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Ciência: pesquisa, métodos e normas – DAU; DAU (ARF)
DAU, Shirley e DAU, Sandro. Ciência: pesquisa, métodos e normas. Mutum: Expresso, 2013, 173 p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.13, jan./jun. 2015.
Os autores são professores de Filosofia e trabalham com Metodologia Científica há anos, havendo publicado diversas obras sobre o assunto. Sandro é Doutor em Filosofia com estágio de pós-doutorado em Ética e Shirley é mestre em Filosofia e estuda Filosofia analítica, Lógica e Linguagem. Dedicam-se também a Epistemologia e História das ciências.
Este livro foi organizado em 16 capítulos e trata da pesquisa científica e sua divulgação. Parte da fundamentação teórica dos estudos científicos para a especificidade das práticas de investigação que contribuem para o desenvolvimento da ciência. Os autores abordam, como atividades práticas, o processo de construção: do projeto e da pesquisa em geral, dos resumos, referências, monografias, relatórios técnico-científicos e artigos científicos.
No capítulo inicial os autores examinam a especificidade dos textos científicos e oferecem técnicas de divisão e interpretação das partes que permitam a boa compreensão desses textos. Esclarecem a diferença entre comentário e explicação, mostrando que a segunda prevalece sobre o primeiro, porque é anterior e restringe-se ao texto, enquanto o comentário pressupõe a explicação, interroga e não se restringe ao texto.
Segue-se o capítulo dedicado aos métodos utilizados na ciência. Eles são apresentados como “caminho estabelecido por determinada ciência, a fim de conseguir conhecimentos válidos por intermédio de instrumentos confiáveis” (p. 17) ou, mais rigorosamente, citando os autores L. Liard, como “conjunto de processos de conhecimento que constituem a forma de uma determinada ciência” (id, p. 17). Neste caso o método possui uma base lógica e dois pontos básicos: reprodutibilidade e falsificabilidade. O primeiro ponto significa que a pesquisa ou experimento pode ser repetido por qualquer pesquisador e o outro que suas hipóteses podem ser recusadas ou falsificadas. As ciências usam variados métodos e, portanto, a escolha do método deve se adequar ao problema e tratamento escolhidos pelo pesquisador. Os autores explicam que a ciência moderna desenvolveu-se partindo da observação, da formulação de hipóteses falsificáveis, da indução ou colocação das hipóteses à prova, da interpretação dos resultados e formulação da teoria, estabelecimento da conclusão.
O capítulo terceiro trata do resultado dos experimentos consolidados em teorias que são fundamentais em qualquer ciência. Os autores aproximam a origem da Ciência com o da Filosofia, remetendo-a ao século VI a. C. na antiga Grécia. Esclarecem que a Ciência moderna, cujo método foi desenvolvido por Galileu Galilei, ganhou perfil diferente e afastou-se da Filosofia e Ciência antes praticadas, adotando “experiências rigorosas, organizadas em leis gerais, por outras palavras, é qualquer corpo de conhecimentos fundado em observações dignas de fé e organizado no sistema de proposições ou leis gerais” (p. 26). Ao tratar da especificidade da Ciência moderna estruturada na razão aplicada (experimental), os autores a diferenciam da Filosofia que se baseia na razão pura; da Religião que usa a fé, possui caráter mais subjetivo e depende da crença de cada um, e da Arte baseada na intuição e não na razão. Eles diferenciam o método indutivo, que vai do particular para o geral, do método dedutivo, que segue o caminho inverso. O conhecimento científico, de modo geral, possui os seguintes traços: “classificar os conhecimentos, descrever os fatos, explicar os fenômenos; interpretar os diferentes casos; ser autocorretivo, experimental, descritivo, particular, cumulativo, operativo” (p. 31). Os autores esclarecem que o conhecimento científico é parcimonioso, isto é, prefere explicações simples. Salientam o propósito da ciência de construir teorias que expliquem os fenômenos e se referem à estas teorias como “uma visão sobre um tema” (p. 40). Eles as caracterizam como possuidoras de “definição rigorosa; coerência interna, generalização por meio de deduções, ampliação do conhecimento” (p. 40). Destacam ainda a utilidade das teorias como critério para sua continuidade.
O capítulo IV é dedicado ao estudo dos conceitos, que são a base da ciência. Contudo, comentam os autores, que não basta reunir conceitos para chegar a uma ciência, é preciso que os conceitos estejam organizados em teorias, cujas características foram examinadas no capítulo anterior. O conhecimento adequado dos conceitos é um bom critério para saber se se conhece uma teoria e para organizar o debate, pois “aquele que afirma e aquele que pergunta, devem ter claro qual o significado do conceito empregado” (p. 44).
Um conceito científico caracteriza-se “por ter um significado claro, preciso e abstrato, que não resulta de preferências, de gostos e de anseios individuais” (p. 44). Contudo, a característica principal de um conceito científico é “identificação dos elementos centrais daquilo que é estudado” (p. 45) e não se referir “a um caso único, a um fenômeno, mas a classes, a grupos, a relações, etc.” (p. 45). A compreensão de um grupo de conceitos que estão numa ciência dirige o olhar do cientista, assim ele perceberá o fenômeno com os olhos da ciência que lhe é familiar, ou “cada um perceberá o mundo com os conceitos que for condicionado” (p. 46).
Segue-se um capítulo dedicado a verdade. Os autores tratam dos critérios de verdade estabelecidos por três grandes escolas filosóficas: realismo (relação entre a consciência e a coisa), idealismo (coerência interna) e pragmatismo (utilidade das afirmações). No que se refere propriamente às verdades científicas, elas se dividem em três tipos: as que se limitam a formular o que pode ser exato, as que aceitam a probabilidade e aquelas que se abrem à possibilidade do mundo de cada pessoa influir no conhecimento. Estas últimas são as ciências humanas que, com base na fenomenologia, reconhecem, por baixo dos fatos objetivamente descritos, elementos do chamado mundo da vida. No que se refere à relação dos fatos, os autores distinguem as verdades lógico-formais, das objetivas, ontológicas e morais. Poderíamos entender as primeiras como as da Lógica e Matemática, as segundas como as das Ciências da natureza e as duas últimas da Filosofia. Quanto a relação com a verdade ela pode produzir quatro tipos de dúvidas: “espontânea, refletida, metódica e universal.” (p. 53). A primeira é aquela em que a pessoa não emite juízo sobre algo, mesmo que tenha elementos para fazê-lo, a segunda nasce da ausência de elementos necessários à conclusão, a terceira é um tipo de método empregado para chegar a uma verdade indubitável e a última refere-se à posição dos céticos, que negam a possibilidade de chegar a verdades fundamentais.
Quanto aos critérios de verdade os autores apontam seis: a autoridade (abandonada pelas ciências modernas), a evidência (o que aparece para o indivíduo), o senso comum (uma espécie de instinto comum), a necessidade lógica (ausência de contradição) e a experiência.
O capítulo VI estuda a pesquisa científica e os autores a definem como a que utiliza “métodos racionais, científicos, na comprovação ou não, das teorias apresentadas” (p. 57). Eles apresentam como objetivo da pesquisa científica “encontrar respostas coerentes, para os problemas (questões) propostos pelo pesquisador” (p. 58) e diferenciam as pesquisas quantitativas, que trabalham com a quantificação das variáveis, das qualitativas, mais empregadas nas ciências humanas. Esclarecem que essas últimas se desenvolveram no século passado e resumem o debate então realizado entre os intérpretes das chamadas ciências duras e as outras. Tratam, ainda que superficialmente, dos limites da razão experimental que foi desenvolvida na modernidade para tratar dos problemas do homem, assunto da fenomenologia.
A partir do capítulo VII o livro ganha um caráter prático, orientando o leitor em como utilizar as técnicas empregadas na pesquisa científica. Distinguem esquema, resumo e fichamento. Esclarecem que esquema “permite ao estudante compreender uma obra em seu todo” (p.63). Eles propõem no capítulo VIII o resumo como “apresentação concisa de um texto qualquer” (p. 65) e tratam no capítulo IX de um tipo especial de Resumo denominado Resenha.
Explicam que Resenhas são um tipo específico de resumo seguido de comentário crítico, por isto dizem que eles devem ser “elaborados por especialistas” (p. 67). Normalmente as revistas científicas recebem bem este tipo de resumo dedicando-lhe uma parte própria, porque é importante aos especialistas da área terem um resumo comentado das obras daquela ciência pois não é possível, hoje em dia, ler tudo que se publica nas diversas áreas da ciência.
O capítulo X é dedicado ao fichamento, definido como técnica para “guardar um grande número de informações sobre um documento em pequeno espaço.” (p. 69). O fichamento pode ser da obra toda ou de uma parte, além de conter citações que serão úteis na elaboração do trabalho que pretende fazer. O capítulo XI é um resumo da NBR 10520 e explica como fazer citações curtas e longas. Segue-se um capítulo sobre como fazer referências, resumo da NBR 6023, de livros, monografias, periódicos, eventos, trabalhos em eventos, legislação, jurisprudência, doutrinas, filmes, documentos cartográficos e sonoros.
O capítulo XIII explica como se faz um projeto de pesquisa, apresentado como “caminho que será percorrido, no estudo do problema proposto” (p. 97).
Os autores detalham os elementos imprescindíveis do projeto (capa, folha de rosto, sumário, apresentação, justificativa, área de concentração, natureza, delimitação do assunto, revisão da literatura, problema, hipóteses, procedimento, análise dos dados, objetivos, conteúdo, metodologia, cronograma, referências, anuência do orientador).
O capítulo seguinte é dedicado à monografia, definida como “texto sobre um único assunto” (p. 129), e que pode ser desde um TCC até uma tese de doutoramento. Consiste num resumo da NBR 14724. Suas características básicas são: sistematicidade, metodologicidade e relevância. Uma monografia se divide, geralmente, em cinco partes: “introdução, desenvolvimento, conclusão, bibliografia, notas.” (p. 131). Os autores finalmente afirmam que a estrutura formal da monografia são três grandes partes: os elementos pré-textuais, os textuais e os pós-textuais.
Os capítulos finais explicam como fazer um relatório e um artigo científico, respectivamente comentando as NBRs 10719 e a 6022. Os artigos científicos, matéria do último capítulo, são definidos como: “publicação com autoria declarada, que apresenta e discute ideias, métodos, técnicas, processos e resultados nas diversas áreas do conhecimento.” (p. 163). O artigo serve para divulgar um tema estudado e deve vir em linguagem “clara, coerente, objetiva, impessoal” (p. 163) e conter os elementos pré-textuais, textuais, pós-textuais.
Este livro é importante porque coloca o leitor diante do fato de que fazer ciência é mais do que aprender conceitos e teorias, exige produzi-la. Esta atitude é própria de um tipo de ciência desenvolvido na modernidade, com os estudos de Francis Bacon, Isaac Newton e os iluministas, que contrapunham a nova formulação da ciência à antiga construída na velha Grécia por Platão e Aristóteles. A ciência moderna nunca está pronta, mas em continuado processo de construção. Por isso, o estudo das técnicas de pesquisa é essencial numa atividade que está sempre se fazendo. O movimento iluminista reforçou a confiança na razão aplicada e no modelo de ciência moderna pautada na observação dos fatos, experiência e cálculos. Os autores incorporam aspectos importantes dos estudos de filosofia da ciência. Entre eles o entendimento de que a enumeração dos fatos ou descrição dos conceitos não é suficiente para fazer ciência, antes é preciso comparar os fatos observados e julgá-los para construir teorias. Isto é o que ensinava, por exemplo, o médico e fisiologista francês Claude Bernard no século XIX. Os autores incorporaram ainda uma concepção mais atual de ciência que trata da sua validade em virtude da autocorreção, princípio baseado na falibilidade das teorias, conforme postulado por Charles Sanders Peirce e pela falsificabilidade, conceito desenvolvido por Karl Popper. Para este último uma teoria é válida não devido a sua demonstração, mas por sua permanência provisória, enquanto não vingam os esforços por refutá-la.
No capítulo IX os autores tocaram numa questão importante da ciência moderna, a sua necessária especialização. Como lembra Ortega y Gasset no capítulo XII de La rebelión de las masas (O.C., Madrid, Alianza, v. IV, 1994): “nem sequer a ciência empírica, tomada em sua integridade, é verdadeira se separada da Matemática, da Lógica, da Filosofia. Porém o trabalho em que nela se tem, irremediavelmente, tem que ser especializado.” (p. 217). Esta especialização exigida pela ciência moderna contém, contudo, um grave risco que o Ortega repetiu em mais de um lugar e isto não foi mencionado no livro.
É que a especialização não legitima o conhecedor de uma ciência opinar sobre outros assuntos. Quando ele assim faz torna-se uma espécie de novo bárbaro, detalhadamente estudado por Ortega. Este especialista deverá passar por uma reciclagem, se estiver correto o que diz Ortega na continuidade do livro, pois se:
o especialismo tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se uma etapa nova em que ele não poderá avançar por si mesmo se não encarregar uma geração melhor de construir um novo aparelho mais poderoso. (p. 219-220). Este novo especialista é uma exigência dos nossos dias, mas ainda assim será ele um especialista.
O assunto nuclear, da perspectiva epistemológica, consiste na discussão entorno à verdade levada a cabo no capítulo V. E aí também há virtudes. Parece importante a distinção dos conceitos de verdade construídos por diferentes escolas filosóficas: realismo, idealismo e pragmatismo. Também parece fundamental a diferença entre os critérios de verdade adotados por diferentes ciências: a verdade exata da linguagem matemática, as afirmações aproximativas da estatística e as verdades cuja objetividade relativa está em disputa com as referências subjetivas do mundo da vida. Faltou indicar que essas diferentes visões de verdade científicas nascem em diferentes tipos de ciência, as primeiras da natureza e as últimas do homem. A distinção entre os diferentes tipos de dúvida também foi muito criativo. O que ficou a merecer maior aprofundamento é o fato de que as verdades são diferentes nas Ciências, na Filosofia, na Religião e até as Pessoais. Todas as formas de verdade são importantes, mas se organizam em níveis distintos. Neste aprofundamento sobre as diferentes verdades faltou também um esclarecimento sobre os limites das chamadas ciências duras, ou a ciência experimental, pois suas teorias começaram a ser refutadas pelo desenvolvimento da própria filosofia da natureza no século que passou.
José Maurício Carvalho – Doutor e professor de Filosofia na UFSJ. Email: josemauriciodecarvalho@gmail.com
A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII) – MARCOCCI (VH)
MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, 533 p. PANEGASSI, Rubens. Varia História. Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.
Giuseppe Marcocci é um historiador cujas publicações tem ganhado notoriedade junto aos investigadores dedicados ao estudo da formação do Império ultramarino português. Doutor em História pela Scuola Normale Superiore (2008), atualmente é professor da Università degli Studi della Tuscia e tem dedicado suas investigações ao mundo ibérico, com especial atenção ao caso Português e seus principais temas, tais como Inquisição, escravidão, missões extra-europeias e também a justiça no Antigo Regime. No Brasil, participou recentemente evento, além de ter publicado artigos em periódicos relevantes, tais como a Revista de História da Universidade de São Paulo e a revista Tempo da Universidade Federal Fluminense.
Sem perder de vista as contribuições de grandes nomes da historiografia, tais como Luís Filipe Thomaz, António Manuel Hespanha, Francisco Bethencourt e Laura de Mello e Souza, importa notar que o livro de Marcocci traz efetiva colaboração a um campo de estudos onde o número de pesquisas é relativamente escasso. Desse modo, ao preencher uma notória lacuna a respeito do âmago das conquistas lusas, o livro consolida seu trabalho como referência imprescindível aos intressados no debate a respeito da configuração dos impérios coloniais e suas doutrinas políticas nos primórdios da Época Moderna.
Assim, ainda que o autor nos assegure que a noção de império seja pouco comum nas fontes da época, A consciência de um império compreende Portugal como a primeira monarquia europeia a fundar um império de dimensões globais, bem como um necessário aparato ideológico que solucionasse os problemas de natureza jurídica e moral que se desdobravam da ingerência reclamada como direito frente a diversidade de grupos étnicos e suas variadas manifestações culturais e religiosas. Em vista disso, Giuseppe Marcocci parte das bases jurídicas daquilo que denomina como a “vocação imperial portuguesa”, para alcançar a especificidade da herança das elaborações políticas de um império moderno, mas que deitava suas raízes na escravidão, uma instituição atrelada fudamentalmente à antiguidade. Em síntese, é a figuração de Portugal como um agressivo império marítimo o legado que se definia no próprio momento em que a Europa ganhava os contornos de um mosaico de impérios em concorrência.
Trabalho de fôlego, o livro recupera a densidade e o vigor do expansionismo ao atar os laços existentes entre as esferas da economia e da política, aos esquemas culturais e religiosos que estruturaram a consciência do Império português. Diante disso, traz uma perspectiva inovadora ao se deter sobre os pressupostos conceituais característicos do ideário português nos primórdios da Época Moderna, sem perder de vista sua peculiaridade: o entrelaçamento entre Estado e Igreja.
Os doze capítulos que compõem o livro estão distribuídos ao longo de quatro partes bem definidas. Na primeira, A vocação imperial portuguesa, Marcocci debate a intervenção a posteriori do papado na fundação das premissas jurídicas do futuro Império, com ênfase no papel estruturante que a bula Dum diversas (1452) teve como instrumento legitimador de suas futuras ocupações. Partindo desta proposição, o autor esclarece os vínculos de obediência existentes entre os portugueses e o papado, bem como a reivindicação lusa pela ortodoxia católica. Pautada pela necessidade de justificar o tráfico de escravos negros na costa da Guiné, Roma tutelou o acesso exclusivo dos portugueses aos litorais da África atlântica. Em suma, é da incapacidade de legitimar suas conquistas num paradigma distinto das concessões papais que Portugal traçaria o percurso a ser seguido por outros grandes impérios europeus. Entretanto, no início do século XVI o país ibérico definiria um novo posicionamento em relação a Roma no intuito de garantir maior autonomia na gestão de seu império com a criação da Mesa da Consciência, órgão encarregado de se pronunciar sobre matérias tocantes à consciência do rei e que promoveu uma fusão sem precedentes entre as esferas política e religiosa no vértice do reino.
Em A Etiópia, prisma do império, ganha relevância os diferentes usos políticos do mito do Preste João em Portugal. Se num primeiro momento a figura do lendário soberano tornou-se emblemática referência do sucesso da expansão marítima em concomitância à figuração da Etiópia como aliada para a reunificação da Igreja, em um segundo momento são as implicações subversivas do cristianismo etíope que ganham notoriedade. Ou seja, a construção da legitimidade das conquistas a partir da celebração de cristão julgados como heréticos tornou-se um modelo a ser necessariamente abandonado. Tal mudança foi definida pelas rígidas posições frente ao cristianismo etíope adotadas por um atuante grupo de teólogos no interior da corte portuguesa. Doravante, o mítico aliado desapareceria do horizonte cultural português, e paralelamente, vozes dissonantes do movimento humanista seriam sufocadas. Desse modo, ao lado da Mesa da Consciênca, a Inquisição e a censura literária se tornariam as três principais instituições a concorrerem para a definição de um império católico no qual a Etiópia passaria da condição de reino aliado a terra de missões. Definitivamente, a consciência do Império português atrelava-se de modo cada vez mais significativo às formas de inclusão da diversidade na comunidade de crentes.
A terceira parte, Conquista, comércio, navegação: um senhorio disputado, é a mais extensa e se detém nas controvérsias a respeito do controle das especiarias e da supremacia sobre os mares. Aqui, o autor assinala que foi no calor das polêmicas levantadas pelas monarquias europeias contra as pretensões imperialistas das coroas ibéricas que a consciência de um “império marítimo” ganhou seus primeiros contornos no reino português. Sobretudo em face das críticas pela participação direta da coroa no tráfico comercial, que embora possuissem justificativas, encontravam também seus limites nas tradicionais doutrinas cristãs da Idade Média. Por sua vez, a negligência da veiculação da imagem de um príncipe amado e temido, sugerida por alguns ideólogos do Império também foi pautada por estas tradições, que presumiam um modelo político marcado pelos valores da ética cristã. Ou seja, no âmbito das ideias, a violência estaria diluída na perspectiva da conquista espiritual. Com efeito, todo este dabate não correria separado das primeiras reflexões a respeito do papel que o mar desempenharia no equilíbrio de um complexo sistema de domínio que se constituía para além dos limites da Europa. Objeto controverso na época, Marcocci sugere que os descobrimentos modificariam definitivamente a relação entre a terra e o mar, sendo que este passaria a ser compreendido nos quadros de um novo equilíbrio que se origina do pleno conhecimento da verdadeira forma geográfica, bem como das efetivas distâncias do mundo.
Conversões imperiais: para uma sociedade portuguesa nos trópicos? é a última parte do livro. Nela, Marcocci nos faz notar que a ascensão das ações missionárias deu-se no exato momento em que o Brasil tornava-se o centro do sistema colonial lusitano. Tendo em vista que as sociedades nascidas do Império português são caracterizadas pela presença de escravos em resposta às exigências de um sistema produtivo agrícola, o autor atribui relevância ao sacramento do batismo, uma vez que o domínio sobre homens privados de liberdade em nome da conversão era o fundamento jurídico do Império. Assim, na perspectiva do autor, a formação histórica do Brasil nos quadros do Império português está atrelada a um projeto missionário onde os jesuítas desempenharam papel fundamental, de modo que a relação entre batismo e escravidão logo se entrelaçou aos
debates sobre a humanidade dos índios. De todo modo, ao passo que este sacramento seria o instrumento capaz de mudar a posição jurídica e social dos conversos, o contraste entre a perspectiva libertadora da conversão e a dura realidade dos escravos é apresentado como o mais notório vínculo de todo o mundo português do início da Época Moderna.
Por fim, cabe observar que o livro nos conduz à percepção de que a interpenetração entre o Estado e a Igreja define as linhas gerais de inúmeros aspectos da História do Portugal Imperial. Mesmo a retomada do modelo do Império Romano, tida pelo autor como uma das características mais originais da cultura renascentista portuguesa foi sufocada no que tangia à admiração dos autores lusos pela religião romana, o que nos revela o atuante pressuposto de um enquadramento doutrinal que se mostrava indispensável diante do problema da inclusão civil dos novos súditos da coroa. Elemento imprescindível a uma construção política cujo primado, por sua importância e originalidade, seria amplamente valorizada pela cultura europeia, em uma conjuntura de franca mundialização.
Fundamentado em sólida e diversificada pesquisa documental, Marcocci faz uso tanto de cartas, tratados e crônicas impressas, quanto de processos inquisitoriais e outros códices manuscritos pertencentes a fundos diversos, investigados majoritariamente em arquivos portugueses e italianos. Com efeito, um dos fundos ao qual o autor reserva especial atenção é a Mesa da Consciência e Ordens, parcialmente conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Com escrita clara, o livro interessa não apenas aos especialistas, mas a todos que entendem a história como um recurso para a compreensão dos debates contemporâneos, cujos ecos do passado encontram reverberação em fenômenos como a globalização da economia, a homogeneização cultural, ou até mesmo o emprego maciço da força militar como garantia da manutenção da ordem mundial.
Rubens Panegassi – Departamento de História Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa (MG), Brasil, e-mail: rubenspanegassi@gmail.com.
LHISTE | UFRGS | 2014
A Revista do LHISTE – Laboratório de Ensino de História e Educação da UFRGS (Porto Alegre, 2014) – é uma publicação semestral especializada em trabalhos acadêmicos sobre o ensino de história, em todos os níveis e etapas educativas, além de sua intersecção com outras áreas do conhecimento.
Constitui-se, portanto, em espaço para a comunicação de pesquisas e reflexões sobre a prática docente, os processos de aprendizagem, a construção de currículos em história, a formação de professores, a memória e a educação patrimonial e o ensino de história e a interdisciplinaridade, entre outros temas caros ao campo.
Também visa à divulgação e registro de novas estratégias, metodologias e objetos, formando um banco de dados especializado em boas práticas pedagógicas de professores em formação inicial, nos estágios e no PIBID/História, assim como de professores da educação básica.
É formada por um Conselho Editorial vinculado ao LHISTE e um Conselho Consultivo mais amplo, composto por professores-pesquisadores de diversas instituições universitárias do país e do exterior, com reconhecida atuação no ensino de história e áreas afins.
É dividida em quatro seções, como descritas abaixo, Artigos, Relatos, Resenhas e Entrevistas. Os trabalhos que se enquadram nas três primeiras categorias são recebidos em fluxo contínuo e avaliados por pares. Podem ser submetidos textos de graduandos, pós-graduandos e profissionais formados em licenciaturas, mestrados e doutorados em História e áreas afins.
Além dos trabalhos recebidos continuamente pelo SEER (Sistema de Editoração Eletrônica da UFRGS), a revista pode publicar dossiês temáticos, com chamadas regulares. Também são previstos números especiais extraordinários, com temas específicos e registros de eventos organizados pelo LHISTE e/ou de relevância para o ensino de história.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2359-5973
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