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Acervos de pesquisa / Esboços / 2014
Acervos de pesquisa fazem parte da rotina de trabalho dos profissionais e estudantes das Ciências Humanas, historiadores, arquivistas, educadores. Pensar como esses territórios de pesquisa são explorados, mas também como são organizados e têm seu acesso disponibilizado ao público, ou ainda como imbricam-se às práticas de investigação feitas sobre seus documentos, parece ser uma tarefa bastante simples. No entanto, a própria concepção de acervo de pesquisa vem passando por transformações ao longo das últimas décadas, principalmente diante das possibilidades e dos desafios lançados pelo domínio da tecnologia de informação, que ganha centralidade na relação entre investigadores, seus objetos e o próprio chão de pesquisa – aqui representado pelos arquivos que comportam esses acervos. Locais misteriosos, máquinas domáveis, observatório social cuja ambiência deve ser desfrutada pela sensibilidade do pesquisador, segundo a análise de Arlette Farge.
Entendendo este debate como imprescindível para se pensar a prática historiográfica e suas relações interdisciplinares, a Esboços – revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC – oferece ao seu público leitor o dossiê “Acervos de Pesquisa”, que faz dialogar autores e autoras de diversas áreas, entre elas História, Educação, Antropologia e Comunicação. Seus textos transitam entre pesquisas, conceitualizações e práticas de constituição e preservação de acervos, também elaboram sua contribuição no processo de construção do conhecimento científico e ainda discutem as vantagens e os desafios tanto da salvaguarda do material quanto das possibilidades e meios de sua divulgação aos pesquisadores e ao público mais amplo.
A proposta temática deste dossiê surgiu das inquietações de suas organizadoras diante das demandas atuais de se pensar os contornos da pesquisa histórica nos últimos anos e a necessidade de se guardar um tempo/espaço de autorreflexão sobre o fazer historiográfico e seus entrelaçamentos. O ritmo vertiginoso das descobertas e inovações tecnológicas nos remetem à ideia de uma aceleração no próprio tempo da pesquisa, que resulta dinamizado com a informatização de boa parte dos acervos de pesquisa, com esforços para lançar também nossas práticas à contemporaneidade dessas inovações que, por um lado, podem otimizar o tempo, mas que não nos deixam perder de vista os cuidados relativos à atenção sobre o material coletado ou produzido, seus meios de armazenamento e disposição para consulta. A perenidade da documentação histórica passa a ser questionada quando sua preservação torna-se dependente de tecnologias informáticas, digitais e seus repositórios, que cada vez mais se tornam virtuais. A coexistência de modalidades diferentes de suportes nos acervos, sua acessibilidade e as transformações que isso acarreta aos métodos de pesquisa nos convidam ao debate e à leitura daquilo que os profissionais/ pesquisadores têm a dizer sobre o tema.
Para oferecer um ponto de partida, sugerimos a leitura dos artigos que se seguem em três eixos distintos e interrelacionados, muito embora os textos não estejam dispostos separadamente na sequência do dossiê, que privilegia a fluência, a compreensão e o diálogo entre os artigos.
O primeiro grupo é composto por artigos que apresentam trabalhos de organização de acervos, historicizando suas composições e apontando os motivos teóricos e metodológicos que balizam a sua organização e apresentação pública.
Nele, encontram-se trabalhos como o de Katya Mitsuko Zuquim Braghini, Raquel Quirino Pinãs e Ricardo Tomasiello Pedro sobre a coleção de instrumentos científicos, objetos didáticos, do Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo, instituição tida como a mais antiga do ensino secundário da cidade. Por meio de dois movimentos narrativos, demonstram como se deu historicamente a constituição de tal coleção, evidenciando as práticas didáticas dos professores no museu escolar e, posteriormente, nos laboratórios científicos; indicam ainda os primeiros movimentos de organização e manutenção da coleção, pensando na ação de inventariação e catalogação das peças, além das dificuldades encontradas para a salvaguarda desse patrimônio, ao mesmo tempo científico e escolar.
Outro texto que dialoga com a organização e manutenção de acervos é o de Lorena Almeida Gill e Beatriz Ana Loner, que historicizam a formação do Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas – RS, onde estão depositados os acervos da Delegacia Regional do Trabalho, os processos da Justiça do Trabalho da 4ª região, os documentos da Laneira Brasileira S.A, e entrevistas do Laboratório de História Oral (LaHO) daquela universidade. As autoras evidenciam algumas dificuldades de ordem teórica e metodológica para a construção de pesquisas voltadas ao mundo do trabalho. Trata-se da apresentação de documentos guardados por órgãos oficias ou instituições privadas que expressam a visão de quem detém o poder diante da organização do próprio trabalho. Por outro lado, a montagem das pesquisas frente aos documentos esbarra na inoperância de uma correta política arquivística de descarte, assim como na inadequação dos espaços de armazenamento e pesquisa.
O terceiro artigo que dialoga com esse eixo é o de Ana Carla Sabino Fernandes, que trabalha com a ideia de “memória arquívistica” como resultado de uma obsessão pelo arquivo, local cujo estoque material guarda aquilo de que não conseguimos nos lembrar. O arquivo torna-se, para a autora, uma organização política da memória, constituído por lutas de representações, vontade de indivíduos, interesses coletivos, prescrições legais, normativas. Em foco está o Arquivo Público do Estado do Ceará, historicizado a partir da atuação de seu diretor Eusébio Néri de Souza entre os anos 1932 e 1942; destaca-se a forma particularizada de organização do acervo empreendida por ele. A relação entre o principal responsável pelo arquivo e a organização por ele estipulada, não nos deixa esquecer que o resultado de uma pesquisa historiográfica tem a ver com a dominação dos vestígios do poder que estão incrustadas na memória que o próprio acervo guarda.
O eixo seguinte trata da apresentação de resultados de pesquisas ou de projetos em desenvolvimento e sua articulação com arquivos.
Cláudia Beatriz Heynemann registra como a exploração de produtos naturais no Brasil durante o século XVIII, realizada de forma extensiva e objetiva, foi fruto de uma política racionalizada, dentro de um programa ilustrado ibérico. Descobre o processo de construção de uma identidade comum, chamada “luso-tropical”, que perpassa as experiências de viajantes – cientistas, pesquisadores de gabinetes, técnicos, comerciantes, administradores locais, membros de instituições de pesquisa entre Brasil e Portugal -, no conhecimento do mundo natural, na relação entre pessoas e mercadorias. A documentação usada circunscreve a História Natural, com destaque para os documentos da Secretaria de Estado do Brasil, da Provedoria da Fazenda, da Marinha e Domínios Ultramarinos, localizados no Arquivo Nacional.
Outra pesquisa que envolve acervos em relação ao desenvolvimento de projetos é tema do artigo de Marcus Aurelio Taborda de Oliveira, Luísa Cecília Belotti Oscar e Caroline Maria Ferreira Drummond. O artigo trabalha parcialmente o projeto intitulado A educação dos sentidos na história: o tempo livre como possibilidade de formação (entre os anos finais do séc. XIX e os anos iniciais do séc. XXI), desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais. Trata-se do mapeamento, identificação e catalogação de fontes, destacando os trabalhos feitos no Arquivo Público Mineiro, na Hemeroteca e no Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, e ainda na Biblioteca da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O artigo apresenta o investimento teórico feito em torno de conceitos-chaves ligados ao projeto e ao desenvolvimento de pesquisas científicas do grupo, tais como “sensibilidades”, “sentidos”, “formação”, “educação social”, “tempo livre”, “trabalho”, “labor”, ao mesmo tempo em que aponta para uma organização direcionada e raciocinada das fontes disponíveis na localidade para possíveis e futuras investigações.
Também integra este grupo o texto de Andrea Andújar, da Universidad de Buenos Aires (UBA). A pesquisadora se debruça sobre a história social, marcadamente de tradição marxista e britânica, e os estudos de gênero. Em seu artigo, Andújar percorre um indício oferecido por um militante do Partido Comunista da Argentina (PCA) nos anos 1930, quando este cita Ana Decheff, uma mulher que, de maneira inesperada, dinamiza os questionamentos sobre as relações de gênero na formação da classe operária argentina, mais especificamente na comunidade petrolífera de Comodoro Rivadávia – região da Patagônia. Paulatinamente, a autora nos desvela parte de sua trajetória de pesquisa, que teve bases importantes na história oral, e também suas experiências no confrontamento dos diversos arquivos, fundos e documentos por ela investigados durante a perseguição desse “nome de mulher”. Entre os principais estão o Arquivo Histórico Provincial de Rawson, o Museu Histórico Policial, o Museu Histórico Municipal de Comodoro Rivadávia, o Museu da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) e a Hemeroteca da Universidade Nacional da Patagônia.
O terceiro e último eixo proposto pelo dossiê traz discussões conceituais, pedagógicas e metodológicas sobre a importância e a constituição dos acervos de pesquisa.
Abrindo este conjunto de trabalhos, temos o artigo de Eduardo Victorio Morettin, da Escola de Comunicações e Artes da USP, cujas pesquisas relacionam as áreas da História e do Cinema. Este autor traça um panorama didático em torno dos cuidados que envolvem a pesquisa histórica de imagens em movimento, apontando alguns caminhos e precisões metodológicas promovidas durante a investigação histórica do cinema. O artigo se volta às ponderações em torno da acessibilidade dada pela web, levando em conta sua historicidade; aos cuidados metodológicos, considerando a especificidade do uso de filmes para a pesquisa; ao entendimento da análise fílmica pela observação de um quadro geral mais amplo, histórico, político, cultural, social; à percepção de que acervos fílmicos pensam em preservação, à medida que difundem o passado do cinema. Trata-se, portanto, de uma reflexão em torno de aspectos metodológicos e patrimoniais.
Ana Maria Veiga, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), propõe uma reflexão sobre “acervos acadêmicos de pesquisa”, como coleções de documentos acumulados e produzidos por grupos e núcleos de pesquisa dentro das universidades ao longo do desenvolvimento de suas próprias investigações. Tais acervos são pouco estudados, tanto como possibilidades de pesquisa histórica, quanto como objeto da arquivística, pensando em seus critérios de guarda, organização e disponibilização de fontes. Sua composição apresenta diferentes documentações, com suportes variados, que podem ser: transferidas de outros arquivos, produzidas pelos grupos, adquiridas por compra ou doação. Portanto, o esforço do artigo se concentra tanto nas discussões teóricas, sobre a relação dos historiadores com os arquivos e o significado destes como instituições, quanto metodológicas, isto é, considerando os elementos técnicos, formais, para a organização de tais documentos e sua respectiva apresentação à comunidade, seja ela acadêmica ou não, o que resulta em um debate político em torno da função social e pública de tais acervos.
Na sequência, o artigo de Andréa Ferreira Delgado e Beatriz Gallotti Mamigonian apresenta a constituição e o funcionamento do Programa Santa Afro Catarina, pensado como ação de ensino, pesquisa e extensão, e que acontece como projeto pedagógico no curso de História da UFSC, por meio do trabalho de três núcleos de pesquisa: Núcleo de Conteúdos Específicos, Núcleo dos Conteúdos Pedagógicos e Núcleo da Prática Profissional. O projeto trata da composição de um acervo sobre a presença de africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina e tem como objetivo estimular a produção do conhecimento histórico, a partir de uma “educação patrimonial”. Busca, por um lado, a valorização e a difusão do patrimônio cultural relacionado à história e à memória dos africanos e afrodescendentes no âmbito de uma história local e, por outro, o questionamento crítico a uma historiografia que materializa as práticas culturais açorianas como únicas vivências constituidoras da identidade histórica na mencionada Ilha.
Por fim, Mário Martins Viana Júnior e Antonio Gilberto Ramos Nogueira, ambos atuando na Universidade Federal do Ceará (UFC), constatam os desafios atuais para a ampliação de um fazer historiográfico criativo, diante da precarização dos arquivos de seu estado e de uma deficiência que percebem na formação de pesquisadores no âmbito da graduação em História. A preocupação do artigo recai, portanto, na formação desses sujeitos e nos apresenta projetos bem sucedidos, organizados com o objetivo de oferecer conhecimento teórico-metodológico em três níveis: o descritivo-organizativo de acervos; o descritivo de documentações voltadas principalmente à escravidão na província do Ceará; o produtivo-organizativo, que se utiliza da metodologia da história oral para a constituição de acervos de memória e a preservação do patrimônio cultural. Registram, com esse trabalho, a ideia de que tais ações favorecem o desenvolvimento de uma “consciência histórica”, que possibilita a autonomia – elemento fundamental durante a construção do objeto de pesquisa.
Com a indicação de algumas chaves de compreensão, sugeridas acima, esperamos que os leitores e leitoras aproveitem o diálogo proposto pelo dossiê, e as reflexões levantadas a partir dele, para pensar o lugar dos acervos de pesquisa em seus próprios trabalhos, tendo em conta as maneiras como podemos situá-los conceitual e metodologicamente. Boa leitura.
Ana Maria Veiga Katya
Mitsuko Zuquim Braghini
Organizadoras