1519. Circulação, conquistas e conexões na Primeira Modernidade | Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Luis Guilherme Assis Kalil

Pensar os impactos do colonialismo em porções do mundo como a América, a África e a Ásia têm movimentado os debates acadêmicos nos últimos anos. A queima e derrubada de estátuas de personagens das conquistas, tais como Cristóvão Colombo, reiteram a necessidade de uma reescrita da história do continente americano. A formação de impérios ultramarinos, pensada a partir dos grandes feitos e heróis, tem dado lugar a um conjunto de abordagens que Matthew Restall (2008) alcunhou de uma “Nova História da Conquista”.

É nesse conjunto de abordagens que a coletânea 1519. Circulação, conquistas e conexões na Primeira Modernidade foi lançada em 2021. A obra marca as efemérides de início da conquista de México-Tenochtitlan e da expedição de Fernão de Magalhães (1480 – 1521), a qual resultou na circum-navegação da Terra. Contudo, ela nos permite conhecer para além destas “datas comemorativas”, resultando em nove capítulos ensaísticos que procuraram dar conta dos sentidos conferidos ao conceito de Modernidade. Que modernidade era essa? A colonização de outros povos seria sinônimo ou marca do ser moderno? Seria moderno navegar pelo Atlântico ou estabelecer diálogos com o Oriente? Em que medida a viagem de Colombo resultou em um mundo mais moderno? O processo de mundialização e do contato entre as quatro partes do mundo seria a pedra de toque do livro, bem como a inscrição das Américas numa ideia de Primeira Modernidade (CAÑIZARES-ESGUERRA et al, 2017). Leia Mais

Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas – TERVANASIO (HU)

TERVANASIO, Marcela. Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2005. 284 p. Resenha de: ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Uma princesa entre dois mundos: Carlota Joaquina e o projeto de regência na América. História Unisinos 23(1):124-127, Janeiro/Abril 2019.

No contexto das comemorações do bicentenário da vinda da Corte portuguesa para o Brasil e do início do processo das revoluções de independência na América ibérica, eventos comemorativos foram realizados, livros foram publicados, promovendo uma maior interlocução entre pesquisadores interessados no tema ao revisitar questões até aquele momento abandonadas pelo senso comum e/ou satisfeitas por certo consenso historiográfico. Novas lacunas passaram a ser tratadas no universo destes eventos e a constante busca pelo preenchimento e elaboração de novas questões permite que sempre nos voltemos ao tema das independências, cuja importância não se esgota na figura de grandes homens e heróis nacionais2.

Período conturbado, o início do Oitocentos nos apresenta novas leituras em torno de ideias como representação, soberania e poder, as quais foram revistas de modo a atender as demandas dos pesquisadores em busca de uma maior compreensão das mudanças e das expectativas de um conjunto de sociedades que viviam num mundo convulsionado pelos efeitos da Independência dos Estados Unidos (1776), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (1794) e do surgimento do Império Napoleônico (1799-1815) com todas as suas peculiaridades no conjunto do equilíbrio europeu e americano. No bojo destas transformações, houve a construção de valores e ideais opostos aos modelos sociais e políticos vigentes. A colonização na América encontrava-se ameaçada pelos preceitos de igualdade e de representatividade política, pois os espaços coloniais foram ganhando crescente importância no seio das metrópoles europeias.

No decorrer dos últimos anos, historiadores de várias nacionalidades têm se debruçado no tema das revoluções que culminaram na independência dos atuais países latino-americanos. No âmbito das Américas, os trabalhos pioneiros de Tulio Halperín-Dongui e José Carlos Chiaramonte propõem uma reflexão sobre a construção dos Estados-Nação e suas implicações no continente3.

O trabalho de João Paulo Garrido Pimenta (2002) tem apontado as relações entre guerra e identidades no contexto pelas lutas pela posse da Província Cisplatina, o atual Uruguai. Outro trabalho importante a ser considerado é Independencias iberoamericanas: nuevos problemas y aproximaciones, coletânea organizada pela professora Pilar Quirós (2015).

Esta última tem trazido à tona uma série de reflexões em torno do caráter internacional das independências latino-americanas.

Embora o Brasil tenha levado mais tempo para tornar-se independente de Portugal em relação às colônias hispânicas, a presença da Família Real foi fundamental para a compreensão de diversas facetas de nossa história nacional, assim como de uma história internacional e atlântica. E uma dessas facetas incorpora a figura da princesa Carlota Joaquina, membro da dinastia dos Bourbon e princesa de Portugal ao contrair matrimônio com o príncipe D. João, aos 10 anos de idade. Eles assistiram às abdicações ao trono espanhol e ao cativeiro do rei Fernando VII, irmão da Infanta, nas mãos de Napoleão Bonaparte entre 1807 e 1814. Pessoa vista sob uma série de lentes de análise na literatura, na produção cinematográfica, nos materiais didáticos e acadêmicos, Carlota Joaquina era uma princesa espanhola que partia para o Rio de Janeiro em meio às turbulências ocorridas com seus familiares na Europa.

Diversas vezes apresentada como uma mulher “ambiciosa, conspiradora e dona de um caráter audaz e temerário”, a Infanta espanhola assumiu um papel importante no decorrer dos problemas enfrentados pela Espanha e, consequentemente, pelo Império espanhol após a deposição de Fernando VII. Situação até aquele momento inesperada, o trono vacante tornou-se problemático aos súditos do rei tanto no âmbito das relações internas de poder como no conjunto mais amplo das relações internacionais; isso, por sua vez, garantiu novas possibilidades de representação no meio político e permitiu que a figura de Carlota Joaquina se apresentasse como uma opção de poder frente a um governo estrangeiro. Na historiografia brasileira, o trabalho de Francisca Nogueira de Azevedo (2003) mostra Carlota Joaquina como personagem político importante: de uma mulher marcada por uma visão excêntrica e destinada à alcova, descortina-se uma mulher com poder político, ciosa de suas prerrogativas monárquicas e atuante.

Este momento de protagonismo político remete às aspirações desta mulher em torno da manutenção de sua linhagem, do ordenamento social e das relações de poder com base na lógica do Antigo Regime. Ao se colocar como herdeira do trono espanhol, em substituição ao seu irmão, Carlota Joaquina abria outra possibilidade de governo para seus súditos, forma esta abraçada por alguns e rechaçada por outros em nome de projetos políticos mais ou menos audaciosos. A diplomacia aparece como aliada importante a projetos políticos de médio e longo prazo, os quais envolviam tanto o continente europeu quanto a América. Portanto, uma das alternativas vigentes para a Infanta era se portar enquanto depositária da soberania espanhola para pleitear a Coroa e, consequentemente, o império colonial hispânico. Isso, por sua vez, nos permite o afastamento do senso comum com relação a princesa espanhola, ainda que a mesma seja limitada pelas questões de gênero de seu tempo.

O trabalho de Marcela Tervanasio, especialista em história política argentina e ibero-americana nas primeiras décadas do século XIX, remete-nos a um universo conspiratório e intrigante cujo epicentro era Carlota Joaquina.

Observar a princesa enquanto objeto nos coloca diante de um tema importante, porém pouco estudado – à exceção da pesquisa de Francisca Nogueira de Azevedo, citada anteriormente. Os “silêncios” historiográficos em torno desta figura emblemática foram acumulados ao longo dos anos, de modo que a mesma se tornou desprovida de importância em inúmeras obras.

Ao procurar afastar-se desta leitura, repleta de preconceitos, especialistas têm repensado o carlotismo como parte de série de redes que uniram as monarquias ibéricas tanto na América quanto na Europa. Este parece ser o maior esforço de Tervanasio em seu livro: ressaltar uma espécie de geografia em torno das repercussões do carlotismo e – por que não? – das possibilidades (reais ou ilusórias) de uma mulher assumir o poder na monarquia espanhola. Ao nos apresentar uma leitura dinâmica e conectada dos processos históricos, numa relação de ir à Europa e vir para a América e vice-versa, a autora ressalta como as ideias da Infanta espanhola incidiram em conflitos importantes para um mundo contemporâneo em construção: absolutismo versus liberalismo; o poder das Juntas provinciais versus a regência em nome do Rei e, não menos importante, colonialismo versus revolução.

Dentro do campo da história política e em meio à série de escolhas teórico-metodológicas efetuadas pela autora, o livro pode ser tratado em partes, embora seja dividido em capítulos. Um primeiro momento consiste na apresentação do trono vacante e como a natureza jurídica espanhola tratou da questão nos idos de 1808. O decorrer do texto nos aponta quais possibilidades a princesa teria numa situação inesperada como aquela. Já num segundo momento, a ideia de soberania aparece como elo fundamental ao projeto carlotista em oposição às outras opções de governo para a Espanha, representadas pelas Juntas provinciais. Os capítulos 2 e 3 se entrelaçam no sentido de tratar da discussão sobre a soberania na América e na Península na medida em que, em meio aos conflitos de autoridade e à instabilidade política vivida, a figura de Fernando VII foi elevada a um patamar de Rei amado e desejado, ao passo que a América hispânica passava a ser vista como parte cada vez mais importante do Império. Assim, a presença da Infanta na América era crucial aos interesses espanhóis e também lusitanos, pois o Rio da Prata era uma região estratégica aos objetivos geopolíticos da dinastia dos Bragança.

Gradualmente, a formação de uma identidade política e institucional entrava em oposição às justificativas baseadas em direitos dinásticos, destacando-se as fragilidades do projeto de Carlota Joaquina no conjunto do Império espanhol. A ideia de “americanizar o império” era vista como uma ameaça às relações de poder estabelecidas entre a Espanha e suas colônias, subvertendo a ordem colonial ao ponderar a possibilidade de uma princesa assumir a regência na América e, por conseguinte, disputar direitos ao trono no futuro. Tais inquietações foram expressas desde manifestos até ações de espionagem para burlar a busca de apoio a uma regência sediada na América. Nesta linha de raciocínio, os diversos interesses dos impérios atlânticos europeus estavam imbricados, e o apoio ou não a Carlota Joaquina era interpretado de distintas formas.

Em continuidade a uma dimensão geográfica e espacial dos impactos do carlotismo, Tervanasio dedica dois capítulos à América: um ao conjunto do continente e outro especificamente à cidade de Buenos Aires. Enquanto seus projetos foram rechaçados por muitos espaços coloniais, na cidade de Buenos Aires, uma parte da elite portenha passou a ser favorável ao possível reinado de Carlota Joaquina. Dentre estes membros, destaca-se a figura de Manuel Belgrano, um dos artífices do processo de independência, em 1810. Especificamente no capítulo 4, “Las dos máscaras de la monarquía”, Tervanasio se debruça sobre os sentidos da palavra independência a fim de revisar pressupostos da historiografia tradicional inspirados na concepção de que, em nome do rei Fernando VII, os sentimentos de independência eram encobertos.

A perspectiva de um sentimento de independência e a ideia de uma nacionalidade preconcebida têm sido refutadas na produção historiográfica dos últimos anos. Contudo, a percepção dos apoios angariados pelo projeto de regência espanhola na América nos mostra a viabilidade de uma terceira via de governabilidade, ainda que mantendo intactas as estruturas e a ordem colonial.

Tervanasio nos mostra como a imprensa, os políticos locais e a princesa levaram a sério esta terceira via de governabilidade. Uma “guerra de papéis” ressaltando os prós e contras da regência mostrava o empenho de muitos em apoiar ou destruir o projeto. O receio do domínio dos Bragança, sobretudo na região meridional, era importante, porém não se apresenta como única chave de interpretação dos interesses envolvidos pelas elites criollas locais e os peninsulares na Espanha.

No decorrer do capítulo 4, um dos mais interessantes do livro, percebemos como foi possível a construção de uma retórica política para que Carlota Joaquina partisse do Rio de Janeiro em direção a Buenos Aires a fim de ser coroada regente no Rio da Prata. Porém, os efeitos da revolução de 1810 contribuíram para pensar o impacto das propostas de regência da Infanta no seio dos conflitos locais. A regência passava a ser, por um lado, um mal menor se comparado à criação de uma Junta em nome de Fernando VII na capital do Prata. Por outro, esse mal menor não garantia sucessos para a via reformista, o que fez com que os maiores representantes do carlotismo se transformassem em líderes do processo revolucionário e, consequentemente, depositários da soberania do rei.

No último capítulo se revela o impulso da Infanta em realizar seu propósito de assumir seu lugar na Península, ocupando o trono de seu irmão, sem abrir mão do restante do Império já envolvido pelos movimentos de independência. Nesse sentido, antes de realizar uma tentativa de golpe de Estado, Carlota Joaquina procurava manter a legitimidade do irmão dentro dos limites que ela conhecia e em que fora formada: a defesa da linhagem, da família e da casa, elementos estes diminuídos pelos efeitos das ondas liberais e pela perspectiva de transformação social. O retorno de Fernando VII ao poder, em 1814, “apagou” os anseios do projeto de Carlota Joaquina, que se resignara à sua posição anterior. Contudo, o retorno do rei abria uma nova luta tanto na Espanha quanto na América: restauração versus revolução.

Distante de ser uma biografia narrativa e factual, o livro nos desperta para o labirinto de possibilidades nas quais Carlota Joaquina estava política e diplomaticamente inserida. Por um viés político, a princesa estava diante de possibilidades concretas de governar na América, o que era sumamente interessante para o propósito de união das coroas ibéricas, invertendo a lógica das relações coloniais. Diplomaticamente, a irmã de Fernando VII buscava conferir legitimidade ao seu projeto de governo ao assegurar que o rei reassumiria o poder tão logo saísse do cativeiro, evidenciando as desconfianças em torno de sua figura feminina e, também, em torno do conjunto dos Bragança e seus interesses expansionistas, destacadamente no Rio da Prata. Ao longo do livro, podemos observar uma série de escolhas efetuadas pela princesa no intuito de proteger os seus interesses naqueles anos incertos.

A incerteza é, para fins deste livro, a pedra de toque para a compreensão do período e, ao mesmo tempo, evidencia o quanto o carlotismo era um projeto político passível de ser implantado no mundo colonial hispano-americano e não uma mera conspiração política contra o rei. Os caminhos percorridos pela princesa para galgar o poder e o retorno de Fernando VII ao poder nos remetem a um labirinto onde, ao final do seu percurso, um monstro os espera: a crise dos valores coloniais e do poder absoluto.

Referências

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LUSTOSA, I. 2008. O período joanino e a eficiência analítica de alguns textos desbravadores. Revista da Casa de Rui Barbosa / Fundação, 2(2):353-371.

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SCHULTZ, K. 2008. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 444 p.

SLEMIAN, A.; PIMENTA, J.P.G. 2008. A corte e o mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo.

Notas

2 Alguns trabalhos importantes nessa discussão são Lustosa (2008), Carvalho (2008), Slemian e Pimenta (2008) e Schultz, Kirsten. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2008). Uma posição crítica ao processo de independência, ressaltando que a vinda da corte lusitana atendeu aos interesses do Centro-Sul em detrimento do Nordeste, é a do historiador e diplomata Evaldo Cabral de Mello (2004). Outra iniciativa importante e de debates profícuos foi o Congresso Internacional 1808: a corte no Brasil, realizado na Universidade Federal Fluminense, março de 2008.

3 Halperín-Dongui (2005 [1972]); Chiaramonte (2007 [1997). Para refletir sobre a temática das identidades e construção de nacionalismos nas Américas, ver também Pamplona e Mader (2007). Alameda. 180 p.

Hevelly Ferreira Acruche – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo São Francisco de Paula, 1, Centro, 20051-070 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: hfacruche@gmail.com.