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Infância, Adolescência e Juventude: olhares sobre o passado e o presente / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2010
O século XX é o século da descoberta, valorização, defesa e proteção da criança. No século XX formulam-se os seus direitos básicos, reconhecendo-se, com eles, que a criança é um ser humano especial, com características específicas e que tem direitos próprios. No século XX as pesquisas sobre a Infância entram no campo da Historia e das Ciências Humanas.
O ano de 1959 representa um dos momentos emblemáticos para o avanço das conquistas da infância. Nesse ano, as Nações Unidas proclamaram sua Declaração Universal dos Direitos da Criança, de significativo e profundo impacto nas atitudes de cada nação diante da infância. Nela, a ONU reafirmava a importância de se garantir a universalidade, objetividade e igualdade na consideração de questões relativas aos direitos da criança. A criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história, prioridade absoluta e sujeito de Direito, o que por si só é uma profunda revolução. A Declaração enfatiza a importância de se intensificar esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação.
Fundada nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e neste instrumento dos Direitos da Criança (1959), a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos promoveu em 1989 a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
O Brasil ratificou a Convenção logo em 1989, momento em que o país tratava de remover o entulho autoritário de anos de ditadura militar, acolhendo-a com grande entusiasmo. O cumprimento integral das disposições da Convenção exigiria uma ação integrada e integradora por parte do Estado e da sociedade civil, tanto no âmbito das políticas sociais universais, como no dos programas dirigidos aos grupos vulneráveis; tanto no campo de uma ação codificadora destinada à adequação das leis nacionais aos preceitos da Convenção, quanto no de uma ação concreta de políticas sociais.
A ação codificadora do Brasil está positivada já na Carta Constitucional de 1988, principalmente em seus artigos 227, 228 e 229, que seguiram a doutrina da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. Vale a pena relembrar aqui os termos do artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à Criança e ao Adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A homologação dos dispositivos da Carta Magna em favor da infância, fundados na Declaração dos Direitos Humanos e na Declaração dos Direitos da Criança foi estabelecida primorosamente no Estatuto da Criança e do Adolescente o ECA , assinado em 1990. Este documento legal representa uma verdadeira revolução em termos de doutrina, idéias, práxis, atitudes nacionais ante a criança. O ECA colocou o Brasil como modelo em termos de leis em favor da criança.
Em 1984, quando foi criado na USP, o CEDHAL (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina), seu Projeto de pesquisas inaugural, multifacetado intitulou-se: A Criança e a Família na Historia da População Brasileira. De forma sistemática, coletiva, com metodologias avançadas inaugurava-se no país a inclusão da Criança na pesquisa da Historia Social.
De lá para cá, houve um avanço extraordinário nos conhecimentos sobre a criança brasileira (aqui entendida, como pela ONU, como todo o ser menor de 18 anos). Sabemos hoje muito mais sobre a criança da elite, a criança pobre, a criança abandonada, a criança escrava, a liberta, a negra, a indígena, a criança na escola. Trata-se de um campo de pesquisas vasto, multifacetado, complexo e exige grandes esforços para se conhecer melhor esse segmento da sociedade, exige proteção e cuidados especiais em razão de sua falta de maturidade física e mental.
As dificuldades começam justamente pelas fontes. Os conhecimentos sobre a criança no passado se dão pela escrita dos adultos, e de modo geral de adultos homens e das categorias letradas. As fontes escritas preservadas são escassas, espalhadas, pontuais. Uma verdadeira garimpagem pelos arquivos vem revelando, nos últimos anos, acervos novos que trazem luzes sobre facetas ou setores da infância que não se conhecia.
A Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, demonstrando sua concepção avançada incluiu neste seu número especial a temática da “Infância, Adolescência e Juventude: olhares sobre o passado e o presente” estimulado pesquisadores que estão trabalhando na área a escreverem artigos sobre a Criança.
A variedade de assuntos deste número mostra a percepção da amplitude do interesse atual de jovens pesquisadores em aprofundar os conhecimentos sobre o tema da infância. São aqui incluídos trabalhos que vão do sepultamento dos anjinhos no Ceará, aos contratos de trabalho infantil no século XIX, em área de São Paulo, à experiência única de uma escola paroquial no sertão na Bahia, criada e dirigida por um monge cisterciense alemão em meados do século XX, à colocação da juventude como valor a partir da referencia ao cotidiano, passando pelas crises dos anos de 1980 expressas em música Rock e as referencias sobre a atenção normativa sobre a infância e a adolescência expressas no ECA de 1990.
Os artigos aqui publicados mostram a variedade de temas na História da Criança. Será certamente um estímulo ao desenrolar de novas pesquisas, com novas fontes e em novos campos a serem iniciadas.
Maria Luiza Marcílio – Professora Titular de História da USP. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP, desde 1997.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.2, n. 4, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]
Infância e Adolescência / Revista Brasileira de História / 1999
Infância e Adolescência é o tema do dossiê deste número da Revista Brasileira de História. A relevância e oportunidade da discussão não requer malabarismos teóricos, ela é evidente num país onde quase oito milhões de crianças perambulam pelas ruas. Miséria, abusos, violência, drogas, prostituição, roubo, crime, medo da morte são os ingredientes que compõem o cotidiano dessas crianças, que possuem pouca ou nenhuma perspectiva de futuro. Cenas de chacinas, perseguição policial, espancamentos ou que evidenciam abandono, descaso, delinqüência infanto-juvenil e exploração sexual transformaram-se em imagens que caracterizam o Brasil e, âmbito internacional.
Nesse sentido o artigo de Bengt Sandin, que analisa o lugar da criança na sociedade sueca, poderia parecer, num primeiro momento, muito distante da realidade local. Contudo, ao evidenciar os novos significados que a noção de infância adquiriu no decorrer do século XX, o autor fornece um balanço amplo e de longo alcance, que extrapola fronteiras nacionais e aponta para a emergência e consolidação de um modelo de infância planejada e racional, que acabou por substituir os ideais românticos herdados do século XIX. O leitor indagará a respeito dos limites e paradoxos desses modelos na sociedade brasileira.
O abandono está no centro das preocupações de Judite Trindade, que insere o problema em ampla perspectiva espaço-temporal. O diálogo com a experiência européia, sobretudo francesa, colabora para precisar os pontos em comum e as especificidades brasileiras ao longo de mais de três séculos. As diferentes condutas em face da infância abandonada permitem discernir mudanças no discurso e nas práticas médicas, legislativas, educacionais e assistenciais em relação às crianças que, no limiar do século XX, passam a ser encaradas como seres que necessitam ser protegidos e salvos de perigos que podem comprometer seu futuro.
A escola, que Judite já indicara como um componente essencial das novas preocupações que cercavam a infância, é o tema do artigo de Alessandra Schueler. Perscrutando projetos, debates, reformas e políticas públicas da segunda metade do século XIX, a autora evidencia que o princípio da obrigatoriedade do ensino primário às crianças e jovens foi constantemente reiterado. Esclarece as motivações e expectativas que envolviam as propostas educacionais então em pauta, articulando-as com as preocupações do tempo: o fim do trabalho escravo e a necessidade de formar cidadãos morigerados, úteis à nação e portadores de um saber técnico; a tentativa de controlar a criminalidade, a delinqüência e a desordem social por meio da retirada das crianças e adolescentes das ruas e becos das cidades; o combate à ignorância e ao analfabetismo, que se fazia acompanhar pela difusão de determinados comportamentos e valores morais.
Nas discussões em torno da infância, a rua e os seus perigos constitui-se um tema recorrente. A imagem de crianças ociosas, vagando sem a supervisão de adultos, é freqüentemente mobilizada para legitimar intervenções e medidas do poder público. Valendo-se da literatura, de relatórios policiais, dos discursos de homens públicos e empresários, da grande imprensa, dos jornais operários e de imigrantes, Esmeralda Blanco descortina os múltiplos significados que a rua assumia na São Paulo do início do século XX: espaço de lazer operário e de sociabilidade para os habitantes das classes pobres; mas também o lugar do ócio, crimes, delinqüência, vícios, prostituição, enfim dos comportamentos desviantes e socialmente inaceitáveis.
As crianças, adultos em formação, como nos ensina a autora, deveriam não apenas ser retirados das ruas mas também educadas, corrigidas e disciplinadas. Porém, o mundo do trabalho, no qual estavam depositadas as esperanças regeneradoras, pouco se coadunava com a construção idílica e sacralizada de infância, como atesta a ferrenha exploração a que estavam submetidos os meninos e meninas que vivenciavam o cotidiano das fábricas.
A preocupação com o futuro da nação sempre permeou o discurso em torno da questão da infância. A comemoração do Centenário da Independência em 1922 colocou na ordem do dia o debate em torno da identidade nacional, da modernização e do lugar do país no cenário internacional. James Wadsworth evidencia como a infância ocupou lugar dos mais importantes nesta discussão. Apoiado em ampla pesquisa, o autor analisa os modelos de assistência à infância idealizados pelo médico Arthur Moncorvo Filho, suas inúmeras atividades e propostas em relação aos cuidados que deveriam ser dispensados às mães e às crianças. Discute, ainda, as motivações sociais, econômicas e ideológicas subjacentes ao discurso das elites brasileiras e às concepções que resultaram, em 1927, no Código de Menores.
Antes deste Código, crianças e adolescentes em situação de conflito com a Lei estiveram sujeitas aos Códigos Criminal do Império, Penal e Civil. Escandindo normas e prescrições legais, Ailton José Morelli discute a questão da imputabilidade penal, evidenciando a distância entre as determinações e as práticas efetivas, o que permite colocar em outros termos a decantada impunidade dos “menores”, fossem eles infratores ou abandonados.
Fecha o dossiê o artigo de Marina Ertzogue, que adentra o cotidiano dos estabelecimentos disciplinares do Serviço Social de Menores do Rio Grande do Sul entre 1945-1964 para flagrar punições e castigos preconizados em regulamentos, manuais, leis e textos pedagógicos. Descortina-se um amplo panorama das estratégias de “recuperação” das crianças e jovens sob custódia do poder público.
Mary Del Priore abre a seção de artigos. O leitor é convidado a percorrer o imaginário em torno do corpo feminino e as formas de sua descrição e apreensão tanto pela filosofia cristã quanto pelo saber médico dos séculos XVII e XVIII. Especulações em torno da fisiologia feminina consubstanciaram-se numa construção que estigmatizava a mulher, considerada um ser social e moralmente inferior.
A exclusão e o estigma também estão presentes no texto de Sandra Pesavento. A personagem, porém, é outra. Por meio de memórias, romances, crônicas e jornais dos anos 1880 a 1920, a autora distingue os contornos de uma outra Porto Alegre: a da cidade condenada e amaldiçoada que se deseja normatizar. O registro lingüístico permite-lhe rastrear a carga simbólica e os significados pejorativos e discriminatórios atribuídos a espaços, estabelecimentos e moradias. Delineia-se, então, uma cartografia de práticas, sociabilidades e comportamentos marginais ou desviantes em relação a um ideal que se desejava implantar.
Interpretações dissonantes a respeito do Brasil são analisadas nos artigos de Eliana Dutra e José Carlos Reis. No primeiro, a autora foca sua atenção em Plínio Salgado com o intuito de esclarecer o quadro referencial e as matrizes subjacentes às suas concepções de nação, povo, identidade e brasilidade. Dutra estabelece, de forma nítida, o débito de Plínio, assim como de Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde, Tasso Silvieira e Vicente Licínio Cardoso, para com o romantismo de viés conservador. Reis, a seu turno, elege A Revolução Brasileira (1966), de Caio Prado Júnior, como tema. As polêmicas, oposições e reações que a interpretação suscitou são reconstituídas pelo autor, que insere a obra no contexto do impacto da derrota sofrida pelas esquerdas na década de 1960.
Os efeitos do regime que se instaura em 1964 são apontados por Antonio de Almeida, que se volta para o ABC paulista e pontua as dificuldades e adversidades enfrentadas pela liderança sindical a partir do golpe militar. A emergência, em meados da década de 1970, de movimentos de contestação à ordem deu-se, como evidencia o autor, a partir da ampla participação das bases, o que acabou por redimensionar a prática política anterior, calcada na cúpula dirigente. A experiência do novo sindicalismo desembocou na fundação do PT e da CUT.
O Conselho Editorial manifesta seus agradecimentos à Professora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, que colaborou decisivamente para a concretização do dossiê Infância e Adolescência; ao CNPq; à ANPUH Nacional e aos núcleos de Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número.
Deixamos aqui registrada a profunda consternação pela perda da Profª Drª Ilana Blaj, reconhecida historiadora, docente do Departamento de História da USP, membro do Conselho Editorial da RBH e nossa estimada colega. A ela este número é dedicado.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, set., 1999. Acessar publicação original [DR]