem essencialmente para sustentar uma política, uma ideologia ou uma propaganda direcionada para um objetivo claro e, por esta razão, é necessário ponderar muito o uso das cifras no trabalho historiográfico, particularmente no caso de acontecimentos históricos recentes. Essa utilização dos números ainda hoje exalta os ânimos da sociedade, como no caso da Shoah ou dos holocaustos da época de Estaline. O autor considera ainda que a tarefa do historiador é ligar os números à memória e não fornecer dados brutos que, implicitamente, podem ser usados por propagandistas para apoiarem as suas teses, tornando-se por isso factos políticos e já não elementos de análise histórica, como de facto já acontece, por exemplo, com os revisionistas da Shoah. O objetivo principal da obra de Snyder é, assim, criar ligações entre os números e as memórias de quem viveu aqueles momentos trágicos da história que não é só a história das Bloodlands mas também a história europeia e a história de cada indivíduo. Por esta razão, não se deveria pensar nos catorze milhões de mortos nas Bloodlands como um enorme número de mortos, porque os grandes números levam necessariamente ao anonimato; o objetivo de Snyder é pensar neste enorme número de mortos como catorze milhões vezes um, pois cada pessoa leva um fragmento singular de uma memória do passado que deve tornar-se história e consciência compartilhada. As palavras de Snyder, neste sentido, são emblemáticas: os regimes nazi e comunista tornaram as pessoas em números e é nossa tarefa, como humanistas, transformar novamente os números em pessoas, caso contrário Hitler e Estaline não modificaram somente o nosso mundo mas também a nossa humanidade1.

7 O objetivo há pouco descrito foi cumprido admiravelmente pelo historiador americano e justifica as amplas partes da sua obra dedicadas aos testemunhos diretos dos massacres perpetrados nas «Terras sangrentas». Pelo contrário, é o mesmo amplo uso de fontes diretas que contribui de forma significativa para a construção de uma narrativa que tem o claro objetivo de impressionar o leitor, de causar uma reação emotiva e suscitar comoção, quando não mesmo horror. Sendo a cadência do corpo central do livro muito descritiva, a construção da narrativa desempenha um papel fundamental nos equilíbrios da obra; é como se o autor tivesse tentado moldar a configuração dos vilões aos protagonistas da história, Hitler e Estaline, corroborando esta tentativa com as vozes das testemunhas, para que um leitor não especialista de história se sentisse familiarizado nas descrições, ou para que, pelo menos, estas coubessem bem na típica dicotomia «bem/mal», sempre muito apreciada pelo grande público. Os primeiros capítulos do livro, de facto, podem parecer uma obra de Robert Conquest2 sem que se vislumbre algum novo equacionar de problemas ou aprofundamento historiográfico. É opinião de quem escreve que não foi por acaso que esta obra, sem dúvida nenhuma interessante e bem escrita, não foi publicada por uma University Press americana, mas sim por uma editora comercial e se tornou um bestseller em quatro países. A construção narrativa de Snyder desvalorizou parcialmente uma obra otimamente estruturada do ponto de vista bibliográfico e que, apesar de tudo, propõe algumas sugestões e problemas historiográficos de claro interesse para a comunidade académica.

8 Retomando afirmações anteriores, provavelmente o problema principal da obra de Snyder é a falta de uma maior problematização dos eventos descritos e uma narrativa que resulta às vezes parcial. Contudo, estas características não devem desvalorizar a força da obra do historiador americano e o enorme trabalho de pesquisa, de avaliação das fontes documentais e a ampla bibliografia em que se alicerça a obra. Em particular, o objetivo que o autor propõe sobre a utilização dos números na narrativa histórica e a problematização do papel dos humanistas perante tragédias como a da Shoah, para além das descrições precisas e pormenorizadas dos factos que aconteceram, tornam Bloodlands uma obra de grande interesse sobre a história contemporânea da Europa Oriental.

Notas

1 Snyder, Timothy, Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin, New York, Basis Books, 2010, p. 383.

2 Refiro-me aqui a Conquest, Robert, The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror Fa (…)

Stefano Loi – Doutorando em História Moderna e Contemporânea e membro do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. A sua área de pesquisa é a história militar dos séculos XIX e XX. E-mail: kazam82@gmail.com

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Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe – MAZOWE (Tempo)

MAZOWE, Mark. Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books, 2008, 725 p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. O Império de Hitler. A “Nova ordem” nazista na Europa, 1939-1945. Tempo v.14 no.28 Niterói jun. 2010.

Vários mitos rondam a história da Alemanha nazista. A princípio, seria esta o Estado mais eficiente que já existiu, já que combinava a tradicional eficiência e organização alemã com o sistema político nazista, o qual seria completamente hierárquico e centralizado. Um super Estado, que funcionaria como um relógio, substituindo a anarquia da sociedade liberal democrática que ele vinha a substituir.

A pesquisa histórica dos últimos anos tem indicado como estas qualificações para o III Reich são, acima de tudo, mistificações, criadas, em parte, pela própria propaganda nazista. O Estado nazista, longe de ser hierárquico e centralizado, era uma verdadeira coleção de instituições, organizações e indivíduos disputando poder e influência. É evidente que Hitler detinha, no limite, o poder de decisão final, mas isso não implicava na formação de uma estrutura tão coesa e hierarquizada como se supunha.

Isso fica evidente, por exemplo, na produção de armamentos durante a Segunda Guerra. Estados Unidos e a Grã-Bretanha conseguiram articular a coordenação estatal com a livre empresa, enquanto a URSS adotou um modelo mais centralizado e com planejamento central. Todos estes países conseguiram aumentar significativamente sua produção bélica durante o conflito, enquanto a Alemanha, o suposto Estado mais eficiente do mundo, ficou muito atrás e isso ocorreu, em boa medida, pelas disputas sem fim de seus líderes e instituições.

Mark Mazower derruba mais um mito sobre a Alemanha nazista em seu novo livro. Em Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe (New York: Penguin Books, 2008, 725 p.), ele demonstra como, ao contrário do que tradicionalmente se imagina, os nazistas não tinham nenhum plano definido e perfeito de como dominar o mundo e que ninguém mais do que eles se espantou com a enormidade de suas conquistas entre 1939 e 1941.

O autor, na verdade, não rompe com a análise tradicional que indica que, nas mentes dos líderes nazistas, haveria sim algumas prioridades e diretrizes gerais a seguir na busca do Império. Unificar todos os germânicos numa grande Alemanha, conseguir o controle da Europa e, especialmente, da Rússia européia, eram os estágios mais ou menos certos a serem seguidos. Um dia, no futuro, talvez, haveria um grande conflito com os Estados Unidos, mas isso estava apenas no campo das especulações, sem nenhuma indicação imediata de que iria ocorrer.

O que Mazower indica é que, na verdade, mesmo para os estágios iniciais, os nazistas não tinham muita segurança do que fazer. A unificação dos povos alemães dentro de um Estado nazista era algo mais ou menos simples de conceber e imaginar. No entanto, mesmo os passos posteriores, apesar de sempre pensados, nunca haviam se convertido em planos e diretrizes prontas a serem aplicadas. Assim, quando quase toda a Europa caiu sobre o controle alemão, entre 1939 e 1941, a ideologia nazista oferecia apenas alguns esboços gerais do a ser feito, sendo necessárias inúmeras adaptações e experiências para tentar delimitar o que fazer.

Assim, em pouco tempo, vários órgãos e instituições começaram a debater sobre como agir frente ao novo Império. A Ucrânia, por exemplo, era vista como o seu futuro celeiro. Mas seria ela um protetorado com algum grau de autonomia ou uma colônia? E a França, seria ela retalhada ou manteria alguma autonomia? E os países nórdicos, fariam parte de algum tipo de confederação germânica ou seriam anexados ao Reich? Essas e outras questões começaram a surgir naqueles anos em que parecia que a Alemanha tinha vencido a guerra e não havia resposta clara a elas.

Claro que algumas diretrizes centrais já estavam mais ou menos estabelecidas. Haveria uma hierarquização geral dos povos europeus com base na doutrina racial e todos os recursos desse espaço serviriam para manter a máquina de guerra alemã e, ao seu final, para o engrandecimento desse Império. Também está claro como haveria povos que seriam mais ou menos tolerados, como os europeus ocidentais, e outros destinados a escravidão, como os poloneses, além, é claro, da eliminação, pela emigração ou morte, dos judeus. Mas isso eram apenas idéias gerais, que, ao serem confrontadas com a realidade, levaram, muitas vezes, a improvisação e a experiências diversas.

Os nazistas tiveram que recorrer, assim, às únicas fontes de inspiração possíveis, ou seja, os velhos padrões colonialistas europeus, os tradicionais objetivos geopolíticos alemães na Europa do Leste e as suas obsessões raciais. Foi com base nisto que eles construíram suas políticas, numa combinação de tradição e novidade realmente notável.

Dessa forma, a ocupação da Polônia, por exemplo, refletia um histórico de luta entre alemães e poloneses que já vinha de séculos, mas os nazistas incluíram, na mesma, um padrão de guerra racial que implicava na impossibilidade de qualquer autonomia para a Polônia. Eles tendiam a ver, no Leste Europeu, um verdadeiro “Far West” nos moldes da conquista americana do oeste, no qual eles exterminariam os povos nativos, ou uma Índia, a ser dominada pela raça superior. Ou seja, eles seguiam padrões tradicionais para o colonialismo europeu, com o diferencial de estarem aplicando estes padrões no continente europeu e os combinando com a obsessão racial.

Estas tradições e obsessões, contudo, eram tão vagas que permitiam que o Exército, o Partido, os diversos ministérios civis, a SS e muitas outras instituições apresentassem a sua versão do correto a fazer, levando a reorganização do espaço europeu a se tornar mais um campo de disputa entre os pólos de poder nazista.

Assim, enquanto Rosenberg e outros líderes políticos queriam oferecer, aos ucranianos, sérvios e mesmo aos russos algum grau de autonomia para atraí-los ao campo do Eixo, a SS e o próprio Hitler preferiam uma política de terra arrasada, de repressão contínua, que acabou por ampliar cada vez mais a resistência.

Já muitos militares e burocratas do Ministério dos armamentos não se conformavam com a morte de milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, ciganos e judeus enquanto a necessidade de mão-de-obra no Reich crescia a olhos vistos. Pessoas do Ministério do exterior, por sua vez, queriam oferecer algum tipo de recompensa mais palpável para os colaboracionistas em toda a Europa, enquanto a SS e outras forças se recusavam a compactuar com os racialmente destinados a obedecer.

Enfim, fica claro como havia um intenso debate a respeito da política a ser seguida. A idéia dos nazistas como monstros que só pensavam em matar e destruir nos faz perder a realidade de que aqueles eram homens que podiam defender, dentro de certos limites, propostas diferentes.

Mazower indica, além disso, como a própria experiência da guerra levou a política nazista a se radicalizar de forma expressiva. Assim, enquanto o “problema judeu” era uma constante no pensamento nazista, a idéia de exterminá-los fisicamente foi emergindo aos poucos, até a criação dos campos de extermínio, não previstos desde o primeiro momento.

Na verdade, tenho dúvidas se todas estas opções menos brutais, que o autor elenca com cuidado, tinham realmente chance de ser colocadas em prática. Em alguns momentos, aliás, Mazower dá a impressão de considerar que todas as várias propostas tinham chances iguais de serem transformadas em políticas, o que me parece complicado. Afinal, mesmo que reconheçamos que havia várias percepções nazistas sobre o mesmo assunto, fato é que o nazismo se caracterizava por uma idolatria à violência e à dominação e a vitória das propostas mais radicais, de dominação total e ostensiva, como as da SS, me parece quase lógica.

Um ponto interessante do livro, igualmente, é quando ele começa a discutir o significado de raça e política racial dentro do pensamento nazista e, especialmente, as inúmeras adaptações que a doutrina racial teve que se submeter para se tornar minimamente prática na organização do novo Império.

Assim, no afã de colonizar as partes ocidentais da Polônia, substituindo os poloneses por alemães, eles encontraram um problema demográfico insuperável. Não apenas os poloneses eram numerosos, como não havia germânicos em número suficiente para substituí-los. A solução, em boa medida, passou pela germanização forçada de muitos poloneses que tinham as características adequadas para serem assimilados, numa louca tentativa de encontrar alemães para os objetivos colonialistas do regime.

Duas questões de interesse emergem, a meu ver, dessa sua observação. A primeira é que o nacionalismo etno-linguístico do século XIX e a visão mais racialista do nazismo não eram completamente incompatíveis. As discussões sobre raças, na Europa do XIX, giravam sempre em torno de questões de língua e cultura, com a possibilidade de aculturação e assimilação do “outro” sempre presente. Mas havia também um tom racial, que identificava uma determinada cultura com determinada raça e nem sempre se aceitava que a assimilação desta ou daquela raça era aceitável e/ou desejável.

A Alemanha nazista inverteu esse padrão, absorvendo os ideais do racismo científico e levando a raça ao posto de divisor central entre povos e pessoas. Mas um tom etno-cultural também existia. Assim, havia eslavos mais próximos da cultura alemã, como parte dos tchecos, que poderiam ser assimilados, enquanto os poloneses, dado a histórica rivalidade entre os dois povos, só o seriam em mínima parte. O nazismo levou o racismo biológico ao seu máximo desenvolvimento, mas as idéias de assimilação cultural e lingüística também estavam presentes, sendo judeus e ciganos, provavelmente, os únicos aos quais essa possibilidade foi cem por cento negada.

O segundo ponto que me chama a atenção é a facilidade com a qual Estados quase totalitários, como a Alemanha de Hitler, planejaram e executaram projetos de engenharia populacional de uma magnitude inacreditável. Discutia-se a morte ou o deslocamento de dezenas de milhões de pessoas e a reorganização espacial de todo um continente com uma facilidade impressionante. Em um momento, chegou-se a imaginar até o envio de milhões de eslavos ao Brasil, o qual, em troca, devolveria a população de origem germânica ali emigrada (p. 209). Um total absurdo, mas que indica a facilidade com que estes projetos de reorganização espacial e populacional eram pensados e como, no caso nazista, eles foram colocados em prática ao menos em parte.

A ironia maior indicada pelo livro, contudo, é a de que o próprio estilo de administração alemã da Europa ocupada colaborou para o seu fim. Ao pilhar toda a economia européia (ao invés de permitir o seu desenvolvimento), desperdiçar a sua força de trabalho em massacres inúteis e não oferecer nenhuma opção aos povos dominados que não a dominação, o nazismo não conseguiu extrair, do continente, tudo o que poderia em termos de força militar, o que facilitou a sua derrota pelos Aliados. Na sua brutalidade, na sua violência gratuita, estava a semente da sua destruição. Uma conclusão não inédita, mas que ele consegue detalhar e explicitar em detalhes.

O livro de Mazower, assim, é uma leitura que vale a pena. Ele não explora fontes primárias e se baseia, em essência, na imensa bibliografia acumulada sobre o tema nas últimas décadas. Em alguns momentos, o esforço para absorver e reorganizar toda a massa de informação recolhida se transmuta em repetições e numa prolixidade que cansa o leitor. Mesmo assim, é um estimulante relato a respeito dessa história de idéias, adaptações, morte e construção imperial que merece ser lido não apenas pelos especialistas em nazismo ou em políticas imperiais, mas por todos os interessados em estudar o processo pelo qual idéias e (pré) conceitos se adaptam a realidade e, ao mesmo tempo, fazem a realidade se adaptar a eles.

João Fábio Bertonha – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá/PR e Pesquisador do CNPq. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com.

O Hitler da História – LUKACS (HE)

LUKACS, John. O Hitler da História. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, 250p. Resenha de: FERRAZ, Francisco César Alves. Hitler, a História e a Historiografia. História & Ensino, Londrina, v. 5, p.169-170, out. 1999.

Adolf Hitler foi, sem dúvida, a personalidade mais importante da história do século XX. Por mais que possamos reagir com merecida indignação a qualquer esforço de legitimação ou reabilitação dos atos que, direta ou indiretamente, desencadeou, não podemos negar que, para o bem e para o mal, o século que está terminando não seria o mesmo sem ele e o que ele representou e ainda representa.

Mas o que significa a trajetória de um único homem no fluir da história? Pergunta interessante, sempre presente nas discussões sobre a biografia como uma modalidade do conhecimento histórico. Nos bancos escolares, aprendemos que homens sozinhos não fazem a história, mas grupos sociais (sejam estes classes, estamentos, grupos políticos, religiosos, étnicos, etc). Mas será que o caso de Hitler se encaixa neste princípio geral? Afinal, qual o lugar de Hitler na história da Alemanha, da Europa e do século XX?

Essas e outras questões importantíssimas para o entendimento da história mais recente da civilização ocidental são a base para O Hitler da História, livro de John Lukacs, historiador húngaro radicado nos Estados Unidos. Nele, o autor analisa a imensa variedade de biografias e estudos sobre Adolf Hitler, uma massa historiográfica que soma mais de uma centena de títulos, se ficarmos apenas nas obras consideradas “mais sérias” ou de maior repercussão.

Lukacs inicia seu rigoroso balanço das biografias e interpretações sobre Hitler com um pressuposto básico: embora moralmente compreensível, a demonização de Hitler não contribui em nada para entender seu papel na história. Mais do que simplesmente condenar Hitler pelos males da guerra e do nazismo, é preciso compreendê-lo historicamente, cotejar as fontes documentais, entender os influxos do passado e do presente nas interpretações sobre o líder nazista.

Somos apresentados, assim, a um debate que envolveu historiadores que procuravam entender o fenômeno Hitler e, ao mesmo tempo, entender o lugar dos alemães naquele passado. Esse debate foi marcado ideologicamente pela Guerra Fria e seus maniqueísmos. Enquanto historiadores “de esquerda” procuravam definir Hitler e o nazismo ora como fenômenos da extrema-direita alemã e européia, ora como decorrências históricas do imperialismo capitalista, outros, auto-denominados “conservadores”, procuravam explicar o Terceiro Reich como uma anomalia, um desvio da história alemã, ou mesmo como uma resposta histórica a um mal maior, que seria representado pelo então totalitarismo comunista. Na esteira dessas variadas interpretações, documentos de toda espécie eram invocados para corroborar tais afirmações, enquanto outros seriam desprezados por negá-las ou colocá-Ias em dúvida.

Dessa maneira, o leitor é sempre lembrado de que não basta ser uma interpretação tradicional ou mesmo inovadora, se ela não estiver respaldada em metodologias e aparatos documentais coerentes e abrangentes. Neste ponto, Lukacs é particularmente ácido nas críticas a obras que, nos meios acadêmicos brasileiros, são bastante prestigiadas, como Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt (que critica pelo uso arbitrário e assistemático de fontes, “cheio de falhas e desonesto”) e Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de William Shirer (“superficial e germanófobo”).

Após esse breve balanço, Lukacs elegeu alguns problemas históricos e historiográficos da vida de Hitler e qual a relação desses com a história da Alemanha e do mundo na primeira metade do século XX. Alguns desses problemas são tão fundamentais como polêmicos, para o entendimento do lugar de Hitler na história.

a) As idéias e crenças de Hitler a respeito da política, dos judeus e do papel da Alemanha no mundo consolidaram-se em Munique, após a primeira Guerra Mundial.

Para Lukacs, se existem indícios suficientes para apontar

o período vienense como a base para o seu germanismo e antisemitismo, a consolidação dessas idéias e a luta para transformálas em realidade, porém, só puderam acontecer após a derrota alemã e o fracasso da revolução comunista na Baviera em 1919. Em Munique, Hitler descobriu ser um orador de talento, e que suas idéias encontravam ressonância: o repertório de ódios explícitos aos judeus, aos comunistas, aos “traidores da Alemanha”, aos inimigos de Versalhes (p.50-61) encontrou terreno fértil na Baviera e, depois, no resto do país.

  1. b) Hitler foi, a seu modo, mais revolucionário do que reacionário.

Depois de discorrer sobre os problemas da definição do que é ser revolucionário e/ou reacionário, Lukacs afirma algo que apenas alguns inimigos contemporâneos a Hitler (como Winston Churchill) intuíram: Hitler era perigoso por ser revolucionário, e não por ser reacionário. Muitas das idéias de Hitler eram modernas. Em que pese seus métodos, sob sua liderança, a Alemanha transformou-se numa potência econômica e tecnológica mais respeitável do que era antes da Primeira Guerra Mundial, com auto-estima e prosperidade recuperadas (p.78). E dentre os ingredientes da modemidade de Hitler, estava sua habilidade para conquistar tanto as classes conservadoras quanto as massas em um mesmo discurso de transformação e mudança. Nas palavras de Lukacs,

o que isso significa para o passado recente o historiador pode -e tem o dever de reconhecer: que Hitler foi um novo tipo de revolucionário, um revolucionário populista em uma era democrática, não obstante os elementos mais antigos das instituições e da sociedade alemã ainda existentes em sua época, muitas das quais ele sabia usar para seus próprios fins (p.88).

  1. c) Ele era mais nacionalista que racista.

Embora a questão racial fosse fundamental para toda sua ideologia, sua racionalidade política buscava, quando lhe convinha, apoio em japoneses, chineses, árabes, croatas, romenos, etc, desde que isso significasse auxflio no combate aos inimigos dos “arianos” (p.94). Além disso, a despeito de não se encontrar claramente uma definição diferencial de Hitler se a “Raça Ariana”ou a “Nação Alemã” é que iria governar seu mundo, existem indícios suficientes de que seu pensamento e ação elegiam a Nação Alemã, concebida sob prisma mais cultural que biológico. A Nação seria a realização histórico-cultural do Volk (Povo), liderada não por um Estado tradicional de funcionários públicos, mas por um Volkgenossenstaat, um “Estado de camaradagem do Povo”. Assim, segundo Lukacs, diferenças entre arianos e negros, amarelos, etc não chamavam tanto a atenção de Hitler quanto àquela que dizia respeito à “luta dentro da raça branca, entre arianos e judeus”. Os judeus seriam sua obsessão, por viverem entre os “legítimos membros da nação alemã”. E nesse ponto, seu ódio obsessivo aos que considerava “inimigos da nação” era insuperável (p.98).

  1. d) De certa maneira, Hitler foi um estadista e estrategista competente

Assim como o êxito do líder alemão deveu-se, em grande parte, à sua subestimação pelos seus inimigos e aliados de ocasião, muitos historiadores desprezam-no a priori como estadista e estrategista. Lukacs, no capítulo mais longo do livro, recoloca em discussão o problema. Para ele, Hitler demonstrou, principalmente no período que antecedeu a guerra, atitudes de estadista que eram esperadas de líderes de potências européias daquele tempo. Embora condenáveis moralmente, sua política possuia uma celia racionalidade na adequação dos meios (muitas vezes ultrajantes) para os fins que se propunha. Na Alemanha de Hitler, a política interna e externa se apoiavam mutuamente.

Do ponto de vista estratégico, suas decisões, se examinadas friamente, tiveram sucessos retumbantes embora, a longo prazo, terminassem em fracassos flagrorosos. Apesar da oposição de alguns generais do Exército, a prioridade às forças terrestres de rápida mobilidade não apenas garantiu as vitórias iniciais alemãs como contribuiu para drásticas mudanças nas doutrinas de guerra de então. Mesmo aquele que é apontado como como seu maior equ ívoco estratégico -a criação da Segunda Frente, ao invadir a União Soviética -pode ser entendido a partir da suposição de Hitler de que as principais potências capitalistas (Inglaterra e Estados Unidos) hesitariam em combater mortalmente a nação que pudesse subjugar a ameaça bolchevique. Lukacs chama a atenção para documentos que mostram que, até as vésperas do fim, Hitler acreditava que a aliança “improvável” entre o Ocidente capitalista e a potência comunista poderia ser rompida (p.115 e segs.). E conclui com uma ressalva: se por um lado sentiu-se “obrigado a enfatizar que ele [Hitler] possuía talentos políticos e militares”, por outros, esses “coexistiam com obsessões não raro fanáticas”. Além disso, embora Hitler não tenha sido o autor de todas as decisões e ações do Terceiro Reicl1, ele sabia que suas principais diretrizes eram cumpridas fielmente. E por isso é que “ele foi sem dúvida responsável pelas maldades mais brutais cometidas por seus esbirros (p.126)”.

  1. e) Não há como dissociar Hitler da “Solução Final” dos Judeus.

Embora tenha havido tentativas, como a de David Irving, de eximir Hitler de qualquer responsabilidade de planejar e ordenar a execução em massa dos judeus (afirmando que quem planejara e ordenara tudo foram os auxiliares de Hitler, sem seu conhecimento e autorização), o que a vasta documentação e as interpretações mostram é que ele ordenou -ou pelo menos consentiu com -o extermínio em massa dos judeus, o que ficou conhecido como a “Solução Final”. Se não foi encontrada sua “assinatura” em documentos dessas espécie, isso só prova uma coisa: havia um mínimo de consciência de que o que se estava cometendo era uma atrocidade sem pararelos, e isso obviamente não podia ser documentado, ainda mais na iminência de uma invasão aliada (p.135). O que merece ser ainda melhor pesquisado é o quanto a população germânica realmente sabia sobre os campos de concentração e sobre a “Solução Final” e como quem sabia de algo lidava com isso.

  1. f) Hitler foi parte da história alemã, e não um “desvio” acidental e indesejável.

Segundo Lukacs, há entre os alemães uma tendência em ver Hitler como um episódio antinatural na história do país. No entanto, o Terceiro Reich representou muito mais uma continuidade do que uma aberração na história alemã. Isso não quer dizer que Hitler e o nazismo seriam inevitáveis. Mas a ascensão de Hitler e as crenças e atitudes do povo alemão da primeira metade do século estavam intimamente interligadas:

o nacionalismo e a unidade nacional alemã constituíram também forças poderosas durante a I Guerra Mundial. Hábitos nacionais profundamente enraizados de obediência e disciplina persistiram e culminaram na /I Guerra Mundial. A estrutura psíquica (e social) dos sucessos do povo alemão na /I Guera Mundial, porém, mudou, e isto foi tanto condição quanto resultado da ação de Hitler. Sem Hitler, os alemães não poderiam ter conseguido o que conseguiram, e Hitler tampouco poderia ter realizado oque realizou sem opovo alemão ou mais exatamente, sem a aceitação esmagadora de sua pessoa pela maioria (p. 142).

É preciso separar o movimento historiográfico de “reabilitação” de Hitler e dos alemães sob o Terceiro Reich das tentativas conhecidas como “revisionistas”. Esses últimos sequer podem ser considerados como dignos de figurar no debate historiográfico, pois além da pobreza e má fé documental de seus escritos, são sectários escrevendo para um número limitado de leitores, que já estavam convencidos de antemão ou prontos para sê-lo (p.156). De outra natureza são especialistas, alguns com assento nas universidades e institutos de pesquisa e que, inadvertidamente ou não, tentam minimizar os apectos sombrios do Reich e de Hitler, bem como distribuir responsabilidades para outros agentes históricos, como no caso do desencadear da 11 Guerra Mundial, atribuída aos “objetivos bélicos e inflexível má vontade de seus inimigos”. No entanto, Lukacs não aprofunda os porquês de tal posicionamento. Talvez, o que se deve perguntar é como o clima da Guerra Fria e de anti-comunismo contribuiu para justificar e promover aberrações interpretativas como essas…

Trata-se, portanto, de um balanço histórico e historiográfico de grande importáncia, para todos aqueles que se interessam por conhecer melhor Hitler e o nazismo, bem como o debate historiográfico a respeito. É uma obra admirável, de estilo agradável e que aprofunda pontos bastante polêmicos de nossa história mais recente. Para não ficar apenas nos elogios, acredito que pelo menos dois problemas devem ser comentados, embora não comprometam a grandeza do conjunto.

Um deles é seu sistemático desprezo às abordagens marxistas sobre seu tema. Embora tenha alguma razão ao apontar a pouca variação dos argumentos marxistas, ele não desenvolve nehuma discussão aprofundada sobre quais seriam os equívocos dessa corrente, preferindo refugiar-se no chavão de que o marxismo padece de determinismo econômico, como se não existissem abordagens bem distantes desses lugarescomuns.

O outro problema é que, depois de passar o livro todo chamando a atenção para a necessidade de abordagens sem demonizações de qualquer espécie, discorre ao final sobre as “características malignas espirituais” de Hitler, e propõe “a necessidade de uma interpretação cristã de Adolf Hitler (p. 180 e

  1. 240, n. 49 e segs.)”. Particularmente, prefiro sua proposta inicial, de que por mais que provoque nossa indignação moral, é preciso compreendê-lo historicamente, e não como o Anticristo ou a emanação do Mal em seu estado mais absoluto.

Mostrar a crueldade, a monstruosidade e tudo o que é mais abjeto, obscuro e inumano no nazismo é imprescindível, mas nunca será o suficiente. Por mais de 50 anos partilhamos a condenação moral do que acreditamos ser a origem da maior tragédia do século. No entanto, seu espectro resiste, se fortalece e se diversifica (como os grupos neonazis, skinheads, nacionalistas de extrema-direita e os defensores de “limpezas étnicas”, por exemplo), num mundo sem utopias libertadoras e regido pelo pensamento único do mercado. Até agora nos satisfizemos em condenar o nazismo. O desafio, para o presente e o futuro, é compreendê-lo. Mais do que um avanço historiográfico, é um ato de militância pela dignidade da política. E este livro proporciona considerável contribuição para isso.

Francisco César Alves Ferraz – Professor-Assistente do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina-PR.

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Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto – GOLDHAGEN (RBH)

GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37 sept. 1999.

Em 1996, o livro de um jovem professor de Harvard provocou um verdadeiro terremoto no meio universitário europeu e americano, além de uma verdadeira crise de consciência na Alemanha, onde o texto foi lido, relido e provocou imenso debate. Sua tese central: os alemães, como povo, foram ativos e voluntários carrascos dos judeus durante o Holocausto nazista.

Goldhagen refuta categoricamente a idéia de que os carrascos nazistas assassinaram os judeus por coerção, por uma disciplina tipicamente alemã que os levava a cumprir mesmo as ordens que consideravam indignas, por pressão psicológica, ou ainda, numa recusa clara das teses de Hannah Arendt1, por serem burocratas cumprindo suas obrigações, sem se importar com mais nada. Para ele, os alemães massacraram os judeus porque acreditavam realmente que assassinar o povo hebreu era algo necessário e correto, e a base para essa crença seria o anti-semitismo, desenvolvido em séculos de história alemã.

Trabalhando em torno dessa tese, o autor vai procurar demonstrar as origens do anti-semitismo em torno do cristianismo e a sua lenta evolução de um padrão “religioso” onde havia aversão e discriminação (mas onde não se pregava o extermínio e se abriam as portas, ao menos teóricas, da conversão) para um outro “nacional” e cada vez mais “racial”, onde o problema judeu só poderia ser realmente resolvido com a sua eliminação do corpo nacional e racial alemão.

Para ele, o modelo anti-semita alemão, com ênfase na periculosidade e na necessidade de eliminar os judeus, já estava plenamente desenvolvido na Alemanha do século XIX e início do XX. O regime nazista não teria criado, assim, o ódio aos judeus, mas se aproveitado de um sentimento antigo e disseminado pela sociedade alemã como um todo. Tanto seria assim que as leis anti-semitas e o próprio Holocausto teriam sido integralmente apoiados pela sociedade alemã, mesmo entre os grupos (católicos, conservadores etc.) que, por outros motivos, opunham-se ao menos parcialmente, ao Reich.

Hitler e o nazismo sempre teriam tido, sempre segundo Goldhagen, a intenção de efetivar o genocídio. Apenas as condições objetivas teriam retardado o processo até o momento adequado, quando então o massacre dos judeus se tornou a prioridade número um do regime.

O texto procura ressaltar à exaustão que os alemães foram cruéis até o último segundo. Que não eram burocratas executando ordens. Odiavam. Que não foram enganados. Tinham consciência e apreciavam o que faziam. Que não foram coagidos. Eram voluntários. E que, especialmente, os carrascos não eram simplesmente os SS, mas militares, policiais, alemães comuns, os “carrascos voluntários” de Hitler.

A abordagem de Goldhagen é muito interessante em vários aspectos. Em primeiro lugar, a idéia de interromper o estudo da máquina de morte alemã na voz passiva, como se ela fosse apenas uma estrutura mecânica, sem homens de carne e osso que a faziam funcionar e estudar as motivações desses homens é muito importante ao recuperar o seu papel (e a sua culpa) num processo em que eles não eram, sem dúvida, cem por cento passivos.

O livro também cresce ao ressaltar o papel das idéias e das mentalidades no fazer-se histórico. De fato, é uma realidade que o extermínio dos judeus foi realizado contra toda a lógica das necessidades militares e econômicas, e é possível até imaginar que o uso racional da mão de obra judia na economia e nas forças armadas poderia ter levado a Alemanha à vitória na guerra. Em nome da necessidade de eliminar o grande inimigo (cem por cento imaginário, sem dúvida) da raça alemã e de atender o leitmotiv de sua ideologia e uma das bases de sua estrutura mental (o “perigo judeu”), os nazistas podem, paradoxalmente, ter destruído as suas próprias chances de vitória. Nesse sentido, os carrascos não eram, certamente, totalmente passivos e a grande maioria devia considerar que fazia o correto e o justo, por mais repugnante que isso possa parecer.

Pensando nesse sentido, a idéia assustadora levantada pelo autor de que os nazistas foram, talvez, os maiores revolucionários modernos, não deve ser descartada. Eles não pensavam, realmente, em apenas resolver questões de classe e poder, mas em reverter a moral européia, arrasar a herança do moralismo cristão e do humanismo iluminista e criar um novo mundo baseado na biologia, na raça, na dominação e no ódio.

Apesar de tudo, porém, várias das teses de Goldhagen podem ser questionadas. Que havia uma base cultural de séculos que facilitou e muito o trabalho dos nazistas e que eles não criaram e impuseram o anti-semitismo, é algo evidente, mas é grandemente duvidoso que esse anti-semitismo tenha sido tão generalizado e genocida como ele propõe.

De fato, suas provas de que o anti-semitismo era absoluto e incontestável na Alemanha; de que o povo alemão estava total e completamente consciente do que ocorria, que aprovava tudo sem hesitação2 e de que toda pessoa que compartilhasse algum traço de anti-semitismo (por mais sutil que fosse) era um genocida pronto a atuar quando as condições fossem propícias, são muito falhas e não refletem a realidade histórica.

Não sejamos ingênuos. É verdade que a idéia, correta para muitas pessoas, de que os judeus deviam morrer, colaborou para o Holocausto e que, muito provavelmente, as resistências teriam sido muito maiores se, para usar o exemplo do autor, tivesse sido o povo dinamarquês o escolhido para vítima. Esse anti-semitismo, porém, era comum à grande parte da Europa e o autor não consegue provar que o alemão era tão particularmente genocida como ele deseja demonstrar.

Diferenças nacionais frente ao anti-semitismo certamente existiram e determinaram reações diferentes frente ao desejo nazista de exterminar o judaísmo europeu (ver o colaboracionismo báltico ou romeno e a resistência italiana e dinamarquesa), mas não há nada que indique realmente que apenas o alemão, apesar de fortíssimo e com suas peculiariedades3, tinha o ethos cultural que levaria inevitavelmente ao genocídio.

A particularidade da Alemanha nazista, na realidade, é que um grupo particularmente radical e disposto a implantar seus ideais (e dentro destes a eliminação do “perigo judeu” atingia uma importância única), assumiu o poder (fazendo-o não apenas pelo seu anti-semitismo, ao contrário do que propõe o autor) e não só permitiu, como estimulou ao extremo a criação de uma máquina de morte que foi dirigida com especial ênfase e crueldade aos judeus, mas que podia ser transferida (e o foi) contra outros povos e até mesmo contra os próprios alemães, se isso fosse necessário para a manutenção do poder e a criação do “mundo novo” nazista4. Goldhagen apenas consegue isolar o elemento que explica o “tratamento especial” dado aos judeus5 e não aquele capaz de nos fazer compreender a “máquina da morte” nazista como um todo.

Nesse sentido, parece-nos que, apesar das objeções de Goldhagen, as informações e reflexões de Hannah Arendt e Cristopher Browning6 sobre como muitos dos mentores e agentes do extermínio não eram necessariamente anti-semitas extremados, mas principalmente fiéis funcionários da Alemanha e do Reich que cumpririam quaisquer funções – com maior ou menor entusiasmo – para os quais fossem designados, continuam válidas. Sendo assim, o extermínio dos dinamarqueses, por exemplo, teria suscitado muito menos entusiasmo e muito mais resistências do que o dos judeus, sem dúvida, mas, se fosse esse o interesse dos dirigentes do Reich, teria sido certamente realizado.

Também é bastante questionável a sua convicção (compreensível dentro do seu esforço para mostrar o massacre dos judeus como efeito natural do anti-semitismo alemão) de que o Holocausto figurava permanentemente nas mentes de todos os alemães desde sempre. Que muitos alemães, desde o século XIX, e, especialmente, muitos nazistas (incluindo Hitler), pensavam com freqüência na idéia de exterminar os judeus e esperaram o momento propício para isso, é perfeitamente aceitável. É difícil acreditar, porém, que essa idéia tenha estado sempre tão presente na mente de todos os alemães e mesmo na de todos os nazistas e que soluções outras não tenham sido cogitadas. Mais provável é que a evolução das condições históricas tenha feito a cúpula nazista decidir pela “solução final” e não que eles tenham simplesmente esperado essas condições para implementar um plano decidido desde sempre7.

A incapacidade (ou falta de vontade) do autor em fazer distinção entre, por exemplo, os iluministas alemães do XIX interessados em assimilar pacificamente os judeus e ferozes anti-semitas realmente genocidas como, por exemplo, Streicher, também é frustrante. Ao reunir, de fato, numa categoria única (determinada pela cultura alemã) todas as pessoas que tenham tido algum tipo de pensamento ou ação anti-semita, isolá-las de seus contextos e ignorar o anti-semitismo fora das fronteiras da Alemanha, ele acaba negligenciando o próprio papel e a própria culpa das elites nazistas e dos genocidas verdadeiros, pois, se levarmos o seu raciocínio ao extremo, o Holocausto não teria sido mais do que a expressão da essência da alma alemã. Voltamos à “voz passiva” de onde tínhamos tentado sair.

O livro também tem inconsistências metodológicas evidentes e é irritantemente repetitivo, como que desejando convencer o leitor pelo cansaço da validade de suas teses. Entre essas inconsistências, as mais gritantes são a generalização, as simplificações, a colocação de fatos fora do contexto e a ignorância de dados que poderiam contradizer a tese principal.

De fato, a partir de alguns exemplos de anti-semitismo dos carrascos (certamente verdadeiros), ele generaliza para todo o povo alemão, sem dar virtualmente nenhum indício consistente de que essa generalização era possível8 e recusando fontes que fornecem indícios em contrário9. No decorrer do próprio livro, além disso, são contínuos os momentos em que, para demonstrar o anti-semitismo generalizado e absoluto dos alemães, ele cita exemplos que acabam por contradizê-lo10. São problemas que afetam, sem dúvida, a credibilidade do trabalho11.

O livro, além disso, procura mostrar-se como totalmente inovador ao trabalhar as motivações dos carrascos e a resposta definitiva ao problema do Holocausto, o que na verdade não é12. Em grande parte, realmente, ele não passa de uma “reescritura” de velhos textos, o que nos impede de aceitar que ele seja o “supra-sumo” da historiografia que o autor considera. Ele é útil ao isolar, ainda que de forma problemática, um elemento (o anti-semitismo) que fez dos judeus a grande vítima da “máquina da morte” nazista, mas é incapaz de trabalhar com o conjunto que fez dessa máquina um perigo para todo o mundo, incluindo judeus, não judeus e até alemães.

Notas

1 ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalém. Um retrato sobre a banalidade do mal. Rio de Janeiro, Diagrama e Texto, 1983.

2 Que não havia total ignorância, é evidente até pela própria magnitude do evento. Ver LAQUEUR, Walter. O Terrível Segredo – A verdade sobre a manipulação de informações na “solução final” de Hitler. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

3 Ver TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. O Anti-semitismo na era Vargas (1930-1945). São Paulo, Brasiliense, 1988, parte 1; POLIAKOV, León. A Europa Suicida. São Paulo, Perspectiva, 1985 e SORLIN, Pierre. O anti-semitismo alemão. São Paulo, Perspectiva, 1974.

4 O caso do extermínio dos doentes mentais alemães é, nesse sentido, exemplar. Goldhagen tem razão, porém, em recordar como o massacre dos alemães levantou muito mais protestos na Alemanha do que o dos judeus. Ver CYTRYCNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie – A história do genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. São Paulo, EDUSP/Nova Stella, 1990, pp. 47-56 e BURLEIGH, Michael. Euthanasia in Germany, 1900-1945. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.

5 Ele demonstra com razoável eficiência (ainda que ignorando a brutal violência e crueldade nazista contra os eslavos e ciganos, por exemplo, e subestimando o fato, sobre o qual ele é plenamente consciente, de que a crueldade nos campos não era, muitas vezes, derivada apenas de motivações cognitivas, mas também de uma estratégia cuidadosamente pensada para instituir a dominação e a submissão) que realmente os judeus foram o povo escolhido não para o trabalho escravo e a morte e a violência ocasionais, mas para o extermínio e a crueldade totais. Ainda assim, e ainda que os séculos de anti-semitismo tenham influência clara nessa situação, esquecer o papel da “pirâmide racial nazista” na determinação dos níveis “aceitáveis” de violência e extermínio em relação a cada grupo é problemático.

6 ARENDT, Hannah. op. cit. e BROWNING, Cristopher R. Ordinary Men – Reserve Police Batallion 101 and the final solution in Poland. New York, Harper Collins, 1992.

7 Ver CYTRYNOWICZ, Roney. op. cit. e BURRIN, Philip. Hitler e os judeus – Gênese de um genocídio. Porto Alegre, L & PM, 1990.

8 Ainda assim, sua demonstração de que os agentes do Holocausto não eram apenas os membros da SS e que incluíram muitos alemães comuns é convincente e merece ser destacada como lembrança do nível de envolvimento do povo alemão com o nazismo. Só nesse sentido é que a “culpa geral do povo alemão” poderia, no nosso entender, ser aceita.

9 Ver o diário do judeu alemão Viktor Klemperer, onde há vários exemplos de alemães solidários com os judeus (subutilizado no livro) ou, para ficar em exemplos mais conhecidos da mídia, os casos de Edward Schultze e Oskar Schindler. Ver KLEMPERER, Viktor. I will bear witness – A Diary of the Nazi years, 1933-45. Random House, 1998; LAQUEUR, Walter e BREITMAN, Richard. O herói solitário. São Paulo, Best Seller, 1987 e o filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg.

10 O mais gritante é o das páginas 371-372, onde ele mostra prisioneiras judias em plena “marcha da morte” sendo impedidas de receber alimentos ofertados pela população das pequenas aldeias alemãs por onde elas passavam. Um bom exemplo de como os guardas, muitos deles “alemães comuns”, não apreciavam (para dizer o mínimo) os judeus e desejavam puní-los, mas dificilmente um bom indício de que o anti-semitismo era tão absoluto como o que ele propõe.

11 Para uma análise detalhada dos problemas metodológicos do livro de Goldhagen, ver FINKELSTEIN, Norman e BIRN, Ruth. A Nation on trial. New York, Metropolitan, 1998.

12 Cristopher Browning e Raul Hilberg, por exemplo, já haviam trabalhado a questão das motivações dos carrascos, mas se concentrado nas circunstâncias que haviam feito bons pais de família alemães virarem genocidas, incluindo preocupações anti-semitas, mas não propondo um anti-semitismo absoluto como motivação única. Ver BROWNING, Cristopher. op. cit. e HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews. New York, New Viewsport, 1973.

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá.

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