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A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970) | Elson Assis Rabelo (R)
O livro de Elson de Assis Rabelo, Visões em deslocamento, é um estudo sobre a produção de imagens, narrativas e espaços do rio São Francisco em contextos autoritários do Brasil do século XX. Produto de uma tese de doutoramento na Universidade Federal de Pernambuco, o livro analisa um conjunto de vestígios, reportagens, fotografias, periódicos, livros, revistas científicas, relatos de viagens, documentos oficiais, dialogando com teorias pós-estruturalistas, abordagens que investigam a história do campo científico da geografia, historicizam a tipificação das populações, a produção dos espaços, a construção de temporalidades arcaicas para esses tipos construídos e problematiza os interesses e conflitos envolvidos nessa realidade produzida. O objetivo dessa resenha é apresentar a obra e pensar, à partir de temas introduzidos pelo autor, sobre novas possibilidades de reflexão em torno do lugar-comum do rio da integração.
O livro se divide em duas partes, com dois capítulos cada, a primeira trata das paisagens e a segunda dos agentes sociais do espaço. No primeiro capítulo sobre a emergência de um novo espaço na geopolítica da integração, Rabelo reconstituiu a invenção do espaço regional são-franciscano desde a topografia dos engenheiros topógrafos nos anos 1930 até os geógrafos de influência estadunidense do final dos anos 1940, passando por importantes autores sobre o assunto como Geraldo Rocha, Jorge Zarur, Agenor Miranda, Orlando Carvalho, entre outros. O segundo capítulo investiga, partindo da análise de uma longa reportagem da revista Realidade, já nos anos 1960, as imagens de progresso e decadência da navegação, bem como a disputa de memórias da mesma, no contexto de desenvolvimento autoritário nacional. No terceiro capítulo, o autor investiga os processos de tipificação das populações do vale pela geografia e pela sociologia das comunidades, passando pela análise de fotografias. Essa área de imagem e história, na qual o autor se especializa desde então, domina o quarto e último capítulo, onde há uma análise de fotografias que contribuem para deslocar esses tipos e humanizá-los, desclassificá-los de uma taxonomia fixadora de caracteres folclorizantes.
Rabelo consegue muito bem analisar a produção espacial do Vale do São Francisco pelos saberes técnicos e pela imprensa. Sua análise das fotografias é perspicaz. Não é preocupação do autor, entretanto, lidar com a heterogeneidade dos discursos. Nesse sentido, o livro é muito útil para novos pesquisadores, pois estabelece um panorama de grandes linhas gerais da escrita sobre o São Francisco. Novas pesquisas permitirão preencher as lacunas deixadas pelo autor, tanto cronológicas, como o interregno entre o Estado Novo e a ditadura militar-empresarial iniciada em 1964, quanto bibliográficas, já que outros escritores se detiveram sobre a questão são-franciscana nesse período, não analisados pelo autor. Na ficção, especialmente, surgiram narrativas que, quando não contestavam diretamente as espacializações e tipificações descritas por Rabelo, desestabilizavam seus pressupostos. Os poucos trabalhos acadêmicos nessa linha são caracterizados ainda por um saudosismo romântico, que costuma reificar narrativas, tipificações e construir novas espacializações e memórias, sem problematizar a sua produção ou a artificialidade das mesmas. Rabelo consegue problematizar as tipificações e espacializações sem construir novas em seu lugar. Ele não disputa a definição do São Francisco e do sertanejo, não o romantiza ou o idealiza. Em algumas passagens, chega-se a duvidar que ele seja mesmo o objeto do trabalho do autor. A análise se concentra no discurso de tal modo que não há dúvida de que o autor trata dos vestígios, do arquivo e não da realidade dada a ver por eles.
A única lacuna que poderia ser destacada na análise é uma questão cara à história intelectual. Quanto Rabelo trata da espacialização do São Francisco pelos engenheiros e topógrafos dos anos 1930 e 1940, temos a impressão de que não há apropriação, reconfiguração e subversão interpretativa dos mesmos em relação às teses de João Ribeiro, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, mas uma continuidade e aplicação regional. A ideia de rio da unidade nacional e caminho da civilização, de João Ribeiro em seu livro História do Brasil no final do século XIX, retomada por Euclides da Cunha em Os Sertões no início do século XX, foi aprofundada e reformulada por Vicente Licínio Cardoso em conferências dos anos 1920, publicadas nos anos 1930 em edição póstuma, que serviram de referência básica para todos os escritores que lidaram com a questão são-franciscana até pelo menos os anos 1950, quando há um salto qualitativo em termos especializados e institucionalizados da produção do saber sobre o rio – muito bem documentado por Rabelo ao tratar do desenvolvimento de pesquisas de geografia regional científica e profissional sobre o Vale. Ocorre que aquilo que é apenas mencionado por João Ribeiro e citado em Cunha é aprofundado em Cardoso, transformado à luz de uma visão sobre o país e o papel da terra como sujeito, bastantes distintas daqueles dois autores. Por sua vez, Geraldo Rocha, Agenor Miranda e outros que se baseiam em Cardoso o fazem com uma reconfiguração ou mesmo o usam como recurso de autoridade para desenvolverem explicações outras, distintas das do engenheiro carioca. Rabelo destaca bastante a homogeneidade dos discursos sobre o rio São Francisco, sem se concentrar na heterogeneidade e nos conflitos e descontinuidades.
A força do livro está na análise da tipificação das populações e da espacialização das paisagens, mas também aponta a produção das temporalidades nesses texto. Trata-se da parte menos desenvolvida no campo de estudos sobre o assunto. Rabelo faz apenas alguns comentários breves sobre o tempo lento das populações rurais do Vale, característica das narrativas tanto dos topográfos, quanto da sociologia de comunidade de Pierson. Chega a tratar mesmo da falta dela, a tese de Licínio Cardoso do rio São Francisco ser um “rio sem história” escrita. Suas considerações limitam-se a apontar as narrativas como anacrônicas, naturalizadoras da história ou deterministas geográficas, sem entrar nos meandros das narrativas construídas e da intertextualidade dos autores com matrizes ou com outros textos dos próprios investigados. Além disso, há pouca ou nenhuma diversidade das temporalidades construídas pelos escritores investigados, dos aspectos híbridos entre técnica e memória na construção de narrativas e dos textos como produções identitárias. Alguns dos documentos analisados por Rabelo são verdadeiros discursos fundadores de regionalismos onde a abordagem técnica e produtora de espaços e tipos se mistura a relatos biográficos, narrativas épicas, memórias familiares e exaltação de personagens. A abordagem dada por alguns trabalhos acadêmicos que, como foi dito acima, reificam noções romantizadoras do rio e se não são capazes de artificializar essa produção discursiva, ao contrário, reforçam uma tradição que contribuem para produzir, é a continuação dessa produção de mitos. Rabelo trata bem dessa produção mítica em espaço e tipos, mas pouco trata do enredo. Isso se deve, possivelmente, pela sua busca por padrões discursivos, que podem ser construídos com espacializações e personagens comuns, mas é mais difícil de ser encontrada em um conjunto muito mais amplo de narrativas. É possível, aliás, que o único caminho viável seja uma taxonomia das temporalidades produzidas pelos mitos engendrados pelos escritores do São Francisco, especialmente em virtude de suas motivações ideológicas e dos projetos sociais aos quais se vinculam.
Sem dúvida, A visão em deslocamento é uma importante contribuição para um campo de estudos interdisciplinar muito vasto que tem o rio São Francisco como tema, cenário ou objeto. Ao contrário de outros trabalhos que buscam validar, quando na verdade instituem, uma tradição narrativa são-franciscana, o livro de Rabelo permite perceber a produção discursiva sobre esse tema, historiciza essa escrita e bagunça a tradição. Ironicamente, é possível que o livro venha a compô-la, ao refazê-la, abrindo novas possibilidades de estudos e desenvolvendo, verticalmente, discussões tratadas de forma panorâmica com fôlego. Bons estudos correlatos tem sido publicados, mas geralmente monográficos e bastante especializados. A vantagem do livro de Rabelo é que realiza uma síntese do campo, uma espécie de balanço da produção escrita, ainda que seja o livro tenha recorte de vestígios e cronologia muito bem definidos.
Numa época em que se matam rios que foram reificados discursivamente como espaços de progresso latente, uma obra que conta uma história desse “rio sem história” é muito bem-vinda.
Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761
RABELO, Elson Assis. A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970). Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A invenção do Rio São Francisco: configurações do espaço e dos tipos em contextos autoritários. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.37, n.2, p.462-465, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]