Le dossier sauvage | Philippe Artières

Philippe Artieres Acervo do autorLintervalleBlog
Philippe Artières | Imagem: Acervo do autor/LintervalleBlog

No mês de outubro de 2019 o imaginativo historiador Philippe Artières publicou O dossiê selvagem. Quanto a isso, nenhuma dúvida. O fato está aí, posto com clareza: um livro foi publicado, em tal data, por tal editora e, principalmente, sabe-se verdadeiramente sua autoria. Entretanto, ao longo das breves 160 páginas do livro, o leitor se depara com uma narrativa que se assenta na linha divisória, cinzenta, onde se equilibra e brinca com o falso e o verdadeiro, o factual e o contrafactual, o real e o ficcional, sem que em nenhum momento, contudo, abandone o terreno da história.

Mas o que é o “dossiê selvagem” que dá título ao livro? Trata-se de um conjunto de documentos (anotações manuscritas, reprografias de jornais ou revistas) agrupados em uma pasta de arquivo dos anos 1970, identificada com os dizeres “Vies sauvages”, numa caligrafia bastante familiar para o autor. Esses registros, fragmentados, essencialmente lacunares, referem-se a pessoas que, por razões diversas, saíram da cidade e foram morar em florestas, cavernas, regiões inóspitas onde, em sua maioria, buscaram estabelecer um modo de vida solitário e independente da civilização urbano-industrial. Esse conjunto reúne nomes e informações de pessoas que viveram desse modo “selvagem” em diferentes momentos da história, do século das Luzes aos anos 1980. Com raras exceções, a maior parte habitou regiões inóspitas da Europa e da América do Norte. Voltaremos a elas. Antes é importante familiarizarmo-nos com a descrição do material, aproximarmo-nos de sua história, a começar pelo modo como esse arquivo ganhou uma existência complexa e intrigante. Leia Mais

Pandemia cristofascista | Fábio Py

Fabio Py Imagem CONIC
Fábio Py | Imagem: CONIC

Quando o presidente de um país, cujos mandatários há décadas não ousam descuidar do eleitor religioso, precisando também lidar com uma crescente bancada evangélica, usa o termo “cristofobia” em discurso diante da Organização das Nações Unidas – ONU, é sinal de que a religião ali não pode ser um tema menor na escrita da História atual. Pelo menos desde as últimas duas décadas do século XX enchendo estádios, templos e urnas, o movimento evangélico no Brasil, todavia, tem participação no curso dos acontecimentos da nossa contemporaneidade desproporcional à atenção que lhe tem sido dedicada pela academia. O livro Pandemia cristofascista, do teólogo Fábio Py, pode ser visto como um alerta sobre o custo que temos pago pela falta de compreensão deste fenômeno.

Trabalho sucinto, cujo eixo principal é a análise da “unção” conferida ao presidente Jair Bolsonaro por líderes das maiores organizações evangélicas do país durante a semana da Páscoa de 2020, o opúsculo divide-se em quatro seções. São elas: introdução; histórico e crítica da Frente Parlamentar evangélica (mais conhecida como “bancada evangélica”); estudo do processo de construção de uma imagem santificada do presidente da República em meio à escalada da pandemia de Covid-19; e conclusão, onde o comportamento dos líderes religiosos que contribuíram para a minimização da crise sanitária de 2020 é criticamente contraposto ao que seria esperado de sacerdotes genuínos, segundo o livro bíblico Levítico. Leia Mais

O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves

Leandro Pereira Goncalves Imagem Arquivo pessoalBBC News Brasil
Leandro Pereira Gonçalves | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News Brasil

O historiador dos fascismos históricos tem uma dupla dificuldade em tratar dos neofascismos, uma de ordem moral, outra de ordem teórica. Sobre a primeira – e em vista das sucessivas ondas de neofascismos do mundo posterior à Segunda Guerra – paira a pergunta: o que fazer quando a sensação de déjà-vu se apresenta para a sociedade? Inevitavelmente, ela se volta para aqueles que ela entende como os ‘guardiões do passado’, requerendo explicações sobre o fenômeno reincidente. No que concerne à segunda ordem de dificuldades, é certo que um dos mandamentos do historiador é ‘não farás pontes entre passado e presente em vão’. Se isso está correto, é certo também que aos historiólogos é imputada a obrigação de explicar o passado à luz do presente e o presente à luz do passado, numa espécie de retroalimentação.

Embora escoimados de certos rigores da ‘cenografia’ acadêmica, os autores de O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, apresentam à sociedade algumas pontes entre passado e presente que estão longe de serem vãs. Na obra publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas (2020), os dois especialistas no campo dos ‘estudos verdes’ (um do campo dos fascismos históricos, outro dos neofascismos) juntaram forças numa tentativa, bem-sucedida, em nosso julgamento, de demonstrar o quão perigoso é enterrar o conceito de fascismo em 1945, abandonando, assim, o olhar fenomenológico. Nosso argumento ficará mais claro ao longo desta avaliação crítica. Leia Mais

Ghetto: the invention of a place, the History of an idea | Mitchell Duneier

Mitchell Duneier Foto Aaron SalcidoZocalo
Mitchell Duneier | Foto: Aaron Salcido/Zócalo

Em 25 de maio de 2020, a morte de George Floyd, um homem negro, em Minneapolis, por um policial branco, reascendeu uma onda de protestos trazendo novamente à tona questionamentos sobre como se dá a atuação das forças policiais contra a comunidade negra. Episódios como este têm sido recorrentes nos últimos anos: em 2014, em Ferguson, no Missouri, um policial branco matou o jovem de 18 anos, Michael Brown, e em 2015, em Baltimore, Freddie Gay, de 25 anos, também foi assassinado por um policial branco. Tal contexto nos faz indagar: quais são os fatores que levam a uma crescente violência contra as comunidades negras estadunidenses? O livro Ghetto: the invention of a place, the history of an ideia de autoria de Mitchell Duneier, de 2016, nos mostra que qualquer tentativa de compreensão desse fenômeno desassociada de uma análise de longa duração terá seu objetivo frustrado.

Professor de Sociologia da Universidade de Princeton, Duneier é autor de livros como Slim’s Table: Race, Respectability, and Masculinity, que venceu em 1994 o prêmio de melhor publicação acadêmica da American Sociological Association, e de Sidewalk, de 1999, que ganhou o prêmio de melhor livro pelo jornal Los Angeles Times. Formado em Direito pela Universidade de Nova Iorque, Duneier obteve seu doutorado pela Universidade de Chicago em 1992, tendo como objeto de estudo a etnografia urbana dos anos de 1920. Em Ghetto, o autor historiciza a construção desse conceito, mostrando como sua utilização foi mobilizada em diferentes contextos em virtude de questões sociais e políticas específicas. O livro abrange uma temática atual, uma vez que grande parte dos pontos abordados ao longo de seus seis capítulos permanece ainda hoje manifesto, e assistimos a uma retomada desses mesmos discursos no cenário político. Leia Mais

Topoi. Rio de Janeiro, v.23, n.50, 2022.

Topoi2

Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823) | Hélio Franchini Neto

Helio Franchini Neto Imagem Atelie Editorial
Hélio Franchini Neto | Imagem: Ateliê Editorial

Em meio às reflexões levantadas pelo bicentenário da Independência, é momento de voltarmos aos clássicos produzidos pela historiografia acerca do tema e, sobretudo, promover o diálogo destes com as interpretações mais recentes que reconstituem o processo de Independência por meio diferentes abordagens. Dentre as novas propostas de análise elaboradas nos últimos anos, cabe destacar Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil, 1821-1823, fruto da tese de doutorado em História elaborada por Helio Franchini Neto. Diplomata de carreira, o autor nos contempla com uma abordagem historiográfica que pretende inserir o componente militar no contexto da produção acadêmica que privilegia a reavaliação do processo de Independência do Brasil desde os conflitos ocorridos a partir de 1822.

A obra resenhada em questão conta com prefácio de Francisco Doratioto e é dividida em oito capítulos, acrescidos de conclusão, apêndice e bibliografia. Dentre muitos objetivos, é necessário salientar que o livro busca alertar o leitor, desde sua introdução, acerca de dois grandes aspectos. O primeiro deles versa sobre a necessidade de se romper com o mito de um processo de Independência feito de forma pacífica, destacando as dificuldades de se consolidar o projeto de Estado-nação após a emancipação. As bases para tal resistência nos levam a um segundo aspecto que o autor persegue ao longo de toda sua pesquisa: a importância dos contextos políticos regionais no processo de emancipação. A participação das diferentes regiões do território brasileiro nos conflitos é ponto primordial para o autor, ao caracterizar os diversos interesses que estavam em jogo durante o período no qual as localidades precisaram, então, optar pela adesão a um dos polos políticos que disputavam a centralidade do poder: Lisboa e Rio de Janeiro.

A pesquisa empírica desenvolvida pelo autor merece destaque. Com o intuito de recuperar os registros das batalhas ocorridas entre 1822 e 1823, Franchini Neto lança mão de um amplo conjunto de fontes, composto, entre outros acervos, por documentos presentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, além da documentação dos arquivos das Forças Armadas brasileiras, da Biblioteca Nacional, bem como o acervo do Arquivo Nacional. Além dessas fontes, cabe salientar que, buscando revelar os indícios de um processo de emancipação permeado pela instabilidade, a obra fornece ao leitor um levantamento primoroso sobre os conflitos e a mobilização militar do período por meio da imprensa e dos arquivos diplomáticos do Brasil, da França e da Áustria, por exemplo. O arcabouço de fontes foi também enriquecido com as correspondências diplomáticas referentes ao Reino Unido e aos Estados Unidos.

Vale ainda ressaltar que o trabalho com a documentação primária abarca também as regionalidades, trazendo à tona documentos importantes para a compreensão das realidades locais, contribuindo, assim, com as interpretações historiográficas que primam pela participação das províncias no processo político da Independência.

Ao longo do texto, o leitor tem acesso a um importante diálogo com pesquisas consolidadas que, no decurso dos anos, nortearam a historiografia sobre a problemática da Independência. Nas mais de seiscentas páginas da obra, evidencia-se o debate enriquecedor com autores primordiais para a compreensão do contexto, como José Murilo de Carvalho, Lucia Bastos, Marcello Basile, João Paulo Pimenta, Evaldo Cabral de Mello, István Jancsó, Hendrik Kraay, entre muitos outros estudiosos da área que igualmente merecem destaque. É em meio a essa ampla rede de historiadores que Franchini Neto se coloca a contribuir com a vasta produção acadêmica já existente na área, visando, sobretudo, ampliar as reflexões sobre a potencialidade do papel da guerra na manutenção da unidade territorial e política em um cenário repleto de conflitos.

No primeiro capítulo, intitulado “O Brasil de 1822”, o autor destaca o contexto histórico que precede o processo da Independência, e ressalta a ideia de uma pluralidade de projetos políticos para o Brasil naquele cenário, bem como as dificuldades de uma administração centralizada, apesar da vinda da corte em 1808 (Franchini Neto, 2019, p. 31). Um ponto importante do capítulo é trazer à tona a multiplicidade de vivências em todo o reino, fato que impactou a forma como as diferentes localidades lidavam com Lisboa. Para o autor, tal indicativo se faz essencial para compreender até mesmo as reações distintas das regiões após a proclamação. Em meio a tal reflexão, Franchini Neto aponta ainda a presença de certa heterogeneidade acerca dos debates sobre variados projetos políticos e sobre o futuro do reino naquele período (p. 47). Ao fim do capítulo, destaca-se que a diferença da experiência histórica em âmbito regional fez emergir também perspectivas díspares entre o norte e o sul do país com relação à disputa que se colocaria logo em seguida entre Rio de Janeiro e Lisboa.

Em “A Constituinte luso-brasileira”, segundo capítulo da obra, torna-se possível compreender os limites e as contradições do vintismo por meio das reflexões do autor, que exaltam, detalhadamente, as formas múltiplas pelas quais o movimento fora sentido e recebido no plano interno e internacional. Para essa última análise, é importante destacar o debate que se vislumbra no texto a partir do diálogo entre alguns importantes documentos da época, como os registrados na obra de Varnhagen, junto a diversos documentos diplomáticos, que ressaltam as divergências que permearam o movimento vintista. Tais fontes levantadas pelo autor nos apresentam, desse modo, uma narrativa que traduz os bastidores do vintismo pelos olhares de representantes diplomáticos e suas preocupações com a instabilidade política entre Brasil e Portugal. Entre os documentos investigados, as correspondências e ofícios obtidos em arquivos britânicos e americanos nos indicam nuances até então não problematizadas sobre este contexto (Franchini Neto, 2019, p. 66).

As divergências em torno da recepção do movimento no reino, explicitadas por Franchini Neto, se consolidam a partir da relação direta com o modo pelo qual as localidades interagiam com Lisboa e com o Rio de Janeiro. É nesse ponto da investigação que a Bahia emerge como pano de fundo e cenário profícuo para grandes discussões e conflitos, em meio ao processo de emancipação que iria se desenrolar nos meses posteriores. A Bahia, nesse sentido, consolida, nas premissas do autor, a ideia de heterogeneidade no seio das elites regionais, indicativo levantado frequentemente na obra. A mesma variação de comportamento também é visualizada no momento em que Franchini Neto discute o posicionamento dos deputados brasileiros nas cortes. Em meio a essa elite política, nesse sentido, evidenciavam-se dois grupos: os vintistas e os unitários. O pesquisador ressalta ainda que, dessa forma, pode-se compreender que, no processo de convocação das cortes e suas discussões, emergiam ali dois estados buscando legitimação política e a conquista das diferentes regiões do Brasil. As lideranças políticas ligadas a estes centros irão, sobretudo, requerer das províncias sua adesão e lealdade a um dos polos da disputa, o que o autor determina como a consolidação de uma “típica situação de guerra”, que permeou todo o processo de emancipação (Franchini Neto, 2019, p. 91).

Em suma, o segundo capítulo da obra indica que, a partir da dicotomia “regeneração” versus “recolonização”, tem-se então um acirrado conflito político e bélico que dará base à Independência do Brasil. Ademais, o processo de adesão, longe de ter sido fato consolidado desde o primeiro momento, se exibe como um “movimento pendular” diante de interesses e decisões políticas do Rio ou de Lisboa. Como assinala o autor, a adesão das províncias não teria sido, assim, um movimento homogêneo e automático, posto que muitas resistiam até mesmo às duas propostas vigentes, ou ainda não optavam por algum dos lados dessa disputa. Para o autor, o posicionamento diante dos dois projetos (Lisboa e Rio) muitas vezes evidenciou-se como uma demanda vinda de fora das províncias, revelando pressões externas, e não como uma opção advinda internamente.

Durante o segundo capítulo, o autor elabora de forma minuciosa as possíveis causas desses conflitos e seu real significado em meio ao movimento de restauração em Portugal que seria, na verdade, a quebra da estrutura de governo que estava centralizada no Rio de Janeiro e a recolocação de Lisboa como o único centro de poder (Franchini Neto, 2019, p. 92). Objetivando enfatizar as dificuldades de um projeto aglutinador por parte de d. Pedro, o autor também discorre sobre o processo de negociação do príncipe com as elites regionais no contexto interno e, ao mesmo tempo, com a esfera internacional, quando destaca, por exemplo, a posição do Reino Unido, da Prússia e da Áustria diante da causa brasileira na disputa pela proeminência política empreendida por Lisboa e Rio. Para além disso, é levantado outro ponto de importante reflexão na tentativa de extrapolar o debate historiográfico que se baseia no contraponto entre as teses do “nacionalismo de adoção” e do “sacrifício por interesses políticos” por parte do d. Pedro. À primeira interpretação, Franchini Neto atribui a construção do ideário de uma Independência pacífica. Contudo, apoiando-se, entre outros documentos, em ofícios militares diplomáticos e correspondências, o autor mobiliza uma perspectiva historiográfica que atesta o posicionamento e as decisões do príncipe regente diretamente ligadas aos conflitos com as cortes (p. 108).

É então no terceiro capítulo, “Uma rebelião armada”, que o autor se propõe a detalhar o contexto do Fico, ressaltando o clima de violência que marcou o período após esta data decisiva. Assim, o Fico, segundo Franchini Neto, seria não somente uma mera proclamação, mas também um ato político do qual resultou um conflito armado e mobilizações militares importantes em diferentes regiões do país (Franchini Neto, 2019, p. 143). O contexto violento e conflituoso de 1822 é reconstruído por meio de fontes importantes como as informações subsidiadas por correspondências oficiais escritas pelo coronel Malet, diplomata francês que transmitiu nuances do cenário conturbado que se montou no Rio de Janeiro. Além disso, o autor se baseia na análise dos impressos e das atas da Assembleia Constituinte para destacar os conflitos e a mobilização militar daquela quadra.

Ao estudar o processo de emancipação e a disputa entre Rio e Lisboa, a obra evidencia a necessidade do príncipe em angariar esforços para sua causa. Franchini Neto, ao indicar as localidades que se tornaram base para a resistência de d. Pedro, as chamadas “províncias coligadas”, acentua que, até mesmo onde ele parecia dispor de algum apoio político, demandou-se também um longo processo de negociação em torno das elites regionais em prol da manutenção de tal adesão à causa brasileira. Assim, em localidades como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, que afirmaram, naquele contexto, seu apoio à causa brasileira, notou-se certa oscilação nesse posicionamento em prol de d. Pedro. Tal fato, acentua o autor, demandou esforços intensos por parte do príncipe. Todavia, o capítulo demonstra que a base política de d. Pedro era, assim, pouco sólida, sobretudo pela existência de divergências internas nas províncias.

Ao caracterizar todo o processo político que levou à emancipação, o pesquisador aponta elementos que consolidaram o agravamento da situação política em 1822, levando à Independência do Brasil e ao estabelecimento do imperador. No entanto, mesmo após o rompimento, o Brasil ainda permanecia dividido, nas palavras do autor, caracterizando-se por “uma identidade ainda em construção”, o que levou a uma guerra que atingiu, sobretudo, as regionalidades (Franchini Neto, 2019, p. 216). O conflito movimentou as questões internas nas províncias, a partir também das demandas políticas regionais.

Nas demais províncias do reino do Brasil, situações conflitivas apareceram, dando conta da agitação política em que se encontrava o território português. Não existiu apenas uma tendência nesses territórios, ao contrário do que a historiografia tradicional aponta e qualifica como exemplo de uma brasilidade preexistente. (Franchini Neto, 2019, p. 189)

Desse modo, ao levantar documentos provenientes das juntas governativas, como diários, cartas e ofícios advindos de diversas localidades do reino, e a partir de indícios publicados no Diário do Governo de Lisboa, o autor demonstra uma série de desdobramentos políticos que ocorreram em diferentes províncias, que auxiliam na reconstrução dos cenários provinciais em torno da disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, mesmo após a efetiva emancipação.

Nesse contexto, torna-se árdua a tarefa de unir o povo em uma mesma identidade, apoiando uma só causa. Assim, é no quarto capítulo, denominado “A mobilização militar”, que autor redesenha a magnitude da mobilização militar que atuou no processo de consolidação da Independência, a partir de fontes que elucidam as operações da Marinha, assim como diversos dados contidos em escritos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O levantamento é rico em detalhes ao traduzir a estrutura do aparato militar que atuou em território brasileiro e, ao mesmo tempo, aponta a organização militar proveniente do outro lado do Atlântico, em meio ao contexto conflituoso que se estabeleceu após a emancipação. Nessa parte do texto, Franchini Neto nos contempla com tabelas e registros bastante completos que evidenciam o contingente de armamento vigente naquela ocasião (Franchini Neto, 2019, p. 245). É neste ponto do capítulo que o autor acentua uma discussão bastante oportuna acerca do conceito de “guerra” e do motivo de sua não utilização por parte do Rio de Janeiro e de Lisboa durante aquele período. A ausência de uso do vocábulo, no entanto, não exclui a existência de um conflito armado significativo durante o processo de Independência.

O capítulo “Guerra no centro estratégico: Bahia”, quinto da obra, nos permite dimensionar a importância dessa região durante os conflitos militares que emergem no processo de emancipação política e nos meses que se seguiram. A Bahia e, sobretudo, a figura de general Madeira, configuram-se como peças fundamentais na narrativa do autor para apresentar minuciosamente ao leitor como teria ocorrido o enfrentamento entre Lisboa e Rio de Janeiro. A partir da análise dessa região, Helio Franchini Neto consolida sua tese, que leva em conta o cenário de guerra que emerge no processo de emancipação. A obra exibe um levantamento baseado na releitura da historiografia sobre a Bahia e ancora-se em fontes como o jornal A Idade d’Ouro, além de ofícios dirigidos às cortes e panfletos manuscritos. Com posição estratégica entre as demais regiões do território e importância também no âmbito econômico, a Bahia se tornou o centro do conflito armado. Nessa perspectiva, ao elaborar o clima bélico durante o processo de adesão aos dois polos políticos, o autor faz questão de enfatizar a linha de pensamento que persegue por todo o texto: a importância das dissidências regionais diante do apoio à causa da Independência. Assim, naquela região as posições também não eram unânimes em favor de Lisboa ou do Rio. Panfletos do período corroboram a ideia de três grupos políticos distintos consolidando o contexto político que serviria de palco para o conflito armado (Franchini Neto, 2019, p. 290).

No sexto capítulo Franchini Neto apresenta “O teatro de operações Norte”, conduzindo o leitor a compreender que as operações militares nessa região nos comprovam o quanto a emancipação dependeu dos conflitos militares e das negociações regionais. Interessante destacar que, ao abordar as províncias separadamente no cenário de conflito armado, o autor deixa claro que os contextos regionais não se construíram de forma isolada, pois apresentavam relação direta com os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia, por exemplo. Desse modo, é notória a iniciativa da obra em dar voz às realidades regionais, incorporando- -as a um contexto conflituoso que atravessava todo o território.

Assim, ao elaborar sua análise sobre o longo processo que levou à incorporação de províncias como Piauí, Maranhão e Pará ao projeto político brasileiro de d. Pedro, o autor traz percepções bastante esclarecedoras, como a problematização acerca do fato de que incorporar uma região à causa brasileira não significou angariar sua total fidelidade dentro do conflito (Franchini Neto, 2019, p. 491). Além disso, na maioria das vezes, como cita o pesquisador, o posicionamento regional nasceu da necessidade de se adaptar às mudanças impostas na dinâmica política. Em algumas regiões, mesmo sem o vínculo com Lisboa, agora quebrado a partir dos conflitos armados, também era difícil constituir um vínculo sólido com o Rio de Janeiro (p. 519).

O sétimo capítulo tem como foco a Cisplatina e o processo de adesão à Independência do Brasil em meio a conflitos já existentes naquela região. Lisboa e Rio mantinham certo diálogo com a localidade, disputando apoio político. A manutenção da Cisplatina, como acentua o autor, seria fundamental para a consolidação do projeto político concebido por José Bonifácio para o império brasileiro. Diante do impasse, mais uma vez a solução tendia a ser o conflito militar. A composição do cenário de guerra naquela região, sobretudo por parte das forças militares portuguesas, que reagiram a partir da obrigação de se posicionar diante da política pendular do Rio e de Lisboa, foi amplamente discutida pelo autor por meio de ofícios e correspondências diplomáticas. Já no oitavo capítulo, centrado, sobretudo, em 1823, são demonstrados os percalços que envolveram todo o momento pós-guerra e o longo processo de reconhecimento da Independência do Brasil, entre perdas, ganhos e arranjos. A investigação de Franchini Neto elucida de que forma terminam esses conflitos em todo o território e reconstitui as principais negociações que envolveram a emancipação do Brasil, dando ênfase aos documentos diplomáticos e à atuação inglesa no processo de reconhecimento. Os combates, como acentua o autor, terminam em 1823. Todavia, é necessário enfatizar a existência de conflitos políticos posteriores que emanam do Rio de Janeiro, bem como a incidência de revoltas, sobretudo regionais, relacionadas ao apoio à Lisboa. A obra evidencia que Maranhão e Pará são exemplos da duração dessas contendas, que permanecerão vivas até meados de 1825, no momento de reconhecimento da Independência.

Seguindo para sua conclusão, o autor resgata questões importantes que permeiam toda a interpretação histórica que se contrapõe a uma ideia de emancipação pacífica. Para Franchini Neto, é necessário que todo o percurso conflituoso caracterizado na obra não seja visto simplesmente como o processo de Independência do Brasil, mas sim como um trajeto histórico que, entre tantos resultados possíveis, culminou, então, na emancipação. A obra acentua o cenário marcado pela instabilidade política e pela ausência de identidade nacional em meio ao caminho que levou à emancipação. Desse modo, Franchini Neto conjectura que a Independência fora então o resultado da disputa entre os dois polos, Rio e Lisboa, que conflitaram na tentativa de angariar alguns eixos principais: a Bahia, o Norte e a Cisplatina. Foram nesses cenários em que d. Pedro precisou ampliar sua adesão política, sobretudo diante das elites regionais, objetivando o reconhecimento de seu projeto político (Franchini Neto, 2019, p. 568).

Apoiando-se em autores cruciais que dão base ao debate sobre a historiografia da Independência, temática que apresenta vasta produção acadêmica, sua perspectiva historiográfica pretende inserir o componente militar no centro das discussões e aponta reavaliações históricas pertinentes sobre o período. Por meio de minucioso trabalho empírico, contemplando um amplo arcabouço de documentos, além de variados acervos, a obra recupera e traz à luz os registros das batalhas motivadas pela disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, destacando as dinâmicas regionais, e, ainda, acentuando a participação popular, ao enfatizar as dificuldades de adesão encontradas por d. Pedro.

Assim, na esteira dos estudos que emergem no momento do bicentenário da Independência do Brasil, a obra certamente contribui para a composição das interpretações historiográficas que buscam reavaliar o contexto da emancipação e seus desdobramentos. O livro de Helio Franchini Neto se destaca, entre outras características, por dialogar com interpretações consolidadas dentro da temática e, ao mesmo tempo, por conseguir, com êxito, inserir a mobilização militar que ocorreu entre 1822 e 1823 como elemento fundamental na construção do Estado-nação e na unidade territorial brasileira.

Referência

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821- 1823). 1. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.


Resenhista

Karulliny Silverol Siqueira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Arquivologia da Ufes, Brasil. E-mail: karulliny@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro: Topbooks, 2019. Resenha de: SIQUEIRA, Karulliny Silverol. Entre conflitos e negociações: a Independência do Brasil sob a ótica do enfrentamento militar. Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 1-9, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Scripta Mediaevalia. Mendoza. v.15, n.1, 2022.

Artículos

Publicado: 25-08-2022

Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n.3, set./dez., 2022.

Independências: 200 anos de história e historiografia

Descrição da edição

Entrevista

Dossiê

Resenhas

Artigos livres

Publicado em 25 agosto 2022

 

Independências: 200 anos de história e historiografia/Acervo/2022

Em 2022 completaram-se 200 anos da(s) Independência(s) do Brasil. Datas marcantes costumam ser oportunidades instigantes para comemoração e reflexão. Afinal, transformam-se em uma oportunidade para revisitar temas e renovar olhares, interpretações e abordagens sobre eles. No caso dessa efeméride, foi o que aconteceu, dentro e fora da academia. Teses e dissertações, exposições, livros, sítios eletrônicos, seminários e simpósios, textos e um sem-número de artigos científicos foram produzidos ao longo deste ano (e ainda deverão continuar a ser publicados nos próximos), trazendo à tona antigas questões, mas fornecendo novos encaminhamentos e novas roupagens.

Comemorar o bicentenário da Independência não é somente voltar-se para o passado, mas é também refletir sobre os problemas apresentados pelo presente e sobre as expectativas com o futuro do país. Ao fim de 200 anos de emancipação, cabe perguntarmos que país é esse que foi construído e qual país desejamos daqui para frente. Leia Mais

Brathair. São Luís, v.21, n.2, 2021.

Aprendendo e ensinando na Idade Média e Renascimento: Novas perspectivas

Editorial

Dossiê 2021.2 – Aprendendo e Ensinando na Idade Média e Renascimento

Artigos/Articles

Publicado: 2022-08-25

 

Acervo. Rio de Janeiro, v.35, n.3, set./dez. 2022.

Acervo

Independências: 200 anos de história e historiografia

Descrição da ediçãoOue levaram ao rompimento com a metrópole portuguesa, levando-se em conta que se tratou de um longo processo,

Dossiê

Resenhas

Publicado em 25 agosto 2022

Ditaduras: revisitando o caso brasileiro | Revista Eletrônica Trilhas da História | 2022

Detalhe de capa de A chegada do III Reich de Richard J. Evans
Detalhe de capa de A chegada do III Reich, de Richard J. Evans

“Uns dizem que essa história aconteceu há muitos e muitos anos, num país muito longe daqui. Outros garantem que não, que aconteceu há poucos e poucos dias, bem pertinho. Tem também quem jure que está acontecendo ainda, em algum lugar. E há até quem ache que ainda vai acontecer” (Machado, 1982, p. 5). Assim se inicia a obra já clássica de Ana Maria Machado, Era uma vez um tirano (1982). Num momento de transição do regime Ditatorial brasileiro para a abertura política rumo ao estabelecimento da democracia, ainda que tutelada em muito pelos militares, o livro dedicado ao público infanto juvenil revela um conjunto de elementos sensíveis daquele contexto e, ao mesmo tempo, da fiação da memória e dos fatos ainda prementes na vida daqueles que se afrontaram com um regime ditatorial.

Assim, a ruptura de uma ordem autoritária – sem ferir a experiência da leitura deste livro poderoso – se torna possível pela ação de três crianças e é permeada pela arte. Sem dúvida, historiadores e cientistas sociais são fundamentais, mas escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas plásticos e outros artesãos da realidade, foram decisivos na luta e contestação do regime ditatorial. Dessa maneira, “se ainda fosse abril, o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?” (1995, p.69). A questão aberta pelo poeta Capinan fica em suspenso. Continua difícil pensar tempos e espaços onde a repressão passou a ser normalizada, nos quais a inquisição retorna como vício constituinte do capitalismo ocidental. Os valores do liberalismo ficam aposentados compulsoriamente sempre que necessário, para que prevaleça a soberana decisão de estabelecer a Ordem. Certa ordem, bom dizer, baseada em desordens subterrâneas e inúmeras ilegalidades. Terrorismo de Estado, como se diz atualmente. Leia Mais

A experiência zapatista. Rebeldia, resistência e autonomia | Jérôme Baschet

Jerome Baschet Imagem Le Comptoir
Jérôme Baschet | Imagem: Le Comptoir

ENTRE A PALAVRA-PENSAMENTO E A PALAVRA-AÇÃO ZAPATISTA: A BUSCA PELA AUTONOMIA

O levante zapatista tem sido uma forte experiência de luta indígena contra o esquecimento, o subjugo e a opressão colonial e capitalista, e a favor da autonomia, da memória e libertação coletiva entre os povos. A partir desta perspectiva, tem-se a proposta de construir um futuro e mundo em que todos caibam e seus próprios modos de vida em seus territórios. A insurgência zapatista, que ocupa o território mexicano desde 1994, tem como foco principal a construção de uma luta planetária a partir de um Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), hoje um movimento político de resistência e de luta comum pela causa indígena em uma organização comunitária e, por sua vez, o esforço de estabelecer redes planetárias de emancipação à dominação do capitalismo neoliberal, com uma renovada perspectiva do marxismo.

A experiência zapatista: rebeldia, resistência e autonomia, escrito pelo historiador Jérôme Baschet (2021), é também fruto de uma coletânea de obras sobre a insurgência do movimento zapatista, lançada pela N-1 Edições, cuja proposta do conjunto de obras é apresentar a experiência e a luta histórica zapatista e seu pensamento político e coletivo, a fenda que cria condições de possibilidades para um mundo justo e igualitário, uma fenda que está em permanente processo para abrir o “muro da história”, manter viva a memória e os modos de ser e estar no mundo a partir de diferentes modos de vida e temporalidades, na contramão daquelas impostas pelo capitalismo neoliberal. Por isso, como alerta Galeano (2021), “é preciso continuar sem descanso. Não apenas para aumentar a fenda, mas, sobretudo, para que ela não se feche” (Galeano, 2021, p. 31). Leia Mais

Trilhas da História. Três Lagoas, v.11, n.22, 2022.

Trilhas de Historia2

DITADURAS: REVISITANDO O CASO BRASILEIRO

Organizadores:
Aruanã Antonio dos Passos (UTFPR)

  • Eduardo Gusmão de Quadros (PUC-GO; UEG)
  • Rodrigo Tavares Godoi (UNIR).

Dossiê

Artigos livres

Ensaios de Graduação

Resenhas

Publicado: 2022-08-22

Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Mateus Henrique de Faria Pereira Imagem Varia Historia
Mateus Henrique de Faria Pereira | Imagem: Varia História

No atual século, poucos livros no campo da teoria da história alcançaram um índice de repercussão como Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo (originalmente publicado em 2003), de François Hartog (2013). O livro se tornou referência fundamental nos estudos acerca da experiência do tempo com a proposta de criação de um “instrumento”, a categoria “regimes de historicidade”, para a averiguação de como sociedades e culturas estabeleceram em distintos momentos históricos determinadas ordens do tempo. Do mesmo modo, a obra vem sendo alvo de importantes reavaliações (ver ARAUJO; PEREIRA, 2018ARANTES, 2014LORENZ; BEVERNAGE, 2013; GUIMARÃES; RAUTER, 2021; TURIN, 2016, entre outros), que questionam tanto as pretensões heurísticas da categoria anunciada por Hartog, quanto a sua hipótese mais fundamental acerca do “presentismo”, isso é, a prevalência do presente sobre as dimensões do passado e do futuro, sendo que, no caso do último, ainda se impõe uma importante sensação de fechamento, ao contrário do que se via na concepção moderna de história, como teorizada por Koselleck (2006).

Compondo essa mesma linhagem crítica e saindo pela mesma editora que publicou o livro de Hartog no Brasil, Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet, de Mateus Henrique de Faria Pereira (2022), aparece como uma obra disposta a analisar os impactos do novo para a redefinição dos papéis da historiografia sem qualquer olhar nostálgico de uma antiga condição, ao mesmo tempo que aceita o desafio de pensar as possibilidades que a era da internet traz para uma efetiva inserção do historiador e da historiadora num debate público amplo e democrático. Leia Mais

Brasil em projetos: História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba

Jurandir Malerba Imagem Cafe Historia 2
Jurandir Malerba | Imagem: Café História

Num momento tão difícil da conjuntura nacional, em que a lenta construção da democracia brasileira após 1985 é ameaçada por distintas forças, a compreensão desse processo passa não somente pela análise do contexto atual, como pelo estudo dos diferentes projetos propostos para a construção do Brasil a partir de sua Independência, em 1822. Neste sentido, só podemos saudar com entusiasmo a iniciativa da Editora da Fundação Getúlio Vargas com o lançamento da coleção Uma outra história do Brasil, que pretende apresentar os projetos políticos de distintos grupos sociais que atuaram no Brasil nos últimos dois séculos.

O primeiro volume dessa ambiciosa empreitada, Brasil em projetos, é da lavra de Jurandir Malerba e abrange o período que vai do último quartel do século XVIII às duas primeiras décadas do seguinte. Trata-se, como sabemos, de um período chave da história do Brasil, marcado na economia por um significativo crescimento baseado na produção agropecuária de base escravista e, em termos sociais, pela consolidação de uma poderosa elite mercantil, responsável pelos vínculos tanto internos quanto externos da América portuguesa. É no campo político que temos algumas das principais transformações. Da chegada da família real ao Brasil até a abdicação de Dom Pedro I, temos décadas de grande agitação, abrangendo da transferência dos órgãos da corte portuguesa para a América à construção de uma nova nação e de um Estado independente. Tudo isso num ambiente intelectual marcado pelo influxo das ideias iluministas e do liberalismo. Leia Mais

Varia Historia. Belo Horizonte, v. 38, n.77, 2022.

Varia Historia4

 

Povos indígenas no Brasil: opressão histórica e perspectivas atuais

Indigenas ocupam sede da Funai na BA em protesto contra PL que pretende modificar processo de demarcacao de terras 16 jun. 2021 Imagem TV Santa Cruz 1
0Indígenas ocupam sede da Funai na BA em protesto contra PL que pretende modificar processo de demarcação de terras (16 jun. 2021) Imagem: TV Santa Cruz

Colegas, boa noite.

Bem-vindos ao curso "Povos indígenas no Brasil: opressão histórica e perspectivas atuais". O título (que enuncia a proposta) é uma criação do nosso programa de Pós-Graduação. A escolha dos textos e do método de ensino-aprendizagem é minha. Por isso, leia com atenção para se convencerem de que este é realmente o curso que vocês querem ou necessitam seguir.

Objetivos

Com este curso, quero fornecer informação autorizada e atualizada sobre a pesquisa que tem os povos indígenas e o indigenismo como objeto de conhecimento, principalmente, nos últimos cinco anos. Um segundo objetivo é ampliar as habilidades de leitura e crítica de textos acadêmicos. O terceiro é ampliar a habilidade de produção escrita e estimulá-los a publicar trabalhos acadêmicos, simultaneamente à produção de suas dissertações.

Metodologia

Privilegio metodologias ativas, ou seja, a preleção professoral somente ocupa 1/4 da carga horária. Isso significa que vocês atuarão, coletiva e individualmente, na leitura, produção de textos, apresentação e publicação de resenhas.

O curso é modular. No primeiro, problematizo ideias de ontologia (ocidental e extra ocidental), ideias sobre o ser indígena professadas por antropólogos e historiadores e visões gerais sobre o ser indígena no Brasil e na Bahia. A exposição é combinada com a leitura coletiva em voz alta, por parte dos alunos, e questionamentos sobre o texto lido. Ao final do primeiro módulo, promovo exercícios de leitura, crítica e composição de histórias indígenas, com vistas ao trabalho final que cada aluno deverá produzir.

No segundo módulo, alunos que pretendem pesquisar questões indígenas durante o mestrado são convidados a produzir resenhas sobre suas respectivas questões, orientados (em pesquisa, escrita e exposição) pelo professor. A leitura é orientada pelo professor em sala de aula e inclui o levantamento preliminar de artigos referentes à questão central que orienta o livro escolhido para a resenha (sobretudo para quem não possui familiaridade com o tema), a leitura instrumental da obra e a aprendizagem de estratégias de coleta e processamento das anotações e, por fim, a apresentação de modelos de arquitetura da informação para a resenha. Os alunos, por fim, são convidados a finalizarem as resenhas, também sob supervisão do professor, e a apresentarem-nas aos colegas dos cursos de graduação e de pós-graduação do Pólo da Uneb em Irecê.

Avaliação

O curso é atravessado por avaliações diagnósticas a respeito das habilidades listadas nos objetivos listados acima. O conceito final, que dá direito à obtenção dos créditos, dependerá da apresentação e da entrega (até o último dia do curso), da resenha finalizada e autorizada para a publicação.

Programação

Primeiro módulo (20h)

25-27/10/2022 - Das 08h às 12 e das 14h às 18h

  1. Acolhimento e apresentação do curso (diálogos)
  2. Seleção de livros para a produção textos autorais (Lista reproduzida abaixo)
  3. Ontologias do Ocidente - leitura e discussão de textos da Bíblia (Gênesis), de Immanuel Kant (Probable Inicio de la historia humana)
  4. Ontologias indígenas - leitura e discussão de elementos cosmogônicos Yanomami, Mundurucu e Xocó, colhidos, respectivamente por David Kopenawa (O primeiro xamã), Daniel Munduruki (Origem dos Munduruku) e de Jan Hoffman French (Danças sagradas, encontros secretos e estados alterados)
  5. O Ser indígena entre antropólogos e historiadores: posições de Roberto Cardoso de Oliveira (Vídeo), Eduardo Viveiros de Castro (Vídeo) João Pacheco de Oliveira (Entrevista) e João Monteiro (Texto).
  6. Histórias sobre identidades indígenas produzidas por indígenas e não indígenas (Texto)
  7. Histórias indígenas no Brasil e na Bahia (Leitura comentada em forma de resenhas)

Segundo módulo (16h)

15/11/2022 - Das 8hàs 12 e das 14 às 18h

  • Leitura dos livros e artigos selecionados para a exposição oral (Carga horária distribuída pelos alunos)

10/11/2022 - Das 18h às 22h

10/11/2022 - Das 18h às 22h

  • Exercícios de composição textual - apresentação, contextualização, descrição e avaliação de histórias indígenas (com o livro selecionado pelo aluno) - Texto: Modelos de composiçãoMedindo as palavras

Terceiro módulo  (14h)

05/12/2022 (Segunda-feira) Das 14h às 17h e 18h às 21h

  • Correção individual das resenhas e revisões (Agendamento a cargo da turma)

06/12/2022 (Terça-feira) Das 14h às 17h

  • Correção individual das resenhas e revisões (Agendamento a cargo da turma)

06/12/2022 (Terça-feira) Às 20h30h

  • Palestra "O papel da crítica na educação contemporânea" (Não inclusa na carga horária do curso) / Lançamento do livro "Uma introdução ao método histórico" - Itamar Freitas

07/12/2022 (Quarta-feira - Das 14 às 17h

  • Apresentação das resenhas na "Seção de comunicações dos alunos e professores do PPGAFIN"

08/12/2022 (Quinta-feira) - Das 14h às 17h

  • Oficina "Letramento Histórico para professores" (Não inclusa na carga horária do curso

09/12/2022 (Sexta-feira) - Das 08h às 12h

  • Oficina "Letramento Histórico para professores" (Não inclusa na carga horária do curso

09/12/2022 (Sexta-feira) - Das 14h às 18h

  • Registro de frequências e notas e encerramento do curso (Não inclusa na carga horária do curso)

Orientações para a apresentação oral das  resenhas e revisões

É uma comunicação formal ao mundo acadêmico sobre o que você produz.

  1. Formule um texto para ser falado entre DEZ e QUINZE minutos, no máximo. Seja claro/a e conciso/a e original.
  2. Apresente-se de forma sumária - nome, filiação institucional e natureza da pesquisa.
  3. Em seguida, apresente a questão ou o objetivo.
  4. Por fim, apresente resultados.
  5. Encerre com uma conclusão em duas ou três frases que você julga derverem ficar na memória de quem te assiste.
  6. Evite a linguagem rebuscada e a linguagem chula. Foque no que você produziu e não na revisão da literatura ou no quadro teórico. Reserve 70% do tempo para tratar das suas conclusões (parciais ou finais).
  7. Se for usar slides, prepare não mais que cinco, considerando que cada um ocupa três minutos da sua apresentação, em média. Reserve alguns segundos para demonstrar que registrou as referências bibliográficas no penúltimo slide. O último deve registrar um cordial "muito obrigado".
  8. Prefira linguagem tópica. Se usar linguagem dissertativa, evite ler o slide (pecado mortal). O slide serve também para descansar a vista do leitor e te deixa livre.
  9. Se estiver inseguro na fala (memória), use apenas um slide como sumário da comunicação, passando a vista, de vez em quando, para não perder o fio da narrativa.
  10. Se o moderador avisar que faltam dois minutos (ou algo do tipo), salte imediatamente para as conclusões. Você poderá retomar a fala ausente no momento das perguntas.

Os instrumentos de interação

A comunicação é formal também em termos de etiqueta.

  1. Use a primeira pessoa durante as falas.
  2. Use roupa e formal: "da formalidade a gente nunca se arrepende".
  3. Não se coce, não mastigue, não interrompa uma frase para tomar água.
  4. Responda exatamente o que o mediador quer saber. Você pode dizer não sei. Pode dizer não é bem esse o foco da minha pesquisa etc. Só não pode ser indelicado com Se o questionador (embora ele não deva, mas) for indelicado com você, não revide.
  5. Assista todas as apresentações.
  6. Faça ao menos uma pergunta inteligente a um dos apresentadores.

Livros sugeridos para as resenhas individuais

  1. Política Externa e povos indígenas: Um tema para empresários, políticos e sociedade civil organizada | Cesar Santos (2022)
  2. Direitos dos povos indígenas em disputa no STF | Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa (2018)
  3. Povos Indígenas e Direitos Territoriais | Leandro Ferreira Bernardo (2021)
  4. Terras indígenas e o STF: análise de decisões numa perspectiva decolonial (2009-2018) | Luiz Henrique Matias da Cunha (2021)
  5. Gênese e evolução do Direito Indigenista no Brasil: Contextualização Histórica | Tatiana Larissa Pendiuk Mendes (2021)
  6. O Direito Indígena e a Corte Interamericana de Direitos Humanos | Erick Linhares (2021)
  7. Jurisdição Indígena: fundamento de autodeterminação dos povos indígenas na América Latina e no Brasil | Victor Melo Fabrício da Silva (2022)
  8. O Movimento Indígena e a Luta por Emancipação | Catiúscia Custódio de Souza (2018)
  9. Histórias e culturas indígenas na Educação Básica | Giovani José da Silva, Anana Maria Ribeiro F. M. da Costa (2018)
  10. Aproximando universidade e escola: Ensino de histórias e culturas indígenas | Éder da Silva Novak e Luís César CAstrillon Mendes (2021)
  11. A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no Noroeste Amazônico | Márceio Meira (2018)
  12. História dos povos indígenas no Espírito Santo. Volume 1: os Puri | Julio Bentivoglio (2020)
  13. Visões de Catimbó: Elementos da História Indígena e do Catimbó-Jurema do Rio Grande do Norte | Rômulo Angélico, Ana Paula Cichelero e Charles Boeira (2018)
  14. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX | Márcio Couto Henrique (2018)
  15. A resistência indígena ao projeto colonial castelhano nas provincias do Guairá e do Itatim (1593-1632) | Sandra Nara da Silva Novais (2021)
  16. Histórias e culturas indígenas na Mantiqueira e Vale do Rio Verde | Gustavo Uchôas Guimarães (2019)
  17. O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia | Daniela Fernandes Alarcon (2020)
  18. Os Índios na História da Bahia | Fabrício Lyrio Santos (2022)
  19. Os Payayá no sertão das jacobinas (1851-1706) | Solon Natalício Araújo dos Santos (2019)
  20. Os índios e a colonização na antiga Capitania de Porto Seguro: políticas indigenistas e políticas indígenas no tempo do Diretório Pombalino | Francisco Cancela (2018)
  21. Rondon: Uma biografia | Larry Rohter (2019)
  22. Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura | Rubens Valente (2017)
  23. Etnocomunicação Indígena como Prática de Liberdade Decolonialista e Ancestral | Letycia Gomes Nascimento (2021)
  24. Xukuru: Memórias e história dos índios da Serra do Orurubá (Pesquieira/PE), 1950-1988 | Edson Silva (2014/2017)
  25. Guarani e Kaiowá: Modos de Existir e Produzir Territórios – Vol. II | Levi Marques Pereira e Jones Dari Goettert (2022)
  26. Mulheres indígenas do Rio Negro: uma viagem-escuta  | Naiara Alice Bertoli (2022)
  27. A Amazônia e os Povos Indígenas: Conflitos Socioambientais e Culturais | Aparecida Luzia Alzira Zuin, Vinicius Valentin Raduan Miguel (2020)
  28. Identidades Indígenas em Perspectiva: Ressignificação, Negociação e Articulação entre Espaços Formativos | Maria Iabel Alonso Alves (2022)
  29. Políticas culturais e povos indígenas | Manuela Carneiro Cunha e Pedro de Niemeyer (2020)
  30. Políticas antes da política de saúde indígena | Ana Lúcia de Moura Pontes e Felipe Rangel de Souza Machado (2021)
  31. Contaminação, Doenças e Assassinatos: Meio século de garimpo na Floresta Amazônica e os danos causados às TIs Munduruku, Yanomami, Waiãpi e Kayapó  | Arlete Bonelli (2022)
  32. A terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio | Kaká Werá (2020)
  33. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição) | Ailton Krenak (2019)

Cada aluno deve escolher um livro para resenhar e indicar a sua escolha até um dia antes do início do primeiro módulo. As escolhas serão imediatamente registradas aqui para evitar a repetição de leituras e resenhas.

Informe aqui a sua escolha.

Material de ensino

A bibliografia básica e o material complementar de ensino (documentários, entrevistas etc.) são constituídos ao longo da primeira semana de curso porque dependem do interesse e das escolhas dos alunos em termos de leitura (conectada à investigação pessoal no mestrado e ao trabalho de produção, apresentação e publicação de resenhas). Independentemente desse condicionante, segue-se uma pequena amostra do que consideramos "literatura básica" sobre povos indígenas e indigenismo.

Bibliografia básica (Versão inicial)

Excertos

ARRUTI, José Maurício. Etnogêneses indígenas. In: ricardo, fANY (Org.). Terras indígenas & Unidades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. p.26-36.

CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CANCELA, Francisco. Os índios e a colonização na antiga Capitania de Porto Seguro: políticas indigenistas no tempo do Diretório Pombalino. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

FLECX, Eliane Cristina Deckmann. Hostilidade e cordialidade: a face dupla dos contatos (Brasil, séculos 16 e 17). SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23, Londrina. Anais... Londrina: Associação Nacional de História, 2005. 1 CD-ROM.

MONTEIRO, John. Redescobrindo os índios da América Portuguesa: incursões pela história indígena e do indigenismo. In: Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Campinas, 2001. Tese. Livre docência em Etnologia. Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Campinas. p. 1-11.

KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o diálogo intolerante. IN: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux Boelitz; FISCHMANN, Roseli (Org. Povos indígenas e tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Editora da USP, 2001, p.245-252.

SANTOS, Fabrício Lyrio. Os índios na história da Bahia. 2ed. sdt.: Fino Traço, 2020.

SANTOS, Natalício Araújo dos. Os payayá no sertão das jacobinas (1651-1706). Curitiba: Appris, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

Sites

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Disponível em <https://apiboficial.org/> Consultado em 21 ago. 2022.

MÍDIA ÍNDIA. https://www.facebook.com/VozDosPovos/

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Índios do Brasil: quem são? Disponível em <https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/povos-indigenas/quem-sao>. Consultado em 21 ago. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indígenas. <https://indigenas.ibge.gov.br/> Consultado em 21 ago. 2022.

SOCIOAMBIENTAL.ORG. Povos indígenas no Brasil. Disponível em<https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal> Consultado em 21 ago. 2022.

TERRAS INDÍGENAS.ORG. Terras indígenas no Brasil. Disponível em <https://terrasindigenas.org.br/> Consultado em 21 ago. 2022.

RESENHA CRÍTICA.COM.BR. Base de dossiês de artigos sobre: Campo Indigenista, Coletivos Indígenas, Cultura Indígena, Culturas Afro-Brasileiras e Indígenas, Dança IndígenaDiretório dos Índios, Educação Escolar Indígena, Ensino de História Indígena, Etno-história indígena, Filosofias Indígenas Amerídias, História dos Índios, História dos Povos Indígenas, História Indígena, Histórias Afro-Brasileiras e Indígenas, Historiografia indígena, Identidades Indígenas, Indígenas, Indigenismo, Índios, Pensamentos Indígenas, Políticas Indígenas, Políticas Indigenistas, Povos indígenas, Protagonismo Indígena, Protagonismos Indígenas, Questões IndígenasSociedades Indígenas; base de resenhas de livros sobre: Aldeamento Indígena, Arte Indígena, Colonization of Indigenous Kinship, Conceito de Perspectivismo cosmológico ameríndio, Conversão dos Índios, Convfederação de Nacionalidades Indígenas, Cosmopolíticas Indígenas, Cultura indígena, Educação indígena, Genocídio Indígena, História da Educação Indígena, História dos povos indígenas, História indígena, Identidade indígena, Indígena, Indígenas, Indígenas Abipones, Indígenas Apache, Indígenas Baniwa, Indígenas Guarani, Indígenas Kaingang, Indígenas Potiguara, Legislações Indigenistas, Mitologias Ameríndias, Mobilizações Indígenas, Modernidade indígena, Movimentos Indígenas, Mulheres Indígenas, Nova História Indígena, Poder Indígena, Poesia indígena, Política Indigenista, Políticas indigenistas, Populações indígenas, Povos Ameríndios, Povos indígenas, Relações entre Índios e Brancos, República dos Índios, Revista de História Indígena, Sociedades Indígenas, Sociodiversidade indígena, Tecnologias indígenasTrabalho Indígena.

Independência ou Morte! Tradições e modernidades | Modos – Revista de História da Arte | 2022

O presente dossiê parte das diferentes narrativas sobre a efeméride do bicentenário da Independência do Brasil – 1822-2022, em conexão com outros marcos históricos relacionados ao longo do tempo. O conjunto de artigos apresentados manejam diferentes histórias conectadas e cruzadas, em distintas escalas de leitura temporal e espacial, acerca da tradição e da modernidade no Brasil. Assunto prolixo, porém inesgotável, o evento histórico é tratado aqui como uma janela para a compreensão das relações entre passado e presente no campo da arte. Para isso, este número incorpora questionamentos sobre a produção artística, crítica e historiográfica dedicada às artes visuais e suas correlações com a polissemia da noção de independência, os inúmeros modos de ver e diversas práticas de olhar, assimetrias, centros e periferias da arte. Desde a pintura histórica e a escultura comemorativa à criação moderna e às intervenções contemporâneas, passando pelos tópicos de produção e circulação de imagens, lugares de exibição de obras, acervos e coleções. Está claro o interesse sobre a reflexão das múltiplas narrativas que moldam como percebemos, interpretamos e divulgamos o campo artístico e a obra de arte em torno dessa efeméride patriótica, entre imagens, memórias e ocultamentos.

Em O monumento do “guerreiro guarani”: o chafariz de Conceição de Mato Dentro e a memória da independência em Minas Gerais, Francislei Lima da Silva (2022), trata da inauguração, em 1825, durante as comemorações do quarto ano da independência e do império, no povoado de Conceição do Serro, Minas Gerais, de um chafariz coroado pela escultura de um indígena – “gênio do Brasil”. Para o autor, este monumento serviu para reforçar e inserir, no imaginário local, a ideia de adesão ao jovem Império que se conformava a partir da independência política em 1822. A presença do indígena alegorizado em gestos triunfantes e que enaltecia determinadas virtudes cívicas coexistia com as tensões e a violência imposta aos nativos que habitavam os campos de cerrado que davam nome ao lugar. Leia Mais

Modos. Campinas, v.6, n.3, 2022.

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

MONTAGEM: A CONDIÇÃO EXPOSITIVA

PUBLICADO: 2022-08-20

 

Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.56, n.1, 2022.

Anais do Museu Historico Nacional

Anais do Museu Histórico Nacional. Volume 56

Editorial

Artigos

Publicado: 2022-08-20

Horizontes Históricos. São Cristóvão, v.4, n.1, 2022.

Apresentação

Artigos

Publicado: 2022-09-19

Fronteiras – Revista Catarinense de História. Florianópolis, n.40, 2022.

Fronteiras ANPUH SC

A História Global e as fronteiras na Antiguidade

jul./dez. 2022

Editorial

Dossiês

Artigos

Publicado: 18-08-2022

Global Classics | Jacques Bromberg

Jacques Bromberg Imagem University of Pittsburgh
Jacques Bromberg | Imagem: University of Pittsburgh

Na primeira semana de fevereiro de 2021, a The New York Times Magazine publicou um (já célebre) perfil de Dan-El Padilla Peralta, latinista estadounidense negro de origem dominicana, que escancarava os compromissos do campo de Classics – ou Estudos Clássicos, a partir de seu paralelo brasileiro – com o colonialismo e o racismo (POSER, 2021). O título da reportagem era sintomático acerca das implicações do debate: “Ele quer salvar Classics da branquitude. O campo conseguirá sobreviver?”. O texto gerou debates em diversos lugares e veículos do mundo, da imprensa grega (IOANNIDIS, 2021), acostumada a discutir a centralidade econômica do turismo histórico, a mesas redondas de antiquistas brasileiros (GT DE HISTÓRIA ANTIGA, 2021), marcados pelos intensos debates sobre o lugar da Antiguidade no ensino de História no Brasil.

O perfil e as subsequentes entrevistas de Dan-El Padilla Peralta permitiram que sujeitos de diferentes partes do mundo percebessem as tensões e contradições do (afluente) campo universitário estadounidense. Visto do Brasil, o debate tornava evidentes tanto os paralelos, como por exemplo a importância da “tradição greco-romana” na formação das elites escravistas e de uma identidade europeia, quanto os contrastes, como na quantidade de instituições universitárias e de financiamento acadêmico, ou ainda na experiência social do imperialismo a partir de posições antagônicas. Este jogo de paralelos e contrastes se explica pela história recente do Brasil. A partir da redemocratização dos anos 1980, a historiografia brasileira iniciou um movimento de revisão profunda de seus pressupostos eurocêntricos, o que motivou o surgimento de perspectivas alternativas, como as histórias dos grupos populares e subalternos, das relações de gênero, dos usos do passado ou dos processos globais de integração. O debate em torno das críticas de Padilla Peralta, então, apontava para o surgimento, nos Estados Unidos, de uma ainda marginal crítica aos compromissos eurocêntricos e elitistas do campo. Num curioso caso de “vantagem do subdesenvolvimento”, antiquistas brasileiros puderam “anacronizar” a academia estadounidense, assistindo a um debate intenso ali, mas já datado aqui. Leia Mais

A História Global e as fronteiras na Antiguidade | Fronteiras – Revista Catarinense de História | 2022

Detalhe da Estela de um mercenario em Patiris 2134–2040 a.C. Imagem Wikipedia
Detalhe da Estela de um mercenário em Pátiris (2134–2040 a.C.) | Imagem: Wikipédia

Entre as grandes rupturas culturais do final do século XX, a crise do eurocentrismo – entendido como a cosmovisão que situa a modernidade ocidental como modelo e destino da história universal – foi a que teve mais efeitos no campo historiográfico global. As diferentes áreas do campo reagiram de modos particulares: enquanto a História Econômica e comparada reviu a centralidade da Europa na história mundial (revisão exemplificada na corrente intelectual do ReOrient), a História Social buscou ressaltar a imbricação entre estruturas e agência dos grupos subalternos tanto nas sociedades, quanto nas memórias ocidentais. A História Cultural, por sua vez, ressaltou as tensões implicadas na construção de identidades e representações sociais tais como “civilizado” ou “colonial” (como nas abordagens pós- e decolonial), e a História Ambiental reelaborou as relações entre sociedade e ambiente para além do discurso da “conquista da natureza” ou do “lamento da degradação”.

Neste contexto, novas áreas emergiram, como a História Global, cuja missão de criticar o eurocentrismo e o internalismo metodológico orienta os mais diversos estudos, das macro comparações ao estudo das “micro globalizações”, das redes aos sistemas-mundo, dos impérios em contato aos viajantes, dos processos transnacionais aos fenômenos ambientais globais. Central no projeto da História Global é a crítica das fronteiras projetadas pelas sociedades contemporâneas sobre o passado, sob o efeito dos estados nacionais e suas comunidades imaginadas, o que desvinculou as sociedades de seus contextos concretos. A História Antiga dialogou com estas perspectivas, resultando na promoção de três abordagens significativas: a história dos grupos subalternos antigos, a história da recepção e usos da Antiguidade no mundo contemporâneo, e a história das conexões e contatos entre as várias sociedades antigas em seus contextos mais amplos. Nestas três abordagens, o problema das fronteiras é central e se desdobra em múltiplos aspectos, fronteiras sociais e espaciais, internas e externas, trazendo a necessidade de se revisitar conceitos e metodologias que tomavam este termo como dado. Assim, é preciso refletir como definir as fronteiras entre grupos sociais, como dominantes e subalternos, por exemplo, ou entre segmentos de grupos subalternos. De que maneira Antiguidade foi utilizada em contextos de fronteira no Ocidente, como a América Latina contemporânea? Em relação à História Global, fronteiras como “mundo romano”, “Egito”, “mundo grego”, “África”, estão além da projeção dos estados nacionais sobre o passado antigo, mas de que maneira podemos entender esses limites tendo em vista uma visão êmica de fronteira? Quais eram os contextos nos quais as sociedades se interagiam? Qual era a relação entre fronteiras internas e externas às sociedades? A integração a contextos maiores potencialmente eliminava as fronteiras? O objetivo deste dossiê é refletir sobre os problemas associados aos conceitos de fronteira na Antiguidade. Leia Mais

Artificios – Revista Colombiana de Estudiantes de Historia. Bogotá, v.21, 2022.

Artificios

Gobernanza

Editorial

  • Editorial
  • Revista Artificios; Álvaro Andrés Leaño Ramírez
  • PDF

Artículos dossier

Artificios – Revista Colombiana de Estudiantes de Historia. Bogotá, v.19,  2021.

Tema libre

Publicado: 2021-07-17

Editorial

Artículos

Reseñas

Publicado: 2022-08-17

Gobernanza | Artificios – Revista Colombiana de Estudiantes de Historia | 2022

El número XXI de Artificios es un dossier temático sobre gobernanza, compuesto por dos artículos que abordan diversas vicisitudes en el ejercicio del poder (en diferentes niveles y direcciones) en la hoy República de Colombia, en temporalidades y con actores distintos. Antes de referirme a los trabajos, estimo conveniente hacer una breve acotación del concepto gobernanza, con el fin de abrir una discusión sobre su uso como categoría de análisis en trabajos historiográficos.

Desde el punto de vista de la teoría política contemporánea, la gobernanza es entendida como los “mecanismos y estrategias de coordinación de cara a la interdependencia recíproca compleja entre agentes, organizaciones y sistemas funcionales operativamente autónomos”1. Bob Jessop resalta que el concepto de gobernanza ofrece una visión mucho más amplia y completa para analizar relaciones de poder que no necesariamente implican o están enmarcadas en el ejercicio de una función pública, pero sí tienen efectos en los actos de gobierno. El autor afirma que la gobernanza agrupa tres formas de coordinación que son: mando, intercambio y red. Leia Mais

La conquista del espacio público en Bogotá, (1945-1955) | Ana María Carreira

Ana Maria Carreira Imagem UTADEO
Ana María Carreira | Imagem: UTADEO

En esta adaptación de su tesis doctoral en Historia, la arquitecta e historiadora argentina Ana María Carreira analiza las transformaciones espaciales en Bogotá, haciendo especial énfasis en el Bogotazo y su impacto en la ciudad, vinculando el urbanismo y la relación de los distintos grupos sociales que habitaron el espacio y lo modificaron desde su realidad.

El problema planteado por Carreira surge a partir de la comprensión del urbanismo de una forma desprovista de ingenuidad, donde detrás de esta operan ciertos intereses tanto políticos como económicos, inmiscuidos dentro de lógicas de higiene, valorización, optimización, entre otros. Por ello, la autora se basa en primer lugar no solo en teorías urbanísticas de la época, como las planteadas por Brunner y Le Corbusier, sino también en el contraste con los diversos intereses de las clases políticas bogotanas, como los que se evidencian con los diferentes arreglos propuestos por el alcalde Fernando Mazuera para la IX Conferencia Panamericana en 1948. En este caso, la excusa de la “modernidad” justificó la demolición de estructuras con valor histórico, sustentado y argumentado a partir de una serie de teóricos de la época1. La actuación política y los ánimos por traer a reconocidos urbanistas no respondía a un capricho, ya que se buscó constantemente mantener el statu quo y establecer claras diferenciaciones entre los espacios que habitaba cada grupo social. Leia Mais

Soldiers, Saints, and Shamans: Indigenous Communities and the Revolutionary State in Mexico’s Gran Nayar, 1910–1940 | Nathaniel Morris

Nathaniel Morris Imagem The University of Arizona Press
Nathaniel Morris | Imagem: The University of Arizona Press

The period 1910-40 was tumultuous in Mexican history. The armed phase of the Mexican Revolution (1910-20) was followed by fragmented attempts by Revolutionary politicians to assert Federal control and modernisation in the face of military rebellion, resistance to social reform, two major religious revolts known as the Cristiada, and ongoing, albeit often unremarked, agency from Mexico’s indigenous populations. This latter aspect is the focus of research in Nathaniel Morris’s excellent new history.  The author’s specific attention is on the Wixárika, Naayari, O’dam, and Mexicanero communities of the Gran Nayar region along with adjoining locations along the Sierra Madre Occidental highlands.

Nathaniel Morris’s work is a landmark study of ethnohistory and a highly original addition to our knowledge of Mexico’s revolutionary and counter-revolutionary era of 1910-1940. His focus is the Gran Nayar, a region centred on Nayarit, but also including parts of the states of Sinaloa, Jalisco, Zacatecas, and Durango, during the armed phase of the Mexican revolution and the Cristero wars. Soldiers, Saints and Shamans fills a void in the historiography. As Morris correctly points out, there has been very little historical analysis of indigenous agency in the Mexican Revolutionary period, and ‘the Gran Nayar remains entirely absent from most Mexicans’ mental map of the period’ (p. 11). Throughout the 19th century, any Indian initiative was written off as a ‘caste war’, and irreconcilable with White and mestizo nation-building.(1) 20th-century historians and anthropologists mostly assumed that Mexico’s indigenous populations were either passive recipients of Revolutionary nation-building schemes or defiant outsiders from the mestizo state. A landmark study of caudillos (political/military ‘strongmen’) in the Independence Wars represented Indians as ‘apolitical’.(2)) Indigenous agency was usually explained as a defence of ‘old ways’, and the amorphous collection of rituals, everyday representations, and beliefs lumped together as a static rather than dynamic ‘costumbre’ (customs). Condescending, and even racist, interpretations died hard, as Nathaniel Morris’s separate study of the 19th-century Manuel Lozada revolt in a similar region has shown.(3) The outsized role played by indigenous communities in religious revolts, including the Cristiada, was explained as being motivated by religious devotion and an ingrained scepticism towards the Mexican state.(4) More recent scholarship has shifted the dial somewhat, demonstrating the considerable degree to which indigenous peoples collaborated with White/mestizo state-building all the same, often by turning against their defiant (‘bronco’) kin.(5) But Soldiers, Saints and Shamans should be considered a breakthrough. Leia Mais

4. A compreensão por camadas – Kieran Egan

Kieran Egan Imagem Wikipedia
Kieran Egan | Imagem: Wikipédia

Na semana passada, vimos um filósofo da história ou um filósofo da educação pautando uma ideia de ser humano e, consequentemente, uma teoria da aprendizagem que também pode ser classificada como Teoria da produção de sentido. Hoje faremos o mesmo exercício com o filósofo irlandês, radicado no Canadá, Kieran Egan. Vamos fazê-lo, comparando o que dizem os dois autores acerca de narrativa, fins do componente curricular história, estrutura mental dos alunos e tipologias da consciência.

4.1. Narrativa como fim e como meio para o componente curricular história

Para Jörn Rüsen e Kieran Egan, a narrativa é objeto básico no planejamento dos professores de História. A produção de sentido se faz narrativamente. Quando chegamos a falar o “Eu entendi”, nós acabamos de efetuar uma operação narrativa. Nós acabamos de articular presente, passado e futuro (não necessariamente nessa mesma ordem).

Nos dois autores, contudo, narrativa possui status diferente. Em Rüsen, narrar é o fim (ou, na pior das hipóteses, o meio-fim). Consequentemente, aprender significa capacitar-se a usar habilidades mentais, empregando conhecimento histórico escolar para domar o acontecido perturbador e orientar-se na vida prática. Em Egan, narrar é meio. Consequentemente, aprender significa (na perspectiva do aluno) interiorizar (também) conhecimento histórico escolar, envolvido por emoção e imaginação proporcionadas pelo enredamento de determinados acontecimentos.

Em Rüsen, aprender historicamente não é, necessariamente, interiorizar conteúdos histórico-escolares substantivos (conceitos, generalizações, fatos e processos – traduzidos em nome de coisas, pessoas, lugares tempos e ações). É fazer uso deles de modo narrativo para orientar-se na vida prática. Com essa posição, Rüsen pode ser posto ao lado dos professores de História que defendem o desenvolvimento de habilidades (historiadoras, inclusive) como a principal meta para o componente curricular história em todas as etapas do tempo escolar, pensado em situações de escala, como é o caso da Base Nacional Curricular Comum – BNCC.

Em Egan, aprender historicamente é, necessariamente, interiorizar conteúdos históricos escolares substantivos. É apreendê-los de modo mais durável e significativo (empregando a narrativa). Com essa posição, portanto, Egan pode ser posto ao lado da maioria dos professores que, por tradição e estratégia de sobrevivência, defendem a apreensão de conteúdo histórico-escolares substantivos como a principal meta do componente curricular história em todas as etapas do tempo escolar, seja em situações comunicativas de escala, seja em situações comunicativas limitadas à apenas uma sala de aula. 

4.2. Estruturas mentais

Além do papel da narrativa e dos fins do ensino escolar de História, Rüsen e Egan teorizam sobre a estrutura mental dos alunos e as resultantes da dinâmica dessa estrutura ao longo do tempo. Aqui, as diferenças se ampliam.

Rüsen opera com universais antropológicos e Egan também. Rüsen entende a mente do ser humano típico como estruturada em habilidades de rememorar, interpretar, orientar e estimular. Egan entende a mente do ser humano típico como orientada por habilidades macro de raciocinar e imaginar, atribuindo à segunda o maior papel na aprendizagem. Ele afirma que o narrar, o contar piadas e o gesticular também são universais antropológicos (ferramentas de comunicação transcultural).

O fato de Egan atribuir maior relevância à capacidade imaginativa o coloca em situação diametralmente oposta a Rüsen – que reforça o caráter cognitivo/racional da operação de aprendizagem e a natureza cognitivo/racional do conteúdo substantivo do componente curricular história (para combater a indiferenciação entre historiografia e literatura). Aí também está a diferença de Egan em relação a Jean Piaget, que reforça o caráter lógico e lógico/matemático da operação escolar de aprender. Este abandono da capacidade imaginativa do ser humano em situações de aprendizagem escolar, segundo Egan, é erro antigo que atravessou séculos e foi mantido na teoria de Piaget.

Observando o comportamento das crianças e jovens em idade escolar, Egan sugere aos professores que respeitem as diferentes compreensões típicas das faixas etárias dos alunos e que as empreguem como ferramentas estimulantes das emoções e, consequentemente, da capacidade de imaginação. (Tudo que se conhece está envolto em emoções).

Como vocês verão adiante, Egan entende aprendizagem como fenômeno realizável em diferentes dimensões, legitimando, por exemplo, a aprendizagem lógica (Egan, 1986, p.291-202) e a aprendizagem genética professáveis por piagetianos e rüsenianos. Egan, porém, alerta que a intelecção como fenômeno lógico/racional é apenas um possível final de outras etapas de aprendizagem. Para que a intelecção seja atingida, as outras formas de aprender ou as outras formas de os alunos atribuírem sentido ao mundo que os cercam devem ser experimentadas.

Essas etapas anteriores da aprendizagem escolar explicitam uma filosofia especulativa da História e, simultaneamente, uma Teoria do desenvolvimento humano. São etapas anteriores da socialização da espécie humana, pré-existentes ao modo moderno (científico) de atribuir sentido. Cada uma dessas etapas civilizacionais oferece um conjunto de ferramentas cognitivas à espécie humana e, correlatamente, às etapas do ensino escolar e disciplinar. A exemplo de vários teóricos da educação dos séculos XIX e XX, incluindo o próprio Rüsen, essa filosofia da História e essa Teoria do desenvolvimento humano replicam a hipótese da filogênese e da ontogênese dos humanos.

Assim, para as crianças que vivem a correlata cultura oral (uma das hipotéticas etapas da humanidade, espelhada em uma hipotética etapa da vida de um aluno), as ferramentas são:

  1. categorias de binários opostos (crianças que vivem estágio de cultura oral, em geral, pensam a partir de binários contrários, a exemplo de “bom/mau, valente/covarde, seguro/perigoso, quente/frio, etc);
  2. personagens fantásticos (o conteúdo do pensamento das crianças é formado por criaturas que mesclam natureza/cultura);
  3. narrativas (crianças chegam ao sentido das coisas após ouvirem ou construírem uma narrativa).

Para as crianças que já são alfabetizadas (situadas em uma etapa hipoteticamente correlata a uma etapa da história da humanidade), as ferramentas são:

  1. Coisas e personagens que desafiam a realidade (o “mais exótico, o mais estranho e o mais bizarro”);
  2. A autoidentificação com heróis e heroínas do presente (“heróis, heroínas, estrelas de cinema, astros de futebol”; e
  3. A busca dos detalhes extremos da realidade (o gosto e o habito de colecionar coisas)

Para encerrar essa série de comparações, vejamos o que Egan e Rüsen declaram sobre os resultados da mente em trabalho, ou seja, sobre como como os dois filósofos significam a expressão “consciência histórica”.

4.3. A mente em ação: tipologias de consciência e de compreensão históricas

À primeira vista, as duas concepções são bastante semelhantes. Ambos abordam experiência temporal da espécie humana e dos indivíduos humanos, associando filogênese e ontogênese. Para Rüsen, a trajetória da humanidade pode ser periodizada (tipicamente) em quatro momentos (em 2015, ele alterou para três momentos):

  1. período de consciência tradicional,
  2. período de consciência exemplar,
  3. período de consciência crítica e
  4. período de consciência genética.

Para Egan, a trajetória da humanidade pode ser periodizada (também, tipicamente) em quatro momentos:

  1. período de “compreensão” mítica ou dramática,
  2. período da compreensão romântica,
  3. período da compreensão filosófica (por padrões/estruturas) e
  4. período da compreensão irônica (por detalhes/científica). (Egan, 2017, p.26).

Observem que, nessa comparação, as palavras “consciência histórica” (Rüsen) e “compreensão histórica” (Egan) expressam significados idênticos acerca de espécie humana. Em ambos os autores, podemos conceber a espécie como o ente que modificou sua forma de se relacionar com o tempo (de explicar a mudança/permanência das coisas) em quatro etapas, nos últimos dois milênios.

Também nos dois autores, essa modificação na forma de se relacionar com o tempo expressa um sentido de progresso.

Em ambos o melhoramento é capturado pela historiografia de cada época que, observada linearmente e em seu conjunto, representa um progresso: escritas da história tradicional, exemplar, crítica e genética (em Rüsen) e escritas da história mítica, romântica, filosófica e científica (em Egan).

Observem, por fim, que as palavras “consciência histórica” (Rüsen) e “compreensão histórica” (Egan), nesta comparação, expressam significados idênticos acerca do indivíduo humano. Em ambos a vida do indivíduo é (tipicamente) uma abreviação da vida da espécie humana. Se a espécie experimenta quatro períodos, os indivíduos também experimentarão quatro períodos em seu desenvolvimento.

Como desdobramento dessa abordagem filo/ontogenética da espécie e do indivíduo, idênticos significados de formação de pessoas na escola (ou socialização) foram gerados: a educação escolar deve respeitar essa progressão.

Assim, o currículo da escola e, particularmente, os planejadores do componente curricular história devem considerar que diferentes e sequências consciências (Rüsen) ou de compreensões (Egan) históricas estruturam planos de curso que podem durar quatro, oito ou até 12 anos.

Rüsen e Egan, contudo, se diferenciam nos usos dessa abordagem onto/filogenética de espécie e de indivíduo quando o assunto é o proveito que oferecem à uma estrutura para os tipos de consciência (Rüsen) ou os tipos de compreensão (Egan).

Para Rüsen, o ensino de história, comprometido com um mundo globalizado e não etnocêntrico, deve fazer o aluno migrar de uma consciência pré-científica (tradicional ou exemplar) para uma consciência do tipo genético. Egan, ao contrário, aconselha que os professores de história não vejam os correlatos tipos pré-científicos (do não citado Rüsen) como um obstáculo à socialização via escola. Ele sugere efetivamente o contrário: os tipos mítico, romântico e filosófico são auxiliares à constituição de sentido ao modo científico.

Para Egan, complementamos, esses tipos pré-científicos não são auxiliares (e benéficos) à constituição de sentido sobre o mundo que cerca o aluno apenas por obediência à lei biogenética fundamental (a abordagem filo/ontognética). Professores de história devem tirar proveito dessas formas de compreensão porque elas envolvem os alunos emocionalmente e estimulam a sua imaginação. E a imaginação, como vimos, é uma capacidade secularmente abandonada pelos teóricos da educação, psicólogos da aprendizagem e formuladores de currículo para a escolarização infantil/primária/secundária no ocidente (graças à hegemonia das teses, por exemplo, de Piaget).

4.4. Da aprendizagem histórica à aprendizagem de qualquer componente curricular

Nas duas primeiras décadas deste século, a tese da aprendizagem como camadas de compreensão foi difundida e traduzida como um novo modo de planejar currículos e um estoque de técnicas de ensino e de aprendizagem significativos. A expressão mais usada, porém, deixou de ser a “compreensão em camadas”, ganhando relevo a ideia de “educação imaginativa”.

Em livro do mesmo título, Egan replicou os três fundamentos da sua proposta. O primeiro foi extraído do pensamento de L. S. Vygotsky: as crianças dão sentido ao mundo por imitação dos mais velhos ou dos adultos e, adiante, empregam as antigas ferramentas como meios para “melhorar seu poder de pensamento e ampliar sua compreensão” (Vygotsky).

O segundo princípio foi extraído da experiência das culturas orais (como destacamos no início desta aula): determinadas ferramentas cognitivas de produção de sentido nas culturas orais (como a narrativa) podem ser usadas para a apropriação de conteúdo disciplinar de modo prazeroso e estimulante.

O último princípio resulta de sua própria pesquisa na Simon Frase University: as ferramentas cognitivas na educação escolar são desenvolvidas simultaneamente (são interdependentes) como “caixas de ferramenta”, a exemplo da “oralidade e da alfabetização”. (Egan, 2018, pos. 211).

Em uma das suas entrevistas de divulgação, contudo, podemos perceber a permanência da sua tipologia da compreensão em camadas. Ele afirma que as principais habilidades envolvidas na aprendizagem humana são a imaginação e a emoção (ideia de ser humano). A aprendizagem “significativa” seria o processo e a resultante da mobilização da imaginação e da emoção do aluno por meio situações de ensino que replicassem situações nas quais o conhecimento ensinado foi elaborado.

A aprendizagem, nesse sentido, é sempre histórica porque mediada por uma narrativa sobre a construção do objeto do conhecimento, transformado em conteúdo disciplinar. O princípio educacional é o seguinte: Se todo o conhecimento no currículo “é produto das esperanças, medos e paixões humanas […] temos que incorporar, em primeiro lugar, aquelas esperanças, sentimentos e paixões que estiveram envolvidos em sua elaboração ou no uso que alguém lhe dá nos dias de hoje” (Egan, 2017, p.26).

As ferramentas cognitivas que medeiam esse tipo de aprendizagem também foram  modificadas ao longo da sua obra. Umas foram abandonadas (Egan, 2005, pos. 127-157) e outras permaneceram no livro mais recente (Egan; Judson, 2018). A ferramenta que conhecemos como “passado – tempo verbal”, porém, conservou-se como um dos principais instrumentos de produção de sentido. Ela amplia a nossa capacidade de comunicação, segundo Egan (2005, pos.157).

A taxonomia das camadas de produção de sentido foi acrescida de mais um tipo: o somático ou compreensão corporal, efetuada por gestos e sons. (Egan, 2017, p.50). Assim, pautado por sequências paralelas de desenvolvimento social e individual (filogenético e ontogenético), Egan pressupõe que o aprender se constitui no desenvolvimento e na mobilização de cinco “ferramentas cognitivas” partilhadas pelos seres de todas as culturas. São as compreensões: somática, mítica, romântica, filosófica e irônica.

Ao comparar essas proposições com as de Rüsen, percebemos que Egan também propõe uma estrutura mental a ser privilegiada (emoção e imaginação) e cinco formas de mobilização dessa estrutura mental (somática, mítica, romântica, filosófica e irônica). (Egan, 2017, p.27).

Em contrapartida, admite certa crítica à ideia de que se desenvolver é adquirir e acumular melhoramento. O processo de aprender a ser uma pessoa é também um processo de perdas de determinados valores benéficos à espécie. (Egan, 2017. p.28).

4.5. Planejando as aulas de história para o ensino fundamental 

Pelo esquema a seguir, aplicar diretamente as teses de Egan sobre aprendizagem e aprendizagem no componente curricular história nos anos finais do ensino fundamental, por exemplo, significa adotar alguns dos seus princípios[1] de aprendizagem, como guias organizadores do currículo, apresentados no quadro 1 em sequência progressiva.

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Seguindo os princípios acima, ao invés de programar expectativas de aprendizagem para o ano letivo, o bimestre, a unidade ou a aula, vocês devem planejar situações nas quais determinadas narrativas reais serão contadas.

Assim, para os primeiros anos da escolarização, ao invés de concentrar o ano, o bimestre, a unidade ou a aula no desenvolvimento de uma, duas ou mais habilidades, vocês devem criar situações nas quais os tópicos (que agregam conceitos, generalizações, fatos e processos) prescritos pela coordenação de História, pelo Projeto político Pedagógico da Escola, Currículo municipal ou mesmo a BNCC sejam explorados como narrativas, a partir de um modelo de planejamento que estimule emoções no aluno e/ou que o envolva emocionalmente com o conteúdo prescrito.

Egan fornece esse roteiro em quatro passos que são (em nossa compreensão) as principais metas de um ensino imaginativo: apreender a importância de um tema histórico, identificar binários opostos potenciais, enredar binários opostos e encontrar a melhor maneira (um desfecho) de os alunos produzirem o sentido antecipado (a importância do tema).

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Para os anos finais do ensino fundamental a orientação se repete. Vocês devem identificar o valor de um tema histórico (relativo aos fins do componente, do PPP etc.), identificar binários opostos potenciais, enredar acontecimentos em binários opostos e encontrar a melhor resolução para a tensão provocada pelos binários opostos, de modo que os alunos produzam sentido próximo ao valor que vocês estabelecem sobre o tema em estudo.

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 4.6. Defeitos de Egan

É fácil por defeito na Teoria da aprendizagem histórica de Egan depois de perceber as ambiguidades e incoerências das teorias do desenvolvimento, da educação e da aprendizagem de Rüsen. Para os profissionais da história com formação inicial encerrada nos últimos 30 anos é ainda mais fácil, considerando os “sacrilégios” cometidos por filosofias especulativas da história às epistemologias históricas constituídas no mesmo período. Assim, os principais senões são, novamente, situados no progressivismo que atravessa as ideias de humanidade e ser humano. Grande problema, contudo, para quem questiona o antropocentrismo da sua teoria, está no fato de essa crítica (fundada, por exemplo, na antiantropologia de M. Foucault) não vir acompanhada de um substituto para esse antropocentrismo.

No que diz respeito ao forte apelo à especulação fundamentada no par filogênese/ontogênese, na qual se baseia Egan para explicar o desenvolvimento de indivíduos (e de indivíduos-alunos), a crítica deve ser endereçada, principalmente, aos profissionais que não compreendem o par categorial como logicamente deveria ser compreendido hoje: uma hipótese heurística.

Outro flanco aberto da sua teoria da aprendizagem histórica (assim a consideramos) está no acréscimo recente de mais uma camada de compreensão (somática). Esse evento, de certo modo, enfraquece o emprego do par filogênese/ontogênese, fortemente enraizado em certa ideia de processo civilizatório. Que etapa da vida da humanidade representaria essa camada inferior (ou primeira)?

Notas

[1] Piaget chega a ver obstáculos na aprendizagem conceitual (abstrata), típica de determinados componentes curriculares, dada a limitação das crianças que operam sobre o concreto. Para Egan, o princípio extraído da experiência das culturas orais é o seguinte: a produção de sentido depende da experimentação de emoções. A consequência desse princípio é, também, a seguinte: ensinar é “presentar o tema, extraindo seu significado emocional e ponto em marcha a imaginação dos alunos” (Egan, 2018, pos.575), é evocar emoções dos alunos, análogas às emoções experimentadas pelos personagens da história narrada. (Egan, 2018, pos.503) e aprender é reter (de memória) significativamente ou reter o objeto de aprendizagem experimentando medos, ansiedades, prazeres, curiosidades, incertezas etc. Visitar um lugar de ocorrência de determinado fato, ler o relato de viagem ou investigar a biografia de um dos personagens, até contar a história da palavra que dá nome ao acontecimento, estruturar uma narrativa sobre “opostos binários” (fortaleza e fraqueza, segurança e vulnerabilidade etc.) e formar imagens mentais a partir de palavras lidas ou ouvidas, recolher e usar metáforas relativas ao tempo, contar piadas ou zoar, tudo isso é estratégia geradora de emoções e estimuladora da aprendizagem de conteúdo abstrato. (Egan, 2018, pos. 575).

Referências

EGAN, Kieran. An imaginative appproach to teaching. San Francisco: Jossey-Bass, 2005.

EGAN, Kieran. Education and Psychology: Plato, Piaget and scientific Psychology. London: Routledge, 2012. Primeira edição em 1983.

EGAN, Kieran. Teaching as story telling: an alternative approach to teaching and curriculum in the elementary school. Chicago: University of Chicago Press 1989a. Primeira edição em 1986.

EGAN, Kieran; JUDSON, Gillian. Educación imaginativa: Herramientas cognitivas para el aula. Madrid: Narcea, sd.

EGAN, Kirien. Layers of historical understanding. Theory & research in Social Education, n.17, v.4, p.280-294, 1989b.

GRIMALDO, Adriana. Entrevista a Kieran Egan. In.: BOULLOSA, Pablo et. al. Educación imaginativa: Una aproximación a Kieran Egan. Madrid: Morata, 2017. p.23-32.


Avaliação diagnóstica

Leiam o texto de síntese e alguns trechos dos textos originais e preencham o formulário abaixo que registra as principais dificuldades de leitura e orientam a preleção do professor.

1. Sobre o texto síntese “Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares”:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: _____________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: ___________________________

2. Sobre o texto do autor-objeto da aula desta semana:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: ________________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: _____________________________

Acesse aqui o formulário para responder a esta avaliação diagnóstica.


Próxima aula

Na próxima aula, continuaremos a exposição de propostas de aprendizagens reivindicadas por pesquisadores estrangeiros. Discutiremos as principais categorias formuladas por Kieran Egan, extraídas de textos como: An imaginative appproach to teaching (2005) e Layers of historical understanding (1989).


Para citar este texto

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. A compreensão por camadas – Kieran Egan. São Cristóvão, 11 ago. 2022. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/3-aprendizagem-historica-na-teoria-da-historia-de-jorn-rusen/>.

Derecho, Literatura e Historia: los símbolos de la justicia | Sur y Tiempo – Revista de Historia de América | 2022

Ilustracion basada en El obsceno pajaro de la noche Imagem Carlos Andueza Garrido
Ilustración basada en El obsceno pájaro de la noche | Carlos Andueza Garrido

El dosier Derecho, Literatura e Historia surge de las inquietudes académicas, críticas y culturales del equipo gestor e investigador de las Jornadas Derecho y Literatura, del Seminario Arte y Derecho, y del comité editorial de Sur y Tiempo. Desde una óptica interdisciplinaria se interroga respecto a las particularidades del diálogo entre el Derecho, la Literatura y la Historia, a la vez que sobre los modos de contribuir a un posicionamiento crítico y responsable de dicho campo de estudios. Todo desde posicionamientos teóricos, críticos y metodológicos derivados del diálogo entre las tradiciones ya existentes (anglosajona y francófona, principalmente) y las aplicaciones que puedan nacer desde el acontecer político, social y cultural latinoamericano.

En este sentido, el presente dosier aspira a problematizar, desde un enfoque histórico, los puntos de encuentro y desencuentro entre el Derecho y la Literatura a partir, especial pero no únicamente, de los símbolos puestos en circulación por la justicia a lo largo de su devenir histórico, atendiendo, por ejemplo, los conceptos de enseñanza/aprendizaje, autoría/creación y cultura jurídica. Leia Mais

Nuestras Memorias: poéticas, políticas y feminismos | Grupo de Investigación y Lecturas Femistas

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Teresa Valdés | Imagem: Radio Uchile

A través de esta compilación de conversatorios se va hilvanando una forma de entretejer la memoria que nos invita a conocer desde la polifonía propia de la epistemología feminista. Una lógica no lineal que entrama el pasado con el presente, urdiendo –conscientes o no– el futuro cercano. Desde el mayo feminista que se toma las calles y universidades al mismo tiempo en que se realizan estos conversatorios, hasta el estallido social que se asoma como vaticinio en el discurso de algunas de estas mujeres. El ejercicio se vuelve, entonces, un gesto de evidente contraposición a la tradicional voz autorial, lineal, jerárquica y monódica de las lógicas patriarcales que monopolizan los discursos oficiales desde los distintos espacios de poder que han ostentado tradicionalmente los hombres, entre los cuales la academia ha sido uno de sus predilectos.

La construcción de esa verdad única desde voces autorizadas (mayoritariamente hombres blancos, de clase alta y heterosexuales, aunque con varias excepciones en un país tan al margen del mundo como el nuestro), ha invisibilizado de forma sistemática procesos, hechos, debates, conflictos y personas, cuya participación e injerencia proviene tanto de círculos institucionales como marginales. Parte importante de esa historia no contada fue protagonizada por mujeres diversas que se dieron a la tarea de luchar por sus derechos y de enfrentar, incluso con más gallardía que sus compañeros, la dictadura cívico militar y su aparato represor. Leia Mais

Chiloé: genealogía, familia y sociedad | Pablo A. Pérez

Pablo Antonio Perez Imagem Cristian Cofre Leon
Pablo Antonio Pérez | Imagem: Cristián Cofré León

Hace ya varios años que el trabajo de investigación de Pablo A. Pérez viene llamando la atención de los estudiosos de la historia y genealogía del archipiélago de Chiloé y sus áreas de influencia cultural. No en vano, la sesentena de artículos publicados en distintas revistas especializadas en Chile, Argentina, Perú, España, Estados Unidos, entre otros países, dan cuenta de la labor minuciosa y erudita del investigador. La reciente aparición del libro autoeditado Chiloé: genealogía, familia y sociedad, viene a ser una síntesis de largos años de trabajo, presentándonos un análisis histórico-sociológico de la formación de la sociedad chiloensis, fruto del acabado estudio de los antiguos linajes, el desarrollo de los núcleos familiares y las costumbres isleñas entre los siglos XVII y XX.

La obra en cuestión, prologada por el Dr. Jorge del Real Westphal, presidente del Instituto Chileno de Investigaciones Genealógicas, está compuesta de dos partes. La primera, titulada “Genealogía”, hace un repaso de los fundamentos y principios de esta diciplina en su valor como un campo de saber autónomo y discute el lugar que se le ha asignado de simple “ciencia auxiliar” así como los prejuicios que subyacen sobre ella “como un conocimiento para nostálgicos, mentirosos y clasistas” (39), en lo que al autor denomina “rehabilitación de la genealogía como diciplina científica”, evidenciando su vocación interdisciplinaria capaz de traspasar su habitual afiliación con la heráldica y la diplomática, vinculándola con otras diciplinas como la historia, la antropología, la demografía e incluso la biología y genética. Leia Mais

Sur y Tiempo. Valparaiso, v3, n.6, 2022.

Sur y Tiempo

Julio-Diciembre 2022

Editorial

Dosier: “Tomarse la palabra”: mujeres en el campo cultural (1850-1950)

Artículos

Reseñas

 

Anales de Historia Antigua Medival y Moderna. Buenos Aires, v.56, n.1, 2022.

Publicado: 2022-08-19

3. Aprendizagem histórica como atos integrados de experimentar o passado, interpretar o passado, orientar-se e estimular-se a agir na vida prática – Jörn Rüsen

Jorn Rusen Imagem Wikipedia
Jörn Rüsen | Imagem: Wikipédia

Iniciamos esta aula, lembrando os objetivos deste curso, ao abordar a Teoria da História de Rüsen: colher conceitos e proposições da Teoria da História de Rüsen que subsidiem projetos de aprendizagem histórica de vocês no PROFHISTÓRIA. Não vamos estudar as bases do pensamento de Rüsen ou explorar os seus acertos e contradições. Uma boa visão geral da obra de Rüsen e da sua apropriação no Brasil está na própria apresentação da Teoria da História – “A obra de Jörn Rüsen e a sua relevância” –, escrita por Estevão Martins, Maria Auxiliadora Schmidt e Arthur Assis, e no artigo de Wiliam Baron – “A Teoria da História de Jörn Rüsen e os seus principais comentadores”.

Na aula 1, admitimos que Rüsen pode ser classificado como teórico geral da Educação e não, exclusivamente, como teórico de uma aprendizagem disciplinar histórica. Vamos tentar convencê-los sobre a razoabilidade dessa proposição, apresentando os usos dominantes que ele faz da expressão “aprendizagem histórica” na última versão da sua  Teoria da História (2015).

3.1. Rüsen é o mais conhecido pedagogo do ensino de história

Rüsen pode ser considerado o teórico de uma aprendizagem geral no momento que ele estabelece uma ideia dominante de mente humana (para além da marginal mente freudiana). Ele afirma que o homem é detentor de quatro habilidades mentais: experimentar e interpretar o acontecido, orientar-se e estimular-se a agir na vida prática. Esses poderes mentais capacitam o homem a viver.

Se tais habilidades são fundamentais à produção de sentido (sentido com o significado de racionalização dos acontecimentos que desorganizam a vida humana), elas devem ser potencializadas nos processos de formação de pessoas. O que a escola, o sindicato, o museu, o terreiro de Candomblé, o acampamento do MST, a catequese e o culto da Igreja Universal devem promover, segundo o esquema de Rüsen, é o desenvolvimento integrado dessas habilidades. Essa seria a finalidade a ser cumprida por todas as disciplinas ou saberes que circulam nesses espaços de formação. É nesse sentido que entendemos Rüsen como o teórico de uma aprendizagem geral.

Mas Rüsen não se limita a teorizar sobre o a natureza da humanidade (caráter de ser/estar humano), isto é: a manipulação do passado mediante quatro operações mentais. Ele também teoriza sobre as formas que resultam dessa manipulação do passado: a consciência tradicional, a consciência exemplar, a consciência genética e a consciência crítica.

Cada uma delas, como dito, representa uma atitude em relação ao passado: explicando o acontecido a partir das origens, explicando o acontecido dentro de regras de exemplaridade, explicando o acontecido a partir das suas próprias circunstâncias (temporais) que marcam o ocorrido (tempo).

Além de tipificá-las, Rüsen põe as quatro formas em sucessão, explicando hipoteticamente como o ser humano evolui em termos de espécie e como o ser humano evolui em termos individuais (ontogênese).

Com esse procedimento hipotético, ele esboça uma história da Humanidade (escala em milênios) e fornece elementos para que os professores esbocem uma história dos indivíduos (escala em décadas). É nesse sentido que entendemos Rüsen como um teórico do desenvolvimento humano. Ele escalona etapas ideais típicas para a evolução da humanidade e as replica na evolução de uma pessoa.

A conclusão desse primeiro momento didático é desconcertante para muitos de nós: Rüsen, tido como um Teórico da História ciência/disciplina é, na verdade, o nosso mais famoso pedagogo quando o assunto é “aprendizagem histórica”.

 3.2. A aprendizagem histórica é fornecida pela Teoria da História

Aprendizagem histórica é uma capacidade: a capacidade de pensar historicamente. Do ponto de vista de um domínio de pesquisa – a Didática da História –, aprendizagem histórica pode ser definida como o conjunto de “operações” e “formas” de lidar com o passado ou de produzir sentido (Rüsen, 2015, p.248-249).

As operações de aprendizagem são habilidades mentais que possibilitam ao ser humano lidar com o passado ou produzir sentido. Aprender historicamente significa, então, mobilizar as habilidades de experimentar, interpretar, orientar e motivar. Hipoteticamente, todos os humanos possuem esses poderes de reconhecer a distância presente/passado (experimentar), de explicar a razão do passado (interpretar), de planejar e executar uma ação remediadora (orientar-se e estimular-se na vida prática).

As formas da aprendizagem, por seu turno, são modelos de lidar com o passado ou produzir sentido. Aprender historicamente significa, nesse aspecto, lidar com o passado ou produzir sentido de modo tradicional, exemplar ou genético.

Essas operações mentais e esses modelos de lidar com o passado são objetos fornecidos ao domínio da Didática da História por um domínio de pesquisa chamado Teoria da História. A Teoria da História de Rüsen fundamenta, assim, a parte “teórica” da aprendizagem histórica – a configuração quadripartite da mente – e a parte prática da aprendizagem histórica – a configuração quadripartite da evolução da mente.

3.3. A Teoria da História de Rüsen não é exclusivamente Epistemologia da História

Antes de passar para as condições de possibilidade de uma aprendizagem histórica no âmbito da disciplina escolar história, é importante deixarmos claro que a Teoria da História de Rüsen não é, exclusivamente, uma Epistemologia da História.

Um dos grandes trunfos da Teoria da História de Rüsen, lançada (em português) no início da década passada, foi reconhecer o caráter pragmático do conhecimento histórico produzido cientificamente e compreender teoria e prática da aprendizagem histórica como objetos de trabalho dos historiadores.

Ocorre que, por bastante tempo, compreendemos a trilogia de Rüsen, exclusivamente, como Epistemologia histórica, ou seja, como um discurso que estabelecia os “procedimentos intelectuais do pensamento histórico” (no sentido de processo de produção do conhecimento histórico-científico). Em outras palavras, compreendemos a trilogia de Rüsen como veiculadora da matriz disciplinar (carências, concepções, métodos, formas de representação e orientação para o agir).

É provável que tenhamos agido assim por causa da nossa aversão às filosofias especulativas da História, mas sabemos, agora, que o próprio Rüsen é um filósofo especulativo da história, já que pergunta, exatamente, pelo sentido da vida. O fato é que essa leitura da Teoria como exclusiva Epistemologia da História nos levou a raciocinar da seguinte maneira: Se a Teoria da História oferece os fundamentos da Ciência da História e da Didática da História, as decisões sobre a aprendizagem histórica escolar devem ser balizadas pela disciplina formativa Teoria da História (supostamente, espelho do domínio de pesquisa “Teoria da História”) que justifica a História como Ciência. Estaria criado, enfim, o cordão umbilical entre o ensino de história como domínio de pesquisa e os vários domínios nos quais a História é reconhecida como ciência.

Ocorre que as coisas não são tão claras quanto aparentam nas nossas ligeiras reflexões no cotidiano do “ensino” de Teoria da História e de Didática da História. A Teoria da História de Rüsen (no sentido de corpo de conceitos, valores e procedimentos formulados) não é, exclusivamente, uma Teoria justificadora da cientificidade da História-ciência. A Teoria da História de Rüsen é, ao menos nas primeiras páginas do capítulo 2 da sua principal e mais recente publicação, uma teoria do sentido histórico, ou seja, uma Teoria de como os seres humanos racionalizam, compreendem e explicam as rupturas cotidianas (dor, infelicidade e morte) (p.4-42). A Teoria da História de Rüsen é uma teoria de como o ser humano sente e pensa as “perturbações” exteriores que desorganizam a sua vida. A Teoria da História de Rüsen é uma teoria de como os homens vivem – de como os homens pensam: é uma teoria do pensamento histórico, inclusive, no seu sentido mais estreito (considerando as habilidades mentais reiteradamente utilizadas).

Rüsen não é de todo coerente ao significar a expressão “pensamento histórico”. Mas podemos afirmar que, no início da argumentação sobre “Os fundamentos do pensamento histórico”, o adjetivo “histórico” da expressão “Teoria da História” não descende da História-ciência. O “histórico” vem de narrativa (acontecimentos em sucessão, que formam um enredo). O “Pensamento histórico” não é “histórico” por causa da Ciência da História. O “pensamento histórico” é “histórico” porque se realiza como narrativa. É por isso que concluímos esse terceiro momento didático da aula afirmando: A Epistemologia histórica de Rüsen é tão dependente da Teoria da História de Rüsen quanto a clássica Didática da História, hoje respeitada em quase todos os estados do Brasil.

3.4. Aprendizagens históricas mitigadas

Esta aula, como avisamos, foi montada sobre dois capítulos da Teoria da História de Rüsen. Assim procedemos para evitar as intermináveis discussões sobre as dubiedades de conceitos empregados por Rüsen, referentes às relações entre a Teoria da História e a Ciência Histórica e entre a Teoria da História e a Didática da História. Contudo, mesmo no livro de 2015, há variações nos usos de “Pensamento histórico” e de “História”, por exemplo. Isso nos obriga a concluir que as contribuições rüsenianas para projetos de aprendizagem histórica são também dispersas.

3.4.1. Aprender é empregar as habilidades universais do ser humano

Rüsen apresenta mais de uma versão para o seu ser humano típico: ele pode aparecer como ego/superego/id e como estruturado em dimensões ética e religiosa, por exemplo. Mas fiquemos com a tipologia dominante: a que entende um humano típico como constituído pelas habilidades de experimentar, interpretar, orientar e motivar.

Quem quer assumir Jörn Rüsen como orientador principal do seu projeto de aprendizagem deve construir seus objetivos de aprendizagem usando essas quatro expressões como verbos principais: experimentar, interpretar, orientar e motivar. O uso deles, certamente, deverá obedecer à demanda implícita nos objetivos educacionais de aula/unidade etc. porque (não é demais lembrar) a divisão quadripartite é tipológica e, consequentemente, didática. Assim, no planejamento de uma atividade, o aluno mobilizará duas, três ou todas essas habilidades mentais de uma só vez.

Essa orientação vale para o preparo de atividades em sala de aula, para o planejamento de exposições em museus, para a edição de filmes, montagem em história em quadrinhos e, sobretudo, para a construção dos textos principais dos livros didáticos de história. Ao mobilizar de modo integrado tais habilidades – ao articular presente/passado/futuro – o aluno desenvolverá (mesmo que não seja nomeada) a chamada competência narrativa.

3.4.2. Aprender é elevar a consciência ao estágio genético

Estimular o emprego equilibrado dessas habilidades, porém, não tipificará tão facilmente o seu projeto como rüseniano. Até aqui, tratamos de habilidades. Para serem rüsenianos, vocês devem construir os objetivos da disciplina escolar História a partir da teleologia (ou utopia/ou proposição de fins para a vida etc.) professada por Rüsen – a construção de um humanismo intercultural. As finalidades centrais da História ensinada serão, portanto, a constituição da consciência genética do aluno.

Rüsen apresenta a sua tipologia de estágios e também de progressão como uma hipótese para explicar o desenvolvimento dos humanos e o desenvolvimento da consciência de cada indivíduo, durante a infância e a juventude. A hipótese sobre o desenvolvimento humano é transformada em projeto curricular, quando ele afirma que a consciência compatível com o mundo moderno é a consciência genética. A consciência exemplar (explicar o ocorrido e orientar-se na vida prática por meio de regras extraídas em passados longínquos) é o pensar histórico dos tempos pré-modernos, ou seja, anteriores ao século XVIII.

Assim, para quem quer tipificar o seu projeto de aprendizagem histórica como rüseniano, é fundamental planejar um currículo que privilegie a articulação das quatro habilidades mentais do aluno como finalidades menos abstratas para o componente curricular História, que traduzem a finalidade mais abstrata de formar para o humanismo intercultural. Os alunos devem, então, desenvolver a capacidade de dar respostas às perturbações da sua vida e do seu grupo de modo genético, ou seja, que cada ocorrência deva ser compreendida a partir das circunstâncias temporais que as geraram. Em uma frase: desenvolver as habilidades do pensamento histórico para que os alunos convivam em ambiente de alteridade (em diferentes tempos e diferentes espaços).

3.4.3. Aprender é se apropriar de uma moderna história da Humanidade

Ainda que não tenham optado por construir objetivos educacionais e estabelecer as finalidades da história escolar a partir da utopia rüseniana, vocês podem tangencialmente se alinhar à sua ideia de aprendizagem histórica, modificando o critério de escolha dos conteúdos substantivos.

Dentro de uma proposta de humanismo intercultural (antagônica ao humanismo eurocêntrico), vocês podem privilegiar o ensino de “toda a história” da humanidade. Vocês objetarão que isso já vem sendo feito nos livros didáticos de História. Mas Rüsen, provavelmente, responderia: “vem sendo feito de modo disperso. O livro didático de vocês apresenta uma história em migalhas, principalmente, para os últimos dois séculos.”

Ao contrário dessa dispersão, Rüsen propõe que ensinemos uma história da Humanidade com um fio condutor: os direitos humanos e civis (para melhor intelecção, pensem que Rüsen está a propor uma história monotemática). Essa trajetória enfatiza a ideia de “continuidade histórica” e justifica, inclusive, a tarefa presente dos professores de história: sociabilizar a geração jovem, obviamente, a partir dos valores e práticas da geração madura. A tipologia rüseniana da consciência histórica pode bem ser a estrutura dessa nova história total, que culminaria com “a ideia de dignidade humana”.

No segundo livro sobre a obra de Rüsen (organizado pela professora Schmidt), que trata de aprendizagem histórica, Rüsen apresenta a sua sugestão de ensino de (ou por meio dos) Direitos Humanos. Na palestra que proferiu no mesmo ano de lançamento do Teoria da História, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rüsen explicitamente reivindicou o uso da História Universal e da Filosofia da História como disciplinas fundamentais ao domínio da Didática da História.

3.5. Um defeito na teoria de Rüsen

Como qualquer atribuição de valor, a crítica historiográfica à Teoria da História de Rüsen é perspectivada (repetição necessária) em valores. Assim, não vai ser difícil encontrar quem classifique a sua obra como não original, ambígua, lacunar, confusa e excessivamente esquemática.

As diferentes perspectivas de história, Teoria da História, ensino de História, aprendizagem histórica, por exemplo (fundamentadas em categorias de experiência, de E. P. Thompson, ou de rizoma, de  Gilles Deleuze e Félix Guattari) também explicam a detecção de erros rüsenianos. O emprego fragmentado da sua teoria, focando, por exemplo, nos significados rüsenianos de “consciência histórica”, “didática da história”, “aprendizado histórico”,  “narrativa histórica”, “formação histórica” e “identidade” é uma terceira fonte para detecção dos erros. A quarta é a variação do status da “Didática da História” diante da “Teoria da História”: disciplina formativa, domínio de pesquisa, ciência autônoma etc.? (Freitas, 2022).

Das várias possibilidades de se encontrar erros na teoria rüseniana, destacamos a que nos parece impactar mais diretamente nos planejamentos da aprendizagem histórica na escolarização básica: as insuficiências da sua proposta de formação para a vivência intercultural. Quem mais longe enxergou o núcleo dessa limitação foi a professora Ana Carolina Pereira. Pelo raciocínio que faz dos pressupostos kantianos da sua teoria (cosmopolitismo e humanismo), Pereira nos induz a perceber que a ideia rüseniana de humanidade (unidade na diversidade cultural humana) sob o argumento de que vai combater o etnocentrismo o que faz, de fato, é reforçar o etnocentrismo direcionado às comunidades indígenas, por exemplo.

O mal de raiz está na ideia essencialista de humanidade tomada de Kant. Para os Yawalapíti  Araweté, ao contrário, a “condição de humanidade é estendida a outras formas de vida animal, além do ser humano” (Pereira, 2021, p.200).[i] Assim, “diferentemente da concepção kantiana de fenômeno para quem o ponto de vista cria o objeto, para o pensamento ameríndio é o ponto de vista o que cria o sujeito. E se é o sujeito quem tem alma, é capaz de um ponto de vista que tem um corpo.(p.201).

Essa ideia ameríndia de constituição do sujeito contrasta com a ideia rüseniana de constituição de um sujeito universal, com vantagens para a concepção ameríndia, na qual a humanidade seria relacional e perspectivada, dificultando (e, até, extinguindo), portanto, a existência de etnocentrismos.

Em resumo, a proposta de construir, via ensino de História, uma sociedade que preza a alteridade rüseniana (ontologia ocidental com base em Kant) seria potencialmente menos profícua que a proposta de humanidade sugerida por ontologias ameríndias. Numa interpretação extensiva desse argumento, poderíamos incluir ontologias africanas no planejamento das aprendizagens se, é claro, a nossa finalidade para a componente curricular História estivesse pautada pela construção de respeito ao outro em escala global.

3.6. Exemplo de defeito no uso da teoria de Rüsen

A professora Joceneide Cunha (UNEB/Eunápolis) nos enviou uma dissertação: O ensino de história da África e da cultura afro-brasileira: uma proposta de ação decolonial em conexão com a didática da história. (Pinon, 2020).

Não queremos avaliar a relevância do problema. Não queremos avaliar os resultados do trabalho. Queremos apenas comentar alguns ruídos que o emprego da Teoria da História de Rüsen podem desencadear quando assumida na introdução de uma dissertação.

A meta do trabalho é “desfazer as ideias inferiorizadoras e marginalizantes que foram impostas à África [e apresentadas aos alunos paraenses]; romper com a ideia de que a África é um espaço homogêneo…”. Para tanto, são efetuadas conexões entre a “Didática da História” de corte rüseniano e o “pensamento pós-colonial”. Afirma o autor:

“A didática da História nos ajudou a compreender como os discentes pensam historicamente a África e suas relações com o Brasil, para definir os objetivos de aprendizagem [para levantar os conhecimentos prévios dos alunos]; já o pensamento decolonial fundamentou a prática de ensino insurgente necessária para a concretização dos objetivos de aprendizagem [desfazer as representações estereotipadas dos alunos sobre África e africanos, mediante a substituição dos acontecimentos e processos constituintes da Idade Média pelos acontecimentos e processos constituintes dos “reinos e impérios africanos que eram bastante avançados neste período medieval]” (p.31).

Diante do exposto, questionamos: qual é o ruído provocado por essas conexões? Se a ideia é modificar as representações estereotipadas sobre África e africanos, construir e/ou apresentar narrativas que provincianizem a Europa, inclusive, não há necessidade de usar o Rüsen da didática da história (operações mentais e formas de consciência). Basta usar o Rüsen da matriz disciplinar (dos elementos que justificam a história como ciência).

Se a ideia é radicalizar (tomar a pedagogia decolonial como orientação para o planejamento do ensino de história), o combate ao eurocentrismo e ao etnocentrismo não devem ser feitos com o “humanismo intercultural” de Rüsen, que não radicaliza no sentido proposto.

Se a ideia é radicalizar epistemologicamente (fazer com que os alunos aprendam “a desaprender” o iluminismo eurocêntrico, de Kant, por exemplo), a opção rüseniana não é o melhor guia porque a Teoria da História de Rüsen está longe de representar uma nova epistemologia como pensado por muitos que aderem a determinado pensamento que prega a “destruição da colonialidade do poder, do saber e do ser”.

Como livrar o texto desse ruído? Novamente, três possibilidades nos ocorrem no momento (30 de setembro de 2020): 1. alterando a introdução e abolindo a conexão com a didática de Rüsen. A ênfase do trabalho deve recair sobre a pedagogia decolonial; alterando a introdução e abolindo a pedagogia decolonial. A ênfase do trabalho deve recair sobre o levantamento dos conhecimentos prévios (sem Rüsen) e as consequentes estratégias de modificação das representações sobre África e africanos (identidades/alteridades, construção de autoimagem etc.). e 3. alterando a introdução e assumindo Rüsen integralmente, como orientador de uma nova maneira de pensar África, africanos e cultura afro-brasileira: usando a consciência genética como fim do componente curricular história (que apela para o respeito às diferenças) e reforçando ou instituindo uma cultura dos direitos humanos.

Agradecemos à professora Joceneide Cunha pela oportunidade que nos ofereceu de refletir imediatamente sobre um problema que lhe é caro.

Nota

[i] “[…] o eu constitui-se como o espaco de autoidentificacao humana, ao passo que ao outro sao atribuídos os qualitativos de animalidade ou espiritualidade, conforme o caso. Assim, por exemplo, a onca ocuparia para o amerindio o estatuto de espirito, uma vez que e um predador do ser-humano propriamente dito, ao passo que o porco do mato apresentar-se-ia para o humano propriamente dito como um animal, em razao de sua condicao de presa.” (Pereira, 2022, p.202).


Referências

BAROM, Wilian Carlos Cipriani. A teoria da história de Jörn Rüsen no Brasil e seus principais comentadores. Revista História Hoje, v. 4, nº 8, p. 223-246 – 2015. Disponível https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/200.

MARTINS, Estevão Chaves de Rezende Martins; SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos; ASSIS, Arthur Alfaix. A obra de Jörn Rüsen e sua relevância – Introdução à edição brasileira. In: RÜSEN, Jörn. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Revisão técnica de Arthur Alfaix Assis. Curitiba: Editora da UFPR, 2015. p.11-18.

RÜSEN, Jörn. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Revisão técnica de Arthur Alfaix Assis. Curitiba: Editora da UFPR, 2015.

PEREIRA, Ana Carolina B. O “formalismo teleológico” em Jörn Rüsen: perspectivas sobre a interculturalidade. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes; LIMA, Caio Rodrigo Carvalho. Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática Ananindeua: Cabana, 2022. p.184-208.

FREITAS, A recepção da Teoria da História de Jörn Rüsen em periódicos brasileiros especializados (2001-2015). In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes; LIMA, Caio Rodrigo Carvalho. Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática. Ananindeua: Cabana, 2022. p.137-166.


Avaliação diagnóstica

Leiam o texto de síntese e alguns trechos dos textos originais e preencham o formulário abaixo que registra as principais dificuldades de leitura e orientam a preleção do professor.

1. Sobre o texto síntese “Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares”:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: _____________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: ___________________________

2. Sobre o texto do autor-objeto da aula desta semana:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: ________________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: _____________________________

Acesse aqui o formulário para responder a esta avaliação diagnóstica.


Próxima aula

Na próxima aula, continuaremos a exposição de propostas de aprendizagens reivindicadas por pesquisadores estrangeiros. Discutiremos as principais categorias formuladas por Kieran Egan, extraídas de textos como: An imaginative appproach to teaching (2005) e Layers of historical understanding (1989).

Para citar este texto

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. Aprendizagem histórica como atos integrados de experimentar o passado, interpretar o passado, orientar-se e estimular-se a agir na vida prática – Jörn Rüsen. São Cristóvão, 07 ago. 2022. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/3-aprendizagem-historica-na-teoria-da-historia-de-jorn-rusen/>.

Boletim do Tempo Presente. Recife, v. 11, n.07, 2022.

Boletim do Tempo Presente2

Artigos

Resenhas

Publicado: 2022-08-05

Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century South America | Nadia R. Altschul

Nádia Altschul é uma estudiosa que atua no campo do neomedievalismo. Com doutorado na Universidade de Yale, é autora de livros como La literatura, el autor y la critica textual, de 2005, e Geographies of philological knowledge: postcoloniality and the transatlantic national epic, de 2012, e coeditora de Medievalisms in the postcolonial world, de 2009. É também professora na Universidade de Glasgow, onde se dedica à pesquisa sobre os efeitos colonialistas do medievalismo e do orientalismo na América Latina.

Seu mais novo livro, Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century South America, lançado em 2020 pela University of Pennsylvania Press, traz novas perspectivas aos estudos de neomedievalismo, enfatizando uma abordagem que incorpora o olhar da América Latina. Se pensarmos no conjunto da produção da autora, este estudo marca seu posicionamento teórico em relação aos estudos sobre o neomedievalismo, posto que, embora já tivesse realizado trabalhos sobre autores sul-americanos, em Politics of temporalization ela se dedica exclusivamente à região, considerando especificamente o Chile, a Argentina e o Brasil. Leia Mais

Crítica Histórica. Maceió, v.13, n.25, 2022.

Critica Historica 2

Ensino de História: etnicidade e relações raciais

Editorial

Apresentação

Resenha

Publicado: 04/08/2022

Dimensões. Vitória, n.48, 2022.

Dimensoes Revista de Historia

Edição 48 (2022/1)

Tema Livre

Publicado: 04-08-2022

2. Aprendizagem histórica (?) como prática de libertação – Paulo Freire

Paulo Freire Imagem Outras Palavras

Paulo Freire | Imagem: Outras Palavras

Freire dispensa apresentações, no Brasil e fora dele. Autor de dezenas de ensaios publicados em livros, o recifense Paulo Reglus Neves Freire (1921/1997) é reconhecido como o criador de uma “filosofia educacional e um método de investigação e pesquisa ancorados numa antropologia e numa teoria do conhecimento” (Gadotti, 2012, 460). É o intelectual brasileiro mais citado no exterior, em frequência semelhante aos principais textos escritos por Thomas Kuhn e de Karl Marx. (Santana, 2019, p.13-15). Sua obra mais conhecida – Pedagogia do oprimido – vendeu entre 800.000 e 1.000.000 de exemplares em 200 edições e em 57 línguas, no período de 50 anos (Santana; Souza, 2019). Sua apropriação, inclusive no Brasil, é tão elástica que é frequentemente assemelhada a abordagens diferentes em termos de produção de sentido: a epistemologia construtivista de Jean Piaget, a Teoria da História de Jörn Rüsen e a epistemologia pós-colonial de Frantz Fanon, Albert Memmi e Eduard Said. (Lima, 2011, p.14-18; Becker, 2017, p.10-12).

Nesta aula, não queremos identificar as fontes da sua Filosofia da Educação e de sua Pedagogia. Não queremos apontar contradições e fragilidades das suas combinações teóricas e do emprego de categorias. Nos interessam as suas proposições sobre a educação e a aprendizagem. Como explicitamos na aula 1, o retorno a Freire é uma tentativa de apontar as possibilidades de emprego e as limitações das teses de Freire para a construção de teorias da aprendizagem disciplinar histórica. Cumpriremos a tarefa, elencando quatro significados de aprendizagem, quatro possibilidades de proveito desses significados para a construção de projetos de aprendizagem histórica e, por fim, quatro dificuldades de emprego das proposições de Freire no nosso tempo presente.

2.1. Aprendizagens freirianas

Ao pé-da-letra, a palavra “aprendizagem” e os respectivos termos lematizados (“aprender” e “aprendido”) não são categorias para Freire, nos limites do nosso corpus (Ver referências abaixo). Tais palavras, em geral, tem uso ordinário, a exemplo de: [“nossa democracia aprendeu”]. Isso podemos afirmar quando comparamos a frequência com a qual Freire emprega os termos “aprender”, frente aos termos “educação”, “educar”, “pedagogia”, “conhecer”, “ensinar” e “estudar”.

Também ao pé-da-letra, a perspectiva de análise de Freire é dominantemente a do professor. Considerando que a tarefa que apresentamos para vocês foi a extração de significados explícitos ou implícitos de aprendizagem e de aprendizagem histórica em seus livros e, ainda, considerando que lançamos mão de um conceito típico-ideal para cumprir a tarefa, destacamos quatro significados de aprendizagem constatados nos sete títulos analisados, mas sempre da perspectiva de um imaginado aluno.

Um inventário detalhado das coisas que realizam a aprendizagem freiriana vocês encontraram na própria obra do autor, a partir dos seus específicos interesses. Encarem, portanto, os quatro tópicos como uma escolha didática, de dois professores que se organizam para falar durante 50 minutos.

Aprender é internalizar conhecimentos e habilidades do convívio democrático

O primeiro significado de aprendizagem é o de processo simultâneo de responsabilização do sujeito por sua realidade local/nacional e de tomada de decisões a respeito. Aprendizagem é mudança de comportamento. Essa mudança de comportamento pode ser traduzida como o ato de internalizar a responsabilização pelo entorno e a tomada de decisão.

Esta definição pode ser explicada a partir de duas motivações: o caráter holístico do discurso de Freire sobre educação (sua Filosofia da Educação) e os resultados da análise de conjuntura da realidade política nacional dos anos finais da década de 50 do século passado.

Para o Freire de 1959 (professor e administrador do Serviço Social da Indústria e autor de Educação e atualidade brasileira), a educação é o processo de humanização do homem. É um processo de elevação de seu comportamento predominantemente “natural”, “passional” ou “acrítico” para um comportamento predominantemente histórico, racional ou crítico.

Por esses parâmetros, o povo brasileiro enfrenta um problema histórico: a assimetria entre as necessidades de participação política provocado pelo “surto” democrático proveniente da industrialização, e a “inexperiência democrática” desse mesmo povo, cultivada por quatro séculos de colonização exploratória.

Com o significado de Teoria apresentado na aula 1, podemos concluir que o aprender em Freire é sinônimo de educar. E se o seu propósito é garantir desenvolvimento econômico e participação popular na política nacional, aprender é interiorizar (individual e coletivamente) conhecimentos e habilidades típicas do convívio democrático. Aprender é transformar hábitos democráticos em valores primordiais para a vida nacional. A aprendizagem escolar, enfim, é um processo de substituição dos comportamentos típicos de sociedades autoritárias por comportamentos típicos de sociedades democráticas. (Freire, 1959, p.62).

Aprender é elevar-se da consciência acrítica à consciência crítica

Outra variante de aprendizagem está nos textos do Paulo Freire exilado de 1967 (Educação como prática de liberdade) que se ocupa com o povo brasileiro do pós-golpe de 1964 e com o homem do “terceiro mundo”. Neste contexto, educação é o instrumento que auxilia o homem brasileiro a “inserir-se no processo, criticamente”; “ajudá-lo a ajudar-se […] fazê-lo agente de sua própria recuperação […] pô-lo numa postura conscientemente crítica diante dos seus [novos] problemas”; propor “ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição” (Freire, 1967, p.56-57). Em resumo: Freire quer que o homem (e o povo) brasileiro transporte-se da consciência “intransitivada” para a consciência “transitiva”, superando o estado da consciência “transitiva ingênua”, mas evitando a disseminação da consciência alienada, típica das determinações industrialistas.

Dentro desse objetivo, o aprender pode ser definido como o ato de tomar para si a responsabilidade pela resolução dos problemas locais e nacionais de modo intelectual e experiencial. Dizendo de modo mais abstrato, aprender é realizar a “vocação da pessoa em ser sujeito” (p.57). Aprender, enfim, é tornar-se protagonista de sua vida social.

Aprender é conhecer os determinantes da opressão.

Um ano depois, Freire complementa o Educação como prática de liberdade, publicando a Pedagogia do Oprimido (1968). A ideia de homem se mantém: ser finito, incompleto, vocacionado à liberdade e topologicamente caracterizado pelas capacidades de sensibilidade, razão e ação. Educar é, então, promover o desenvolvimento simultâneo das capacidades de pensar e agir. Isso significa que a sua Pedagogia, diferentemente das que estão em curso, compreende o aprender como mobilizar, simultaneamente, um pensamento e uma ação. Sua pedagogia é assumida como simultaneamente teórica e prática.

Na Pedagogia do Oprimido, Freire também detalha a coisa a ser aprendida ou o objeto manipulado pelo professor diante dos alunos. Quem ensina comunica algo e esse algo é o conteúdo. Até aqui, nada vemos de diferente das pedagogias dominantes. Mas Freire destaca: o conteúdo, como instrumento de libertação, deve informar sobre os determinantes da opressão. Por essa razão,  conteúdo deve ser colhido no entorno da vida mesma do aluno. Assim, de tarefa solitária da Pedagogia, a seleção de conteúdo passa a preencher quase todas as etapas método freiriano de alfabetizar adultos: 1. investigar da “consciência real” dos educandos (modos de pensar, agir e sentir, na comunidade); 2. codificar o resultado da investigação em “temas geradores” (que põem os educandos em situações limites); 3. problematizar esses temas mediante a apresentação das situações-limite codificadas e o questionamento das respostas dos educandos a essas situações-limite; e 4. Produzir material didático e programa. (Freire, 1969)

Para o Paulo Freire de 1992, então secretário de Educação do município de São Paulo, a tarefa não é mais democratizar a escola como meio de cultivar o desenvolvimento econômico e de suprir a “inexperiência democrática” do povo. Sua meta, agora, é instrumentalizar a escola para manter as práticas democráticas recuperadas recentemente. A afirmação da liberdade como vocação permanece. É necessário fugir aos extremos da “tirania da autoridade” e da “tirania da liberdade”. No entanto, diante das decepções provocadas pelos políticos no novo regime democrático (supomos), outro “imperativo existencial e histórico” (ontológico) deve ser defendido: a esperança de efetivação dessa liberdade.

Aqui, em Pedagogia da Esperança, a aprendizagem como mudança de comportamento (do autoritário ou assistencialista ao democrático ou participante) é mantida, junto à ideia corrente de aprendizagem como “apropriação” ou “apreensão” de um “conteúdo” por parte do aluno. A diferença está no fado de que Freire põe os verbos “apropriar-se” e “apreender” na dependência dos fins educacionais: aprender conscientemente.

Isso não é pouco para o nosso tempo. Agindo dessa maneira, Freire reitera um dos argumentos basilares do planejamento educacional que vigora há três séculos (para ficarmos com as ideias de educação na modernidade): se educar é formar pessoas, deve o professor refletir o tempo inteiro sobre o as estratégias e conteúdo que podem viabilizar a formação da pessoa idealizada. Ensinar e selecionar coisas somente se justificam quando estão relacionados ao cumprimento de um fim (ainda que utópico).

Aprender é interpretar e generalizar

Nos anos seguintes, esse desdobramento da aprendizagem em habilidades, conhecimentos e valores é mais frequente. Em Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (1996), Freire situa o ensinar como historicamente posterior ao aprender e detalha operações do aprender docente, entre as quais estão as habilidades de: investigar, criticar, refletir sobre sua prática, tomar decisões conscientes e agir com liberdade e autoridade. (Freire, 1996, p.12).

É, porém, no clássico Professora sim, Tia não, um manual de formação de professores menos orgânico que o Pedagogia da autonomia, onde encontramos o último detalhamento das coisas que traduzem a sua ideia freiriana de aprender. Aqui, ela está implícita na ideia de estudar, que é dever ético de todo professor em formação e em atuação. Para o autor, aprendizagem é mudança, da “experiência sensorial que caracteriza a cotidianidade à generalização que se opera na linguagem escolar e desta ao concreto tangível” (Freire, 2015, p.61).

Em passagens próximas ele se refere ao “aprender” como sinônimo de “conhecer” e o conhecer como “ler”, “observar” e “reconhecer as relações entre objetos”. Para persuadir o leitor sobre a assertividade dessa definição ele metaforiza essa passagem com algumas imagens: “leitura anterior do mundo” e “leitura da palavra”; estar dentro e estar fora da coisa a ser conhecida; estar perto e estar distante da coisa a ser conhecida; e, por fim, compreender a coisa pelos sentidos e compreender a coisa pela razão.

Todas essas metáforas são coroadas com o exemplo da nordestina que, interrogada sobre a imagem de um oleiro, que migrou da resposta sensorial – vejo o artefato com forma de sobrevivência daquele homem – para a resposta generalizadora típica da “experiência escolar” – vejo o artefato como uma expressão de cultura. (Freire, 2015, p.63)

 2.2. Aprendizagens freirianas e aprendizagem histórica

Pelos exemplos acima, é fácil perceber que Paulo Freire não pensou aprendizagens disciplinares. Isso significa que, objetivamente, não encontramos “a” teoria da aprendizagem histórica esboçada por Freire nos livros citados aqui. Consequentemente, profissionais interessados na elaboração de uma teoria da aprendizagem histórica de tons freirianos devem se aventurar a construí-la, partindo (dos) ou chegando aos insumos ele oferece. E esses insumos são as prescrições sobre conhecimentos e habilidades necessárias aos alunos, taxonomia da consciência humana, habilidades conjugadas do ensinar e do aprender,

Conhecimentos e habilidades

Em Educação e atualidade brasileira colhemos a primeira ideia de conteúdo constituinte de uma disciplina escolar história. Se a sua ideia de aprender história é a de um processo de mudança do comportamento do aluno dos anos iniciais do Ensino Fundamental, sob fins de responsabilização, engajamento e protagonismo individual e social do seu aluno, vocês podem projetar planos de ensino, nos quais os alunos possam:

  • Conhecer história social local/regional e o modo como ele mesmo aprende;
  • Desenvolver junto aos alunos as habilidades de investigar e discutir causas e soluções para os problemas locais;
  • Desenvolver junto aos alunos o hábito de trabalhar em grupo ou colaborativamente;
  • Desenvolver junto aos alunos o hábito de se engajar em projetos para a resolução de problemas locais/regionais/nacionais, empregando métodos científicos.

O que listamos acima é uma transferência contrafactual do que Freire quis dizer quando prescreveu saberes locais/regionais como conteúdo substantivo, o desenvolvimento de habilidades metacognitivas, o engajamento, o aprendizado ativo, o cultivo da solidariedade social e da autonomia.

Tipificação de consciências

Em Pedagogia como prática da liberdade Freire potencialmente disponibiliza uma ferramenta de avaliação e de planejamento: a tipologia da consciência humana. Usando este quadro, você pode, teoricamente, identificar o estágio de consciência de indivíduos ou de grupos, planejar uma proposta de intervenção, considerando etapas de progressão e, por fim, e avaliar os resultados dessa mesma proposta de intervenção.

Tipologia da consciencia progressao das aprendizagens em Paulo Freire e1659532265672

Observem a coluna de indicadores. Percebam que cada item corresponde ao que Freire entende como variável básica que explica as suas hipóteses sobre aprendizagem. Eles referem-se às ideias de ciência, comunicação, habilidades e capacidades individuais. Eles referem-se, por fim, ao lugar espaço/temporal onde viceja cada uma das consciências em análise.

Habilidades conjugadas do ensinar e do aprender

Ainda em Pedagogia como prática da liberdade, vocês podem encontrar insumos para a instituição de finalidades da disciplina escolar história, no interior de currículos prescritos, como a Base Nacional Comum Curricular ou os Planos e Programas estabelecidos pelas secretarias estaduais e municipais de Educação. Partindo da ideia de que ensinar é “dialogar com o analfabeto sobre situações concretas” (Freire, 1967, p.110), um possível plano de curso para o ensino de História na Educação de Jovens e Adultos poderia ganhar a configuração que se segue.

Metas de ensino e expectativas de aprendizagem com inspiracao freireiana e1659532330968

Habilidades e conhecimentos necessários à atuação docente

Na Pedagogia do Oprimido, também há indicações para a construção de currículos prescritos, destinados especificamente à formação de professores. A organização do trabalho pedagógico pensado por Freire para a alfabetização de adultos é fonte para a programação de um curso de formação inicial ou continuada a partir de quatro conjuntos de habilidades e conhecimentos.

Habilidades e conhecimentos para a formaao continuada com inspiracao freiriana e1659532376187

Em suma, o quadro acima sugere que um curso de formação habilite o professor de História para construir o conteúdo disciplinar (investigar, selecionar e avaliar) a partir da realidade concreta do aluno, ao mesmo tempo em que deve conhecer o estado (ou a natureza) da consciência do aluno (acrítica/ingênua/crítica) e o estado (ou a natureza) da consciência possível de ser alcançada com a disciplina história.

Um conceito metahistórico

Em Pedagogia da Esperança, uma das atitudes inspiradoras para o Ensino de história está na reflexão de Freire sobre a ideia de tempo que deve ser incutida nas mentes dos alunos. Se antes da ditadura militar ele se ocupava de definir “presente”, agora ele se preocupa com a ideia de “futuro”.

Essa ideia pode orientar a escolha de finalidades e do conteúdo para a disciplina escolar história. Para ele, três opções estavam postas: a posição reacionária do futuro como repetição do presente, a posição revolucionária, do futuro como “progresso inexorável” e a sua própria visão – o futuro como possibilidade, inclusive para fazermos do modo como “mais ou menos” o desejamos.

Um princípio ético

Outra atitude inspiradora ao ensino de história, também comunicada em Pedagogia da Esperança, está na proposição freiriana de que o educador democrático deve explicitar a sua posição política (ser honesto). Freire enfatiza a ideia de que o educador deve selecionar conteúdo pragmático (relacionado ao fim – consciência – e à realidade do aluno).

Para o ensino de história, esse princípio ético desencadeia duas atitudes polêmicas nos nossos dias. Significa que um aluno de história deve ter desenvolvida a sua atitude de tomar posição, de explicitá-la e de defendê-la. Significa, ainda, que um futuro professor de história deve aprender a selecionar conteúdo substantivo e a se apropriar desse conteúdo selecionado sob os critérios da familiaridade e do pragmatismo. Nesse sentido, verdadeiro é o conhecimento histórico que serve à conscientização sobre a opressão, a liberdade e a esperança de transformação.

3. Limitações do uso de Freire no nosso tempo presente

Buscar aprendizagens históricas nas obras de Freire, evidentemente, implica em aceitar as suas limitações. Para manter a simetria, vamos destacar quatro delas: as dificuldades de incorporação dos usos que fez das palavras “história” e “historicidade” e “tempo” e “Estado”.

Homem e educação

A ideia dominante de homem (de ser humano) em Freire é largamente devedora do esclarecimento kantiano. Viver segundo a sua razão é um projeto a ser seguido por todos. Mas, o que fazer com aqueles que entre nós discordam da ideia de que estamos fadados ao progresso e de que todos os povos fazem parte de um corpo chamado civilização ou humanidade, esses colegas podem vir a ser professores de história freirianos?

Deus e liberdade

A ideia dominante de homem (de ser humano) em Freire também é marginalmente devedora do deísmo cristão. Deus liberta. Consequentemente, a religião não é um obstáculo ao cumprimento da vocação do homem. Mas, como ficam os leitores críticos da modernidade, os professores existencialistas, os agnósticos e os ateus, os leitores de F. Nietzshe, por exemplo, que veem no Deus cristão um dos maiores impedimentos à liberdade dos sujeitos?

História e historicidade

 Freire não se refere à história ciência ou à história disciplina escolar. Mas os teóricos da aprendizagem histórica do nosso tempo levam em consideração a relação necessária entre ciência da história e história disciplina escolar. Freire aborda história como Filosofia especulativa da História, ou seja, Freire não explora as condições de possibilidade do conhecimento do passado, não discute os modos de legitimação das proposições históricas. O seu pragmatismo sobre a verdade está, de certo modo, na contramão do pensamento dominante atual.

Freire também emprega, ao modo de muitos historiadores, a palavra “historicidade”. Ocorre que a invenção do termo e a sua transformação em categoria (o caráter de estar no tempo) não foram criações de historiadores. Elas são anteriores ao estabelecimento da história como ciência. Aqui, novamente, Freire a emprega sob o ponto de vista de um filósofo (especulativo) da educação.

Estado e tempo

Não obstante a inspiração freiriana ser compatível com determinados estados de coisas da nossa conjuntura política, é necessário perceber as diferenças. Para Freire, a teoria da aprendizagem comunicada na Pedagogia do oprimido é uma das duas etapas do processo de libertação do homem. É o momento pré-revolucionário e não estatal. Nós, ao contrário, vivemos um período estatista, onde a oferta formal da educação escolar básica e pública não é seletiva e autoritária como nos anos da ditadura militar pós-1964. Que lugar atribuir ao Estado na prescrição de programas de ensino?

No uso da Pedagogia da Esperança outra dificuldade deve ser enfrentada. Quem não professa o tempo histórico como realizado pela dialética hegeliana da oposição entre contrários em uma mesma relação pode dizer-se freiriano? Freire afirma: “os momentos que vivemos ou são instantes de um processo anteriormente iniciado ou inauguram um novo processo de qualquer forma referido a algo passado.” O presente ou a síntese, guarda os germes responsáveis pela destruição do presente já passado. Essa proposição desconsidera as ideias de que o passado é para muitos historiadores uma representação móvel e uma invenção do presente e não o contrário.

Referências

BECKER, Fernando. Paulo Freire e Jean Piaget: teoria e prática. Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas. V.9, Número Especial, 2017.

FREIRE, Paulo Reglus Neves. Educação e atualidade brasileira. Tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belass Artes de Pernambuco. Recife: [Edição do autor], 1959.139 p.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 5ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. [?]: EGA, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. [1992]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido [1968]. 17ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. Resenha de: GADOTTI, Moacir. Por que continuar lendo Pedagogia do Oprimido? Revista de Políticas Públicas, São Luís, v.16, n.2, p.459-461, jul./dez. 2012.

FREIRE, Paulo. Professora, sim; Tia, não: Cartas a quem ousa ensinar [1993]. 24ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Ensinar e aprender. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITHKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2ed.Belo Horizonte: Autêntica, s.d., p.246-251.

LIMA, José Gllauco Smith Avenlino de. Paulo Freire e a Pedagogia do oprimido (Afinidades pós-coloniais). Recife, 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

SANTANA, Otacilio Antunes; SOUZA, Suzana Carvalho de. Pedagogia do oprimido como referência: 50 anos de dados geohistóricos (1968-2017). Revista História da Educação, v.23, 2019.


Avaliação diagnóstica

Leiam o texto de síntese e alguns trechos dos textos originais e preencham o formulário abaixo que registra as principais dificuldades de leitura e orientam a preleção do professor.

1. Sobre o texto síntese “Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares”:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: _____________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: ___________________________

2. Sobre o texto do autor-objeto da aula desta semana:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: ________________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: _____________________________

Acesse aqui o formulário para responder a esta avaliação diagnóstica.


Próxima aula

Na próxima aula, iniciaremos a exposição de propostas de aprendizagens reivindicadas por pesquisadores estrangeiros. Abriremos a discussão com as principais categorias formuladas por Jörn Rüsen, extraídas, principalmente, do livro Teoria da História: Uma teoria da história como ciência.


Para citar este texto

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Aprendizagem e aprendizagem histórica em Paulo Freire. São Cristóvão, 2020. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/aula-1-aprendizagem-geral-e-aprendizagens-disciplinares/>

Revista de Fontes. Guarulhos, v.9, n.16, 2022.

Fontes1

Documentos e instrumentos de pesquisa

Documentos

Instrumentos de Pesquisa

Publicado: 2022-08-02

 

A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right | Matthew Rose

Matthew Rose Imagem Tikvah Fund 2
Matthew Rose | Imagem: Tikvah Fund

Matthew Rose é especialista em História das ideias teológicas e políticas e doutor pela Universidade de Chicago. Seu novo trabalho – A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right (2021) – foi pensado no contexto da campanha de Donald Trump e da crise dos refugiados de 2016, quando ele notou que jornalistas dos EUA e da Europa começavam a citar autores da extrema direita cuja tradição era “mais profunda e filosófica sobre a vida contemporânea e mais cética sobre o lugar do cristianismo na cultura ocidental” (Mclemee, 2022). Do desconhecimento inicial, o autor avançou para uma análise das ideias radicais do pensador “nacionalista” e de direita Samuel Francis, publicado na revista First Things (2018). O artigo se estendeu e se transformou na obra atual, acrescida de notas (ou retratos) biobibliográficos de mais quatro intelectuais: “o profeta” alemão Oswald Spengler, “o fantasista” italiano Julus Evola, “o antissemita” estadunidense Francis Parker Yockey e “o pagão” francês Alain de Benoist.

A word after liberalismRose é católico, democrata e, academicamente, orientado pelo trabalho de Heinrich A. Rommen (1897-1967) que, na condição de ex-aluno de Carl Schmitt (1888-1985), examinou a obra do mestre sob o ponto de vista da crítica que a “direita radical” disparava contra as ideias de “igualdade e justiça”, compreendidas como corruptoras “das mais altas inspirações humanas” (Mclemee, 2022). A meta explícita e modesta de Rose é tornar inteligíveis as ideias de pensadores que orientam o “novo conservadorismo” em seus ataques aos princípios de “igualdade humana”, respeito às “minorias”, “tolerância religiosa” e “pluralismo cultural” (Rose, 2021, p.5). A meta implícita e engajada é fazer a defesa do cristianismo em termos teológicos e apresentar valores cristãos de longa duração como possíveis respostas ao vazio ideológico de muitos jovens do seu tempo e país. Leia Mais

Analizar el auge de la ultraderecha | Beatriz Ugarte Acha

Beatriz Ugarte Acha 2020 Imagem Metapolitica
Beatriz Ugarte Acha (2020) Imagem: Metapolitica

Analizar el auge de la ultradereha é o mais recente livro de Beatriz Ugarte Acha. Natural de Vizcaya (1970), Acha é professora de Sociologia e Trabalho Social na Universidad del País Vasco.[i] Doutorou-se em Ciência Política com a tese Éxito y fracaso de los nuevos partidos de extrema derecha en Europa Occidental: el caso de los Republikaner en el Land de Baden-Württemberg (2017), defendida junto ao Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidad Autónoma de Madrid. A experiência do doutorado lhe permitiu estender e, simultaneamente, encurtar os marcos temporais e espaciais, estudando a ascensão dos Partidos de Extrema Direita (PUDs) na Europa e, de modo especial, na Espanha. Grande parte do livro, portanto, corresponde aos três primeiros capítulos da tese. Com exceção do último, que trata do “assalto ao Capitólio” (onde faz considerações sobre o caráter pedagógico desse evento), o livro se estrutura no exame das trajetórias dos PUDs, ideologias, causas da sua ascensão, perfil dos seus votantes.

Analizar el auge de la ultraderechaNa breve “Apresentação” da obra, Cristina Monge y Jorge Urdánoz disparam a ironia: “Ya somos europeus”. Com a frase, anunciam a chegada do multipartidarismo e da ultradireita à Espanha, entre 2015 e 2019, representados, respectivamente, pelos sucessos do 15 M, Podemos, Ciudadanos e, ainda, o Vox, a exemplo do que já havia acontecido com demais países da Europa. No primeiro capítulo – “Los partidos de ultraderecha y sus trayectorias” –, contudo, Beatriz Acha não dá sequência ao tom irônico e, de certa forma, amortece a proposição. Não é que o fenômeno dos PUDs na Espanha seja mais brando. O fato é que a ascensão dos partidos de ultradireita, em 14 países, entre 1996 e 2019, só aparentemente pode ser considerada exitosa. É certo que eles ampliaram o número de adeptos, organizações, líderes e votantes, que ganharam cadeiras nos parlamentos nacionais e até apoiam governos. Contudo, observados em suas trajetórias individuais, partidos, como a Frente Nacional, na França; o Partido do Progresso, da Noruega; e, o Partido da Liberdade, da Áustria, oscilam entre o sucesso, o fracasso e até a cisão, lutas intestinas ou motivadas pela perda de prestígio imediatamente após um atentado terrorista perpetrado por um membro partidário (o caso de Oslo). Leia Mais

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022.

Critica Historiografica

Editorial

  • Margarida Maria Dias de Oliveira
  • Itamar Freitas

Um manual (para) traduzir as novas direitas – Resenha de “The far right today”, de Cas Mudde

Olhando para o outro lado – Resenha de “Fighting the Last War: Confusion, Partisanship, and Alarmism in the Literature on the Radical Right”, de Jeffrey M. Bale e Tamir Bar-On

Combater o fascismo – Resenha de “Como travar o Fascismo – História, Ideologia, Resistência”, de Paul Mason

Aprendendo com os politólogos – Resenha de “Analizar el auge de la ultraderecha”, de Beatriz Ugarte Acha

O fascismo fala às massas – Resenha de “A linguagem fascista”, de Carlos Piovezani e Emilio Gentile

Sobre as direitas no “Terceiro Mundo” – Resenha de “The Right and Radical Right in the Americas – Ideological Currents from Interwar Canada to Contemporary Chile”, de Tamir Bar-On e Bàrbara Molas

O Inventário de um conservador? – Resenha de “A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right”, de Matthew Rose

Ler as novas direitas – Resenha de ¿La rebeldía se volvió de la derecha? Cómo el antiprogresismo y la anticorrección política están construyendo um nuevo sentido común (y por qué la izquiera deveria tomarlos en serio)”, de Pablo Stefanoni

Um elemento ausente – Resenha de “O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado por Esther Solano Gallego

Por uma direita legítima – Resenha de “Da direita Moderna à Direita Tradicional”, de Cesar Ranqueta Júnior

Bolsonarismo à direita? – Resenha de “O que há de novo na “nova direita”? identarismo europeu, trumpismo e bolsonarismo, de Marcos Paulo dos Reis Quadros

As recentes direitas de um historiador – Resenha de “Las nuevas caras de la derecha”, de Enzo Traverso

A novidade do passado – Resenha de “Menos Marx, Mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil”, de Camila Rocha.

Militares e ideologias – Resenha de “Os militares e a crise brasileira”, organizado por João Roberto Martins

Pareceristas deste número especial

  • Fábio Alves (UFS)
  • Itamar Freitas (UFS)
  • Magno Francisco de Jesus Santos (UFRN)
  • Margarida Maria Dias de Oliveira (UFRN)

1 – Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares

Lev Semyonovich Vigotski Imagem Wikipedia
Lev Semyonovich Vigotski | Imagem: Wikipédia

Vamos iniciar este curso apresentando uma limitação do tema e uma definição operatória para “aprendizagem”. Adiante, apresentaremos as três proposições que são o conteúdo desta primeira aula:

  1. Podemos tipificar aprendizagem como “aprendizagens universais” e “aprendizagens disciplinares”;
  2. Toda aprendizagem disciplinar traz em sua base uma ideia de aprendizagem universal, mas é raro que uma teoria universalista da aprendizagem faça considerações sobre aprendizagens disciplinares;
  3. Existem tantas aprendizagens históricas quantas forem as noções que professemos sobre finalidades da formação escolar, finalidades da disciplina escolar história, ideias de epistemologia histórica e modos de uso de aprendizagem universalista e aprendizagens disciplinares.

1.1 Definição ideal-típica de aprendizagem

A limitação do tema ou pressuposto obrigatório para a compreensão desta aula é a experiência iluminista (germano/francesa) educacional. A maioria dos autores que leio sobre “aprendizagem” parte da premissa de que existe um “ser humano”, dotado de três capacidades macro, cujas mais referidas são: razão, sentimento e vontade.[1] Observem que os conceitos de cultura que vocês mais empregam, de E. Durkheim e R. Chartier, estão fundados nessa tríade topológica: modos padronizados de pensar, agir e sentir. O ser humano é (ou tem o poder do) pensamento, sentimento e vontade. Nessa acepção, cultura é pensamento, sentimento e vontade padronizados. O bebê não nasce humano: ele torna-se humano com a formação social (escolar, inclusive), desses modos de pensar, agir e sentir padronizados. Em síntese, nossa escola e o nosso aprender disciplinar são modernos (não são pós-modernos).

A definição ideal típica d e aprendizagem (universalista ou disciplinar)deste curso é inspirada no pensamento de R. Gagné, que escreveu, em 1965, sobre os significados do processo da aprendizagem, sobre a coisa que se aprende e o meio de verificação do aprendido. Para ele, a aprendizagem é um processo de modificação das capacidades de fazer algo, de pensar sobre algo ou de agir sobre algo.[2] Sabemos que aprendemos ao comparar a ação, o pensamento ou o sentimento manifestado antes e depois da situação de aprendizagem.[3]

Para formular essa ideia de aprendizagem, Gagné tomava por base as teorias de B. F. Skinner (mudança de comportamento) e de J. Piaget (assimilação/equilibração). Trinta anos depois, C. Cool, conhecido teórico dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), se amparava em L. S. Vigotysky (conscientização/assimilação) e D. Ausubel (relação entre o desconhecido e o familiar) mas comunicava uma ideia estruturalmente idêntica à de Gagné: o ser humano possuiria capacidades universais de saber coisas, fazer coisas e sentir coisas. Assim, aprender seria adquirir ou desenvolver essas capacidades ou, ainda, atribuir “significado pessoal” às coisas que lhe eram apresentadas por seus pais ou professores, por exemplo. (Alemany et al, 2000, p.298-299).

1.2. Aprendizagens universais e aprendizagens disciplinares

Podemos dizer que os dois compendiadores de teorias da aprendizagem (Gagné e Coll) dizem a mesma coisa a partir de pressupostos diferentes. Mas não é só isso. Coll levanta o problema da relação entre essas capacidades macro (ou poderes/faculdades) e esse algo referido até aqui, que ele nomeia por “conteúdo” e que nós designamos como às vezes como “disciplina”, “conhecimento” e/ou “saber” escolar.

O manual espanhol faz mais. Em primeiro lugar, ele sugere que as teorias, digamos, gerais da aprendizagem (de Piaget, Vigotsky, Skiner e Ausubel, por exemplo), estabelecem relações diferenciadas com o que no livro é designado de “conteúdo”. Para Skinner o conteúdo tem pouco peso, enquanto para Vigotsky os conhecimentos disciplinares escolares têm importância imensa. Ainda para Vigotsky, os conhecimentos disciplinares e os saberes da experiência de grupos condicionam, digamos, o desenvolvimento humano e a aprendizagem dialeticamente.

Os colegas de Coll, Isabel Alemany, Teresa Majós e Enric Giménez desenvolvem essa preocupação de Vigotsky com os conteúdos e, consequentemente, os definem e apontam as suas contribuições para o cumprimento das metas do currículo prescrito espanhol. Conteúdos designam coisas como fatos, conceitos, princípios, procedimentos, atitudes, valores e normas. Observem que essa taxonomia (não produzida pelos próprios) das capacidades humanas guarda correlações com aquela topologia triádica da qual tratamos no início do tópico anterior, vejam o esquema:

Figura 1.1. Taxonomias das capacidades humanas e ideias de conteudo e1659445359875

E o mais importante para nós: essa taxonomia nos dá a oportunidade de reconhecer as diferenças de conteúdo entre disciplinas sob o ponto de vista das coisas que as realizam. A história escolar, por exemplo: vocês seriam capazes de identificar quais tipos de conteúdo caracterizariam a disciplina escolar praticada na sua instituição?

Se a resposta for positiva, provavelmente, vocês concluirão que aprender na disciplina escolar História (aprender dominantemente fatos e conceitos) é diferente de aprender na disciplina escolar Desenho (aprender, dominantemente, procedimentos de corte psicomotor). E essa conclusão nos leva à primeira proposição desta aula: existem concepções de aprendizagem de abrangência geral – designadas como Teorias da aprendizagem – e existem concepções de aprendizagem de abrangência limitada a determinado grupo de princípios prescritos por uma corporação escolar ou universitária – designadas como aprendizagens disciplinares.

1.3. Aprendizagens gerais no interior de aprendizagens disciplinares

Há três décadas vivenciamos um conflito entre pesquisadores do ensino de História. De um lado estão os que defendem a Pedagogia como produtora dos significados de aprendizagem em geral e, consequentemente, orientadoras da aprendizagem em História. Do outro estão os Historiadores que defendem certa Teoria da História fundada em certo Método Histórico como produtores do significado de aprendizagem histórica.

Neste curso, gostaria de convencê-los de que o conflito é pouco sustentável em termos teóricos porque toda aprendizagem disciplinar traz em sua base uma ideia de aprendizagem universal, embora pouquíssimas teorias universalistas de aprendizagem façam considerações sobre aprendizagens disciplinares. Vamos dar exemplos bem conhecidos, extraídos da experiência de Piaget e de J. Rüsen.

Piaget entende a aprendizagem como processo de aquisição de conhecimento ou, como ele mesmo expressa, de “incorporação do universo a si próprio” (compreensão e explicação do real pelo ser humano). As coisas que realizam esse processo são o desequilíbrio (necessidade) que mobiliza o sujeito (criança ou adulto) a agir (interesse) para satisfazer certa demanda da vida prática (equilíbrio). A aprendizagem é, assim, uma “sequência de compensações ativas do sujeito em resposta às perturbações exteriores”. (Piaget; Inhelder, 1990). As habilidades que realizam essas coisas são o imitar, jogar, lembrar e comunicar; o seriar, classificar, ordenar, combinar, estabelecer proporções e previsões.

Quanto pensa as possibilidades de adquirir conhecimento sobre o passado ou (como podemos parafrasear) a explicação do acontecido, Piaget emprega essas proposições sobre a aprendizagem geral e conclui ser impossível, em determinada idade, os alunos compreenderem determinado produto de determinada ciência histórica tal e qual os adultos historiadores comumente a compreendem. (Atentem para esse modelo que será empregado adiante por especialistas no ensino de história: 1. a compreensão ideal é a explicação sobre a realidade efetuada pelos humanos adultos especializados na ciência de referência; 2. O processo de compreender é uma progressão situada entre os extremos da (digamos) imagem deturpada do real e da imagem perfeita do real). Isso é o que afirma Piaget. Mas, o que faz Rüsen?

Rüsen produz um significado para a aprendizagem disciplinar histórica: processo de aquisição das habilidades de rememorar o passado, interpretar o passado e de orientar-se na vida prática. Todos nós estamos convictos de que essa é uma significação particular de aprendizagem, mas efetivamente ela não é. Vejam que ele teoriza sobre o “humano”. Ele imagina um humano ideal e, portanto, universal. Todo ser humano, segundo Rüsen, rememora, interpreta e age para dar sentido à sua vida diante das adversidades experimentadas no tempo. Ao expressar o “todo” ele cria uma ideia de aprendizagem universal. Ao expressar o pensar historicamente, aprender história, migrar de uma consciência a outra, ele está aplicando uma ideia de aprendizagem geral, baseada nas operações de rememorar, interpretar, orientar-se e estimular-se a agir (que ele mesmo inventou) em oposição à aprendizagem baseada nas operações de assimilação/equilibração pensadas por Piaget.

Com os exemplos de Rüsen e de Piaget, podemos concluir que a aprendizagem disciplinar, em geral, conserva significados produzidos para a aprendizagem universal (o caso de Rüsen), mas nem sempre as aprendizagens universais conservam significados provenientes das aprendizagens disciplinares, embora, na maioria dos casos, orientem o planejamento das aprendizagens disciplinares (o caso de Piaget).

1.4. Aprendizagens históricas para diferentes currículos, disciplinas e epistemologias

A terceira e última proposição que queremos defender é a de que existem tantas aprendizagens históricas quantas forem as noções que professemos sobre finalidades da formação escolar, finalidades da disciplina escolar história, princípios de Epistemologia histórica e modos de usar aprendizagens universalistas e aprendizagens disciplinares. Se a situação de ensino exige uma aprendizagem diferenciada – perspectivas de gênero, perspectivas decoloniais etc. – você deve construir uma ideia de aprendizagem histórica compatível.

Um exemplo do que defendemos está na significação de aprendizagem que os autores de coletâneas sobre aprendizagem histórica apresentam. A abordagem de Coll é por demais limitada para o nosso curso porque comunica uma ideia restrita de conhecimento disciplinar. É importante ressaltar que os próprios produtores de conteúdos disciplinares já partem de teorias gerais da aprendizagem. Isso nos faz concluir que não haveria, a priori, uma distinção entre os dois tipos de conhecimento e, consequentemente, dois tipos de aprendizagem como sugere o título desta aula. Mas ela nos estimula a sofisticar ainda mais o tema, sugerindo que: o modo de aprender conteúdos disciplinares (a aprendizagem disciplinar) depende da finalidade prescrita para o currículo em determinada escola (formar para que?), da ideia de aprendizagem da qual essa finalidade lança mão (modificar comportamento exterior, descobrir coisas, relacionar coisas ou resolver problemas na vida prática?), do significado de disciplina escolar (mais conhecimentos, mais habilidades, mais valores ou mais atitudes?).

Seguindo tal raciocínio, em síntese, não teríamos um conflito entre aprendizagem em geral e aprendizagem disciplinar, simplesmente porque as aprendizagens disciplinares já estariam condicionadas por aprendizagens gerais desde o seu nascedouro. Dizendo de outro modo, quem diz “aprendizagem histórica é...” diz também que “aprendizagem histórica” está na confluência entre certa concepção de ciência Histórica e certa concepção de aprendizagem geral.

Assim, o conflito que vivenciamos no dia a dia, como profissionais do ensino de história, não se dá entre teorias da aprendizagem (em geral) e teorias da aprendizagem disciplinar (em História). Consequentemente, o conflito que vivenciamos no dia a dia não está entre a vontade de poder dos profissionais da Pedagogia e a vontade de poder dos profissionais da História.

Quando Jörn Rüsen afirma que a aprendizagem histórica é a aquisição/desenvolvimento das competências de experimentar o passado, interpretar o passado, orientar-se para a ação e estimular-se a agir na vida prática ele não está apenas comunicando uma teoria da aprendizagem histórica: ele está, simultaneamente, apresentando uma teoria da aprendizagem universalista, divergente da aprendizagem (universalista) comunicada por Piaget (assimilação, equilibração etc.). Com isso queremos afirmar que se você quer usar Rüsen como um teórico da aprendizagem disciplinar você deverá reconhecer que ele também está impondo uma teoria da aprendizagem universalista.

O exemplo com sinal contrário demonstra o que estamos a afirmar. Se você quer usar Paulo Freire como teórico da aprendizagem disciplinar (histórica), você deve estar consciente de que ele pouco se refere ao conhecimento disciplinar (História, inclusive) e, efetivamente, o que faz é impor uma teoria da aprendizagem universalista.

A aprendizagem histórica de Rüsen é construída a partir de pressupostos de uma epistemologia da história e de uma teoria da aprendizagem geral, enquanto a aprendizagem geral de Freire é construída a partir de pressupostos de uma teoria geral do conhecimento e de nenhuma epistemologia das ciências de referência (salvo as categorias gerais de certa concepção de Filosofia).

1.5. Tornar-se teórico da aprendizagem histórica

No mercado das ideias, as aprendizagens gerais e as aprendizagens disciplinares são combinadas são combinadas em diferentes proporções e aplicadas em diferentes escalas, adequáveis a apenas uma sala de aula ou promovidas à política pública de toda um país. No Palgrave Handbook of research in historical culture and education (), aprender história é narrar histórias, adquirir conceitos históricos, ler como historiador e raciocinar historicamente; no New directions in assessing historical thinking, aprender história é desenvolver a consciência histórica, desenvolver competências de escrever história, desenvolver o pensamento histórico e desenvolver a consciência histórica para o pensar historicamente; no The Wiley international handbook of History Teaching and learning, aprender história é pensar historicamente, raciocinar historicamente, desenvolver a consciência histórica, desenvolver a empatia histórica, desenvolver a agência histórica e desenvolver a concepção de história global; e, por fim, no Epistemologias e ensino da História, aprender história é desenvolver e mobilizar habilidades de conhecer, fazer, viver com os outros e ser, é ampliar qualitativamente a interpretação sobre o passado, é desenvolver e mobilizar a capacidade de compreender/comunicar-se com o outro (empatia), desenvolver e mobilizar a capacidade de interpretar o passado a partir de múltiplas perspectivas, entre outras. Sejamos livres para combinar ideias de aprendizagem gerais e ideias de aprendizagem situadas na História e criar teorias que respondam às nossas específicas demandas. Este curso foi planejado com essa intenção: fazer de cada pesquisador um teórico da aprendizagem histórica. Mas, para construir teorias da aprendizagem histórica é importante conhecer as virtudes e limitações de cada teórico em circulação e as possíveis situações nas quais podem ser empregados. Isso é o que faremos neste curso.

Referências

CARRETERO, Mario; BERGER, Stefan; GREVER, Maria (Ed.). Palgrave handbook of research in historical culture and education. London: Palgrave Macmillan, 2017.

ERCIKAN, Kadriye; SEIXAS, Peter. New directions in assessing historical thinking. London: Routledge, 2015.

GAGNÉ, Robert M. Como se realiza a aprendizagem. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1976. [Primeira edição em inglês – 1965].

METZGER, Scott Alan; HARRIS, Lauren McArthur (Ed.). The Wiley international handbook of history Teaching and learning. Hoboken: Wiley Blackwell, 2018.

PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel. A Psicologia da criança. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

RIBEIRO, Cláudia Pinto; VIEIRA, Helena; BARCA, Isabel; ALVES, Luís Alberto Marques; PINTO, Maria Helena; GAGO, Marília (Coord.). Epistemologias e ensino da história. Porto: CITCEM, 2017.

SALVADOR, César Coll et. al. A teoria genética da aprendizagem. In: Psicologia do ensino. Porto Alegre: Artmed: 2000. pp. 249-257.

SALVADOR, César Coll et. al. Psicologia do ensino. Porto Alegre: Artmed: 2000.

Notas

[1] Se vocês pensam que uma reflexão crítica ao iluminismo (kantiano, por exemplo) é uma heresia, lembrem das ideias Michel Foucault, tratando a subjetividade como um atravessamento de linguagens. Lembrem-se de crítica à ideia ser humano autônomo (de Kant) e antropocentrização da ciência histórica.

[2] “A aprendizagem é uma modificação na disposição ou na capacidade do homem. [...]

Manifesta-se como uma alteração no comportamento [...] A modificação pode ser, e o é frequentemente, um aumento de capacidade para alguns tipos de performance [o que ele faz, realiza ou executa]. Pode consistir, também, em alteração de disposição, chamada, conforme o caso, atitude, interesse ou valor [o que o sujeito da aprendizagem pensa ou sente].

[...] e infere-se que a aprendizagem ocorreu, comparando-se o comportamento possível antes de o indivíduo ser colocado em uma ‘situação de aprendizagem’ e o comportamento apresentado após esta circunstância.” (Gagné, 1976, p.3).

[3] Tomamos as definições como operacionais, repetimos. Então, não busquem condená-las pelo uso de termos como “comportamento” e “performance”. Nós as empregamos sem os significados atribuídos por F. B. Skinner, por exemplo. Pensem, aqui, no ano genérico de I. Kant.


Avaliação diagnóstica

Leiam o texto de síntese e alguns trechos dos textos originais e preencham o formulário abaixo que registra as principais dificuldades de leitura e orientam a preleção do professor.

1. Sobre o texto síntese “Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares”:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: _____________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: ___________________________

2. Sobre o texto do autor-objeto da aula desta semana:

  • Li e não entendi a seguinte passagem: ________________________________
  • Li e quero comentar a seguinte declaração com a qual concordo/discordo: _____________________________

Acesse aqui o formulário para responder a esta avaliação diagnóstica.


Próxima aula

Na próxima aula, iniciaremos a exposição de propostas de aprendizagens reivindicadas por pesquisadores brasileiros. Abriremos a discussão com as principais categorias formuladas por Paulo Freire, extraídas de textos como: Educação e mudança; Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo; Conscientização: teoria e prática da libertação; e Pedagogia da esperança.


Para citar este texto

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares. São Cristóvão, 2020. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/aula-1-aprendizagem-geral-e-aprendizagens-disciplinares/>

Max Weber und die Erste Weltkrieg | Hinnerk Bruhns

Hinnerk Bruhns Imagem Hypotheses
Hinnerk Bruhns | Imagem: Hypotheses

Atribuem-se a Heráclito duas fórmulas memoráveis. A primeira, panta rhei, “tudo passa”, faz parte do repertório básico de qualquer aluno de primeiro semestre nas Humanidades. Já a segunda é bem menos citada: “a guerra é o pai de todas as coisas”. De fato, a ideia de que há algo não apenas de estranhamente sedutor, mas também de matricial na guerra, é confirmada à exaustão pela experiência histórica e mesmo por nossa sensibilidade estética. De Homero e do Mahabharata a Euclides da Cunha, da pintura de Otto Dix ao grande romance de Guimarães Rosa, a guerra aparece ora como epicentro narrativo, ora como pano de fundo. Tinha razão Ernst Jünger quando constatou que “a mania da destruição está profundamente enraizada na natureza humana” (Jünger, 2005, p. 48).

Como quer que seja, uma das conquistas fundamentais da modernidade, pelo menos desde a Guerra dos trinta anos, foi a de tendencialmente mitigar o fascínio que, desde sempre, cerca esse fato social total. Daí que, em suas memórias como soldado na Primeira Guerra, o historiador britânico R. H. Tawney não tenha escondido sua repulsa ante a “sensação de desempenhar um papel inútil” no que qualificou de “jogo disputado por macacos e organizado por lunáticos” (apud Stern, 2004, p. 254). Leia Mais

Antigas sociedades da África Negra | José Rivair Macedo

Jose Rivair Macedo Imagem UFRGS2
José Rivair Macedo | Imagem: UFRGS

A obra Antigas sociedades da África Negra, de José Rivair Macedo, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi publicada no ano de 2021 pela Editora Contexto e já é considerada um clássico e uma leitura recomendada para todos que se interessam pelos estudos africanos, sejam estrangeiros, brasileiros, professores do ensino básico ou superior e público em geral.

Embora Rivair mencione o fato de o texto não possuir uma linguagem didática, mas uma proposta acadêmica com ampla pesquisa bibliográfica e documental, as salas de aula brasileiras, especialmente as localizadas nas periferias, com a maior parte do seu alunado afro-brasileiro, estão prontas para receber esse tipo de trabalho, obviamente quando intermediado pelo docente de educação básica. Os saberes ancestrais, as histórias dos negros na cultura brasileira, como quer o prefácio da obra – que traz inclusive uma canção de Eugênio Alencar, sambista gaúcho e conhecedor das tradições africanas (Rivair, 2021, p. 10) -, estão nesses lugares em que as comunidades afro-brasileiras habitam e aos quais a ciência costuma não olhar. Leia Mais

De metalúrgico a presidente: o Brasil visto a partir da biografia de Lula | John D. French

John D. French Imagem Brasil Popular
John D. French | Imagem: Brasil Popular

Em um momento no qual a construção de perspectivas sobre a história e o destino do Brasil voltam-se novamente para Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula1, representações sobre a vida do ex-presidente trazem questionamentos acerca de sua incessante capacidade de mobilizar afetos e disputas interpretativas. Neste contexto, sua trajetória pública e privada remanesce atual e relevante para a compreensão dos impasses do presente e o que se pode esperar do futuro. Esse é o desafio assumido pelo último livro do brasilianista John D. French, que traz uma abordagem surpreendentemente dinâmica para a biografia: Lula and His Politics of Cunning, publicado em outubro de 2020.

O autor é professor de História na Duke University, com atuação também nas áreas de estudos internacionais comparados, africanos e afro-americanos. Com uma vasta e produtiva carreira, French coordena, nos últimos anos, o Duke Brazil Initiative, tendo sido diretor do Latin American Center, também em Duke, e coeditor da Hispanic American Historical Review por cinco anos. Leia Mais

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n.90, 2022.

Revista Brasileira de Historia ANPUH

Modernismos | Revista Brasileira de História | 2022

O Theatro Sao Pedro no inicio do seculo XX Imagem Fabiana Crepaldi
O Theatro São Pedro no início do século XX | Imagem: Fabiana Crepaldi

Em memória de Nicolau Sevcenko, historiador do modernismo e dos “seus frementes anos 1920”.

Em um texto de intenções um tanto polêmicas, o crítico estadunidense Harris Feinsod, estudioso de literatura e cultura modernistas, evoca o poeta russo-revolucionário Maiakovski: “Parem de uma vez por todas essas reverências contidas em efemérides de centenários, a veneração por meio e publicações póstumas. Tenhamos artigos para os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!” (Feinsod, 2016, tradução nossa). Nessa mesma linha, Feinsod declara: “Há muitas razões para se apavorar com a chegada do ano de 2022”.

De fato, por inevitável que seja, toda comemoração, e todas as efemérides de centenários em especial, correm o risco de promover mais esquecimentos do que memória, mais ocultamento e exclusão do que aprofundamento e análise. Em todo caso, espera-se que, em alguma medida, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, com suas celebrações laudatórias, mas também com suas contestações e seus deslocamentos críticos, ofereçam menos uma falsa aparência de coerência, como sugere Feinsod, do que uma oportunidade de expansão de um arquivo vívido e palpitante, sempre em transformação e em movimento. Eis, pois, a “beleza do vivo”, para pôr o mote de Michel de Certeau às avessas, aqui em questão. Leia Mais

O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego

Ester Solano Imagem Nocaute
Ester Solano | Imagem: Nocaute

No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.

O odio como politicaOs 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]

Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.

Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.

O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).

No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).

Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).

No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)

Precisamos falar da direita juridica Imagem UOLCULT

Precisamos falar da direita jurídica | Imagem: UOL/CULT

Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)

Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.

Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.

O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).

As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).

Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil

Prólogo | Gregório Duvivier

Apresentação | Esther Solano Gallego

  • A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
  • Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
  • A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
  • As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
  • O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
  • Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
  • Periferia e conservadorismo | Ferréz
  • A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
  • Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
  • O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
  • Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
  • Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
  • Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
  • Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
  • O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
  • Sobre os autores
  • Charges

Resenhista

Lucas MirandaLucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: cucapinheiro@yahoo.com.br.

 


Para citar esta resenha

GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.

Abordagens em História da Loucura/ Revista Expedições-Teoria da História e Historiografia /2022

Do ponto de vista do leitor, nada poderia dar-lhe melhores condições de entender, mas também de avaliar por si mesmo, o alcance e o sucesso da realização de um Dossiê de artigos em uma boa revista, como é o caso da Expedições: Teoria e Historiografia, do que ter o acesso à chamada do Dossiê antes da leitura de um ou mais textos reunidos. Leia Mais

The Right and Radical Right in the Americas – Ideological Currents from Interwar Canada to Contemporary Chile | Tamir Bar-On e Bàrbara Molas

Casa Branca Washington DCEUA. Ilustracao de The Gay Takeover of American Conservatism Cronicles 2022
Casa Branca (Washington, DC/EUA). Ilustração de “The Gay Takeover of American Conservatism” | Cronicles (2022)

Em The right eand radical right in the Americas: currents from interwar Canada to contemporary Chile [A Direita e a Direita radical nas Américas: correntes ideológicas no entreguerras do Canadá ao Chile contemporâneo], Tamir Bar-On e Bàrbara Molas querem cobrir a lacuna deixada pelo recente The Oxford Handbook of the Radical Righ, editado por Jens Rydgren, que não inclui países da América Latina – diga-se de passagem, uma prática contumaz de imperialistas e ex-imperialistas, mesmo que o Handbook não tenha anunciado objetivos e perspectivas comparatistas. Entre as metas do livro, anunciado como, provavelmente, um pioneiro no tema (dentro dos marcos espaciais e temporais referidos), estão o exame das “tradições ideológicas de Direita”, a avaliação do impacto da “Direita” e da “Direita radical” na política latino-americana, o impacto das ideias nacionalistas e dos pensadores europeus e estadunidenses nessa tradição e a declaração de que a esquerda aprende muito quando estuda as distintas “tendências ideológicas” concorrentes.

The right and radical right in the AmericasNa introdução, o mexicano T. Bar-On e a canadense B. Molas, experimentados pesquisadores das direitas radicais, tentam atribuir unidade à coletânea que organizaram a partir do emprego da expressão “tradição ideológica” [right-wing ideological traditions] (são 13 tradições) e da significação minimalista de “direita” como todos os “teóricos, movimentos, partidos políticos e regimes que veem a desigualdade humana como ‘natural’ ou ‘normal’, seja no âmbito socioeconômico, seja baseado em diferenças raciais, culturais ou de gênero” (p.6). Em breve comentário sobre as tipificações de direita – incluindo Cas Mudde, Roger Eatwell, Pierre Ignazi Vedran Obucina e Jens Rydgren –, os organizadores concluem que as “forças políticas, movimentos e partidos” examinados podem ser designados, sem grandes problemas, por “direita”, “direita radical populista”, “direita nacionalista populista”, “direita radical”, “direita alternativa” ou “extrema direita” (p.6). Os pontos de interlocução entre os nove capítulos, contudo, são estabelecidos também pelos objetos que tangenciam ou encarnam tais tradições: catolicismo, corporativismo, multiculturalismo e etnonacionalismo. Leia Mais

La reledía se volvió de la derecha | Pablo Stefanoni

Pablo Stefanoni Foto Bernardino Avila 2
Pablo Stefanoni | Foto: Bernardino Ávila

La reledía se volvió de la derecha, de Pablo Stefanoni traz um subtítulo enciclopédico, entregando a matéria ao leitor sem que se tenha a necessidade de abrir o livro: o combate ao progressismo político e ao politicamente correto é rebelde e atrai multidões de jovens. É necessário, então, ler esses arautos das novas direitas (“extrema direita”, da “direita alternativa” ou “populismo de direita”) caso queiramos compreender as razões do seu sucesso ou, em outra chave, as razões do fracasso das esquerdas. A tarefa anunciada é cumprida com um texto breve, distribuído em cinco capítulos (além de epílogo e glossário) que focam o pensamento das novas direitas em escala global (América do Sul, América do Norte, Europa e Ásia).

La rebeldia se volvio de derechaAntes de La rebeldia, Stefanoni escreveu livros sobre a ação da esquerda na Bolívia e na Rússia e atuou em parcerias com Clarín e o Le Monde Diplomatique. Professor da Universidade Nacional de San Martín e Doutor em História, o autor situa seu novo livro no domínio da História Intelectual. Stefanoni se ocupa de autores comuns – terroristas, ativistas moderados, intelectuais que militam na internet, escritores – atuantes nas duas últimas décadas, mediante redes de divulgação artigos, posts em redes sociais, vídeos, trechos de livros e memes. Ao abordar indivíduos de “subculturas on line”, Stefanoni investiga o significado dessa nova rebeldia, questionando sobre a ideia de “futuro próximo” compartilhada entre seguidos e respectivos seguidores. Leia Mais

Da direita Moderna à Direita Tradicional | Cesar Ranqueta Júnior

Cesar Ranqueta Junior Imagem Unipampa 2
Cesar Ranqueta Júnior | Imagem: Unipampa

De autoria de Cesar Ranqueta Jr, o livro Da direita Moderna a Direita tradicional, publicado em 2019, tem duas ambições. A primeira delas é reconstituir historicamente o conceito de Direita, sistematizando argumentos e compilando autores que são ícones para sua fundamentação no mundo ocidental. A segunda é, a partir de uma análise dessa corrente de pensamento no Brasil, apresentar suas fragilidades, incongruências, antinomias e propor, a partir dessas análises, uma fundamentação teórica a ser seguida.

Da direita moderna a direita tradicionalO interesse do autor por essa questão tem como base uma dupla crítica que é por demais razoável em uma sociedade cada vez mais polarizada e marcada por uma naturalização de conceitos do campo da política. A primeira é a recusa aos autores filiados ao pensamento de direita, assim como às suas ideias nos círculos especializados de debate, implicando em seu desmerecimento. A segunda está na forma pela qual esses pensadores tendem a ser adjetivados: “fascistas” e “anacrônicos”. Para Ranqueta, esta última é uma clássica estratégia da esquerda em desmerecer seu maior rival ideológico. Para nós, trata-se de um problema de metodológica científica. Leia Mais

O que há de novo na “nova direita”? identarismo europeu, trumpismo e bolsonarismo | Marcos Paulo dos Reis Quadros

Marcos Paulo dos Reis Quadros Imagem Radio
Marcos Paulo dos Reis Quadros | Imagem: Radio Caxias

O que há de novo na nova direita, de Marcos Paulo dos Reis Quadros, resulta de uma investigação conduzida em seu estágio pós-doutoral, realizado na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde também cursou doutorado em Ciências sociais. O autor é professor e pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Estácio Belo Horizonte (ESTÁCIO BH) e ministra cursos sobre “Direitas” e “Teoria Política” no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. Seus três livros discutem federalismo, e a relação “soft power” e violência em favelas no Brasil e trajetórias das direitas no Brasil e em Portugal. No seu mais novo trabalho, como explicitam título e subtítulo, sua meta é avaliar “caracteres distintivos dessa nova direita na Europa (os partidos identitários) e no Brasil (o bolsonarismo), fazendo, ainda, considerações sobre o “trumpismo nos Estados Unidos” (p.19). Suas questões são desafiadoras. Elas tocam nas causas da ascensão da direita e exploram a vivência das direitas em quatro planos: “pilares ideológicos”, “plataformas político-eleitorais”; comportamento nos parlamentos e comportamento nos governos. Dada a quantidade de planos, é uma tarefa desafiadora que ele se propõe a cumprir em três capítulos.

O que ha de novo na nova direitaNo primeiro – “Sobre os sentidos das direitas” –, o autor defende a validade da díade esquerda/direita como demarcador ideológico. Seu critério é o de N. Bobbio, ou seja, a relação que as pessoas mantem com o valor da igualdade. Assim, se para a esquerda (representada instrumentalmente por J.-j. Rousseau), o ser humano é bom e aperfeiçoável, sendo legítimos a rebeldia e a mudança. Para a direita (representada instrumentalmente por T. Hobbes), o ser humano é mal e imperfeito naturalmente, sendo legítimos a conservação da herança e a ordem (T. Hobbes). A direita, como se vê, é constituída por um núcleo – conservação da herança – e por conceitos outros como “ordem”, “ceticismo” e “idade do ouro”, acrescidos de outros tantos em determinados contextos. Aliás, fiel a R. Rémon, o autor toma a descrição de direita como um tipo ideal, mas há limites: “Pode existir um conservadorismo de inclinações autoritárias e um conservadorismo de pendor liberal; jamais, sublinhe-se, um conservadorismo progressista.” (p.43). Leia Mais

Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI) | Lená Menezes de Medeiros

Lena Menezes de Medeiros Imagem
Lená Menezes de Medeiros | Imagem: Extra

Portugueses no Rio de Janeiro. Negócios, trajetórias e cenografias urbanas, livro de autoria da historiadora Lená Medeiros de Menezes, publicado pela editora Ayran no segundo semestre de 2021, constitui, a um só tempo, um trabalho afetivo e acadêmico. Talvez isso desperte a curiosidade do leitor em geral, talvez, ainda, suscite a desconfiança do acadêmico, uma vez que afetividade e a abordagem objetiva próprias do ofício do historiador não costumam a se entrelaçar. Não costumam, mas podem sim conviver sem nenhum prejuízo à qualidade da obra. E é isso o que vemos aqui nesse livro, e sem nenhum desdoiro nem a sua dimensão acadêmica, nem à expressão dos seus afetos.

É bem verdade que a equação que une a cientificidade e a afeição manifesta para com o objeto de análise não é algo fácil de ser alcançado, podendo facilmente resvalar em incoerências, mascaramentos, excessos, ou mesmo em imprecisões. Mas aviso desde já aos leitores que nada disso se verifica nessa obra. E isso não se dá sem motivo. A razão principal para essa harmoniosa conjugação de fatores que tradicionalmente são tão distintos e excludentes é a maturidade da autora do livro. Lená Menezes é uma historiadora talhada pelo cinzel de uma longa caminhada acadêmica. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde o final da década de 60, passando por vários cargos e funções nessa instituição, entre eles a Pró-reitoria de graduação, além de ter fundado um dos mais importantes laboratórios de pesquisa sobre a imigração do Brasil, o LABIMI, que se destaca pela sua internacionalização, justamente, com o meio acadêmico português. É exatamente essa maturidade como pesquisadora que sustenta a delicada equação que aludimos e, mais ainda, a nosso ver, a torna fator de engrandecimento do livro. Tanto os leitores médios afeitos às coisas de Portugal podem lê-lo sem o temor da maçada que uma obra acadêmica pode inspirar, como aqueles que se debruçam academicamente no tema da imigração portuguesa podem o fazer sem o temor de qualquer desalinho com os bons padrões da pesquisa universitária. Leia Mais

80 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial: aspectos políticos, econômicos, culturais e regionais | Revista Maracanan | 2022

Destrocos de baleeira no litoral de Estancia SE proximo ao local do ataque ao Baependi pelos submarinos alemaes 1942 Imagem Agencia O Globo
Destroços de baleeira no litoral de Estância (SE), próximo ao local do ataque ao Baependi pelos submarinos alemães (1942) | Imagem: Agência O Globo

O ano de 2022 demarca oito décadas de uma importante efeméride da história do Brasil contemporâneo: a entrada do país na Segunda Guerra Mundial, em 22 de agosto de 1942, com a declaração de guerra aos países do Eixo. Embora tal participação tenha sido modesta quando comparada à empreendida pelas potências beligerantes daquele conflito mundial, ela foi, sem dúvida, relevante. A princípio, a política externa brasileira, durante os anos 1930, caracterizouse por uma “equidistância pragmática”, conforme definida por Gerson Moura. Significava que o governo Vargas havia evitado estabelecer alianças comerciais rígidas com qualquer uma das potências internacionais, em busca de, com isso, obter vantagens comerciais. Assim, poderia explorar as oportunidades econômicas trazidas pela disputa entre Alemanha e Estados Unidos por influência na América do Sul (MOURA, 1986, p. 28).

Esse direcionamento foi seguido mesmo após o início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, quando a nação brasileira optou pela neutralidade em relação a tal conflito. Contudo, o ataque japonês à base de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, e a consequente declaração de guerra dos Estados Unidos ao Eixo provocaram uma pressão norte-americana para que o Brasil estreitasse mais as relações com tal país e alterasse a linha de política externa que vinha então adotando. A partir daí, estabeleceram-se negociações entre as duas nações, que não foram fáceis, pois muitos dos integrantes do governo Vargas simpatizavam com o Eixo, como Góis Monteiro, chefe do Estado Maior, e Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra. Leia Mais

Maracanan. Rio de Janeiro, v.30, 2022.

Maracanan 2

80 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial: aspectos políticos, econômicos, culturais e regionais

Expediente

Apresentação

Entrevistas

Dossiê

Resenhas

Ilustração

  • A Cobra Vai Fumar
  • Antonio Máximo
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Como travar o fascismo. História, Ideologia, Resistência | Paul Mason

Paul Mason Foto Antonio Zazueta Olmos 2
Paul Mason | Foto Antonio Zazueta Olmos

O músico e politólogo Paul Mason, além de professor convidado na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, atuou como jornalista em diversos meios de comunicação, do The Guardian ao Channel 4. Com diversos livros publicados, quase todos best-sellers no mercado editorial europeu e estadunidense, ficou amplamente conhecido pelos livros Pós-Capitalismo: Guia para o Futuro (2016) e Um Futuro Livre e Radioso (2019). Sua vida pública está envolta em controvérsias, dentre elas a defesa à política do aborto, no Reino Unido, e a declaração de que as políticas reprodutivas não deveriam ser ditadas pelo Vaticano. Mason foi também acusado de antissemitismo por ser membro de um grupo numa rede social que compartilhava postagens contra a comunidade judaica. Em sua defesa, alegou que embora fosse membro do grupo nas redes não endossava suas publicações. Seu novo livro – Como travar o Fascismo: História, Ideologia, Resistência, escrito no período de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, foi originalmente publicado no final de 2021 e teve sua versão para português de Portugal lançada em abril de 2022.

Como travar o FascismoA obra foi clamada por pensar ações práticas para combater o avanço do fascismo, caso raro entre as publicações sobre a matéria. O livro de Mason acaba por ser um manifesto político, com forte posicionamento sobre questões transnacionais como a necessidade de união entre a esquerda e o centro político para frear o avanço da escalada autoritária e fascistizante em vários lugares do mundo. Ele retoma a discussão weberiana sobre o monopólio do uso da força e questiona o que faz a sociedade civil quando a extrema-direita quebra esse paradigma, corroendo um dos princípios legitimadores do Estado moderno. Apresenta uma preocupação efetiva sobre as formas e mecanismos de revigorarmos as democracias num momento em que a questão da corrupção e da desilusão da sociedade civil para com elas torna-se latente. Tudo isso escrito em  linguagem simples, com usos massivos de adjetivos e forte apelo com frases em destaque, mas com grande embasamento de bibliografia clássica e alguma atualização historiográfica, por mais que nomes importantes na discussão sobre essa temática hoje não estejam presentes em suas referências. Leia Mais

Fighting the Last War: Confusion, Partisanship, and Alarmism in the Literature on the Radical Right | Jeffrey M. Bale e Tamir Bar-On

Estado Islamico BBC News
Estado Islâmico | Imagem: BBC News

Tudo parece tranquilo entre os investigadores das novas direitas do eixo Europa-América nos últimos cinco anos. Eles divergem conceitualmente (fascismo, neofascismo, posfascismo, ultradireita, nova direita etc.), ocupam-se de objetos distintos (ideologias, partidos, eleições, movimentos, redes, subculturas, líderes, programas, eleições e ações de governo), mas convergem na ideia de que a maior parte dos seus fenômenos-objeto representa ameaças à democracia liberal. Não sem razão, parte deles encerra os seus ensaios ou teses com a clássica alusão ao “que fazer?”, de Vladmir Lênin. Essa harmonia tem chance de ser abalada após a publicação de Fighting the Last War: Confusion, Partisanship, and Alarmism in the Literature on the Radical Right (2022). Nesse ensaio estendido, Jeffrey M. Bale e Tamir Bar-On denunciam a incompetência dos acadêmicos e jornalistas para interpretar fenômenos designados como “direita radical”, “extrema direita” ou “nova direita radical”, e a esperteza de políticos, empresários e oligarcas das Big Tech que tiram proveito dessa espécie de “histeria” intelectual para “deslegitimar e demonizar virtualmente todos os oponentes da atual ideologia ocidental reinante do globalismo progressista” (p.xvi).

Fighting the Last WarJeffrey Bale e Tamir Bar-On são dois experimentados professores universitários e investigadores de movimentos extremistas há décadas. Bale é historiador e especialista em movimentos religiosos e políticos “propensos à violência” e docente no Nonproliferation and Terrorism Studies (NPTS) e no Program at the Middlebury Institute of International Studies at Monterey (MIIS). O sociólogo Bar-On estuda ideologias políticas e novas direitas e é professor na School of Social Sciences and Government e do Monterrey Institute of Technology and Higher Education, no México. Para chamar os colegas às falas, eles apontam preconceitos acadêmicos, uso equivocado de conceitos, desinformação sobre o imperialismo islâmico, sobre seus traços teocrático, fundamentalista e (no caso dos jihadistas) violento.

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The far right today | Cas Mudde

Cas Mudde 2019 Imagem Wikipedia
Cas Mudde (2018) | Imagem: Wikipédia

The far right today é o primeiro livro de Cas Mudde voltado para o público “não acadêmico” interessado no impulso das “novas direitas”, na América e na Europa, nomeada por ele como a “quarta onda”. O caráter de manual está na arquitetura da informação, na brevidade do texto, na ausência de digressões teóricas e de citações diretas, como também na clareza com que apresenta suas proposições e exemplos. Mudde quer apenas oferecer uma visão geral desse período marcada pela ação da  direita (far right) “antissistema e hostil à democracia liberal”, que se configura em dois grupos: a extrema direita (extreme right), que rejeita a “soberania popular e a regra da maioria” (sendo, portanto, revolucionária), e a direita radical (radical right), que aceita a soberania popular e a regra da maioria, mas se opõe à “democracia liberal”, no que diz respeito, principalmente, aos “direitos das minorias”, à legitimidade das leis e à “separação de poderes” (p.19). Sua meta é instrumentalizar o leitor comum a avaliar “os desafios que a far right coloca para as democracias liberais no século XXI” e, consequentemente, defender essa democracia liberal das várias ameaças reais e potenciais listadas ao longo da obra. (p.17).

The far right todayCas Mudde é um cientista político que trabalhou em universidades da Hungria, Holanda, Escócia, Bélgica, Alemanha, Eslováquia, Suécia e Espanha. Nos últimos seis anos, e já radicado nos Estados Unidos da América (EUA), Mudde tem escrito sobre ideologias, movimentos e partidos europeus e estadunidenses de extrema direita e direita radical, além de refinar categorias como o populismo e explorar o fenômeno das ideias extremistas entre jovens (SPIA/UGEO). The far right today reúne grande parte desses estudos em capítulos que contam a história das novas direitas entre 1945 e 2019, suas ideologias, formas de organização, as lideranças, as atividades, os debates sobre as causas e consequências da quarta onda, as respostas dos Estados e, especificamente, as respostas relativas às questões de gênero. Este livro foi traduzido para mais de cinco idiomas apresentando diversas paratraduções em cada uma das suas edições. Leia Mais

Aprendizagem histórica

Jean Piaget Imagem Wikipedia
Jean Piaget | Imagem: Wikipédia

Colegas, bom dia!

Bem-vindos ao curso sobre as ideias de "aprendizagem histórica". Espero que todos estejam com saúde e assim permaneçam durante o curso. Segue visão geral do curso, contendo objetivos, estratégias de avaliação, conteúdo e calendário.

Trata-se de uma releitura de um curso de extensão ministrado em 2020, com a professora Margarida Maria Dias de Oliveira, acrescido de textos de Isabel Barca e, principalmente, de atividades e escritos dirigidos á construção de aprendizagens históricas adequadas ao que se convenciona chamar de educação histórica ou ensino de história em perspectiva decolonial. Nos próximos dias, postarei os links para todo o material necessário ao desenvolvimento do curso.

Problema/Objetivo

O curso dá a conhecer  Este curso explora sete possibilidades de resposta. Seu objetivo é dar a conhecer definições circulantes e apresentar possibilidades de construção de outros significados para aprendizagem histórica.

Conteúdo programático e calendário

  1. V Visões do Mundo Contemporâneo: 80 anos do Brasil na II Guerra (15/08/2020)
  2. Aprendizagem geral e aprendizagens disciplinares  – I. Freitas e M. Oliveira/Brasil (23/08/2020)
  3. Aprendizagem histórica como prática de libertação – P. Freire/Brasil (30/08/2020)
  4. Aprendizagem histórica como atos integrados de experimentar o passado, interpretar o passado, orientar-se e estimular-se a agir na vida prática – J. Rüsen/Alemanha (20/09/2020)
  5. Aprendizagem histórica como compreensão por camadas – K. Egan/Canadá (27/09/2020)
  6. Aprendizagem histórica como internalização de conhecimentos e habilidades, mediada por interações sociais – M. Carretero e J. Pozo/Espanha (04/10/2020)*
  7. Aprendizagem histórica como domínio dos meios de leitura utilizados pelos historiadores – S. Wineburg/EUA (11/10/2020)
  8. Aprendizagem histórica como manipulação de uma estrutura temporária de conhecimento histórico – P. Lee e J. Howson/Inglaterra (18/10/2022)*
  9. Aprendizagem histórica como mobilização de habilidades e conceitos próprios da Ciência da História – I. Barca/Portugal (25/10/2022)
  10. Aprendizagem histórica e perspectivas decoloniais: impasses e possibilidades (01/11/2022)*
  11. Aprendizagem histórica e perspectivas decoloniais: impasses e possibilidades (11/10/2022)
  12. Avaliação – Produção de texto que situa a intervenção didática dos mestrandos nos quadros conceituais da aprendizagem e/ou da aprendizagem histórica.
  13. Avaliação – Produção de texto que situa a intervenção didática dos mestrandos nos quadros conceituais da aprendizagem e/ou da aprendizagem histórica.
  14. Avaliação – Produção de texto que situa a intervenção didática dos mestrandos nos quadros conceituais da aprendizagem e/ou da aprendizagem histórica.
  15. Avaliação – Produção de texto que situa a intervenção didática dos mestrandos nos quadros conceituais da aprendizagem e/ou da aprendizagem histórica.

Metodologia

O curso será desenvolvido mediante leituras dos textos disponibilizados e exposições de 1h30 de duração. A cada encontro, o professor  apresenta sumariamente as ideias do autor acerca da aprendizagem histórica e, em seguida, responde a questões suscitadas pela leitura. As questões devem ser formuladas previamente e comunicadas em formulário específico. Isso não impede que outras questões sejam formuladas durante a fala do professor.

Os textos são sínteses das proposições de cada teórico da aprendizagem. São um instrumento didático para o bom gerenciamento do tempo, estímulo à leitura do original. Nada substitui, portanto, o contato dos alunos com os textos dos autores examinados, que estarão disponíveis, junto às sínteses do professor.

Além dos textos para a leitura, o curso disponibiliza vídeos didáticos, curtos e sintéticos sobre o tema/autor em discussão durante a aula. A maioria deles serve apenas como estimulante à leitura dos originais. Interprete-os, sempre, criticamente, comparando-os com os textos originais.

Avaliação

Os créditos serão adquiridos mediante entrega e exposição de um texto dissertativo autoral, informando a ideia de aprendizagem mobilizada pelo mestrando em sua intervenção pedagógica a ser realizada como “produto” do PROFHISTÓRIA. Os textos devem medir entre 400 palavras e 600 palavras (inclusas as referências bibliográficas).

Bibliografia básica

Semana 2

Semana 3

  • FREIRE, Paulo, Educação e mudança. 12 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
  • FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 [1977].
  • FREIRE, Paulo. Conscientização: Teoria e Prática da Libertação, São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 [1992].

Semana 4

  • RÜSEN, Jörn. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A. Editores, 2012. (Com a contribuição de Ingetraud Rüsen).
  • RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins).

Semana 5

  • EGAN, Kieran. Layers of historical understanding. Theory & Research in Social Education. [s.n], n. 17, v. 4, p. 280-294.

Semana 6

  • CARRETERO, Mario. Perspectivas disciplinares, cognitivas e didáticas no ensino das Ciencias Sociais e da Historia. In: Construir e ensinar as Ciências Sociais e a História. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 16-29.
  • CARRETERO, Mario; POZO, Juan Ignacio; ASENSIO, Mikel. Problemas y perspectivas em la enseñanza de las Ciencias Sociales: uma concepción cognitiva. In: La enseñanza de las Ciencias Sociales. Madrid: Visor, 1989. p. 13-29.

Semana 7

  • WINEBURG, Samuel S. Historical thinking and other unnatural acts: chartering the future of teaching the past. Philadelphia: Temple University Press, 2000.
  • WINEBURG, Samuel S.; MARTIN, Daisy; MONTE-SANO, Chauncey. Reading like a historian: teaching literacy in middle and high school history classrooms. New York: Teachers College, 2013.

Semana 8

  • ASHBY, Rosalyn. Desenvolvendo um conceito de evidência histórica: as ideias dos estudantes sobre testar afirmações factuais singulares (Developing a concepto of historical evidence: students’ ideas about testing singular factual claims). Educar, Curitiba, Especial, p. 151-170, 2006.
  • ASHBY, Rosalyn; LEE, Peter; SHEMILT, Denis. Putting principles into practice: teaching and planning. In: DONOVAN, M. S.; BRANDSFORD, J. D. How students learn: history in the classroom. Comitee on How people learn, A targeted Report for Teachers. Washington: National Research Council/The National Academies Press, 2005. p. 79-178.
  • HOWSON, Jonatham; SHEMILT, Denis. Frameworks of knowledge. In: DAVIES, Ian. Debates in teaching history. London/New York: Routledge, 2011. p. 73-83.
  • LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica [Towards a concepto of historical literacy]. Educar. Curitiba, Especial, p. 131-150, 2006.
  • LEE, Peter. Putting principles into practice: understanding history. In: DONOVAN, M. S.; BRANDSFORD, J. D. How students learn: history in the classroom. Comitee on how people learn, a targeted Report for Teachers. Washington: National Research Council/The National Academies Press, 2005. p. 31-77.

Semana 9

Semanas 10/11

  • Releitura dos textos e produção de comunicação.

Semana 12

  • Apresentação de uma comunicação escrita/oral sobre deia de aprendizagem empregada nos projetos/produtos de dissertação
  • Modelo de Comunicação

 

Carta Internacional. Belo Horizonte, v.17, n.2, 2022

Artigos

Publicado: 2022-08-01

 

Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) | Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos, Mateus Henrique de Faria Ferreira

Dividido em cinco capítulos, Uma introdução à História da Historiografia Brasileira (1870-1970), escrito por Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos e Mateus Henrique de Faria Ferreira, avalia as transformações na escrita da história no Brasil e o processo de especialização do ofício de historiador no período. Esse processo se deu em pelo menos dois aspectos conjuntos, tanto por uma lenta distinção dos estudos históricos em relação a outros campos quanto pelo advento das universidades como locais de produção histórica especializada. Ao mesmo tempo, observa-se que a profissionalização do ofício apresentava questões que iam além de um âmbito acadêmico, como os usos da história na análise da sociedade e de seus problemas, o que deveria tornar a história relevante para o futuro. Sem pretender apresentar a “formação”, os “momentos decisivos” ou um cânone da historiografia brasileira, os autores do livro analisam como se deu sua modernização no país, em um processo que esteve longe de ser uma simples apropriação de matrizes exteriores, sobretudo europeias (p.9). Leia Mais

Fernando de Azevedo em releituras – sobre lutas travadas/ investigações realizadas e documentos guardados | José Cláudio Sooma, Diana Gonçalves Vidal, Rachel Duarte Abdala

A reiterada presença de Fernando de Azevedo como fonte e objeto de investigação para a História da Educação é inquestionável. Todavia, uma nova publicação a seu respeito se propôs a revisitar sua atuação e obra, situando-a no debate historiográfico. Trata-se, pois, do livro “Fernando de Azevedo em releituras – sobre lutas travadas, investigações realizadas e documentos guardados”, de autoria de José Cláudio Sooma Silva, Diana Gonçalves Vidal e Rachel Duarte Abdala. A publicação organizou-se em três partes, sendo que cada uma delas operou com um recorte e objeto diferente sem perder de vista o sujeito estudado. Para além das análises apresentadas, todos os capítulos trazem como anexos transcrições, ferramentas de pesquisa, textos expositivos, dentre outros. Nesse sentido, faz o duplo esforço de tomar o professor e sua atuação como objeto sem deixar de olhar para o já consolidado compilado de pesquisas e documentos a seu respeito. Opera, portanto, como referência bibliográfica e como possível roteiro de pesquisa. Leia Mais

Habitar as cidades e o espaço urbano na América Latina dos séculos XIX e XX/Revista Eletrônica da ANPHLAC/2022

Na América Latina, desde a segunda metade da década de 1970, a cidade despontou na História como categoria de imaginação e de pensamento social. Desde então, a cidade e o mundo urbano, além de lugares onde as pessoas habitam, vêm sendo interpretados e vistos como espaços em que diferentes classes sociais, culturas, estilos de vida, políticas e temporalidades se manifestam. Neste primeiro momento, a categoria de cidade latino-americana foi utilizada para abarcar todo o espaço nesta parte do continente. Era como se a diferença entre México, Havana, Bogotá, Caracas, Lima, La Paz, Buenos Aires, Montevideo, fosse apenas a disposição no mapa, pois, sob esta perspectiva, os problemas que estas cidades capitais enfrentavam seriam os mesmos. Leia Mais

Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.11, n.1, 2022.

Historia da Midia

Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia

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Artigos Gerais

Las nuevas caras de la derecha | Enzo Traverso

Enzo Traverso Foto ULF AndersenGamma RaphoGettyO Globo 2
Enzo Traverso | Foto: ULF Andersen/Gamma-Rapho/Getty/O Globo

O que me levou a ler o livro de Enzo Traverso não foi apenas o título referente a esse dossiê de resenhas sobre “novas direitas”. O fato de ele ser um dos poucos historiadores de ofício a estudarem o fenômeno e de fazê-lo com ferramentas típicas de historiador – a categoria “regimes de historicidade” – foi o que pesou na escolha. Las nuevas caras de la derecha (2021) é a tradução argentina de Les nouveaux visages du fascisme (2017). O título em francês retrata com maior fidelidade o conteúdo desse livro do historiador italiano, atuante na Holanda, França e nos Estados Unidos da América (EUA): a narrativa do processo de transição do fascismo ao pós-fascismo, vivenciada por europeus e estadunidenses nos últimos vinte ou trinta anos, e comunicada imediatamente após atentados terroristas na França, como o massacre do Charlie Hebdo.

Las nuevas caras de la derecha 2O livro é um agregado de entrevistas concedidas ao antropólogo Régis Meyran, em Paris (2016), sobre temas correlatos, atravessados pelo conceito de “pós-fascismo”. O prólogo à edição castelhana, contudo, é inteiramente dedicado a outro conceito: “populismo”. As constantes referências à expressão durante as entrevistas e forte apelo dos estudiosos de Filosofia e História Política ao conceito (em sua visão, já enfraquecido academicamente) levaram-no, provavelmente, a dispender duas páginas para diferenciar populismo e “tendências regressivas solidamente arraigadas” na Europa e nos EUA no século XXI.

Na tipologia, curiosamente, Traverso o reintegra como categoria, quando afirma que o populismo argentino e peronista (nacionalista, messiânico, carismático, autoritário e idealizador do povo) difere dos “populismos reacionários” estadunidense (D. Trump) e francês (M. Le Pen e E. Macron). O primeiro distribui riqueza entre os pobres e os insere no sistema democrático. Os segundos são orientados pela entrega da nação “las fuerzas impersonales del mercado”. (p.21). O primeiro, acrescentamos, foi gestado no imediato pós-guerra em mundo bipolar. O segundo, reitera o autor, foi gestado na “era da globalização neoliberal”. O primeiro, por fim (como vários movimentos políticos do século XIX), pode continuar a ser designado “populismo”. O segundo, entretanto, deve ser tipificado como “pós-fascismo”.

O primeiro capítulo do livro – “¿Del fascismo al posfascismo” – é dedicado à definição dessa nova categoria. O que vemos nas duas primeiras décadas do século XX, segundo Traverso, não é um resíduo nem um prolongamento do fascismo, ou seja, não é o caso de se falar em “neofascismo”. Os fascismos clássicos (italiano ou alemão) eram antidemocráticos e os pós-fascismos (ao menos o de Le Pen) querem “transformar el sistema desde dentro” (p.27). Os fascismos clássicos eram estatistas, imperialistas e queriam criar uma “terceira via entre liberalismo e comunismo” e os pós-fascismos (ao menos o de Trump) são neoliberais. Os fascismos clássicos possuíam uma visão de mundo e um “modelo alternativo de sociedade”, enquanto os pós-fascismos (o de Trump é, novamente o exemplo) não tem programa ou se reduz a um “Make America Great Again”. Os fascismos clássicos estavam fundamentados em uma “ideologia forte” e o pós-fascismo, exemplificado por Macron, significa o “grau zero de ideologia”.

Com as sucessivas comparações, somos levados a definir o pós-fascismo a partir de traços ideológicos na esfera política, econômica e social: combate à democracia, defesa do livre mercado, ausência de projeto societário e de ideologia forte. Traverso, contudo, acrescenta uma marca diacrítica fundamental: “Lo que caracteriza al posfascismo es un régimen de historicidade específico – el comiezo del siglo XXI – que explica su contenido ideológico fluctuante, inestable, a menudo contradictorio, en el cual se mezclan filosofias políticas antinómicas.” (p.26).

A oralidade que marca o texto e a interrupção do entrevistador, provavelmente, o impede de detalhar esse novo “regime de historicidade”. Tomando como base o seu livro anterior (citado pelo apresentador, Régis Meyran), somos induzidos a compreendê-lo como um tempo sem futuro (horizonte de expectativas), algo que explicaria, inclusive, o caráter instável e contraditório das ideologias e as recorrentes antinomias em termos de “filosofia política” no interior dos movimentos e partidos. Esse auxílio, contudo, é insuficiente para relevar as contradições do próprio Traverso nas definições de pós-fascismos por meio de exemplos.

Afinal, se as antinomias são o caráter dos movimentos pós-fascistas, poderíamos rotulá-los como antidemocráticos? Se os fascismos italiano e alemão reuniam “corrientes diferentes, desde las vanguardias futuristas hasta los neoconservadores, de los militaristas más belicosos a los pacifistas muniquenses etc.” as antinomias deveriam continuar traço diferenciador dos movimentos e partidos do século XXI? Se as categorias “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” estão fundadas na ideia de continuidade passado/presente/futuro, porque afirmar peremptoriamente que as novas direitas do século XXI, exemplificadas na figura de Trump, não representariam uma continuidade histórica e nem uma herança com o fascismo histórico (mesmo que o sujeito citado não as reivindicasse conscientemente)?

O segundo capítulo – “Políticas identitarias” – expressa concepções de Traverso sobre o emprego da categoria “identidade”, acompanhada de suas críticas aos discursos identitários difundidos, principalmente, pela Frente Nacional (FN) e o “Partido de Indígenas de la República” (PIR). Sua ideia de identidade é remetida (entre outros referenciais) a P. Ricoeur – que lhe inspira na caracterização das identidades veiculadas pelos partidos de esquerda (ipseidade – identidade histórica) e de direita (mesmidade – identidade essencial). Em termos abstratos, Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o “reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”.

A esquerda radical (Traverso lamenta) nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião. Nesse sentido (ainda que de modo irônico, para Traverso), a nova direita representada pela FN, por exemplo, é mais eficiente, pois associa a defesa dos “blancos humildes”, manifestando, assim, a sua simpatia pela categoria interseccionalidade. Quanto às críticas às políticas de direita, estas não são nada genéricas. O laicismo, as identidades nacionais e étnicas difundidos pela FN são reacionárias (defensivas), ilógicas, antieconômicas e antissociais.

A melhor parte da discussão entabulada por Traverso, nesse capítulo segundo, está nas razões que ele aponta para esse reacionarismo. As políticas identitárias das novas direitas (que geram a exclusão de migrantes), o laicismo autoritário de Estado (que negam a cidadania plena aos ex-colonizados e que prometem o retorno à Europa anterior ao Euro) são produtos da própria República e do Colonialismo. Assim, não se pode acusar a FN de antirrepublicana, posto que as exclusões do tipo fazem parte da história da República francesa recente. Nesse trecho, quase que ouvimos Traverso declarar que não há (não houve) um germe ultradireitista. Foi a própria serpente (a República francesa) que pariu os identitarismos excludentes dos novos reacionarismos.

Aqui, vemos como o autor põe grupos de esquerda e de direita sob o mesmo solo – que gera as mesmas distorções. Ele avança ainda mais na indicação de semelhanças quando afirma que as “direitas radicais”, os “expoentes liberais e conservadores” não mais buscam “legitimar uma política” por meio da “ideologia”, que “se improvisa a posteriori”. Chega a empregar a expressão “pós-moderna” para tipificar esse traço do nosso tempo. Mesmo que esteja entre aspas, essa expressão não cabe na passagem.

Se ele admite a legitimidade política não ideológica como consequência de uma relação pós-moderna dos humanos com o tempo, as continuidades de ideias e práticas das novas direitas com as ideias e práticas de direitas do século XIX e XX não mais se sustentam. Se, ao contrário, ele reitera a interpretação das novas direitas dentro dos quadros de um novo regime de historicidade, a condição “pós-moderna” não faz nenhum sentido no seu texto.

Além desse deslise teórico, Traverso revela um misto de idealismo em relação à ideia de partido político, em prejuízo, inclusive da sua abordagem historicista (realista) sobre as novas direitas. A vida partidária, mesmo em tempo anterior ao século XXI, é marcada por estratégias de sobrevivência que resultam em diferentes comportamentos, desde a manutenção de um programa, passando pela captura dos eleitores, até a manutenção do poder, quando à frente do Executivo.

No terceiro capítulo do livro – “Antissemitismo e islamofobia” –, as questões identitárias ganham ainda maior espaço. O entrevistador parece determinado a extrair de Traverso uma crítica às definições dos termos em pauta e uma comparação entre os dois fenômenos, tomando-os em seus elementos aparentemente similares: o antissemitismo na primeira metade do século XX e a islamofobia no início do século XXI. O autor resiste várias vezes a compreendê-los como fenômenos simétricos e, implicitamente, a considerá-los “ideologias”. É certo, julga ele , que as afinidades existem: para os antissemitas dos anos 30 do século passado, judeus e bolchevistas eram um “outro” ameaçador, enquanto para os islamofóbicos, os mulçumanos e os terroristas islâmicos são um novo outro inimigo; o antissemitismo estruturava os ideais nacionalistas do início do século XX, enquanto a islamofobia estrutura os nacionalismos europeus do início do século XXI.

Essas similitudes, contudo, são menos expressivas quando observadas caso a caso, com destaque para a experiência francesa. Para Traverso, a “judeofobia” é combatida pelo Estado francês que, por sua vez, legitima a islamofobia. Os judeus estão integrados econômica, social e culturalmente, enquanto africanos e asiáticos e seus descendentes, mesmo nascidos na França, experimentam uma cidadania de segunda categoria. Nos anos 60 do século passado, ao lado dos negros, judeus marcharam em luta contra o racismo e pelos direitos civis. Hoje, organizações civis que congregam judeus confundem o Estado de Israel e comunidade judaica, oprimindo palestinos em suas próprias terras: “La memoria del Holocausto se há convertido en una religión civil republicana, en tanto que la memoria de los crímenes coloniales sigue negada o acallada, como en el caso de las controvertidas leyes de 2005 sobre el ‘papel positivo’ de la colonización.” (p.88). A emergência da islamofobia contemporânea, conclui o autor, não pode ser reduzida ao racismo clássico dos séculos XIX e XX ou ao fator imigração. O colonialismo entranhado na República é o que explica (na certeira expressão de Meyran) o “racismo de pobre” em vigor na França.

Observem que não apresentei nenhum senão ao capítulo terceiro e o mesmo ocorre com o quarto capítulo – “¿Islamismo radical o islomofascismo? El Estado Islãmico a la luz de la historia del fascismo”. Nele, novamente, Meyran tenta extrair de Traverso uma posição sobre a potência heurística da categoria (“islamofascismo”) e, consequentemente, sobre a validade de tipificar o Estado Islâmico (EI) com expressão do fascismo. Ele  rechaça a proposição, embora reconheça semelhanças entre os fascismos italiano, alemão e francês e as ações do EI.

Elas estariam principalmente, nos contextos de emergência do primeiro e do segundo fenômeno (desestabilização da Europa pós Primeira Guerra Mundial e desestabilização de países árabes pós invasões soviéticas, estadunidenses e europeias no Iraque e Afeganistão, por exemplo) e no caráter conservador das suas revoluções (o emprego da tecnologia para propagandear uma sociedade “obscurantista”, baseada em um “passado imaginário”. As diferenças, contudo, superam as similaridades mais gerais, quando, segundo Traverso, o analista aborda os fenômenos diacronicamente e em suas particularidades.

hemos visto surgir fascismos en América Latina, es decir, fuera de Europa: ahora bien, estos se instalaron en el poder gracias al apoyo de los imperialismos, las grandes potencias. En Chile, uno de los peores regímenes fascistas latinoamericanos se instaló mediante un golpe de Estado organizado por la CIA. […] La fuerza del EI, al contrario, radica en el hecho de mostrarse ante los ojos de muchos musulmanes como un movimiento de lucha contra el Occidente opresor. Eso vuelve problemático definir este movimiento como fascista.

Henry Kissinger e Augusto Pinochet 1976 Imagem Ministerio de Relaciones Exteriores de ChileWikipedia

Henry Kissinger e Augusto Pinochet (1976) | Imagem: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile/Wikipédia

Fascismo é conceito histórico, não devendo ser usado como categoria analítica. Totalitarismo (de H. Arendt) é categoria analítica adequada ao exame do EI, mas limitada à sua natureza abstrata (de categoria), a exemplo da categoria nacionalismo. O nacionalismo fascista é cimentado pelo “culto ao sangue” (Itália) e “culto ao solo” (Alemanha) e o nacionalismo do EI é “universalista”; o fascismo (categoria ou conceito histórico?) do Chile foi apoiado pelo imperialismo estadunidense que combate agora as ações do EI; o fascismo da Itália e da Alemanha emergem como alternativa à democracia liberal, enquanto o EI emerge em território que nunca praticou a democracia; o fascismo da Itália e da Alemanha eram anticomunistas enquanto o EI nunca encontrou a resistência de “uma esquerda radical”.

Ao listar meia dezena de razões para não tipificar o EI como fascista, Traverso demonstra os perigos das conclusões sobre causas e consequências de fenômenos históricos com base apenas no emprego de categorias (sobre todo os tipos ideais). Ideologias são apenas uma variável. Não é a religião que explica o EI: “hay que estudiar l la relacion que existe entre Marx, el marxismo, la Revolución Rusa y el estalinismo […] resulta evidente que el EI no es la revelación del islan ni la única expresión posible del islam, pero si uma de sus expresiones […] la Inquisición no es la única expresión posible del cristianismo, !también existe la teologia de la Liberación”. (p.92) Traverso, por fim, deixa implícito que quando cientistas sociais e historiadores tomam a ideologia como causa eles enviesam os resultados. Quando estrategistas e políticos agem dessa forma, o prejuízo é em escala. Eles criam “espantalhos”, omitem o assentimento popular ao EI, o financiamento ocidental ao EI, a contribuição ocidental midiática à banalização da violência (adotada pelo EI), a instrumentalização das ideias de direitos humanos, liberalismo e democracia para exterminar os movimentos emancipatórios de povos africanos e asiáticos.

Nas conclusões do livro – “Imaginario político y surgimento del posfascismo” –, mais uma vez, o leitor perceberá a tensão entre o reiterar de uma tese (a falência das utopias do século XX, a exemplo do comunismo e do fascismo, dá vasão às investidas pós-fascistas, encarnadas pelas novas direitas e o terrorismo islâmico), a instabilidade da aplicação dos conceitos (o “modelo antropológico do neoliberalismo”, também referido como “idolatria do mercado”, é ou não uma ideologia dos últimos 20 anos?) e a atribuição de valor na causação das novas direitas (a extinção das ideologias do século XX, a precariedade socioeconômica de grandes segmentos populacionais, na Europa, Ásia e África ou os dois condicionantes simultaneamente?).

Da mesma forma, ainda na conclusão, Traverso consolidará,  sinteticamente, as principais ideias que se propôs a defender durante a entrevista: 1. Novas direitas (ou direitas radicais) e islamismos não são fascistas; 2. Novas direitas e islamismos são “sucedâneos” reacionários (passadistas e xenófobos) das utopias do século XX; 3. Movimentos sociais e partidos políticos de esquerda (com suas iniciativas, ironicamente, dispersas em um mundo globalizado) não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico; 4. “Religiões cívicas” como o republicanismo francês pós massacre Charlie Ebdo e memorialismo anti-holocausto, respectivamente, acrítico e vitimista, são incompetentes como freios às novas direitas. Sua percepção de futuro, contudo, é otimista: “no hay inexorabilidade alguna. Pueden myy biente aparecer en cualquer momento mentes creadoras, dotadas de una poderosa imaginación, y proponer una alternativa, outro modelo de sociedad.” (p.116).

No início desta resenha, anunciei a razão da minha escolha: queria observar o que caracterizaria o trabalho de um historiador de formação e ofício que estuda o fenômeno das “novas direitas”. A resposta serve como avaliação geral do livro. Em Las nuevas caras de la derecha o noviço de história é beneficiado, talvez, pelo gênero textual (marcado pelos diálogos entre Meyran e Traverso) que elimina a organização lógica de um texto e (se o noviço aceita participar como observador) em benefício da liberdade de suspender a leitura e refletir sobre o lido sem perder o fio da meada (já que as questões ou temas se encerram ao final de uma ou duas intervenções do entrevistador).

Esse expediente possibilita a percepção das várias tensões que atravessam o livro e que ensinam de modo mais realista como trabalha um historiador que se ocupa do referido tema, obviamente, aos que estão predispostos a aprender: a tensão sobre as escolhas de variáveis para a comparação (sobre o que serve e o que não serve para fazer analogias, se mais as semelhanças, se mais as diferenças) e as justificativas políticas empregadas para fazê-lo; a tensão sobre a adequabilidade e a eficácia do emprego do conceito histórico e da categoria analítica; a tensão da escolha entre se comportar como historiador tipicamente historicista (examinando múltiplas variáveis e construindo contextos prováveis a partir de múltiplos pontos de vista) e um cientista social (empregando modelos/tipos e fazendo generalizações sobre sujeitos concretos a partir de categorias/abstrações); a tensão de perceber a oportunidade para problematizar uma situação concreta, mediante antinomias ou explicações unilaterais, e de encontrar o melhor momento para reiterar a sua tese sobre os estados de coisas nos quais estamos envolvidos no início do século XXI (Estado Islâmico, Trump, Le Pen): fenômenos pós-fascistas resultam do fracasso das revoluções do século XX e da crise do capitalismo como fornecedores de horizontes de expectativas para populações alijadas da globalização e vitimadas pelo colonialismo.

Sumário de Las nuevas caras de la drecha

  • Prefacio a la edición castellana
  • 1. Prólogo
  • 2. ¿Del fascismo al posfascismo
  • 3. Políticas identitarias
  • 4. Antisemitismo e islamofobia
  • 5. ¿Islamismo radical o “islamofascismo”? El Estado Islámico a la luz
  • de la historia del fascismo
  • Conclusión. Imaginario político y surgimiento del posfascismo
  • Sobre el autor

Para citar esta resenha

TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la drecha. Buenos Aires: Titivillus, 2021. 234p. Resenha de: FREITAS, Itamar. As recentes direitas de um historiador. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.

O que há de novo na “nova direita”? identarismo europeu, trumpismo e bolsonarismo | Marcos Paulo dos Reis Quadros

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Marcos Paulo dos Reis Quadros | Imagem: Radio Caxias

O que há de novo na nova direita, de Marcos Paulo dos Reis Quadros, resulta de uma investigação conduzida em seu estágio pós-doutoral, realizado na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde também cursou doutorado em Ciências sociais. O autor é professor e pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Estácio Belo Horizonte (ESTÁCIO BH) e ministra cursos sobre “Direitas” e “Teoria Política” no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. Seus três livros discutem federalismo, e a relação “soft power” e violência em favelas no Brasil e trajetórias das direitas no Brasil e em Portugal. No seu mais novo trabalho, como explicitam título e subtítulo, sua meta é avaliar “caracteres distintivos dessa nova direita na Europa (os partidos identitários) e no Brasil (o bolsonarismo), fazendo, ainda, considerações sobre o “trumpismo nos Estados Unidos” (p.19). Suas questões são desafiadoras. Elas tocam nas causas da ascensão da direita e exploram a vivência das direitas em quatro planos: “pilares ideológicos”, “plataformas político-eleitorais”; comportamento nos parlamentos e comportamento nos governos. Dada a quantidade de planos, é uma tarefa desafiadora que ele se propõe a cumprir em três capítulos.

O que ha de novo na nova direitaNo primeiro – “Sobre os sentidos das direitas” –, o autor defende a validade da díade esquerda/direita como demarcador ideológico. Seu critério é o de N. Bobbio, ou seja, a relação que as pessoas mantem com o valor da igualdade. Assim, se para a esquerda (representada instrumentalmente por J.-j. Rousseau), o ser humano é bom e aperfeiçoável, sendo legítimos a rebeldia e a mudança. Para a direita (representada instrumentalmente por T. Hobbes), o ser humano é mal e imperfeito naturalmente, sendo legítimos a conservação da herança e a ordem (T. Hobbes). A direita, como se vê, é constituída por um núcleo – conservação da herança – e por conceitos outros como “ordem”, “ceticismo” e “idade do ouro”, acrescidos de outros tantos em determinados contextos. Aliás, fiel a R. Rémon, o autor toma a descrição de direita como um tipo ideal, mas há limites: “Pode existir um conservadorismo de inclinações autoritárias e um conservadorismo de pendor liberal; jamais, sublinhe-se, um conservadorismo progressista.” (p.43). Leia Mais

Menos Marx, Mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil | Camila Rocha

Camila Rocha Imagem Diplomatic 2
Camila Rocha | Imagem: Diplomatic

Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil, de Camila Rocha, resulta da pesquisa de doutorado em Ciência Política, desenvolvida na Universidade de São Paulo/USP e defendida em 2018. A pesquisa ganhou os prêmios de Tese Destaque USP no âmbito das Ciências Humanas e melhor tese pela Associação Brasileira de Ciência Política. Em 2021, após adaptações na estrutura e na linguagem, com vistas a atingir a comunidade leitora não especializada, o trabalho foi publicado pela editora Todavia.

Menos Marx mais MisesA obra está organizada em introdução, três capítulos centrais, estes divididos em subcapítulos de número e extensão variável, e considerações finais. Nuclearmente no livro é o argumento de que a chamada “nova direita” brasileira constitui “contra-públicos” que se organizaram fora das estruturas tradicionais de poder; se afastariam da “velha direita” por serem críticos e não mostrarem-se tributários nem devedores da ditadura-civil militar; e resultarem de acomodações entre o ideário “ultraliberal”, no âmbito da economia, com perspectivas “conservadoras”, no campo das relações sociais, algo que o debate político corrente na mídia e imprensa tem tratado, por vezes, de maneira simplista e inadequada sob a expressão “pauta de costumes”. Leia Mais

Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BellaThe Intercept
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept

Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.

Os militares e a crise brasileiraSe o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais

Ars. São Paulo, v.20, n.45, 2022.

Especial Modernidade Brasileira

ARTIGOS

CHAMADA ABERTA | MODERNIDADE BRASILEIRA

PUBLICADO: 2022-08-31

Iconografia e cultura material da morte no Mundo Antigo | Revista M. | 2022

Morte apos a morte na mitologia grega Imagem Super Interessante
Morte após a morte na mitologia grega | Imagem: Super Interessante

O DOSSIÊ Iconografia e cultura material da morte no Mundo Antigo é composto por doze artigos que versam sobre diferentes abordagens teóricometodológicas das culturas visual e material da morte nos mundos egípcio, persa, grego, romano, céltico e viking. Trata-se de um dossiê multilíngue, com contribuições em inglês e francês, além do idioma nacional, para o qual contribuem quatorze autores, entre os quais, somando-se aos pesquisadores brasileiros, aqueles ligados nomeadamente a instituições britânicas, gregas e francesas.

Os três primeiros textos abordam o Oriente Antigo. Dois artigos sobre o mundo egípcio trazem contribuições significativas sobre a iconografia funerária, refletindo sobre as interações das imagens com o mundo dos vivos e suas funções em relação ao mundo dos mortos. No artigo Caminhando com Amenemhet em seu funeral: afetando e sendo afetado na Tumba Tebana 123, José Roberto Pellini interpreta as cenas nas paredes das tumbas faraônicas enquanto elementos discursivos com funções que se completam por meio das interações com os vivos. Dessa forma, as imagens criam e afetam o público que frequenta o ambiente funerário, provocando ações e ativando seus significados para os mortos. A interação entre o mundo dos vivos e o dos mortos se dá por meio do mundo visual. Leia Mais

Loas que carpem: a morte na literatura de cordel | Marinalva Vilar de Lima

Morte do Padre Cicero Imagem Tribuna do Sertao
Morte do Padre Cícero | Imagem: Tribuna do Sertão

O tema da morte, do morrer e dos mortos vem sendo apresentado em muitos suportes da cultura material, o que demonstra a multiplicidade e complexidade da experiência da (in)finitude humana nos artefatos culturais. Quando direcionamos a atenção para a literatura, muito tem se produzido nos diferentes gêneros. No caso específico da literatura de cordel, nos perguntamos como a morte, o morrer e os mortos são representados e versados? É sobre isso que esse texto irá discorrer a partir do livro aqui resenhado.

O trabalho contém 297 páginas, nas quais são apresentados os resultados da pesquisa de doutoramento em História, desenvolvida por mais de quatro anos, ao longo dos quais a autora realizou diversas viagens entre Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo. A tese foi defendida no ano de 2003 e o livro publicado dezessete anos depois, o que permitiu uma adaptação e revisão do trabalho inicial. No que concerne à temática da morte, do morrer e dos mortos, a partir da literatura de cordel, é um trabalho inédito, talvez a primeira tese de História sobre a temática no Brasil. Leia Mais

M. Rio de Janeiro, v.7, n.14, 2022.

M.

Dossiê 14: Iconografia e cultura material da morte no Mundo Antigo

Editorial

Dossiê

Resenha

Publicado: 2022-07-30

História e historiografia das ciências | Revista de Teoria da História | 2022

Helene Metzger Imagem JWA
Hélène Metzger  Imagem: JWA

A história da História das Ciências pode ser contada através dos diferentes compromissos intelectuais e políticos que reafirmaram ou denunciaram as marcas de seu lugar de nascimento histórico na modernidade. Como narrativa dos progressos teóricos e técnicos, a história das ciências foi integrada à pedagogia do “espírito” e chamada, nos séculos XVIII e XIX, a testemunhar a perfectibilidade progressiva da razão. Na primeira metade do século passado, filósofos e cientistas como Gaston Bachelard e Paul Langevin viram na institucionalização do ensino de História das Ciências nas escolas e universidades um elemento da mais viva importância para a construção de uma verdadeira “cultura científica”. A ideia pode parecer um tanto empoeirada, justamente por seus ecos iluministas, mas, nos últimos dois anos, o encontro de duas crises, a crise sanitária, provocada pela pandemia, e a chamada crise de confiança na ciência (ou de autoridade da ciência), nos fez pensar no que ainda haveria de atual naquelas reflexões feitas há quase um século sobre o ensino de história das ciências, e, de modo mais amplo, sobre seu papel na cultura.

Uma situação inquietante se colocou para a história e para os historiadores. De certa forma, ela já havia sido imaginada por aquele que radicalizou, pela história, a aposta filosófica da modernidade. Pois enquanto Kant perguntava sobre as condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro, reconhecendo de partida o valor superior da verdade científica sobre outros valores, Nietzsche questionava: “Por que a verdade?”. Por que nossas sociedades fizeram a opção pela verdade, e não pela ilusão? Por que escolhemos abandonar nossas convicções íntimas, aquilo que percebemos de modo mais imediato e que desde cedo determina nossa experiência em nome de uma forma de apreensão do mundo cujos mecanismos são conhecidos apenas por poucos iniciados e que frequentemente contradiz tudo aquilo que sempre achamos saber? Por que, em vez de destruirmos as nossas ilusões sobre o mundo, não fazemos a escolha por aquilo que nos conforta e reafirma, a experiência imediata, a autoridade ou a tradição? Enfim, por que não a mentira? Talvez esteja justamente aí, mas pelo avesso, a pergunta que nós, historiadores, podemos fazer agora: como foi possível o mundo atual, quer dizer, o que há ao mesmo tempo de específico e de histórico na ascensão contemporânea desses negacionismos científicos e do que parece ser uma nova forma de relação positiva com a mentira? E qual papel a história das ciências pode assumir no enfrentamento dessa situação? Leia Mais

Revista de Teoria da História. Goiânia, v.25, n.1, 2022.

revista de teoria da historia

História e historiografia das ciências

ARTIGOS DE DOSSIÊ

ENSAIO

TRADUÇÃO

PUBLICADO: 2022-07-29

Cuadernos de Historia del Arte. Mendoza, n.38, 2022.

Dossier: Arte, Ciencia y Tecnología en la Argentina y América: Perspectivas situadas

Páginas Preliminares

Editorial

Dossier

Cuadernos de Historia del Arte. Mendoza, n.37, 2021.

Artículos

Publicado: 30-11-2021

Páginas Preliminares

Editorial

Artículos

Publicado: 28-07-2022

Revueltas. Santiago, n.6, 2022.

Revueltas. Revista Chilena de Historia Social Popular

Nos complace compartir con nuestras/os lectoras/os el número 6 de Revueltas. Revista Chilena de Historia Social Popular editada por el Núcleo de Historia Social Popular

Artículos

Reflexiones

Reseñas

Publicado: 2022-07-28

 

BNCC do Ensino Médio para professores de História

Vladimir Lenin Imagem Esquerda Online
Vladimir Lenin | Imagem: Esquerda Online

Colegas, bem-vindos!

Este minicurso é destinado aos professores da Educação Básica que atuam no ensino de História, em especial aqueles que no momento compõem o corpo discente do Mestrado Profissional em Ensino de História na UFS. O foco consiste em localizar a construção da Base Nacional Curricular Comum, no que tange ao componente História, dentro de um cenário internacional de recomposição disciplinar.

Pretendo, ainda, discutir a natureza e função da BNCC como norma pública e, principalmente, discutir formas de interpretá-la de modo a legitimar projetos alternativos de ensino.

O minicurso é realizado a partir de 08 horas síncronas, nos dias 30/07 (tópicos 1, 2 e 3)  e 06/08 (tópicos 4 e 5), e atividades assíncronas (12 horas) realizadas entre estas datas. A estratégia é ler e interpretar sistematicamente textos da BNCC e estimular a criação de argumentos que legitimem os projetos alternativos de ensino pensados pelos alunos, a partir da ementa que se segue.


1. A BNCC é um exemplar das “Guerras de História” em torno de políticas públicas educacionais. A BNCC foi construída em ambiente de disputa ideológica e partidária em termos de escolha de teorias da aprendizagem, do currículo, da História. A versão final (a terceira) foi homologada na vigência do golpe liderado por Michel Temer, cujo exemplo notório é a reforma do Ensino Médio efetuada por medida provisória. A derrota da oposição ao golpe e a vitória dos conservadores para a presidência da República praticamente anularam os questionamentos à BNCC, que passou a formatar a estrutura, os fins e o conteúdo das bases curriculares estaduais. O que você sabe a respeito dos projetos BNCC que fracassaram entre 2015 e 2017?

SOBRE A MAIS RECENTE BNCC

[…] Em julho de 2015, no Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em Florianópolis, a comunidade de historiadores foi impactada pela notícia da confecção de duas bases nacionais curriculares, na sua parte comum. Uma era efetivada pelo MEC e, outra, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. Em ambas, atuavam filiados e militantes da Associação Nacional de História ANPUH-BR. A iniciativa da SAE, no que diz respeito à área de história, era coordenada pela professora Circe Bittencourt (PUC-SP). A BNCC do MEC estava sob a liderança da professora Claudia Ricci (UFMG). Havia, agora, dois partidos da história para o mesmo trabalho, envolvendo interesses de Minas Gerais e de São Paulo.

A inusitada notícia da participação de historiadores da ANPUH na construção de duas prescrições nacionais dentro do mesmo governo foi debatida em mesa redonda, intitulada “Ensino de História e currículos escolares: perspectivas e desafios contemporâneos”[1] e causou ainda mais perplexidade na plateia, porque a direção da ANPUH até então não havia se pronunciado sobre o tema. Nem mesmo a grande maioria dos membros do Grupo de Trabalho “Ensino de História” da ANPUH nacional, tinha clareza sobre a presença de historiadores nas iniciativas da SAE e do MEC.

Da primeira proposta de BNCC pouco se sabe, além do fato de ter gerado um documento, hoje, em mãos da própria Circe Bittencourt e do seu parceiro na empreitada, o professor Paulo Melo (UFPR), o partido que sucumbiu junto à extinção da SAE. Da proposta do MEC – do partido que ganhou “mas não levou” –, existem centenas de comentários formais, gerados em diversos fóruns de diferentes áreas da história e fora dela. É provável que, entre os mais densos inventários, estão o sitio do Laboratório do Ensino de História do Recôncavo da Bahia (https://www3.ufrb.edu.br/lehrb) e os portais da ANPUH (http://site.anpuh.org/) e da BNCC (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/) – que registrou passo a passo as operações do MEC, desde agosto de 2015[2]. Neste mês, em Belo Horizonte, foram discutidos, entre outros temas, os modelos produzidos por centenas de propostas curriculares municipais e estaduais, sob a coordenação dos professores (Minas Gerais, 2015).

Minas, portanto, estava no comando da organização da BNCC não apenas para o componente história. Detinha os postos de Secretário de Educação Básica do MEC, professor Manuel Palacios e da Coordenadora dos trabalhos de redação da BNCC – professora Hilda Micarello. A equipe da área de história, como as demais, foi constituída por indicações do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Sob o critério de reunir professores de história e também gestores de secretarias estaduais e municipais da educação, foram convidados os docentes Tatiana Garíglio Clark Xavier (MG/Consed), Maria da Guia de Oliveira Medeiros (RN/Undime), Leila Soares de Souza Perussolo (RR/Undime), Marinelma Costa Meireles (MA/Consed), Rilma Suely de Souza Melo (PB/Undime), Reginaldo Gomes da Silva (AP/Consed) Antônio Daniel Marinho Ribeiro (AL/Consed). Quanto aos professores formadores, a própria Claudia Ricci (2015, p.289-90) detalha os procedimentos de escolha: [continua].

Texto para consulta

Sobre o componente curricular História na BNCC - Renato Janine Ribeiro


2. A BNCC do Ensino Médio é uma Portaria (n.1570, 21/12/2017/MEC). Como Portaria, ela é a tradução de normas hierarquicamente superiores – Constituição (1988), LDB (1996), DCN (2013), DHDN (2013) e de protocolos internacionais subscritos pelo Brasil (Agenda 2030/ONU). É necessário conhecer, então, os valores, princípios e direitos fundamentais desses fundamentos e modo como são expressos nos textos descritivos e tópicos. A BNCC incorpora literalmente a ideia de que o valor orienta a ação (p.8).  Quais são os valores/direitos da BNCC que estão insertos na legislação que a fundamenta?

[...] A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996)1, e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN)2.

Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares, a BNCC integra a política nacional da Educação Básica e vai contribuir para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal, referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação.

Nesse sentido, espera-se que a BNCC ajude a superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da educação. Assim, para além da garantia de acesso e permanência na escola, é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, tarefa para a qual a BNCC é instrumento fundamental. [...] (Brasil, sd. p.7-8).

Textos básicos

Constituição Federal de 1988

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Plano Nacional de Educação (HTML) PDF

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica

Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais

Base Nacional Curricular Comum


3. A BNCC do Ensino Médio é uma norma produzida no Estado democrático de direito? Considerando o contexto de produção (ambiente democrático), documentos educacionais apresentam imperfeições explícitas e implícitas, fruto da negociação e/ou do bom senso do legislador. A BNCC, contudo, defende a lógica ideia de que as proposições que veiculam conhecimentos, valores e habilidades sejam desdobradas no planejamento das três etapas da educação básica. Para bem cumprir esse objetivo, devemos conhecer as suas imperfeições: quais são as lacunas, ambiguidades e contradições insertas na BNCC do Ensino médio em seus textos descritivos?

LER COMO UM PROFISSIONAL DO DIREITO

Ler como um profissional historicista da História significa decodificar signos, cumprindo a meta protocolar mais requerida em seu trabalho nos últimos cento e quando  o seu objeto material são as fontes históricas escritas: conhecer “o que disse o autor” e conhecer o que “quis dizer o autor” (ou, numa acepção mais recente, “o que fez o autor” quando enunciou tal frase ou palavra”).

O nome comum para esses meio e fim é “interpretação”, significada como “entendimento” [1] e/ou “explicação” e/ou “tradução” [2] e/ou “reflexão” (sobre a pretensão de verdade e cientificidade).[3] As habilidades requeridas a essa tarefa são: identificar autoria, proveniência e datação cronológica; determinar linguisticamente e psicologicamente o sentido das palavras e das frases; atribuir valor ao escrito sob o ponto de vista da veracidade e da exatidão. O nome erudito para o domínio que elege esses meio e fim como objeto é “hermenêutica”.

Antes do século XIX, vigoravam “hermenêuticas” (assim, no plural) para a interpretação dos tipos legal, bíblico e filológico. Com o trabalho de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), esses domínios foram reunidos sob o título de uma hermenêutica geral cuja meta era compreender os discursos escritos por outrem, julgá-los corretamente e estabelecer a autenticidade dos textos. [3] Com Schleiermacher, abriu-se a estrada para a teoria geral da interpretação (dos textos, das coisas, do mundo e da vida).

No século XX, essa teoria geral foi recuperada por vários autores e aplicada a diferentes domínios acadêmicos, como a História, incluindo domínios a ela preexistentes, como o Direito. Assim, profissionais da História acolheram assertivas de Schleiermacher, admitindo, por exemplo, que o significado dos textos é objetivo (visto a olhos nus) e subjetivo (intuído a partir dos interesses de quem lê); o significado dos textos é linguístico (está nas letras e palavras) e é psicológico (está nas intenções do autor); o significado da parte do texto (palavra, por exemplo) depende do todo do texto (das outras palavras e frases que lhe seguem e lhe antecedem) e ambos os processos recebem o nome de círculo hermenêutico.

Consequentemente, para os historiadores, o ato de interpretar textos (e o passado é um texto construído a partir de fontes históricas) pôde envolver, no século XIX, a apreensão de “forças criadoras da história” (mecânicas, fisiológicas e psicológicas), “habilidades”, “sensibilidades”, “pendores” e “paixões” e deixar-se guiar pelas “ideias”, individualidades destacadas e valores (como a “beleza”, a “verdade” e a “justiça”). [4]

Os profissionais do direito também aplicaram assertivas e procedimentos de Schleiermacher e dos seus desenvolvedores. Mas o fizeram (e o fazem) com muito mais liberalidade. Isso ocorre por causa da natureza própria dos domínios da História e do Direito, expressa principalmente em termos de meios, fins e resultados do trabalho profissional. Profissionais da História, por exemplo, se propõem a interpretar as relações que as pessoas entretêm com o tempo, mediante a interpretação de testemunhos diretos ou indiretos, descrevendo atores, acontecimentos e processos e apontando, motivações, causas possíveis, prováveis ou certas.

As teses e narrativas que veiculam o trabalho do profissional da História têm o poder de orientar a vida dos seus leitores, no curto ou no longo prazo. Profissionais do Direito, contudo, não apenas orientam a ação individual do leitor. Não apenas dizem o que aconteceu com base na em um grupo limitado de fontes, deixando o leitor livre para corroborar ou contestar os meios que empregou na interpretação das fontes.  Eles definem trajetórias dos seus leitores/usuários/consumidores, sentenciando: “À luz do Direito, você fez isso e, provavelmente, será inocentado” ou “Se você agir assim, de agora em diante, à luz do Direito, você sofrerá as penas da lei.” Profissionais do direito, em síntese, decidem sobre o passado, o presente e o futuro com desdobramentos objetivos sobre o presente e o futuro de quem os provoca ou os contrata. Eles tem o poder de orientar positivamente (como o historiador), mas têm também o poder de interditar impositivamente a ação de indivíduos e de coletivos.

Além dessas diferenças, distinções significativas para esta aula podem ser observadas entre os próprios profissionais de História. Um profissional de História que atua no ensino superior, que interpreta certo passado, após ter concluído seu curso de doutorado, com o objetivo de planejar uma aula ou de publicar um artigo em periódico acadêmico, tem pouco a prestar contas à sua corporação. Seu compromisso metodológico (ético) principal é consigo mesmo. A máxima punição que resulta do seu trabalho é não ser lido ou bem-visto como docente. já que os dispositivos jurídicos que envolvem o seu trabalho são deliberadamente desconhecidos ou descumpridos no cotidiano (a exemplo das ementas de disciplina e das orientações de planejamento, ensino e avaliação contidas no Projeto Político Pedagógico do seu curso).

Um profissional de História que atua na educação básica, ao contrário, presta contas a si mesmo, ao coordenador pedagógico, aos pais ou responsáveis pelos alunos, aos alunos, à administração da Escola e, em sentido mais geral, ao patrão (o Estado ou a empresa) responsável por sua remuneração. Sua vida profissional está enredada em dispositivos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais dos quais destaco, aqui, os efetivamente cobrados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Curricular Comum.

Esse arrazoado me leva a afirmar que a hermenêutica ensinada pelo profissional de História do ensino superior é insuficiente à sobrevivência do professor de História da educação básica. Para interpretar e aplicar normas, profissionais da educação básica devem lançar mão de alguns princípios e estratégias da hermenêutica jurídica ou, como registrado no título, devem aprender a ler como um profissional do Direito. [Continua]


4. A BNCC do Ensino Médio apresenta as “aprendizagens essenciais” [“competências” e “habilidades”] que cada área do conhecimento deve prover. As “competências gerais da educação básica” são formalmente traduzidas [ou reafirmadas (p.471)] em “itinerários formativos” (dos quais não trataremos aqui) e “competências específicas” de área. As competências de área, por sua vez, traduzem e integram formalmente as [competências específicas] e de “componentes” curriculares ou “disciplinas” escolares. No nosso caso, a área “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas” integra História, Geografia, Sociologia e Filosofia. Considerando que a BNCC é norma para o planejamento das atividades de Ensino de História (enquanto ele ainda existir nas redes), questiono: quais finalidades a área deve cumprir em consonância com as finalidades gerais do Ensino Médio? Quais valores, conhecimentos e habilidades do componente/disciplina História estão presentes (implícita e explicitamente) na apresentação da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (BNCC/Tópico 5.4)?

Textos para consulta


5. A BNCC acolhe projetos alternativos de ensino, desde que você aprenda a interpretá-la. É contraproducente pedir a suspensão da vigência da BNCC ou gastar meses escrevendo sobre os seus defeitos. Se você tem um projeto alternativo de ensino e quer vê-lo implantado legitimamente, aprenda com os profissionais do Direito os modos de interpretar as incoerências, lacunas e ambiguidades da BNCC. Que valores, princípios e direitos fundamentais da Constituição, abonados pela BNCC, legitimam a implantação do seu projeto? Como justificar uma ideia de desenvolvimento humano, de aprendizagem histórica ou de progressão histórica, empregando os próprios termos nos quais a BNCC se sustenta? Como justificar a introdução de novas finalidades e conteúdo para o ensino de História no Ensino Médio, apesar de a própria BNCC não contemplar explicitamente este componente curricular? Que “competências gerais”, “competências específicas de área”, “habilidades específicas de área” acolhem as expectativas de aprendizagem (ou objetivos de aprendizagem) que você estabeleceu alternativamente para o seu projeto de intervenção?

Textos para consulta

Revista de Arqueología Histórica Argentina y Latinoamericana. v.15, n.2, julio/diciembre, 2021.

 Portada e índice

Editorial

Artículos

Comentarios

PUBLICADO: 2022-07-27

Caribe. São Luís, v.21, n.41, 2020.

Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v.21, n.41, jul./dez. 2020.

DOSSIÊ: Ideias de liberdade

Editorial

Artigos

Publicado: 2022-07-26

Albuquerque. Aquidauana, v.14, n.27, 2022.

Resenha Capa de Revista 21

Dossiê: Outras Histórias Do Design No Brasil: Perspectivas Contra Hegemônicas

Capa: Roger Luiz Pereira da Silva. Imagem : “A crise é dos ricos e o pobre é q se fode” (2020), de Alexia Ferreira  @colagemnegra

Editores de albuquerque: revista de história

Dossiê

Artigos

Resenhas

Pareceristas desta edição

Publicado: 2022-07-13

Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.4, n.8, 2022.

Artigo Livre

Crítica Historiográfica

Esta edição está em processo de reorganização.

Publicado: 2021-06-29

Os teóricos da História têm uma teoria da história? Reflexões sobre uma não-disciplina | Zoltán Boldizsár Simon

Zoltan Boldizsar Simon Imagem UCL
Zoltán Boldizsár Simon | Imagem: UCL

“Os teóricos da História têm uma Teoria da História?” Esse título é intrigante, paradoxal e, ao mesmo tempo, autoexplicável. Sua resposta é fornecida ensaisticamente por Zoltán Boldizsár Simon, historiador nascido na Hungria e atuante na Universidade de Bielefeld (Alemanha). O texto foi publicado, inicialmente, na revista História da Historiografia, no mesmo ano, tornado livro pela Editora Milfontes. Com as apresentações de Bruno César Nascimento, editor, e de Luisa Rauter Pereira, coordenadora da “Coleção Fronteiras da Teoria”, percebemos que as dimensões, o caráter sintético da escritura e o contexto de lançamento estão plenamente adequados. Nascimento e Pereira querem textos inéditos em língua portuguesa, manuseáveis em salas universitárias. Textos que mobilizem a reflexão acerca do valor de determinados domínios acadêmicos sobre si mesmos e como instrumentos de interpretação de desafios globais impostos ao tempo presente – a exemplo dos conflitos por identidade étnica e de gênero e as ameaças do aquecimento global.

Considerando a interrogação quase kamikaze, o ensaio foi excelente escolha para a abertura e lançamento da referida coleção. Entretanto, considerando a repercussão por escrito em mais de 200 revistas brasileiras de História e, até no Google Acadêmico, a resposta dos nacionais à provocação do professor húngaro praticamente inexiste, apesar dos 300 downloads do artigo na História da Historiografia. Ainda assim, o autor conseguiu a atenção de Arthur Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que mostrou desconforto com a definição simoniana de Teoria da história como aquilo “que hoje fazemos dela”: se Teoria da História é “o que dela fazemos’, continua Ávila, “qual seria o sentido em se chegar a uma definição universalmente válida dela? […] Finalmente, para nós, que estamos no Sul global, este gesto mesmo que importante e defensável, não repetiria aquela velha divisão do trabalho intelectual que coloca o Norte como produtor de teorias, seja sobre o que for, e o meridião do mundo como mero aplicador ou reprodutor de teorias […] ?” (p.9). Tradutor e apresentador do ensaio, Ávila, porém, faz uma ponderação. Afirma que a maior contribuição da obra estaria no próprio questionamento e não, necessariamente, nas respostas ao problema. Penso que o contrário pode também ser verdadeiro, se levarmos em conta o contexto de produção da obra e o que ela oferece, implicitamente, à formação dos graduandos em História no Brasil. Leia Mais

Em Busca da Liberdade: Memória do Movimento Feminino pela Anistia em Sergipe (1975-1979) | Maria Aline Matos de Oliveira

Maria Aline com os seus pais Foto Davi VillaSegrase

Maria Aline Matos de Oliveira com os seus pais | Foto: Davi Villa / Segrase

“… por cima do medo, a coragem”.

Zelita Correia (In: OLIVEIRA, 2021: p. 210).

A pesquisadora e professora Maria Aline Matos de Oliveira oferece, ao público leitor, com a transformação da dissertação de mestrado em História em livro, um dos capítulos mais importantes da resistência democrática contra o autoritarismo da ditadura empresarial-militar no Brasil (1964-1985), ao reconstruir o protagonismo das mulheres na organização a trajetória da luta pela anistia em Sergipe, que galvanizou amplos setores da sociedade civil.

Como produto do processo de consolidação do curso de pós-graduação em História, da Universidade Federal de Sergipe, sua pesquisa busca reconstruir, a partir da metodologia da história oral, histórias e versões de segmentos populacionais antes silenciados pela historiografia brasileira, como é caso da luta das mulheres na resistência às ditaduras no Cone Sul. Além das entrevistas realizadas, a pesquisadora utilizou fontes jornalísticas, relatos memorialistas e a documentação dos acervos do Memorial da Anistia, do Brasil Nunca Mais e da Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa de Araújo” (Sergipe). Leia Mais

A História Medieval na formação docente e na educação básica: experiências, propostas e reflexões atuais | Ponta de Lança | 2022

Detalhe de capa de A Historia Medieval entre a formacao de professores e o ensino na Educacao Basica no seculo XXI Imagem Luciano Jose Viana 2021
Detalhe de capa de A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI | Imagem (Luciano José Viana, 2021)

Nas últimas décadas, a História Medieval como disciplina nos cursos de história nas universidades brasileiras consolidou-se como uma área com amplas atividades, ou seja, apresentando-se não somente como disciplina (BOVO, 2018), mas também sendo tema de congressos, seminários, grupos de estudo e pesquisa, além de ser tema de diversas revistas acadêmicas que trazem publicações especializadas sobre o período. Em termos de formação curricular e de materiais didáticos, o período medieval também tem sido intensamente discutido e trabalhado, o que demonstra a preocupação por parte dos especialistas desta área e dos docentes que atuam com esta disciplina em cursos universitários em problematizar tais aspectos (SILVA, 2011; PEREIRA, 2017; LIMA, 2019).

Além disso, a História Medieval também tem sido objeto de publicações recentes que trazem diversas propostas na abordagem deste período, não somente na formação de professores, mas também na educação básica (VIANNA, 2021), assim como a interação da mesma com propostas historiográficas recentes que incidem sobre o ensino de História na atualidade (BUENO; BIRRO, BOY, 2020). De todas as formas, esta disciplina se apresenta nos currículos dos cursos de história das universidades brasileiras, onde docentes problematizam diversas perspectivas advindas das práticas de ensino e pesquisa referentes a este período (MIATELLO, 2017). Leia Mais

Ponta de Lança. São Cristóvão, v.16, n.30, 2022.

PONTA DE LANCA1

Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura

Dossiê Temático

Artigos – Fluxo Contínuo

Resenhas

Publicado: 2022-07-25

A metodologia da Interpretação constitucional tradicional (Excertos) | Luís Roberto Barroso

Luis Roberto Barroso Imagem JP
Luís Roberto Barroso | Imagem: JP

Um típico operador jurídico formado na tradição romano-germânica, como é o caso brasileiro, diante de um problema que lhe caiba resolver, adotará uma linha de raciocínio semelhante à que se descreve a seguir. Após examinar a situação de fato que lhe foi trazida, irá identificar no ordenamento positivo a norma que deverá reger aquela hipótese. Em seguida, procederá a um tipo de raciocínio lógico, de natureza silogística, no qual a norma será a premissa maior, os fatos serão a premissa menor e a conclusão será a consequência do enquadramento dos fatos à norma. Esse método tradicional de aplicação do Direito, pelo qual se realiza o enquadramento dos fatos na previsão da norma e pronuncia-se uma conclusão, denomina-se método subsuntivo.

Esse modo de raciocínio jurídico utiliza, como premissa de seu desenvolvimento, um tipo de norma jurídica que se identifica como regra. Regras são normas que especificam a conduta a ser seguida por seus destinatários. O papel do intérprete, ao aplicá-las, envolve uma operação relativamente simples de verificação da ocorrência do fato constante do seu relato e de declaração da consequência jurídica correspondente. É reservado ao intérprete um papel estritamente técnico de revelação do sentido de um Direito integralmente contido na norma legislada. […]

Princípios instrumentais de interpretação constitucional

Em razão das especificidades das normas constitucionais, desenvolveram-se ou sistematizaram-se categorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ou princípios instrumentais de interpretação constitucional. […] Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta. Nenhum deles se encontra expresso no texto da Constituição, mas são reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência. A seguir, breve comentário objetivo acerca de cada um deles 57.

1. Princípio da supremacia da Constituição

O poder constituinte cria ou refunda o Estado, por meio de uma Constituição. Com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em supremacia constitucional. Do ponto de vista jurídico, este é o principal traço distintivo da Constituição: sua posição hierárquica superior às demais normas do sistema. A Constituição é dotada de supremacia e prevalece sobre o processo político majoritário – isto é, sobre a vontade do poder constituído e sobre as leis em geral – porque fruto de uma manifestação especial da vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional 58. […]

Como consequência do princípio da supremacia constitucional, nenhuma lei ou ato normativo – a rigor, nenhum ato jurídico – poderá subsistir validamente ser for incompatível com a Constituição. Para assegurar esta superioridade, a ordem jurídica concebeu um conjunto de mecanismos destinados a invalidar e/ou paralisar a eficácia dos atos que contravenham a Constituição, conhecidos como controle de constitucionalidade. Assim, associado à superlegalidade da Carta Constitucional, existe um sistema de fiscalização judicial da validade das leis e atos normativos em geral. No Brasil, esse controle é desempenhado por meio de dois ritos diversos: (i) a via incidental, pela qual a inconstitucionalidade de uma norma pode ser suscitada em qualquer processo judicial, perante qualquer juízo ou tribunal, cabendo ao órgão judicial deixar de aplicar a norma indigitada ao caso concreto, se considerar fundada a arguição; e (ii) a via principal, pela qual algumas pessoas, órgãos ou entidades, constantes do art. 103 da Constituição Federal, podem propor uma ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, na qual se discutirá a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, em tese, de determinada lei ou ato normativo.

2. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos

As leis e atos normativos, como os atos do Poder Público em geral, desfrutam de presunção de validade. Isso porque, idealmente, sua atuação se funda na legitimidade democrática dos agentes públicos eleitos, no dever de promoção do interesse público e no respeito aos princípios constitucionais, inclusive e notadamente os que regem a Administração Pública (art. 37) 59.

Pois bem. Em um Estado constitucional de direito, os três Poderes interpretam a Constituição 60. A presunção de constitucionalidade, portanto, é uma decorrência do princípio da separação de Poderes e funciona como fator de autolimitação da atuação judicial. Em razão disso, não devem juízes e tribunais, como regra, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo quando: (i) a inconstitucionalidade não for patente e inequívoca, existindo tese jurídica razoável para preservação da norma61; (ii) seja possível decidir a questão por outro fundamento, evitando–se a invalidação de ato de outro Poder; e (iii) existir interpretação alternativa possível, que permita afirmar a compatibilidade da norma com a Constituição.

3. Princípio da interpretação conforme a Constituição

A interpretação conforme a Constituição, categoria desenvolvida amplamente pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Destina-se ela à preservação da validade de determinadas normas, suspeitas de inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentido às normas infraconstitucionais, da forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais. Como se depreende da assertiva precedente, o princípio abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de constitucionalidade.

Como técnica de interpretação, o princípio impõe a juízes e tribunais que interpretem a legislação ordinária de modo a realizar, da maneira mais adequada, os valores e fins constitucionais. Vale dizer: entre interpretações possíveis, deve-se escolher a que tem mais afinidade com a Constituição.

Como mecanismo de controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição permite que o intérprete, sobretudo o tribunal constitucional, preserve a validade de uma lei que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional. Nessa hipótese, o tribunal, simultaneamente, infirma uma das interpretações possíveis, declarando-a inconstitucional, e afirma outra, que compatibiliza a norma com a Constituição. Trata-se de uma atuação “corretiva”, que importa na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto 62 e tem por limite as possibilidades semânticas do texto.

4. Princípio da unidade da Constituição

A Constituição é o documento que dá unidade ao sistema jurídico, pela irradiação de seus princípios aos diferentes domínios infraconstitucionais. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas jurídicas. A superior hierarquia das normas constitucionais impõe-se na determinação de sentido de todas as normas do sistema.

O problema maior associado ao princípio da unidade não diz respeito aos conflitos que surgem entre as normas infraconstitucionais ou entre estas e a Constituição, mas sim às tensões que se estabelecem dentro da própria Constituição. De fato, a Constituição é um documento dialético, fruto do debate e da composição política. Como consequência, abriga no seu corpo valores e interesses contrapostos. Nesses casos, como intuitivo, a solução das colisões entre normas não pode se beneficiar, de maneira significativa, dos critérios tradicionais 63.

Portanto, na harmonização de sentido entre normas contrapostas, o intérprete deverá promover a concordância prática 64 entre os bens jurídicos tutelados, preservando o máximo possível de cada um. Em algumas situações, precisará recorrer a categorias como a teoria dos limites imanentes 65: os direitos de uns têm de ser compatíveis com os direitos de outros. E em muitas situações, inexoravelmente, terá de fazer ponderações, com concessões recíprocas e escolhas.

5. Princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade

[…] Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.

Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (i) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); (ii) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); (iii) os custos superem os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, fazendo assim a justiça do caso concreto.

6. Princípio da efetividade

[…] Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social 67. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador. (p.239-243).

Notas

  1. Esta foi a ordenação da matéria proposta em nosso Interpretação e aplicação da Constituição, cuja 1ª edição é de 1995. Autores alemães e portugueses de grande expressão adotam sistematizações diferentes, mas o elenco que será apresentado parece o de maior utilidade, dentro de uma perspectiva brasileira de concretização da Constituição.
  2. V. ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 371 e ss.
  3. Trata-se, naturalmente, de presunção iuris tantum , que admite prova em contrário. O ônus de tal demonstração, no entanto, recai sobre quem alega a invalidade ou, no caso, a inconstitucionalidade.
  4. De fato, a atividade legislativa destina-se, em última análise, a assegurar os valores e a promover os fins constitucionais. A atividade administrativa, por sua vez, tanto normativa quanto concretizadora, igualmente se subordina à Constituição e destina-se a efetivá-la. O Poder Judiciário, portanto, não é o único intérprete da Constituição, embora o sistema lhe reserve a primazia de dar a palavra final. Por isso mesmo, deve ter uma atitude de deferência para com a interpretação levada a efeito pelos outros dois ramos do governo, em nome da independência e harmonia dos Poderes.
  5. Consoante jurisprudência firme do STF, a inconstitucionalidade nunca se presume. A violação há de ser manifesta (RTJ 66:631, Rp 881/MG, rel. Min. Djaci Falcão), militando a dúvida em favor da validade da lei.
  6. Figura próxima, mas não equivalente, é a da interpretação conforme a Constituição para declarar que uma norma válida e em vigor não incide sobre determinada situação de fato.
  7. Em primeiro lugar, e acima de tudo, porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais, embora se possa cogitar de uma certa hierarquia axiológica. Não é possível afirmar a inconstitucionalidade de disposições fruto da mesma vontade constituinte originária. Por essa razão, uma norma constitucional não pode ser inconstitucional em face de outra. A matéria é pacífica entre nós. V. STF, DJU, 10 maio 1996, ADIn 815-3/DF, rel. Min. Moreira Alves, e, na mesma linha, STF, DJU, 9 fev. 2006, ADInMC 3.300/DF, rel. Min. Celso de Mello. O critério cronológico é de valia apenas parcial. É que, naturalmente, as normas integrantes da Constituição originária são todas promulgadas na mesma data. Logo, em relação a elas, o parâmetro temporal é ineficaz. Restam apenas as hipóteses em que emendas constitucionais revoguem dispositivos suscetíveis de serem reformados, por não estarem protegidos por cláusula pétrea. Também o critério da especialização será insuficiente para resolver a maior parte dos conflitos porque, de ordinário, normas constitucionais contêm proposições gerais e não regras específicas.
  1. Sobre concordância prática, v. HESSE, Konrad. La interpretación constitucional. In: Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p. 48; v. tb. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 88.
  2. Sobre a teoria dos direitos imanentes, na literatura nacional, v. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 182 e ss.; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais, 2005. p. 168 e ss. Mimeografado.
  1. A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. De parte isto, deve-se registrar que o princípio, nos Estados Unidos, foi antes de tudo um instrumento de direito constitucional, funcionando como um critério de aferição da constitucionalidade de determinadas leis. Já na Alemanha, o conceito evoluiu a partir do direito administrativo, como mecanismo de controle dos atos do Executivo. Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis. No sentido do texto, v., por todos, OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 81 e ss. Em sentido diverso, v. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, Cidade, v. 91, n. 798, abr. 2002.
  1. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. A metodologia da Interpretação constitucional tradicional (Excertos). In: CANOTILHO, J. J.; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira (Coord). Comentários à Constituição do Brasil. 2ed. São Paulo: Saraiva; Almedina/ IDP, sd. p.239-243.

Memórias ancoradas em corpos negros | Maria Antonieta Antonacci

Espetaculo Imalẹ Inu Iyagba mergulha na ancestralidade de um universo experimentado pela artista Foto Thais Andressa G1
Espetáculo “Imalẹ̀ Inú Ìyágbà” mergulha na ancestralidade de um universo experimentado pela artista | Foto: Thais Andressa / G1

Maria Antonieta Antonacci possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além de ser mestra em História Econômica pela Universidade de São Paulo e pósdoutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), da França. Atualmente é professora associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo demonstrando maestria em História da África, Culturas Africanas, Afro-Brasileiras e também em História do Brasil.

É imprescindível citar que em 2003, quando promulgada a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas do Brasil, Antonacci posicionou-se veementemente contra o ensino, no curso de História da PUC-SP, de uma História Africana contada sob a ótica de historiadores europeus. A partir dessa justa militância, a professora intensifica seus estudos acerca da temática supracitada, dando vida a sua obra mais famosa, o livro Memórias Ancoradas em Corpos Negros. Leia Mais

Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais | Das Amazônias | 2022

Detalhe de cartaza do X Ser Negra Semana de Reflexoes sobre Negritude Genero e Raca dos Institutos Federais
Detalhe de cartaza do “X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais”

Primeiramente, é um prazer sermos responsáveis pela apresentação desse dossiê. Mas o fundamental nesta apresentação são as pesquisas para as quais ela pretende abrir caminhos. É interessante que neste conjunto de pesquisas constatamos a relação entre cultura, conhecimento, poder e a centralidade, em especial, da água e dos diferentes papéis das assimetrias sociais, de modo a revelar importantes compromissos sociais.

Esse dossiê é composto a partir de trabalhos inicialmente apresentados no X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais, realizado entre 23 e 26 de novembro de 2021, um Congresso altamente científico e democrático que permite a interação entre os mais diferentes sujeitos sociais em um espaço de reciprocidades múltiplas. Foi organizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) e totalmente online devido aos efeitos da pandemia de Covid-19. Leia Mais

Das Amazônias. Rio Branco, v.5, n.01, 2022.

Das Amazonias

Dossiê: Semana de reflexões sobre negritude, gênero e raça dos institutos federais (SERNEGRA)

Capa: David de Lima Damasceno

Editorial

Fluxo contínuo

Resenha

Publicado: 2022-07-25

Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v.21, n.40, jan./jun. 2020.

DOSSIÊ: A vida dos textos: diálogo, interação e inter-relação

Editorial

Artigos

Publicado: 2022-07-26

Escuela de Historia Virtual. Córdoba, n. 21 (2022)

Presentación

Dossier: Los nuevos actores sociales en América Latina

Artículos

Resúmenes de Tesis de Grado y Posgrado

Reseñas

DOI: https://doi.org/10.31049/1853.7049.v.n21

Publicado: 2022-07-25

Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.22, n.1, 2022.

Alétheia. Jaguarão, v.1 n.2, 2021.

IV Ciclo do GTHA-RS 2021

Dossiê dos textos do IV Ciclo do GTHA-RS 2021.

Artigos

Publicado: 2022-07-19

Ler como profissional do Direito

Ruy Barbosa BNCC2

Ler como um profissional historicista da História significa decodificar signos, cumprindo a meta protocolar mais requerida em seu trabalho nos últimos cento e quando  o seu objeto material são as fontes históricas escritas: conhecer “o que disse o autor” e conhecer o que “quis dizer o autor” (ou, numa acepção mais recente, “o que fez o autor” quando enunciou tal frase ou palavra”).

O nome comum para esses meio e fim é “interpretação”, significada como “entendimento” [1] e/ou “explicação” e/ou “tradução” [2] e/ou “reflexão” (sobre a pretensão de verdade e cientificidade).[3] As habilidades requeridas a essa tarefa são: identificar autoria, proveniência e datação cronológica; determinar linguisticamente e psicologicamente o sentido das palavras e das frases; atribuir valor ao escrito sob o ponto de vista da veracidade e da exatidão. O nome erudito para o domínio que elege esses meio e fim como objeto é “hermenêutica”.

Antes do século XIX, vigoravam “hermenêuticas” (assim, no plural) para a interpretação dos tipos legal, bíblico e filológico. Com o trabalho de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), esses domínios foram reunidos sob o título de uma hermenêutica geral cuja meta era compreender os discursos escritos por outrem, julgá-los corretamente e estabelecer a autenticidade dos textos. [3] Com Schleiermacher, abriu-se a estrada para a teoria geral da interpretação (dos textos, das coisas, do mundo e da vida).

No século XX, essa teoria geral foi recuperada por vários autores e aplicada a diferentes domínios acadêmicos, como a História, incluindo domínios a ela preexistentes, como o Direito. Assim, profissionais da História acolheram assertivas de Schleiermacher, admitindo, por exemplo, que o significado dos textos é objetivo (visto a olhos nus) e subjetivo (intuído a partir dos interesses de quem lê); o significado dos textos é linguístico (está nas letras e palavras) e é psicológico (está nas intenções do autor); o significado da parte do texto (palavra, por exemplo) depende do todo do texto (das outras palavras e frases que lhe seguem e lhe antecedem) e ambos os processos recebem o nome de círculo hermenêutico.

Consequentemente, para os historiadores, o ato de interpretar textos (e o passado é um texto construído a partir de fontes históricas) pôde envolver, no século XIX, a apreensão de “forças criadoras da história” (mecânicas, fisiológicas e psicológicas), “habilidades”, “sensibilidades”, “pendores” e “paixões” e deixar-se guiar pelas “ideias”, individualidades destacadas e valores (como a “beleza”, a “verdade” e a “justiça”). [4]

Os profissionais do direito também aplicaram assertivas e procedimentos de Schleiermacher e dos seus desenvolvedores. Mas o fizeram (e o fazem) com muito mais liberalidade. Isso ocorre por causa da natureza própria dos domínios da História e do Direito, expressa principalmente em termos de meios, fins e resultados do trabalho profissional. Profissionais da História, por exemplo, se propõem a interpretar as relações que as pessoas entretêm com o tempo, mediante a interpretação de testemunhos diretos ou indiretos, descrevendo atores, acontecimentos e processos e apontando, motivações, causas possíveis, prováveis ou certas.

As teses e narrativas que veiculam o trabalho do profissional da História têm o poder de orientar a vida dos seus leitores, no curto ou no longo prazo. Profissionais do Direito, contudo, não apenas orientam a ação individual do leitor. Não apenas dizem o que aconteceu com base na em um grupo limitado de fontes, deixando o leitor livre para corroborar ou contestar os meios que empregou na interpretação das fontes.  Eles definem trajetórias dos seus leitores/usuários/consumidores, sentenciando: “À luz do Direito, você fez isso e, provavelmente, será inocentado” ou “Se você agir assim, de agora em diante, à luz do Direito, você sofrerá as penas da lei.” Profissionais do direito, em síntese, decidem sobre o passado, o presente e o futuro com desdobramentos objetivos sobre o presente e o futuro de quem os provoca ou os contrata. Eles tem o poder de orientar positivamente (como o historiador), mas têm também o poder de interditar impositivamente a ação de indivíduos e de coletivos.

Além dessas diferenças, distinções significativas para esta aula podem ser observadas entre os próprios profissionais de História. Um profissional de História que atua no ensino superior, que interpreta certo passado, após ter concluído seu curso de doutorado, com o objetivo de planejar uma aula ou de publicar um artigo em periódico acadêmico, tem pouco a prestar contas à sua corporação. Seu compromisso metodológico (ético) principal é consigo mesmo. A máxima punição que resulta do seu trabalho é não ser lido ou bem-visto como docente. já que os dispositivos jurídicos que envolvem o seu trabalho são deliberadamente desconhecidos ou descumpridos no cotidiano (a exemplo das ementas de disciplina e das orientações de planejamento, ensino e avaliação contidas no Projeto Político Pedagógico do seu curso).

Um profissional de História que atua na educação básica, ao contrário, presta contas a si mesmo, ao coordenador pedagógico, aos pais ou responsáveis pelos alunos, aos alunos, à administração da Escola e, em sentido mais geral, ao patrão (o Estado ou a empresa) responsável por sua remuneração. Sua vida profissional está enredada em dispositivos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais dos quais destaco, aqui, os efetivamente cobrados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Curricular Comum.

Esse arrazoado me leva a afirmar que a hermenêutica ensinada pelo profissional de História do ensino superior é insuficiente à sobrevivência do professor de História da educação básica. Para interpretar e aplicar normas, profissionais da educação básica devem lançar mão de alguns princípios e estratégias da hermenêutica jurídica ou, como registrado no título, devem aprender a ler como um profissional do Direito.

Ao longo do curso, vamos conhecer


Rudimentos da hermenêutica jurídica a serviço do professor de história

Considere o fragmento abaixo e reflita: como você costuma ler este tipo de texto? Que classe de palavras grifa? Que conclusões extrai sobre a vontade do legislador?

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN). [5]
Esse primeiro parágrafo do documento deixa claro que BNCC é uma norma que cumpre direitos orientados por princípios (valores). Em geral, o professor consciente e engajado busca saber o significado desses três termos (norma, direito e valor). Da mesma forma, não raro, interpreta os termos literalmente, com o auxílio de um dicionário de sinônimos e de modo bastante restritivo: “Se está na norma, eu tenho que cumprir;” “Se não está na norma, mesmo com interesse em certo bem comum, eu não posso ensinar o que julgo melhor para a formação do meu aluno, sob o risco de ser penalizado pelo Estado”.

Principios e direitos fundamentais na Constituicao de 1988

Figura 1. Princípios e direitos fundamentais na Constituição de 1988.

Direitos deveres finis e principios da Educacao da Constituicao de 1988

Figura 2. Direitos deveres finis e princípios da Educação da Constituição de 1988.

Os profissionais do Direito diriam que esse professor efetua uma leitura gramatical, dogmática e restritiva da norma, ou seja, acredita que tudo o permitido e o interditado está comunicado naquelas palavras, que o permitido/interditado não muda e que, em situação controversa, o Estado ganhará a questão. No trabalho de interpretação da norma (que é também de crítica), o profissional do direito faz uso daquelas habilidades citadas acima, requeridas ao profissional da História: o exame da logicidade e da historicidade e do significado de palavras e sentenças, mediante emprego da comparação e da analogia. Como o historiador em relação ao autor, ele quer saber o que disse e o que quis dizer o legislador. Também como o historiador, ele não entende que as palavras e frases encerrem a verdade da mensagem.

Contudo, diferentemente do profissional da História, a decisão sobre o significado da mensagem não se encerra na leitura que ele acaba de fazer. O profissional do Direito sabe que a norma pode, em última instância (para o mau ou para o bem) resultar da razão e da sensibilidade de um juiz que, por sua vez, pode se fundamentar em decisões anteriores tomadas em juízo para casos semelhantes (jurisprudência); pode resultar da argumentação de um teórico reconhecido nos domínios do Direito  (doutrina) e, ainda, como expresso na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, pode se apoiar no estágio atual de determinado modo coletivo de agir [costume], pode resultar no emprego dos “princípios gerais de direito”, atendendo “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” [6]

O texto que se segue, escrito por Paulo Gustavo Gonet Branco, apresenta de modo didático as três maiores dificuldades de leitura e interpretação da Constituição de 1988, bem como os modos de superá-las, acompanhados de exemplos. Sugiro que leiam e tentem identificar as lacunas, ambiguidades e coerência apresentadas nos títulos, capítulos e seções relacionados à Educação nacional.

Bom trabalho!


INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO – NOÇÕES ELEMENTARES [Excertos]

Análise do programa normativo: inquietações técnicas para o intérprete

Paulo Gustavo Gonet Branco Imagem MigalhasAgoraRN
Paulo Gustavo Gonet Branco | Imagem: Migalhas/AgoraRN

Para que a norma possa incidir sobre um caso concreto é preciso definir o significado dos seus dizeres. No Direito Constitucional, essa tarefa também é levada a cabo com os recursos das regras tradicionais de interpretação.

Para a compreensão do texto normativo, faz -se uso da interpretação gramatical, buscando -se o sentido das palavras; da interpretação sistemática, visando à sua com preensão no contexto amplo do ordenamento constitucional; e da interpretação teleológica, com que se intenta desvendar o sentido do preceito, tomando em conta a sua finalidade determinante e os seus princípios de valor 132.

Cogita -se, ainda, analisar o processo da criação da norma, quando se investigam os antecedentes históricos, os trabalhos legislativos preparatórios que redundaram no dispositivo (interpretação histórica e/ou genética). Esse método tende, na generalidade dos casos, a oferecer relevância mais restrita, recomendando-se, em caso de divergência, a preferência pelo sentido que se possa extrair como objetivado no preceito. À parte essa ressalva não é dado hierarquizar os vários métodos 133.

Nenhum deles propicia um critério seguro para a fixação de algum exato sentido da norma constitucional. Nenhum deles isenta o intérprete de perplexidades. Na realidade, são frequentes os casos em que “a utilização sucessiva de todos os métodos” não redunda em um sentido unívoco 134. Os problemas envolvidos nesses métodos são expostos claramente por Hesse: “É frequente que o texto não seja inequívoco sobre o significado da palavra, com o que se põe o problema de como determinar este significado: se com o auxílio da linguagem usual, ou com o da linguagem jurídica, ou ainda segundo a função que o preceito assuma em cada caso. A ‘interpretação sistemática’ pode ser manipulada de diferentes modos, segundo se tenha em conta o lugar da lei em que se insere o preceito, ou se considere a sua conexão material. A “interpretação teleológica” é praticamente uma carta branca, já que, ao se dizer necessário desvendar o sentido de um preceito, não se responde a pergunta fundamental sobre como descobrir este sentido. Finalmente, tampouco é clara a relação dos distintos métodos entre si. Não se resolve qual daqueles se há de seguir em cada caso, ou a qual deve ser acordada preferência, sobretudo quando conduzem a resultados incoincidentes” 135.

As inquietações surgidas no domínio da interpretação constitucional ligam -se a dúvidas sobre a identificação da norma com o seu enunciado. Muitas vezes, essas perplexidades surgem porque o constituinte utiliza termos com mais de um significado, gerando o problema da ambiguidade. Um enunciado ambíguo enseja a que dele se extraia mais de uma norma, sem que se indique ao intérprete um parâmetro de escolha. A ambiguidade pode resultar da multiplicidade de sentidos da própria palavra (ambiguidade semântica) ou da incerteza de sentido resultante do contexto em que empregada (ambiguidade sintática)136.

Ambiguidades

A ambiguidade reside, muitas vezes, na vagueza do termo ou da expressão. A Constituição se vale de palavras e expressões que comportam inteligências variadas, mais ou menos amplas, que, por vezes, aludem a propriedades que se revelam em graus diferenciados. Assim, por exemplo, a Constituição veda as penas cruéis (art. 5º, XLVII), deixando ao intérprete o trabalho de compreender quando se pode caracterizar como cruel um castigo aplicado. O constituinte fala em devido processo legal, no art. 5º, LIV, expressão que dá ensejo a várias pretensões de sentido, inclusive permitindo que se fale em devido processo legal material, como sinônimo de exigência de razoabilidade/proporcionalidade nas ações dos poderes públicos. Atente -se, por igual, para o art. 12, § 4º, I, da CF, que enumera como causa de perda da nacionalidade brasileira a condenação por atividade nociva ao interesse nacional.

É ocioso enfatizar a amplitude de significados que a expressão realçada pode abrigar. A ambiguidade pode resultar da existência de dois significados para uma mesma expressão ou termo, um deles, técnico, e o outro, natural. Algumas palavras comuns, quando ingressam no ordenamento jurídico e, em especial, no constitucional, mantêm seu significado ordinário. Não raro, porém, assumem uma designação diferente da leiga ou do significado próprio de outro setor jurídico.

Por vezes, o constituinte, ainda, está criando uma realidade nova com a expressão de que se utiliza; em outros casos, recolhe e constitucionaliza uma noção já assentada na comunidade. Veja -se, por exemplo, o que acontece com a palavra “domicílio” e com a palavra “casa”. No art. 109, § 1º, a Constituição dispõe que as causas em que a União for parte serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. O art. 139, V, cogita da busca e apreensão em domicílio. No art. 5º, XI, o constituinte proclama o que a doutrina chama de princípio da inviolabilidade do domicílio, ao dispor que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Sabe -se que, no Direito Civil, domicílio e casa não são noções coincidentes, mas o constituinte as identifica, por exemplo, no Art. 139, V, ali aludindo a domicílio no sentido de prédio em que a pessoa possui residência. Em outro ponto, já utiliza o termo domicílio no seu sentido técnico jurídico, quando cuida de dispor sobre competência da Justiça Federal (art. 109, § 1º). Repare -se, também, que o constituinte usa a expressão casa não apenas para se referir ao lugar de residência da pessoa (art. 5º, XI) como também emprega o termo para designar os principais órgãos do Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. E mesmo a palavra casa, que, na linguagem leiga, designa o espaço físico em que alguém reside, é compreendida, tecnicamente, pelo Supremo Tribunal Federal, como a corresponder também ao escritório profissional, o lugar de trabalho, mesmo que nada tenha a ver com a residência da pessoa, em se tratando de aplicação do Art. 5º, XI, da CF 137.

Não há um critério absoluto e único para que se possa afirmar com certeza que um dado termo empregado pelo constituinte o foi em sentido leigo, técnico habitual ou se trata de uma inovação. “Perante cada utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cuidadosamente qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância”, conforme se admoesta, com boa razão, na doutrina 138. De toda sorte, é sustentável dizer que, se o constituinte se dedica a disciplinar um assunto de cunho técnico, os termos de que se vale, em princípio, devem ser compreendidos como o são na área do saber especializado. Assim, quando o constituinte se vale de termos jurídicos de conteúdo assentado na ciência jurídica, há razão para que se considere que está incorporando tal perspectiva na norma que dispõe. Quando a Constituição garante a propriedade, mesmo sem a definir, entende -se que acolhe o conceito firmado desse instituto, que possui um núcleo de significado a que se ligam as faculdades de usar, gozar e dispor. Se o poder constituinte originário inaugura uma nova ordem jurídica, isso não significa que não possa acolher e vitalizar conceitos da ordem pretérita.

Incoerência normativa

Outro problema com que o intérprete pode -se defrontar relaciona -se com os casos de incoerência normativa por parte do constituinte. O postulado do legislador racional, que não usa palavras excessivas e que não é incoerente nos seus comandos 139, encontra nas realidades constitucionais desmentidos práticos que desafiam a criatividade do intérprete. Por vezes, não há como resolver, segundo os critérios técnicos tradicionais da hierarquia, especialidade ou cronoló gico, certas antinomias internas, verificadas na redação do Texto Constitucional. O problema, nesses casos, radica na circunstância de duas regras diversas, a propósito de um mesmo pressuposto de fato, comandarem soluções díspares.

Veja -se, a título de exemplo, o que acontece na Constituição em vigor no seu art. 61, § 1º, d, e no art. 128, § 5º. De acordo com o primeiro dispositivo, são da iniciativa privativa do Chefe do Executivo as leis que disponham sobre a organização dos Ministérios Públicos da União e dos Estados. Já o segundo preceito estabelece que os Procuradores -Gerais desses Ministérios Públicos da União e dos Estados têm iniciativa de lei complementar sobre organização e estatuto dos respectivos ramos do parquet. A perplexidade gerada pela afirmação de que o Presidente da República é a única autoridade que pode provocar o Legislativo para dispor sobre a organização do Ministério Público, convivendo com a assertiva de que também o Procurador -Geral do Ministério Público tem essa prerrogativa, resulta de uma inesperada incoerência técnica, que convoca o intérprete a exercer incomuns poderes corretivos 140.

Lacunas

A dificuldade para o intérprete da Constituição pode estar na circunstância de deparar com uma situação não regulada pela Carta, mas que seria de se esperar que o constituinte sobre ela dispusesse. Mais inquietante, pode acontecer de um fato real se encaixar perfeitamente no que impõe uma norma, cuja incidência, contudo, produz resultados inaceitáveis. Nesses casos, fala -se em lacuna da Constituição. A lacuna pode ser definida, na fórmula precisa e concisa de Jorge Miranda, como “situação constitucionalmente relevante não prevista” 141.

Quando ocorre a primeira das situações acima descritas, será necessário discernir se o constituinte não deixou de disciplinar a matéria, justamente para permitir que o legislador o fizesse, conforme as peculiaridades do momento, sem a rigidez que marcam as decisões fixadas no Texto Magno. Teríamos, então, apenas uma matéria que a Carta da República não regulou, por haver preferido situá -la no domínio da liberdade de conformação do legislador comum. O assunto é extraconstitucional 142.

Outros casos há, porém, em que o problema sob a análise do intérprete não encontra subsunção em um dispositivo específico do Texto Constitucional, mas não se flagra um propósito do constituinte de relegar o tema ao jogo político ordinário da legislação infraconstitucional, porque a matéria, à parte o tópico em que ocorre a omissão, é objeto de um tratamento direto e minucioso do constituinte. Nessas hipóteses, o intérprete pode ver -se convencido de que a hipótese concreta exami nada pelo aplicador não foi inserida pelo constituinte no âmbito de certa regulação, porque o constituinte não quis atribuir ao caso a mesma consequência que ligou às hipóteses similares de que tratou explicitamente. A omissão da regulação, nesse âmbito, terá sido o resultado do objetivo consciente de excluir o tema da disciplina estatuída. Fala -se, em situações tais, que houve um “silêncio eloquente” do constituinte, que obsta a extensão da norma existente para a situação não regulada explicitamente.

Ilustração de silêncio eloquente, assim reconhecido pelo STF, é o da regulação dos atos normativos que podem ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte. O art. 102, I, a, alude a leis e a atos normativos estaduais ou federais. O silêncio com relação a leis e atos normativos municipais é proposital e excludente dessas modalidades de normas da fiscalização abstrata por meio de ação direta no STF 143.

No entanto, o exame apurado das circunstâncias normativas, a partir de uma compreensão sistemática, pode revelar que houve, na omissão, apenas um lapso do constituinte, que não pretendera excluir da incidência da norma a categoria de fatos em apreciação.

Aqui, haverá uma “lacuna de formulação”. Como exemplo, veja -se que, até a Emenda Constitucional n. 45/2004, na lista dos entes e pessoas que estavam legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (art. 103 da CF), aparecia o Governador do Estado, mas não se mencionava o Governador do Distrito Federal. Não obstante o caráter taxativo da enumeração, o STF entendeu que a omissão não pretendia impedir o Governador do Distrito Federal de propor ação direta perante a Suprema Corte, já que competências do Estado -membro são estendidas ao Distrito Federal (art. 32, § 1º) e não haveria motivo para o tratamento diferenciado, no particular 144. A hipótese configuraria mera lacuna de formulação, um lapso material, que não impediria a ação direta proposta pelo Governador do Distrito Federal.

O dispositivo veio a ser, afinal, retificado com a EC n.45/2004 145. Repare -se que o argumento da analogia é propício para remediar esse tipo de lacuna. A lacuna às vezes ocorre porque o constituinte não chegou a atinar com a necessidade de dispor sobre o período de adaptação necessário, no plano da realidade, para que a norma que estatuiu possa produzir efeito. Assim, por exemplo, com o aumento do número de tribunais regionais do trabalho, no regime da Constituição de 1988, verificou -se a impossibilidade, em alguns casos, de se formar lista de integrantes do Ministério Público do Trabalho com mais de dez anos de carreira para compor o quinto constitucional dos membros da corte, o que poderia inviabilizar a própria composição plural da corte desejada pelo constituinte. O STF enxergou, aqui, “uma lacuna: a não regulação das situações excepcionais existentes na fase inicial de implementação do novo modelo constitucional. Não tendo a matéria sido regulada em disposição transitória, parece adequado – disse o Ministro Gilmar Mendes – que o próprio intérprete possa fazê -lo em consonância com o sistema constitucional”. Assegurou -se, então, que as listas de candidatos a juiz de TRT pela vaga do Ministério Público pudessem ser completadas, quando necessário, por quem não possuía ainda dez anos de carreira 146.

Esse último caso aproxima -se de um outro modelo de lacuna, trabalhado na aplicação da Constituição, que ganha o nome de lacuna axiológica. Aqui, como é típico das lacunas constitucionais, uma circunstância constitucionalmente relevante não foi prevista. O intérprete sustenta, a partir de uma pauta valorativa por ele pressuposta, que faltou ao constituinte esclarecer que a situação semanticamente englobada na hipótese de fato de uma norma deve ser considerada como por ela não disciplinada, para, desse modo, não se dar efeito a uma solução injusta ou inadequada ao sistema.

Na lacuna axiológica, há uma solução normativa formal para o problema, mas o intérprete a tem como insatisfatória, porque percebe que a norma não tomou em conta uma característica do caso que tem perante si, a qual, se levada em considera ção, conduziria a outro desfecho 147. O intérprete entende conveniente que se inclua, suprima ou modifique algum dos elementos da hipótese de fato da norma 148.

Na maioria das vezes, explica Chaïm Perelman, essas “lacunas são criadas pelos intérpretes que, por uma ou outra razão, pretendem que certa área deveria ser regida por uma disposição normativa, quando não o é expressamente” 149. O aplicador restringe, muitas vezes, o alcance da norma, em nome da finalidade que lhe seria própria ou que seria aquela do sistema em que inserida.

Exemplo de descoberta desse tipo de lacuna tem -se na jurisprudência do STF em torno do art. 102, I, f, da CF. Embora a norma, na sua formulação literal, estabeleça a competência originária do Supremo Tribunal Federal para “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta”, o STF, no que o Ministro Sepúlveda Pertence chamou de “audaciosa redução teleológica na interpretação [do preceito]”, adstringiu “a sua competência originária para causas cíveis em que entidades da Administração indireta federal, estadual ou distrital contendam entre si ou com entidade política da Federação diversa (…), nas quais, pelo objeto da ação ou a natureza da questão envolvida, se reconheça ‘conflito federativo’”150.

Para o STF, como o art. 102, I, f, da CF tem o sentido de investir a Corte no papel de pacificadora de atritos entre unidades da Federação, os conflitos jurídicos que não sejam potencialmente desestabilizadores do equilíbrio federativo não estariam abrangidos pelo disposto no preceito definidor da competência originária do STF. Excluíram -se, portanto, do seu âmbito normativo várias situações que, semanticamente, se incluiriam no texto da norma. O constituinte não teria considerado que certas fricções entre as pessoas citadas no dispositivo não perturbam a ordem federativa. Ao não excepcionar da regra geral da competência originária essas situações, teria deixado de regular situação constitucionalmente relevante, daí se extraindo a presença de caso de lacuna axiológica 151. Por vezes, o mundo dos fatos apresenta inovações que não existiam ao tempo da elaboração da regra, mas que possuem características que as assimilam à razão de ser de normação havida. A interpretação extensiva abarcará esses casos. Disso fazem exemplos decisões do STF, entendendo que também os livros eletrônicos, não cogitados em 1988, fruem da imunidade tributária dos livros, em prol da liberdade de expressão e de informação 152. […]

Notas

[1] Inwood, 2006; Kristin, 2005.

[2] Schimidt, 2006.

[3] Grondin, 2006.

[3] Schleermacher, 1998, p.28.

[4] Humboldt, 2010, p.98-99.

[5] Brasil, sd., p.07.

[6] Brasil. 1942. Art. 4 e 5.

  1. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1987, p. 283.
  2. Conforme Stern, “os métodos de interpretação hão de ser combinados. Nenhum método deve ser absolutizado. É correto o resultado que, pela utilização sucessiva de todos os métodos de interpretação, transmite o sentido da lei”. Derecho, cit., p. 284.
  1. Pense -se, por exemplo, na jurisprudência da Suprema Corte, que reclama das entidades de classe legitimadas para propor a ação direta de inconstitucionalidade que revelem o seu interesse na exclusão da norma impugnada do ordenamento jurídico – isso, não obstante o art. 103 não dispor sobre essa condição da ação e da finalidade do controle abstrato parecer excluir a necessidade de interesse concreto na impugnação.
  2. K. Hesse, Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 37 -38.
  3. Tome -se como exemplo a palavra “legitimidade”, empregada no caput do art. 70 da Constituição, designando um dos elementos do controle externo a ser desempenhado pelo Congresso Nacional. A palavra tem múltiplos significados, podendo designar a conformidade com a lei, com algum parâmetro político ou mesmo com algum critério técnico. Tem -se, aí, um caso de ambiguidade semântica. Exemplo de ambiguidade sintática encontra -se no art. 5º, XIII. Ali se proclama “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. A ambiguidade está em que a frase pode ser compreendida tanto a designar que toda a profissão é, de imediato, livre de qualquer limitação pelo Estado, podendo, no entanto, o legislador vir a restringir essa liberdade impondo requisitos de qualificação profissional. Pode também ser lida como a dizer que, desde que atendidas as exigências mínimas de qualificação profissional, o exercício da atividade especializada é admitido e não pode ser impedido pelo Estado. O primeiro sentido, vale observar, é o aceito.
  1. A propósito, veja -se o HC 93.050, rel. Min. Celso de Mello, DJe de 1º -8 -2008: “Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’ revela -se abrangente e, por estender -se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (Nelson Hungria)”.
  2. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos, cit., p. 56.
  3. Esse postulado conhece até versão em brocardo (verba cum effectu sunt accipienda – “não se presume, na lei, palavras inúteis” ou “devem -se compreender as palavras como tendo algum significado”). Não deve ser levado a extremo, como, arrojadamente, adverte Richard Posner, ao explicar que “leis e constituições são escritas apressadamente por pessoas ocupadas, às vezes inábeis linguisticamente ou descuidadas (…). Os textos legislativos não são produtos de uma só mente, mas de uma Assembleia, cujos numerosos membros podem ter objetivos divergentes – e, por isso, podem conter repetições despropositadas e inconsistências. Supor que cada palavra num estatuto jurídico deve ter um significado – que toda lei é um todo perfeitamente coerente – é se equivocar sobre a natureza do processo legislativo e é capaz de levar a interpretações lúdicas” (Law and literature, Cambridge, Mass., 2009, p. 311).
  4. No caso específico do exemplo dado (ADI MC 400, rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 8 -2 -1991), o STF não hesitou em apontar que havia no texto constitucional uma “impropriedade terminológica”, acrescentando que a privatividade da iniciativa do Presidente da República na primeira norma “só pode ter um sentido, que é o de eliminar a iniciativa parlamentar” (voto do Ministro Sepúlveda Pertence). Daniel Mendonca (Analisis constitucional: una introducción – cómo hacer cosas con la Constitución, Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009, p. 74) fornece um outro exemplo, que retira da Constituição paraguaia, em que a competência para autorizar o ingresso de forças armadas estrangeiras no território paraguaio é, em sucessivos dispositivos, entregue, com exclusividade, a órgãos distintos.
  1. Jorge Miranda, Teoria, cit., p. 457.
  2. A propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra: Almedina, 1991, p. 58; Jorge Miranda, Teoria, cit., p. 456 -457. Como exemplo, no caso brasileiro, tome -se o texto constitucional em vigor, depois de revogada a norma do § 3º do art. 191, que fixava em 12% ao ano o limite máximo dos juros reais, tendo como usurários os juros que superassem essa marca. O assunto, com a revogação ocorrida em 2003, deixou de ter status constitucional. Preferiu o constituinte de reforma que o tema fosse confiado ao legislador comum. A revogação não significou que não deve haver limite aos juros ou que não mais se deve punir a usura, apenas o tema deixou de ser objeto da atenção direta da Constituição.

Referências

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SKINNER, Quentin. Visions of politics: regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.