The art of asking Chat GPT for high-quality answers: a complete guide to prompt enginnering thecniques | Ibrahim John
The Art of Asking ChatGPT for High – Quality Answers Watercolor | IF/IA/Midjourney (jun. 2023)
The art of asking Chat GPT for high-quality answers: a complete guide to prompt enginnering thecniques foi escrito por Ibrahim John e publicado em 2023. Na obra, o autor se lançou à tarefa de comunicar “diferentes técnicas de engenharia de prompt” para uso correto e eficiente do Chat GPT. Trata-se de manual didático sucinto, destinado a distintos públicos, entre leigos em Inteligência artificial e desenvolvedores de TI, interessados em um auxílio especializado, potencialmente, oferecido pelo Chat GPT.
O vendedor principal do livro, a Amazon, informa que Ibrahim John é empresário, consultor na área de TI e fundador das empresas: Agrasa Agriculture Limited, Kingbest Company Limited e Nzunda Technologies Limited. Há, pelo menos, seis títulos seus em catálogo nessa editora, que vão do uso racional do Chat GPT às estratégias de ganhar dinheiro, escrever planos de negócio e descobrir os truques dos profissionais do Marketing. O livro resenhado é o segundo sobre o tema, antecedido por: How to Avoid Empty Faith and Jesus’ Revelation About Genuine Faith That Brings Results: Uncovering the Secret Behind Unfulfilled Declarations, Prophecies, … Preachers & Believers, Killer Strategies for writting Real Business plan with ChatGPT: A Complete Roadmap from Testing Your Business Plan Writing Service, Acquiring Your First … Money with ChatGPT), Overlooked Invisible Forces Behind the Rising Cost of Living and Financial Stress: Exposing the Roots of Widespread Personal & National Financial Struggles, The Art of Solving a Lack of Money Problem and Escaping the Rat Race: A Complete Guide for Overcoming Financial Struggles and Achieving Wealth, também publicados em 2023. Leia Mais
Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023 | Francisco Carlos Teixeira da Silva
Em um cenário político-partidário em polvorosa desde as últimas eleições presidenciais brasileiras em outubro de 2022, vê-se deflagrar em Brasília, em 08 de janeiro de 2023, uma tentativa golpista de tomada do poder por extremistas inconformados. Tal agitação, observada a partir dos seus aspectos fascistas, é a temática trabalhada na recente obra Como não fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023, na qual se investiga o fato de o passado fornecer percepções valiosas sobre as raízes dos problemas e desafios vigentes, o que ocorre não por sua possibilidade de repetição, mas antes pelas continuidades e rupturas que irrompem nesse meio-tempo. Leia Mais
Chile despertó: lecturas desde la Historia del estalido social de octubre | P. Artaza, A. Candina, J. Esteve, M. Folchi, S. Grez, C. Guerrero, J. L. Martínez, M. Matus, C. Peñaoza, C. Sanhueza e J. M. Zavala
Chile despertó | Imagem: Contacto Digital
Publicada pela Universidad de Chile, editada por Mauricio Folchi e organizada em onze artigos produzidos por historiadores do Departamento de Ciências Históricas, a obra coletiva “Chile despertó: Lecturas desde la Historia del estallido social de octubre” buscou uma leitura de diversos ângulos dos movimentos que estouraram em outubro de 2019 no Chile e sua consequente crise política. Se durante os anos 1990 o Chile se encontrava permeado por conflitos e mobilizações sociais, a passagem para o século XXI trouxe todo um novo cenário político acompanhado pela reorganização do movimento estudantil secundário, durante a Revolução Pinguina de 2006, e universitário durante as marchas estudantis multitudinárias de 2011. Assim, como todo um contexto de diversas reformas para uma superação de “resquícios autoritários”, a exemplo da reforma constitucional de 2005 e a do sistema eleitoral em 2015. Como, por fim, acompanhado da emergência de uma nova coalizão de centro-esquerda, a Frente Ampla, sendo assim, o quadro amplo de inserção dos movimentos de 2019 parte de um largo cenário, tanto de reativação da sociedade civil, como de renovação política.II De maneira, que a Frente Ampla representou uma novidade pelo seu respectivo rompimento do cenário dominado por um antigo duopólio partidário.III
Estes movimentos espontâneos foram, segundo o editor e autor Mauricio Folchi, a maior mobilização das últimas décadas, os quais se materializaram na recuperação da figura dos cabildos em meio a uma população demandante de participação política. Tendo novas tecnologias sido a base para as suas convocações. Tais manifestações integraram uma proposição para um novo pacto social, de maneira, a serem mais do que um simples acúmulo de mal-estar de décadas. Antes, são produto da insatisfação carregada desde a Constituição de 1980, e das leituras de um Chile que parece nunca ter tido uma constituição, de fato, democrática. Tal crise, de modo geral, não se trata de apenas uma série de demandas sociais não atendidas, antes, são produtos da incapacidade de receber e processar tais demandas por parte do Estado. Leia Mais
Far-right revisionism and the end of history: alt-histories | L. D. Valencia-Garcia
Francisco Vázquez García | Foto: Universidad de Cádiz
A emergência de governos populistas e autoritários, como o de Donald Trump (2016 – 2021) e o de Jair Bolsonaro (2018 – 2022), bem como a repercussão e uso político das fake news, trouxeram ao debate questões fundamentais sobre a chamada “nova direita” e suas características organizativas, ideologias e práticas. Com a Pandemia da Covid-19, a noção de negacionismo ganhou destaque no debate público, na mídia, no meio acadêmico, referindo-se a determinados discursos de rechaço da ciência e da manipulação dos fatos, resgatando algumas das características de ilações e falsificação de fatos históricos que Pierre-Vidal Naquet, em seu Os Assassinos da Memória, atribuía aos revisionistas/negacionistas do genocídio hitlerista. Embora essas evidências estejam muito mais relacionadas a um debate do campo científico — ao endossar uma postura anticientífica próxima daquela iniciada nos anos 2000 quanto ao negacionismo do HIV/AIDS e das mudanças climáticas, e agora, em relação a Pandemia da Covid-19 — é no debate historiográfico que se pode perceber sua amplitude e interlocução política. A obra Far-right revisionism and the end of history: alt/histories, editado por Louie Dean Valencia-Garcia, se faz de suma importância para a compreensão do contexto em que é produzido o discurso negacionista, os diversos grupos da extrema-direita por todo o mundo e, sobretudo, a contribuição de historiadores revisionistas para a construção da chamada alt-history.
Composta por 20 artigos, a coletânea explora amplamente as configurações de uma história alternativa (alt-history) construída por grupos de extrema-direita em contextos como o da Espanha, Estados Unidos, Brasil, Rússia, Alemanha, Itália, Iugoslávia e Canadá. O que apresentam em comum? Para além da presença de retóricas que conduzem a práticas antidemocráticas de movimentos sociais e da opinião pública, uma característica inicial evidenciada na composição desses casos são as polêmicas geradas na abordagem de temas e personagens históricos. A partir disso, constatam-se as tentativas de recusa da história estabelecida e o oferecimento de uma suposta nova versão dos fatos, conhecida apenas por doutos especialistas ou por aqueles (especialistas ou não) que, na contramão dos consensos estabelecidos, se oferecem como vozes dissonantes. Uma primeira definição de alt-history, portanto, é aquela que fomenta: Leia Mais
Los chalecos amarillos. Un retador movimiento popular | Carlos Alonso Reynoso
Los manifestantes que visten chalecos amarillos se manifiestan contra el aumento de los precios del combustible y por el deterioro de las condiciones económicas (París, 15/12/2018) | Foto: Elyxandro Cegarra/Agencia Anadolu.
No es la primera vez que reseño un material de este autor, considero que el proceso de leer a los colegas siempre será benéfico para la producción académica y para la construcción de nuevos análisis sobre una línea de investigación a la que he dedicado mi carrera: los movimientos sociales. La historia y el proceso del movimiento des Gilets Jaunes es bastante interesante, su irrupción, su devenir, su asociación con el movimiento Nuit Debout y la utilización de repertorios de acción colectiva que rompen con lo convencional que lo visualizan como un movimiento sin parangón en Francia. Vale la pena, exponer que tanto el proceso político del movimiento Noches en Pie (como fue conocido el Nuit Debout) como el del movimiento de los Chalecos Amarillos no es algo que sea desconocido para el autor de esta reseña dado que se ha trabajado el tema con anterioridad (Lopez, 2019 y 2020).
Asimismo, se advierte que esta reseña ha sido formulada a través de varios contrapuntos formulados entre los posicionamientos del autor del libro y los posicionamientos del autor de esta reseña. He decidido dividirlo en cuatro segmentos: el primero de ellos radica en “la forma y el fondo de la acción colectiva”, el segundo versa sobre “similitudes y diferencias con otros movimientos sociales”, el en el tercero se toca “el problema de la institucionalización” al seno del movimiento y, por último, el cuarto trata de enfatizar “la influencia y por venir” del movimiento des Gilet Jaunes. Leia Mais
Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira
Mateus Henrique de Faria Pereira | Imagem: Varia História
No atual século, poucos livros no campo da teoria da história alcançaram um índice de repercussão como Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo (originalmente publicado em 2003), de François Hartog (2013). O livro se tornou referência fundamental nos estudos acerca da experiência do tempo com a proposta de criação de um “instrumento”, a categoria “regimes de historicidade”, para a averiguação de como sociedades e culturas estabeleceram em distintos momentos históricos determinadas ordens do tempo. Do mesmo modo, a obra vem sendo alvo de importantes reavaliações (ver ARAUJO; PEREIRA, 2018; ARANTES, 2014; LORENZ; BEVERNAGE, 2013; GUIMARÃES; RAUTER, 2021; TURIN, 2016, entre outros), que questionam tanto as pretensões heurísticas da categoria anunciada por Hartog, quanto a sua hipótese mais fundamental acerca do “presentismo”, isso é, a prevalência do presente sobre as dimensões do passado e do futuro, sendo que, no caso do último, ainda se impõe uma importante sensação de fechamento, ao contrário do que se via na concepção moderna de história, como teorizada por Koselleck (2006).
Compondo essa mesma linhagem crítica e saindo pela mesma editora que publicou o livro de Hartog no Brasil, Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet, de Mateus Henrique de Faria Pereira (2022), aparece como uma obra disposta a analisar os impactos do novo para a redefinição dos papéis da historiografia sem qualquer olhar nostálgico de uma antiga condição, ao mesmo tempo que aceita o desafio de pensar as possibilidades que a era da internet traz para uma efetiva inserção do historiador e da historiadora num debate público amplo e democrático. Leia Mais
Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais | Das Amazônias | 2022
Detalhe de cartaza do “X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais”
Primeiramente, é um prazer sermos responsáveis pela apresentação desse dossiê. Mas o fundamental nesta apresentação são as pesquisas para as quais ela pretende abrir caminhos. É interessante que neste conjunto de pesquisas constatamos a relação entre cultura, conhecimento, poder e a centralidade, em especial, da água e dos diferentes papéis das assimetrias sociais, de modo a revelar importantes compromissos sociais.
Esse dossiê é composto a partir de trabalhos inicialmente apresentados no X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais, realizado entre 23 e 26 de novembro de 2021, um Congresso altamente científico e democrático que permite a interação entre os mais diferentes sujeitos sociais em um espaço de reciprocidades múltiplas. Foi organizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) e totalmente online devido aos efeitos da pandemia de Covid-19. Leia Mais
América Latina entre la reforma y la revolución: de las independencias al siglo XXI | Marta Bonaudo, Diego Mauro e Silvia Simonassi
Detalhe de capa de América Latina entre la reforma y la revolución: de las independencias al siglo XXI
La presente obra es producto de años de investigación de tres reputados autores que cuentan con una sólida trayectoria académica y universitaria en el marco del Instituto de Investigaciones Sociohistóricas Regionales (ISHIR), unidad ejecutora del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de la República Argentina. Del propio decurso de sus investigaciones y del recorrido como docentes, estos tres autores proponen una obra renovada desde la temática, así como desde la perspectiva con la cual la abordan. Los estudios sobre América Latina son vastos y longevos; sin embargo, lejos de agotarse el campo, este tipo de propuestas vienen a refrescarlo y problematizarlo con nuevas preguntas y miradas.
En esta oportunidad, el presente libro se propone un abordaje de la historia americana desde una perspectiva que, lejos de anclarse en el recorrido diacrónico por los procesos políticos y sociales, lo hace desde el conflictivo vínculo entre revolución y reforma como puerta de ingreso para auscultar la historia continental. De esta forma, la premisa desde la cual parten los autores es que la historia de América ha estado signada por el inestable y siempre tenso vínculo entre los procesos revolucionarios y las propuestas de reformas como medios para resolver los males que en diversas épocas aquejaron a las poblaciones americanas. Así, el libro busca enhebrar la historia continental a partir de las diversas experiencias que, tensionadas entre las mencionadas soluciones, han sido una constante a lo largo y ancho de América. La obra, que tiene el mérito de proponer un recorrido no siempre lineal y cronológico sino problemático, también posee el de vincular pasado, presente y futuro, demostrando la continuidad y vigencia que el par problemático, elegido como perspectiva analítica, aún tiene en nuestros tiempos. Leia Mais
Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos
O ano é 2020. O cenário é assombroso. A pandemia provocada pela disseminação do Coronavírus, vírus causador da COVID-19, fez do Brasil seu epicentro, deixando a população atônita perante o crescente quantitativo de mortes e a ausência de medidas de contenção do avanço da doença. É nesse contexto que Marcelo Badaró de Mattos, professor titular do Departamento de História do Brasil, da Universidade Federal Fluminense, finaliza seu livro intitulado Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, lançado pela Usina Editorial. Discute o processo que levou Jair Messias Bolsonaro à presidência da República Federativa do Brasil, em 2018, bem como os primeiros anos de seu governo, empreendendo uma análise crítica da situação política do país. Parte do fascismo histórico a fim de compreender a ideologia propagada pelo seu governo. À época do seu lançamento, mais de 30 mil mortes II eram contabilizadas no país, ao mesmo tempo em que o Presidente Jair Bolsonaro classificava a doença como uma gripezinha e afirmava eu não sou coveiro, frases constantemente declaradas por Bolsonaro ao ser questionado quanto a medidas mais efetivas em combate à disseminação da Covid-19. Leia Mais
Manual didático do professor de História: História local e Aprendizagem significativa | Moisés Reis
Ilustração de Mateus Oliveira Queiroz para o Manual didático do professor de História História local e aprendizagem significativa.
Manual Didático do professor de História: História local e Aprendizagem significativa, de Moisés Santos Reis Amaral, propõe metodologias ativas para o ensino de História com o uso das modernas tecnologias na educação básica a fim de aproximar o estudante e a atualidade e de envolvê-lo no processo de ensino-aprendizagem. Essa tarefa, segundo o autor, exige formação continuada numa guinada para a criticidade e a interação.
O livro aborda a história local do município de Fátima-BA, lugar onde o autor trabalha como professor da rede municipal de ensino. Ele é graduado em História pelo Centro Universitário Ages, especializado em História e Cultura Afro-brasileira pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci e Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Amaral também passou temporada na rede particular de ensino e atua como tutor e palestrante nas áreas de Educação, Ensino de História e Geografia. Leia Mais
BNCC de História nos Estados: o futuro do presente | Ângela R. Ferreira, Antonio S. de Almeida Neto, Caio F. F. Adan, Carlos A. L. Ferreira, Paulo E. D. de Mello e Olavo P. Soares
BNCC de História nos Estados (Detalhe de capa) | Arte da capa: Carole Kümmecke
No final do ano passado (2021), a Editora Fi lançou BNCC de História nos Estados: o futuro do presente, reunindo estudos de 25 autores, a maioria dos quais atua em programas de pós-graduação em História, Ensino de História e Educação. Apenas dois são professores da educação básica e os demais são formadores de professores. O livro comunica os trabalhos apresentados no “Ciclo de Debates” (de mesmo título), organizado pelas Universidades Federais de Alfenas (UNIFAL), Espírito Santo (UFES), São Paulo (UNIFESP) e a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no segundo semestre de 2021, com grande aderência de público em mais de 300 cidades de 26 entes federados (p.12).
A publicação já nasce referência. É uma peça crítica à Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e às bases curriculares de cada Estado. Além de dar publicidade desses dispositivos na rede mundial de computadores (prática que, há dez anos, seria uma via crucis para o pesquisador), põe a nu alguns “vieses de confirmação” dos nossos colegas da área. Por essas razões, o livro merece ser lido e criticado. Ele oportuniza a discussão e, com muita boa vontade, o avanço da qualidade das políticas públicas para o Ensino de História, seja em termos de formação docente, seja em termos de formação escolar. Leia Mais
E Se Fosse Você? | Manuela D’Ávila
Manuela D’Ávila | Imagem: Poder360
Para Brisola e Romeiro (2018, p. 3), na contemporaneidade, a informação tem se proliferado e circulado em quantidade e velocidade extraordinárias, o que, muitas vezes, dificulta o entendimento em relação a quais informações podem ser reconhecidas enquanto um discurso correspondente a fatos e quais são fake news.
Nessa senda, há uma necessidade e uma urgência em produzir e exibir notícias no tempo presente, principalmente nas mídias digitais. É nesse contexto que o livro E se fosse você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news se insere. A obra não ficcional produzida pelo Instituto E se Fosse Você foi lançada em 2020 e está em sua primeira edição. Nela são apresentados temas como mulheres na política, a disseminação de fake news, discursos de ódio, redes sociais e memes de internet. Leia Mais
Os feitos e os efeitos das cotas raciais no Brasil: avanços, desafios e possibilidades | Escritas do Tempo | 2022
Professores criam grupo para defender implantação de cotas raciais na UEM | Imagen: Maringá Post
Depois de mais de uma década de intensa discussão sobre a legalidade e a constitucionalidade do sistema de vagas reservadas para negros no ensino universitário, em 26 de abril de 2012, a Suprema Corte Brasileira, por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, declarou a constitucionalidade do Plano de Metas de Inclusão Étnico-Racial instituído pela Universidade de Brasília UnB). Para a Suprema Corte, as cotas, ao utilizarem do critério racial para inclusão destes homens e mulheres negras nas universidades, estavam exercendo uma política de reparação e construindo possibilidades de ampliar a igualdade material e simbólica no Brasil.
O reconhecimento constitucional das cotas pelo STF foi normatizado por meio da Lei Federal 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas, que garante a reserva de 50% das matrículas nas universidades e institutos federais de educação a alunos oriundos de escolas públicas. O texto legislativo ainda estabelece que as vagas reservadas às cotas sejam subdivididas, metade para estudantes de escola públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda superior 1,5 salário-mínimo. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Leia Mais
Discurso e (pós)verdade | Luzmara Curcino, Vanice Sargentini e Carlos Piovezani
Vanice Sargentini | Foto: Matheus Mazini/São Carlos Agora
O livro Discurso e pós-verdade, organizado pelos professores Carlos Piovezani (UFSCar), Luzmara Curcino (UFSCar) e Vanice Sargentini (UFSCar), resultou da quinta edição do Colóquio Internacional de Análise do Discurso (CIAD) realizada na Universidade Federal de São Carlos em setembro de 2018, que trouxe à discussão a relação entre a verdade e a ordem do discurso e o seu impacto nas sociedades democráticas. A publicação reúne textos dos palestrantes que participaram do Colóquio e traz pontos de vista oriundos não apenas da Análise do Discurso, mas também da Psicanálise e da História, de maneira que é possível ter uma visão ampla da questão da (pós)verdade dado o caráter interdisciplinar do evento.
No primeiro capítulo, Roger Chartier (EHESS/Paris), em Verdade e prova: retórica, literatura, memória e história, mobiliza diferentes autores ligados a diversos campos do saber para pensar a verdade em tempos de revisionismo histórico e distorção dos fatos. Partindo de Foucault, Ginzburg e Ricoeur, o autor aprofunda a reflexão sobre o conceito de verdade trazendo a herança grega para a discussão sobre autoria e autoridade em suas relações com o sagrado, a retórica e a prova. Assim, ele procura entender a verdade levando em conta as condições históricas de possibilidade nas quais a validade do dizer tinha que ser submetido ao crivo da prova e da autoridade. Leia Mais
Ensino de História e Historiografia digital | Marcela Albaine Farias da Costa
Ensino de História e Historiografia escolar digital, de Marcela Albaine Farias da Costa, como explicitado no título, discute a relação entre os fenômenos da Historiografia escolar digital e a prática do Ensino de História em escolas da educação básica. Construído em quatro capítulos (além da introdução e da conclusão), o livro é resultado de uma tese de doutorado em História, defendida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sob a orientação da professora Keila Grinberg, avaliada pelos professores Anita Almeida (UNIRIO, Sonia Wanderley, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rodrigo Turim (UNIRIO) e Bruno Leal, da Universidade de Brasília (UnB).
Hoje, Marcela Costa cumpre estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e já é reconhecida na área de História como um dos poucos especialistas nos estudos sobre Historiografia Digital, sobretudo pelos textos que publicou e pelos laboratórios e projetos com quais se envolveu na última década. O seu livro, contudo, foi por nós escolhido por representar um objeto de fronteira entre os domínios da Pedagogia, Ciência da Informação, Ciência da História e Ensino de História e, principalmente, por sugerir, potencialmente, um modelo de trabalho acadêmico para muitos dos mestrandos que iniciam suas pesquisas acadêmicas na área do Ensino de História.
A introdução do livro é empregada para anunciar as ameaças que o ensino de história, professores e alunos de história e a população em geral vem sofrendo nesses tempos de pandemia e de obscurantismo político. A autora faz considerações autobiográficas sobre sua formação e a construção da tese, anuncia categorias e pressupostos – “o ‘digital’ como condição de pensamento” forjado mais nas práticas que no suporte (p.21) – e apresenta os quatro capítulos que constituem a obra.
No capítulo primeiro – “Cultura digital e políticas do currículo” –, a autora mapeia a presença da cultura digital nas políticas de currículo, configuradas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCNEB) e na Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Para tal, mobiliza a categoria de “ciclo de políticas” sugerindo observá-la nos documentos em suas dimensões de “política proposta”, “política de fato” e “política em uso”, baseando-se nos escritos de Stephen Ball e Richard Bowe. Ao mobilizar os três documentos, a autora confirma que as tensões e relações de poder, em um contexto de dominação e resistência, contribuem para diferentes interpretações e práticas possíveis de implementação das políticas públicas mencionadas. A autora critica a associação do termo “tecnologia digital” e “inovação” como sinônimos e denuncia as ameaças ao ensino de história (a exemplo do avanço das ideias conservadoras), bem como as respectivas implicações no fazer docente na sala de aula e no âmbito da pesquisa. Segundo a autora, os PCN apontam para a hipervalorização do “tecnicismo educacional” em detrimento da ação dos sujeitos no tempo. As DCNEB trazem a expressão “era digital”, estimulando a criação de métodos didático-pedagógicos e exigindo, segundo a autora, muito do que o professor poderia oferecer. Além disso, ainda nas DCNEB, as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) podem ser trabalhadas de forma transversal. No que diz respeito à BNCC, publicada em um contexto de forte instabilidade política, a autora destaca o apelo emocional provocado pelas TICs e a incorporação vaga do digital sem subsídios ao professor sobre o adequado emprego.
No segundo capítulo – “Cultura digital como objeto de estudo dos Professores” – pesquisadores em Ensino de História” – a autora apresenta e discute produções que incorporam “cultura digital” como objeto de estudo. A pesquisa é realizada em base de dados e anais de congressos da área de História, com destaques para três fontes: 1) eventos acadêmicos; 2) dissertações de mestrado; e 3) grupos ou linhas de pesquisa do Brasil. Ela assume que o universo pesquisado não dá conta de todos os profissionais envolvidos em práticas e trabalhos voltados para os conceitos que a sua pesquisa se propõe a estudar. No decorrer da análise, contudo, a autora constata o crescimento da utilização de termos digital e virtual nas pesquisas dos autores selecionados, principalmente nos trabalhos apresentados no Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História, cujo público é constituído, dominantemente, por interessados nas práticas de sala de aula. No banco de dissertações do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória), a autora encontrou produções que ajudaram na construção do seu argumento, principalmente as que fazem referência às expressões “gamificação”, “ensino híbrido”, “tecnologias digitais”/”gamificação”, “plataformas digitais”, “aplicativos”, “Google” e “podcast”. O capítulo é encerrado com uma percepção de que é crescente a presença na produção, em termos quantitativos, no material examinado, além do aumento de trabalhos referentes à “cultura digital”, radicados nos campos da História e do Ensino de História.
No capítulo terceiro – “Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a primeira ida ao campo da pesquisa” – a autora retoma o conceito da cultura digital no espaço escolar e aborda o uso de novas fontes de pesquisa histórica, notadamente as ferramentas da tecnologia da informação na educação (em hardware ou software), como geratriz de ensino e aprendizagem de História sem recusar, contudo, os saberes pedagógicos tradicionais e os saberes individuais dos estudantes. Propõe investigar até que ponto, na sociedade contemporânea, os níveis de modernização digital distintos no ambiente escolar e/ou a condição socioeconômica dos estudantes podem interferir na sua formação intelectual e social. Nesse ponto, a autora questiona sobre o grau de entendimento que os jovens possuem sobre as TICs e possível implicação dessa variável na relação ensino-aprendizagem. Em tal sentido, a autora manifesta sua dificuldade para constatar as possíveis deficiências geradas em decorrência da ausência de equidade no contato ou posse com as novas ferramentas. A autora também assume o desconhecimento sobre as estratégias que o público-alvo, escolhido aleatoriamente em unidades públicas e privadas, emprega para a superação dessas dificuldades. A maior parte do capítulo, contudo, é dedicada a examinar as noções de tempo histórico partilhado pelos alunos, mediante a percepção de habilidades caras à tarefa (seriação e simultaneidade, por exemplo), e as formas como representam o tempo, empregando recursos não digitais. Assim, através dos resultados de uma oficina intitulada “Representações no Tempo”, voltada à rememoração de fatos pessoais, interagentes com fatos em escalas, local, nacional e global, a autora conclui que a cultura digital é universal, atravessa costumes e condições materiais do indivíduo e está enraizada na escola, apesar das visíveis diferenças estruturais que marcam os sujeitos dessa instituição.
No quarto e último capítulo – “Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a volta ao campo de pesquisa” –, classificado como continuidade do anterior, a autora propõe a observação e análise e o uso direto da tecnologia digital na experiência discente de narrar histórias de vida e, novamente, do modo como são relacionadas as dimensões mundial/nacional/local, em turmas do 6º e 9º ano das escolas investigadas (uma escola privada e outra pública, da rede federal de ensino, no Rio de Janeiro). A autora também objetiva investigar e descrever a preferência dos alunos pelo impresso e/ou pelo tecnológico mediante oficinas com a possibilidade de uso de material impresso e do suporte digital. No curso do capítulo, a autora confessa que, antes de ir a campo, conjecturava que os alunos escolheriam o digital, em consonância com o conceito “nativos digitais” de Marc Prensky (conceito utilizado para descrever a geração de jovens nascidos a partir da disponibilidade das informações rápidas em rede). No entanto, a autora percebeu que a ocorrência do contrário. Ela compreende tal resultado como algo plenamente justificável diante da (im)possibilidade de acesso, dos problemas de infraestrutura das instituições, o (des)estímulo das escolas, de questões legais, entre outros aspectos condicionantes. Para medir o grau de preferência dos alunos por cada meio de maneira efetiva, segundo a autora, a igualdade de acesso seria necessária tanto ao meio impresso, quanto ao meio digital. Ao final do capítulo, a autora conclui que a ideia de linearidade temporal é frequente nas representações dos alunos e que a presença dos recursos digitais não significa mudança radical, seja de emprego da “lógica da tecnologia” (p.222).
O livro que acabamos de resumir em suas principais ideias, possui, contudo, insuficiências. Algumas são pouco expressivas, como a não esclarecida e justificada definição dos marcos temporais, nos quais se inscreve a pesquisa, a excessiva repetição da descrição das turmas e das suas atividades, a exemplificação redundante de trabalhos.
Outras insuficiências apresentam maiores empecilhos a compreensão imediata do texto. Falta clareza na exposição dos objetivos, na introdução, como também no decorrer do texto, na retomada das respostas às questões anunciadas na seção conclusiva do livro e, principalmente, no esperado (embora não obrigatório) anúncio da área de pertencimento dessa pesquisa, que apresenta elementos mesclados de teoria da História, teoria da aprendizagem e de teoria do currículo, mas pouco revela elementos de epistemológica da ciência da História. A maior insuficiência, por fim, está na obscura definição de “historiografia escolar digital” e na omissão (como objetivo) do exame das noções de tempo histórico dos alunos, que compete com a busca pela noção e importância do recurso digital.
Não obstante as insuficiências apontadas, o livro possui as suas virtudes, das quais ressaltamos três. Em primeiro lugar, ele apresenta momentos indicadores de bom uso dos rudimentos de pesquisa. Observem que a autora evidencia a importância do entendimento do conceito de Pesquisa e Docência, no que diz respeito à atividade de pesquisa básica e à atividade de ministrar aulas para adolescentes, à descrição detalhada de cada uma das oficinas e a exposição de tabelas que facilitam o processo de análise e de reanálise por parte do leitor. A autora também é feliz na sua escolha para a experimentação. Ela explora questão básica para o ensino de História: entendimento do tempo histórico. Ela o faz mediante as habilidades de datação, cronologia, anterioridade, posteridade, simultaneidade, transformação e frequência, aproximando esses elementos à realidade individual e estabelecendo uma conexão entre a história de vida com a história brasileira e a história mundial.
Em segundo lugar, a autora tece considerações sobre a prática docente e toma posições progressistas no que diz respeito ao Ensino de História. Defende a ideia de professores como mediadores e orientadores da aprendizagem, dependentes de conhecimentos e atualizações constantes, critica o fato de as políticas públicas incorporarem a tecnologia e o digital sem apontar estratégias que subsidiem o trabalho dos professores, bem como o desprezo pelo papel do docente na construção dessas políticas.
Em terceiro lugar, o livro apresenta teses conscienciosas e que contribuem para o fortalecimento do campo da pesquisa do Ensino de História. Essa positividade está, por exemplo, na afirmação de que a tecnologia da informação está enraizada na sociedade de uma maneira ampliada, ainda que existissem (e existam) barreiras socioeconômicas para tal, na percepção de que a escolha do impresso pelo digital acontece em parte por conta dos problemas de acesso, inviabilizando resultados mais consistentes, na defesa do uso das TICs, como ferramenta para inclusão digital nas escolas, e na apresentação, mesmo que de forma fragmentada, de possibilidades de uso das TICs em sala.
Em síntese, tanto pelas insuficiências como pelas virtudes que apresenta, como também pelos desafios de investigar questões de ensino-aprendizagem na fronteira da Ciência da Informação, da Pedagogia e da História, o livro de Marcela Costa deve ser lido por todo mestrando que se empenha na pesquisa sobre Ensino de História e, não apenas pelos que se interessam por temáticas que envolvem a discussão sobre os artefatos (entre os quais a narrativa histórica), as práticas, as compreensões os fins escolares adjetivados pela palavra “digital”.
Sumário de Ensino de História e Historiografia escolar digital
- Prefácio | Sonia Wanderley
- Introdução
- Cultura digital e políticas de currículo
- 1.1. Olhares sobre os Parâmetros Cutriculares Nacionais (PCNs)
- 1.2. Dialogando com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (DCNEB)
- 1.3. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em pauta
- Cultura digital como objeto de estudos dos professores
- 2.1. Mapeando eventos da área
- 2.2. Investigando as dissertações do ProfHistória
- Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a primeira ida ao campo de pesquisa
- 3.1. A primeira versão da oficina pedagógica “Representações do tempo: História(s) narrada(s)”
- 3.2. Dialogando com as fontes: aspectos gerais
- 3.3. Continuando a escuta: interconexão das histórias narradas
- 3.4. Sobre o tempo e a tecnologia
- Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a volta ao campo de pesquisa
- 4.1. A segunda versão da oficina pedagógica “Representações do tempo: História(s) narrada(s)”
- 4.2. O porquê da escolha pelo digital
- 4.3. Análise das produções digitais
- 4.4. Um balanço comparativo: em defesa da historiografia escolar digital
- Conclusão
- Referências
- Anexo 1 – Planejamento da oficina “Representações do tempo: história(s) narrada(s)”
- Anexo II – Folha didática utilizada na oficina
Resenhistas
Douglas Silva é professor do Colégio Estadual Olavo Bilac em Aracaju-SE, da Escola Municipal Maria das Graças Souza Garcez em Itaporanga d’Ajuda e aluno do Mestrado em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Publicou entre outros trabalhos Cidadania em um Universo Relacional: População de Rua em Aracaju-SE projeto de iniciação científica do PBIC/CNPq. Email: Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9099513651518567; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1036-2270; Facebook: https://www.facebook.com/profile.php?id=100008474169903; Instagram: @douglasleoni13; Email: douglasleoni99@gmail.com
Elemi Santos é professora do Colégio Municipal Professora Maria Verônica Matos do Nascimento, no município de Antas (BA) e do Centro Educacional Professora Maria Ferreira da Silva, no município de Nova Soure (BA), é aluna do Mestrado em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7957222155239656; Orcid: https://orcid.org/orcid=0000-0003-0744-7908; Instagram: prof.elemi; e-mail: elemisantos1@gmail.com
Johnny Gomes é professor da Escola Estadual Nossa Senhora da Conceição e do Canoa Cursos, em Lagoa da Canoa (AL) e aluno do Mestrado em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Publicou, entre outros trabalhos, Cinema e Didática: proposta de sensibilização a partir da obra “Vida Maria” (2007). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8051279606440569; Orcid. https://orcid.org/0000-0002-6676-894X. Instagram: gomesjohnny; Email: johnnygomes83@gmail.com
Viviane Andrade Passos é professora do Colégio Estadual Cícero Bezerra, da Escola Municipal Tiradentes no município de (Nossa Senhora da Glória- SE) e aluna do Mestrado em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7026713252936689; Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4077-3916; Facebook: /viviane.andrade.56863; Instagran: vivi.andrade_23; Email: viviane-andrade22@hotmail.com
Para citar esta resenha
COSTA, Marcela Albaine Farias da. Ensino de História e Historiografia digital. Curitiba: CRV, 2021. 212p. Resenha de: GOMES, Johnny P.; SANTOS, Elemi; SILVA, Douglas; PASSOS, Viviane Andrade. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.21-26, maio/jun. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/o-digital-no-ensino-resenha-de-ensino-de-historia-e-historiografia-escolar-digital-de-marcela-albaine-farias-da-costa/> Acessar publicação original.
Uma brevíssima História da UFS | Itamar Freitas
Como afirmo acima, o título é dissimulado, mas não enganador. Uma brevíssima história da UFS não faz o percurso clássico da fundação da Universidade Federal de Sergipe, nos idos de 1968, aos dias atuais, empregando narrativa curta ou suporte de poucas folhas. O breve tem a ver com o recorte temporal. É uma história de dois dias de experiência da instituição. Os dias de anúncio da intervenção e da posse da interventora – Liliádia da Silva Oliveira – designada pelo ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, ocorrida em 23 e 24 de novembro de 2020.
Conversei com o autor a respeito do gracejo do título e ele me explicou se tratar de um texto produzido para a sala de aula, destinada às suas turmas de História da Educação em Sergipe. A disciplina ganha um tema a cada período e tem orientação ativa, no que diz respeito à pesquisa histórica. Os alunos não apenas leem histórias da educação, mas também são convidados a escreverem histórias ou memórias sobre a sua experiência educacional, como faz o professor Fábio Alves, na disciplina Introdução à História da Educação. Naquele período, o tema era a Universidade Federal de Sergipe. Assim, uma das tarefas dos alunos era escrever narrativas sobre objetos de natureza diversa que retratassem experiências da e/ou na Universidade. Poderia ser a história de um aluno, um grupo de alunos, um professor, uma autobiografia, uma memória, a história de uma edificação, de um grupo de animais que circulam o campus ou uma efeméride. Leia Mais
Economia e cultura dos comuns amazônidas | Escritas | 2021
Renatão (2015), do Guilombo Grotão | Foto: Fábio Guimarães/Extra
O tema dos comuns emergiu, nas últimas décadas, no debate político como uma parte das lutas de emancipação social. Diversos atores sociais como movimentos e comunidades do Sul Global ou da periferia do Norte vêm no comum – ou nos comuns – um caminho de lutas contra a prevalência agressiva do capitalismo, neoliberalismo e globalização.
Nas ciências humanas e sociais, diversos estudos têm sido realizados no sentido de conhecer o giro para o comum dos movimentos sociais e comunidades. Esses estudos procuram delimitar o conceito (comuns, comum) e trazer à tona a diversidade institucional a partir da qual o fenômeno concreto (comuns, comum) se manifesta na prática de diversos grupos em contextos e espaços sociais específicos. Leia Mais
Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro | Valdei Lopes de Araujo, Bruna Stutz Klem e Mateus Henrique de Faria Pereira
Do fake ao fato: Des(atualizando) Bolsonaro” foi pensado e organizado pelos professores doutores Valdei Lopes de Araujo, Mateus Henrique de Faria Pereira – ambos vinculados à Universidade Federal de Ouro Preto – e por Bruna Stutz Klem, mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.
Escrito para aqueles que desejam entender a política brasileira contemporânea, bem como até onde essa onda1 bolsonarista pode nos levar, “Do fake ao fato: Des(atualizando) Bolsonaro” é um livro instigante e esclarecedor. Composto por artigos bem fundamentados e de leitura leve, a obra traz à tona importantes debates políticos e sociais. Leia Mais
Multiculturalismo y gestión de la diversidad en el mundo del siglo XXI | Procesos Históricos – Revista de Historia | 2022
Situando el modelo de la filosofía política de sociedad multicultural de posguerra en el retrovisor 3 (JM. Persánch)
Tras la devastación de la Segunda Guerra Mundial (1939-1945) y en respuesta a las atrocidades del nazismo y el fascismo, Europa se ve avocada a reconstruir sus sociedades no solo materialmente sino, también, en el ámbito de la moral. Respecto a este último, la antropología ha señalado cómo la moral, al ser cultural, se ha empleado a lo largo de la historia como fuente de jerarquización y justificación de superioridad. En el caso de la posguerra de 1945 –como se plasma en esta introducción– Europa, Estados Unidos y otras naciones de Occidente lo volverían a hacer por medio de la filosofía política del multiculturalismo y el sentimiento de culpabilidad blanca. En tal sentido, las reflexiones de mediados de siglo XX de Carl Gustav Jung en “After the Catastrophe” son testamento de los enraizados sentimientos europeos de vergüenza y culpa. En ese marco y refiriéndose a Adolf Hitler, Jung declararía lo siguiente:
…as a German, he has betrayed European civilization and all its values; he has brought shame and disgrace on his European family, so that one must blush to hear oneself called a European.4 Leia Mais
Sertão História | URCA | 2022
Sertão História – Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente tem como missão contribuir para o debate teórico e a difusão das pesquisas em História e áreas afins, bem como democratizar o acesso ao conhecimento científico. Podem publicar graduados, estudantes de pós-graduação lato e stricto sensu (mestrado e doutorado), mestres e doutores.
Sertão História é um períodico semestral, eletrônico, do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente – NEHSA, da Universidade Regional do Cariri.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2764-3956
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Temas y problemáticas de la historia digital en Argentina, 2022/Escuela de Historia/2022
Introducción
Desde hace mucho tiempo, el poder de cómputo de las computadoras despierta interés entre les historiadores. Al repasar un libro pionero como el Edward Shorter, The historian and the computer (1971), no es difícil reconocer algunas problemáticas que en la actualidad son igual de relevantes para la investigación histórica, especialmente en lo que respecta a los datos, a los métodos y a los peligros que el autor enumera. Más extraño nos resulta el entorno: máquinas enormes, tarjetas perforadas, lenguajes ya casi extintos. Todavía más excéntrico es el anexo del libro de Cardoso y Pérez Brignoli, Los métodos de la historia (1976), que remite al libro de Shorter y que lleva por título “El uso de la computación en historia”; en el que entre muchas advertencias (“de ningún modo se trata de que el historiador deba aprender a manejar el computador, o tan siquiera programar el procesamiento de la información” [p. 412]), los autores ilustran las esotéricas relaciones entre padrones y procesamiento de datos con imágenes de tarjetas perforadas y hojas de codificación. La idea poco sofisticada que comparaba la computadora con la calculadora sumada a los deseos de precisión y clausura formulados por alguna versión de la historia social, entre nosotros la más conocida fue la cliometría, hizo posibles amonestaciones que todavía circulan, incluso en sus modos más inocentes. Leia Mais
O Populismo no século XXI: a emergência de novas formas/Intellèctus/2022
O presente dossiê organizado por Isabel Valente (Un.Coimbra) Maria Emilia Prado ( Un. do Estado do Rio de Janeiro) e Manuel Loff ( Un. do Porto e UNL) tem por objetivo apresentar artigos que discutem o significado histórico do populismo no Ocidente. Especial atenção será dada as experiências da Ibero-América, mas, também será importante discutir conceitualmente populismo. O tema adquire relevância ímpar uma vez que neste alvorecer do século XXI se assiste ao surgimento e o ressurgimento de governos autoritários de cunho populista. Que impacto pode ter este fenómeno na qualidade da democracia e na sua simples vigência? Até que ponto a crise pandêmica do Covid-19 terá facilitado e facilita ainda as ações autoritárias de governos populistas? Através dos artigos aqui reunidos pretende-se levantar considerações sobre as implicações e os possíveis desdobramentos sociais desse cenário político. Leia Mais
Una justicia transicional para México/ experiencias y realidades | Juan Carlos Abreu y Abreu
Lo primero que puede decirse de este texto es que posee un propósito práctico: ayudar a que México transite y desarrolle un proceso sólido de justicia transicional. Tiene como soporte de dicho propósito el Plan Nacional de Desarrollo 2019-2024 (PND) emitido por el poder ejecutivo de este país. Leia Mais
Por qué el derecho es violento (y debería reconocerlo) | C. Menke
Por qué el derecho es violento (y debería reconocerlo) es la traducción de la obra original en alemán, Recht und Gewalt, del autor Cristoph Menke, publicada por primera vez en 2011. La traducción a cargo de Miguel Gualdrón Ramírez nos llega en 2020 y está estructurada en cinco partes. La primera consiste en un estudio introductorio, para luego pasar por la nota del traductor y de ahí a una advertencia preliminar del autor donde nos adelanta que la relación entre derecho y violencia descansa en una contradicción irresoluble. Por último, el autor desarrolla dos capítulos donde desglosa sus reflexiones en torno a esta contradicción.
La primera sección del libro, el estudio introductorio, está a cargo de María del Rosario Acosta López y Esteban Restrepo Saldarriaga, quienes consideran que Christoph Menke es una de las figuras más destacadas dentro de la teoría crítica alemana derivada de la Escuela de Frankfurt. A pesar de que se lo identifique como un especialista en Hegel, supo establecer un diálogo con el pensamiento deconstruccionista francés y sus intereses gravitan dentro de la esfera de la filosofía política y la filosofía del derecho, a las cuales hace sus aproximaciones a través de Hegel, Benjamín y Derrida. Leia Mais
Amor em tempos de aplicativos: Masculinidades heterossexuais e a nova economia do desejo | Larissa Pelúcio
Larissa Pelúcio | Foto: JCNET
O roteiro do flerte tem se transformado desde o advento da era digital. A segunda metade dos anos 90 foi marcada pela emergência das salas de bate-papo e dos sítios de relacionamento, nos quais a descrição textual de si era a forma predominante de apresentação em um contexto de relativo anonimato. Os pretendentes possuíam escassos recursos de imagem e de som, deixando ao encontro pessoal o conhecimento integral e sensível de seus possíveis parceiros. O início do século XXI testemunhou avanços tecnológicos como a emergência das webcams, máquinas fotográficas digitais, escâneres à conexão de banda larga, em uma internet cada vez mais dominada pelas redes sociais. Na década seguinte, houve a disseminação dos telefones inteligentes com câmera acoplada, os quais passaram a operar quase como uma extensão do corpo.
A selfie tornou-se manifestação síntese de uma característica que, segundo Iara Beleli (2015), se impôs de maneira definitiva: o imperativo das imagens. O novo cenário de abundância das fotografias pessoais possibilitou a racionalização detalhista dos códigos transmitidos pelas imagens e o uso disseminado de filtros de edição, ambos elementos estratégicos na busca amorosa e sexual. Além das imagens, os aplicativos de relacionamento inovaram com recursos sociotécnicos para escolha e comunicação entre possíveis pretendentes, como o próprio recurso do match, o qual viabiliza o encontro entre duas pessoas, sem que nenhuma se exponha à recusa do outro. É sobre a dinâmica das relações nos aplicativos que Larissa Pelúcio se debruça, propondo um ângulo inovador de análise das relações de gênero na sociedade contemporânea, em um rico campo de pesquisa que intersecciona as temáticas da masculinidade contemporânea, a emergência dos aplicativos de relacionamento e as novas configurações do amor. Leia Mais
Confianza en la Administración de Justicia: lo que dicen les abogades: una encuesta en el Departamento Judicial La Plata | Olga Luisa Salanueva
Olga Luisa Salanueva | Foto: Ismael Francisco
La presente reseña tiene por objeto acercar a la comunidad académica un trabajo que reviste especial importancia para la reflexión sobre la administración de justicia. Este trabajo, presenta y discute los resultados del Proyecto de Investigación 11/J161 ¿Quiénes son los usuarios de la administración de justicia? Medición de los niveles de confianza en La Plata, llevado adelante por un grupo de investigación con una amplia trayectoria en el análisis de problemas socio jurídico, coordinado por la Doctora Olga Luisa Salanueva.
El rigor y el excelente procesamiento de datos, junto con la profundidad del análisis teórico y metodológico, lo hacen un texto de referencia para el análisis de la realidad regional, aportando elementos que nos permiten reflexionar sobre un tema de actualidad, como lo es el funcionamiento del Poder Judicial. Leia Mais
A Opção Sul-Americana: Reflexões sobre Política Externa (2003-2016) | Bruno Gaspar
Marco Aurélio Garcia | Foto: Roberto Stuckert Filho / Agência O Globo / 2004
Entre um Brasil para a América do Sul e uma América do Sul para o Brasil
Na História da Política Externa Brasileira (HPEB), o relacionamento entre nosso país e os vizinhos sul-americanos se constituiu num dos capítulos mais complexos nos últimos dois séculos. Ao longo dessa trajetória de país independente, diversos episódios marcaram as fases de aproximações e distanciamentos entre Brasil e América do Sul. Entre construções de identidades políticas e culturais, debate sobre fronteiras, guerras e disputas de hegemonia, tal temática é uma vertente complementar para a compreensão da formação de nosso Estado e da nossa sociedade, sendo, portanto, estratégica na construção da inserção internacional brasileira.2
Durante os primeiros anos do século XXI, sem necessariamente romper com todas as linhas de atuação anteriores, os governos Lula e Dilma ficaram marcados por uma nova fase na constituição de laços entre os brasileiros e seus vizinhos, seja da perspectiva das relações bilaterais, seja nos esforços multilaterais. A América do Sul se reafirma como um dos eixos prioritários da Política Externa durante os primeiros governos petistas (RICUPERO, 2017), num esforço de intensificação de relações e construção consciente desse espaço regional. Leia Mais
Revisitando o 11 de Setembro de 2001: entre a Esfinge e a Fênix | Boletim Historiar | 2021
A segunda torre do World Trade Center é atingida por avião e explode em chamas durante atentado do 11 de Setembro em Nova York — Foto: Chao Soi Cheong/AP/Arquivo / O Globo
Na ocasião de 11 de setembro de 2001, quatro aviões comerciais foram sequestrados por integrantes da rede Al-Qaeda e lançados contra símbolos políticos norte-americanos. Os alvos se construíram nas torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e no Pentágono, localizado em Washington D.C. Responsável por cerca de três mil mortes, os atentados repercutiram globalmente, com transmissão televisionada ao vivo em diversos países; parte desses afetados posteriormente pelas respostas aos ataques dadas pelos Estados Unidos, que, em coalizão internacional, colocaram-se em guerra nos territórios do Afeganistão (2001) e Iraque (2003).
Passadas duas décadas, as repercussões dos ataques de 11 de setembro de 2001 ainda podem ser vistas em produções acadêmicas e culturais. Dentro das universidades e centros de inteligência, por exemplo, os especialistas em terrorismo e movimentos extremistas analisaram os episódios de 11 de setembro de 2001 como o apogeu da jihad global. Na indústria cultural, por outro lado, os filmes, séries e HQ’s trouxeram enredos relacionados ao terrorismo internacional, apresentaram antagonistas muçulmanos e tornaram populares termos como jihad, Al-Qaeda, burca, sharia etc. Leia Mais
September 11, 2001 as a Cultural Trauma | Christine Muller || How Nations Remember: a narrative approac | James V. Wertsch
Os livros September 11, 2001 as a Cultural Trauma (2017), de Christine Muller, e How Nations Remember: a narrative approach (2021), de James V. Wertsch, são obras desenvolvidas a partir duma sólida base interdisciplinar (com contribuições vindas da Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, Ciência Política, entre outras) que abordam os temas da memória das nações e a importância de eventos traumáticos na respetiva memória. A presente resenha aos dois livros surge num momento oportuno da História Contemporânea, em que várias nações do mundo usam a memória para revisitar o seu passado, impulsionadas por derivas nacionalistas identitárias, por tentações revisionistas, ou por movimentos de contestação como o Black Lives Matter.
Passados vinte anos sobre o atentado terrorista do 11 de setembro, e depois de inúmeros artigos e livros sobre o trauma cultural associado à infame data, foi com muito interesse que analisei a obra de Christine Muller, que aborda o ataque terrorista como um case study de trauma cultural. O livro lançado em 2017 apresenta exemplos de produções culturais populares norte-americanas, em que a típica narrativa otimista e recompensadora do “sonho americano” é substituída por narrativas dominadas por crises existenciais, ambivalência moral e fins trágicos inevitáveis. Leia Mais
Ensinando História Antiga e Medieval no Brasil: Da inércia à potência | Brathair | 2021
“E não te esqueças de que a hora de partir chegou.
O vento levará para longe os teus olhos”.
Alexandre, o repórter (O Passo Suspenso da Cegonha).
Seis anos atrás, um grupo de professores de História Antiga e Medieval das regiões Norte e Nordeste do Brasil reunimo-nos e redigimos uma carta contra a ameaça de retirada dos conteúdos de História Antiga e Medieval do ensino escolar brasileiro, texto esse retomado na íntegra no epílogo da coletânea Antigas Leituras: Ensino de História (Recife: Edupe, 2020, organizada por mim mais os companheiros Guilherme Moerbeck e Renan Birro). Naquela carta, enfatizávamos a importância da presença curricular dos assuntos dessas temporalidades e denunciávamos a miopia de determinados segmentos que viam nesses estudos verdadeiros cavalos de Troia da história eurocentrada e colonizada que deveria ser extirpada (ou quando menos reduzida ao mínimo) das salas de aula em prol de outras narrativas, especialmente afro-ameríndias e contemporâneas. Mas por mais que discordemos dessa miopia, ela não surgiu do acaso. Leia Mais
Pandemia cristofascista | Fábio Py
O pesquisador Fábio Py lançou, em junho de 2020, Pandemia cristofascista, publicação em formato e-book, pela editora Recriar. A obra é o quarto volume da série “Contágios infernais”, organizada por Fellipe dos Anjos e João Luiz Moura. O autor da obra em questão é doutor em teologia pela PUC-Rio e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). O texto de Fábio Py chama a atenção logo no título, que é justificado pelo próprio autor:
São reflexões que versam sobre o contexto e vivência da pandemia desde os primeiros casos do novo coronavírus, no território. No título, há o termo ‘cristofascista’ porque essa é a forma de governo que está gerindo o contexto da pandemia. ‘Cristofascista’ porque instrumentaliza seu mandato pelo fundamentalismo evangélico conservador (PY, 2020, p. 9). Leia Mais
Crítica Historiográfica | UFRN/UFS | 2021
Crítica Historiográfica (Natal/Aracaju, 2021-) Publica resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas especializadas, resultantes da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História.
A revista cumpre o objetivo de fomentar a cultura da avaliação da escrita da História, com foco no diálogo entre autores(as) de resenhas e autores(as) e leitores(as) de obras de História. Assim, abre espaço não apenas para a resenha, mas aceita também as réplicas dos autores e eventuais comentários dos leitores da obra resenhada e da resenha.
A revista também se engaja na valorização do gênero textual resenha como instrumento de comunicação científica, reivindicando, inclusive, a sua inclusão como produto intelectual na Plataforma Lattes e no Sistema de Coletas Capes.
Crítica Historiográfica aceita e publica em média sete trabalhos por volume bimestral, produzidos por pesquisadores(as) de todos os níveis de formação, com espaço distribuído na seguinte proporção: doutores (a partir de 50%), doutorando(a)s, mestre(a)s, mestrando(a)s/especialistas/graduado(a)s graduandos (até 50%).
Trata-se de empreendimento criado e mantida por um consórcio de grupos de pesquisa radicados em instituições públicas de ensino superior: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Periodicidade bimensal
ISSN SSN 2764-2666
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Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia | Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Camilla de Almeida Santos Cidade e Vanessa Clemente Cardoso
Não há como uma pesquisadora e mãe ler 824 páginas compostas por 134 relatos de outras mães e pesquisadoras sem criar uma conexão autoral e afetiva. Em alguns momentos era como se estivesse lendo a minha própria experiência como mãe e pesquisadora tendo que escolher entre o Lattes e o leite1, a maternidade2 e a ciência. Uma escrita afetiva que demonstra o poder feminista e coletivo de transformar o patriarcado com seus estatutos e normas violadores e a beleza de nossas lutas para reexistir como mães e cientistas que precisam mais do que um teto todo seu (WOOLF, V. 1929). Mas de ocupar todo o mundo!
E precisamos travar batalhas, pois, muitas de nós, mesmo as “estabelecidas” no mundo acadêmico e profissional, ainda precisam viver como se entre mundos, tendo que conciliar, escolher, desafiar, revirar, reclamar. Fazer dos lutos a substância das lutas, como disse na apresentação ao livro Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco e manifestar a presença de nossas grafias de mulheres, sobre mulheres, sobretudo para mulheres, como prefaciou Manuela D´avila, mesmo que às mães os dias pareçam se escassear de tempo, mas não de exaustão e de cansaços. Leia Mais
Rural e Urbano | UFPE | 2016
A Revista Rural-Urbano (2016-) é um periódico semestral vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e gerida pelos grupos de pesquisas “Produção do Espaço, Metropolização e Relação Rural-Urbano” da Universidade Federal Rural de Pernambuco (GPRU/UFRPE) e “Sociedade & Natureza” da Universidade Federal de Pernambuco (Nexus/UFPE). Seu objetivo é constituir-se enquanto canal de veiculação científica da rede de pesquisadores sobre as relações rural-urbano, bem como congregar artigos, ensaios e resenhas científicas a partir da História e da Geografia, que versem sobre processos passados e atualmente existentes no espaço rural e no urbano. A revista também objetiva congregar trabalhos das áreas de História, Geografia, Sociologia, Economia, Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Serviço Social e Educação.
Periodicidade Semestral
Acesso livre
ISSN 2525-6092
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Ensino de História em tempos de pandemia | Fronteiras – Revista catarinense de História | 2021
Em junho de 2021 enquanto trabalhávamos no referido dossiê, o Brasil ultrapassou a devastadora marca de 540 mil pessoas mortas em decorrência da Covid 19. Um cenário desolador, marcado por ações de uma necropolítica, que causaram sentimentos de muita dor e revolta. A soma dessas mortes evidencia um contexto assustador iniciado em março de 2020, quando os primeiros casos de contaminação pelo novo coronavírus começaram a ser contabilizados no país. De lá pra cá temos somados perdas e indignação, seja pelo negacionismo que pautou a política do governo federal em relação às medidas protetivas ou pela demora na compra das vacinas.
Entre as muitas ausências que temos enfrentado é preciso relacionar aquelas relativas à educação. Esse novo contexto causou mudanças profundas no complexo cenário educacional, trazendo claramente prejuízos, principalmente no que tange a prática docente e a vida do estudante, sejam pelas abruptas condições nas quais a grande parcela de professores e professoras foram lançados, com aulas no formato remoto, com horários síncronas e assíncronas, precisando se adequar a plataformas digitais, alterando as rotinas e experiências docentes e discentes, acarretando adversidades na aprendizagem.
Diante do novo panorama a partir da conjuntura pandêmica, diversas áreas das ciências humanas buscam interpretar o momento vivido pela sociedade através de produções acadêmicas, em especial a História. Nesse sentido, historicizar essa experiência, como o que pretendemos neste dossiê, é registrar os momentos vividos, ouvir os sujeitos que dela participam, sendo um compromisso social e importante. Assim, temos aqui na Fronteiras: Revista Catarinense de História, um espaço que se articula a função social da História e dos historiadores e historiadoras.
O presente número da Revista Fronteiras é composto por 12 artigos, 1 entrevista, 2 resenhas, 1 relato e 1 texto complementar. O dossiê número 37, intitulado Ensino de História em tempos de pandemia é composto por 7 artigos, uma entrevista e um texto complementar. A seguir trazemos algumas reflexões empreendidas por alguns historiadores e historiadoras desse denominado novo “normal”, que foge de qualquer referência à normalidade pré-pandemia vivenciada por gerações, que a partir das suas vivências diárias, em sociedade, diante dos novos formatos das salas de aulas explicitam desejos, visibilizam preconceitos existentes, reforçam a importância dos direitos conquistados, marcam as suas impressões a partir do seu lugar de fala: O ser professor(e) (a).
O artigo que abre o dossiê é assinado por Flávia Eloisa Caimi, Letícia Mistura, Pedro Alcides Trindade de Mello e tem como título uma questão fundamental: Aprendizagem histórica em contexto de pandemia: o que pode ser e conter uma aula de História? A discussão parte do contexto de suspensão das atividades presenciais em instituições educativas e consequente instalação do ensino remoto para problematizar os impactos no processo de construção e realização da aula de História.
E eu, professor?! O ensino remoto de história e o cenário de inclusão deficitária em áreas rurais e periféricas do Estado do Pará é assinado por Catarina da Silva Moreira. O artigo traz os resultados de uma pesquisa qualitativa desenvolvida na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Pádua Costa, em Santa Bárbara do Pará e onde se buscava dados para a percepção da experiência de ensino de História no referido contexto.
Derick Douglas Domiciano, Ilisabet Pradi Krames, Sabrina Silva Campos, Marcel Oliveira de Souza trazem a questão do negacionismo e do revisionismo no texto O ensino de História diante dos discursos negacionistas e revisionistas no contexto da pandemia: desafios e possibilidades. O texto traz reflexões sobre as implicações que os discursos negacionistas e revisionistas trazem para o processo de ensino de História. Os autores abordam a polarização presente nos discursos negacionistas e revisionistas considerando que os mesmos têm grande impacto na formação de jovens estudantes. E defendem que o ensino de História seja espaço para construção de mais sensibilidade e alteridade, sentimentos esses necessários para a sedimentação de uma sociedade mais humanizada.
O sujeito histórico negro para além do epistemicídio é de autoria de Luiz Gustavo Mendel Souza e apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou investigar livros didáticos da rede municipal de Campos dos Goytacazes/RJ e sua abordagem sobre a Lei nº 10.639/03. Pautando nos pressupostos da literatura decolonial o autor faz uma pergunta chave: a História da África e da cultura afro-brasileira seria retratada apenas pela ótica da escravidão nas páginas dos livros didáticos?
A ausência do ‘olho no olho’, do abraço espontâneo e das brincadeiras: Desafios dos professores de História em tempos de pandemia no Espírito Santo é o artigo assinado por Esdra Erlacher, Bruna Mozini Subtil, Brunna Terra Marcelino, Miriã Lúcia Luiz. Neste artigo são analisados os dados de uma pesquisa que buscou a experiência de 33 professores atuando em ensino remoto durante a pandemia de Covid-19. Os dados da pesquisa levam a discussão sobre temas como a precarização do trabalho docente e o adoecimento dos profissionais.
Ainda partindo da experiência escolar, Silvia Vitorassi apresenta o texto Experiência pandêmica em um ano histórico. A autora apresenta um relato onde tem espaço para seus questionamentos e angústias frente ao trabalho remoto desenvolvido a partir do momento de estabelecimento das medidas de isolamento por conta da pandemia. A narrativa aborda questões relevantes tais como: a romantização do papel docente, os abusos cometidos pelo governo ao não estruturar um planejamento mínimo para as condições de trabalho frente à pandemia e os limites estabelecidos entre pessoa e profissional.
O texto de Odair Souza e Patrícia de Freitas Ensino de História e temas sensíveis em tempos de pandemia traz questões resultantes de uma pesquisa realizada com estudantes da educação básica e ensino médio da Escola de Educação Básica Prof.ª Maria do Carmo de Souza localizada em Palhoça/SC. A pesquisa em questão buscou conhecer a situação desses estudantes frente ao ensino de História em situação de aulas remotas. E além disso priorizou também conhecer os limites do processo de aprendizagem frente aos chamados temas sensíveis.
Na Entrevista com o professor Fernando de Araujo Penna observamos de uma forma ampla o pensar do professor sobre diversos temas presentes da contemporaneidade, principalmente os articulados à profissão do Historiador e da Historiadora, reforçando ainda qual o papel dos professores na sala de aula. Destaca a partir das suas impressões sua trajetória na luta pelo ensino de história na educação básica e na formação de professores de História. Além disso, reflete sobre as funções sociais e éticas dos profissionais de História na sociedade. Recentemente Fernando Penna vem participando da comissão de compromissos éticos do exercício da docência no ensino história da ABEH. Concluindo, aborda os impactos da pandemia na formação inicial dos futuros professores de História.
Para encerrar os textos que compõem o dossiê temos um texto complementar, de autoria de nosso entrevistado: Fernando de Araujo Penna. O texto denominado “Escola Sem Partido” como ameaça à Educação Democrática: fabricando o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola, foi publicado anteriormente, em 2017, na obra “Golpes na História e na Escola: o Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI”1. O texto serve como uma contextualização da entrevista – que é inédita, por analisar a sua concepção de escolarização no Brasil. No texto, são apresentadas as representações de alunos e de professor, assim como as finalidades da escola, apresentadas nos discursos dos líderes e defensores da Escola Sem Partido. Mostrando como tais lideranças são desprendidas do contexto escolar e trazem discursos modulados pelo ódio ao professor.
Na atual edição contamos também com 5 artigos, 1 relato e 2 resenhas. Escrita da História e sexualidade: Cassandra Rios, ausência e invisibilidade, por sua vez, é a discussão proposta por Flávia Mantovani. A autora traz à cena a importância de uma escrita da História que aborda questões relativas à História das Mulheres. No caso, a discussão apresentada se volta para a produção literária de Cassandra Rios (1932-2002), conhecida como “a escritora mais proibida do Brasil”. A pesquisa desenvolvida pela autora permite perceber nos escritos da referida autora a possibilidade de uma escrita da História que dê visibilidade a outros sujeitos e suas sexualidades.
As narrativas da cinematografia soviética do período pós-guerra e início da Guerra Fria tornaram-se objeto de reflexão do artigo de Gelise Cristine Ponce Martins e Moisés Wagner Franciscon intitulado Os Estados Unidos e a Inglaterra vistos pelo cinema soviético do stalinismo tardio: a Guerra da Crimeia e os mares, no qual tanto o texto quanto as imagens permitem aos leitores olhares de como o investimento na guerra de narrativas a respeito das versões das histórias e de suas mensagens de união nacional soviética objetivou disseminar a circulação da narrativa do inimigo externo.
No texto de autoria de Wagner Cavalheiro, Roberta Barros Meira e Mariluci Neis Carelli, nomeado de A cristalização do açúcar e da ciência na segunda metade do século XIX: o engenho da fazenda Pirabeiraba e a racionalização da agricultura, realizaram uma operação historiográfica interdisciplinar com uso combinado teórico-metodológico da geografia e da história enfocando o humano habitante da paisagem para escreverem um artigo da história agrária. Os pesquisadores lançaram luz às mudanças do campo científico no século XIX para compreender alguns grupos joinvilenses em relação ao trabalho e à produção rural vinculada ao Engenho.
Cacique Orides: um retrato da resistência indígena no oeste de Santa Catarina escrito por Angelo José Franciosi de Souza, Jaisson Teixeira Lino, Fábio Araújo e Gustavo Andre Glienke Feyh denotou a força da resistência indígena em se apropriar dos dispositivos de poder da cultura política não indígena. Generoso artigo enfoca em que medida a atuação do cacique Kaingang Orides Belino Correia da Silva na posição de vice-prefeito e prefeito de Ipuaçu-SC implementou melhorias para a comunidade nativa da região.
Horizontes do ensino de história na América Latina escrito por Felipe Ziotti Narita realiza conexões teóricas com recortes temáticos levando em consideração outras demandas pelo conhecimento histórico. Artigo denso ao abordar três aspectos do ensino de história em escala decolonial da América latina, quais sejam, primeiro sobre a “produção das identidades latino-americanas”; o segundo “as relações entre ensino de história e as funções do conhecimento histórico”; por fim, a dimensão de digitalização do ensino de história com seus públicos. Problemáticas de como realizar o ensino não eurocêntrico em países latinos ao trazer o fontes e reflexões pertinentes do Chile, Argentina, Brasil, Venezuela, México e Colômbia. Vale a leitura.
O relato O Programa de Pós-Graduação em História da UFFS: algumas Memórias, de Antonio Marcos Myskiw, conta a trajetória do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó/SC, que completou 5 anos de efetivo funcionamento neste mês. O texto vem para celebrar a data de fundação do PPGH/UFFS, narrando as lutas e o ensejo para sua aprovação enquanto curso reconhecido pela CAPES. O relato compartilha algumas experiências vivenciadas no PPGH/UFFS, assim como, faz conexões com o cenário da Pós-graduação no Brasil.
A resenha de Wellen Pereira Augusto atuando no campo jurídico ofereceu o título sugestivo desta, qual seja: A história do Brasil é brasileira? Duelo entre presente e passado, no qual destaca as múltiplas dimensões da obra reflexiva da antropóloga Lilian Moritz Schwarcz. O tema sobre o autoritarismo brasileiro não é novo no cenário historiográfico, todavia é uma obra necessária para leitores preocupados com os rumos do Brasil e dos brasileiros, sobretudo em situação de vulnerabilidade.
A resenha A Canção Latino-Americana em Questão, de Igor Lemos Moreira, analisa a obra Do folclore à Militância: A canção latino-americana no século XX, da historiadora Tânia da Costa Garcia. O autor mostra o texto resenhado é uma referência fundamental a todos/as historiadores/as que decidam se envolver não somente no campo da música latino-americana, mas apresenta uma possibilidade metodológica ímpar aos estudos da História da Canção em perspectiva comparada.
Assim, mesmo com as incertezas de tempos pandêmicos, esperamos levar para os leitores textos provocativos e densos, ou pelo menos, que possamos através deles, dividir nossas angústias e desafios. Desejamos uma boa leitura!
Nota
1 MACHADO, André Roberto de A.; TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Orgs.). Golpes na História e na Escola: Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez Editora: ANPUH SP, 2017.
Organizadores
Cintia Régia Rodrigues
Nucia Alexandra Silva De Oliveira
Yomara Feitosa Caetano de Oliveira Fagionato
Referências desta apresentação
RODRIGUES, Cintia Régia; DE OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva; FAGIONATO, Yomara Feitosa Caetano de Oliveira; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras – Revista catarinense de História, n. 37, p. 3-8, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
Memórias de professores nordestinos de História: docência no contexto da pandemia de Covid-19 | Joaquim Tavares Conceição e Paulo Heimar Souto
O livro dos professores Joaquim Tavares da Conceição e Paulo Heimar Souto é uma reunião de textos acadêmicos resultantes de trabalhos finais da disciplina “Tópico Especial em Ensino de História. História, memória, identidade e a aprendizagem histórica”, ministrada no Programa de Pós-graduação em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Seus capítulos, em forma de artigos, são redigidos pelos mestrandos do programa, sobre orientação dos referidos professores.
A obra é estruturada em cinco capítulos que debatem as dificuldades e desafios enfrentados pelos professores de História durante o período de isolamento social provocado pela pandemia de COVID-19. Amparados pela metodologia da História Oral, os autores discutem o ensino remoto e o uso das tecnologias digitais pelos professores entrevistados, chamados de colaboradores. Algumas das experiências dos professores que serviram de base amostral são relacionadas e interpretadas junto aos conceitos de memória do teórico Michael Pollak e aos conceitos da história oral de José Meihy e Leandro Seawright. Leia Mais
Imaginar, medir y ordenar. Mapas, planos y agrimensores en Uruguay | Museu Histórico Nacional, Adrés Azpiroz, Nicolás Duffau e Lucía Rodríguez
Imaginar, medir y ordenar. Mapas, planos y agrimensores en Uruguay, es el catálogo de una muestra inaugurada a fines de 2019 en la sede Casa Rivera del Museo Histórico Nacional (Uruguay). La muestra, que tiene el mismo nombre que su catálogo, presenta mapas y planos de distintas épocas, elaborados con diversos propósitos. Junto a estos, se exhiben además instrumentos propios del quehacer de la agrimensura. Las piezas exhibidas proceden de varios repositorios nacionales y de colecciones particulares.
Es resultado de un trabajo multidisciplinario y de la cooperación interinstitucional. La investigación que la sustentó fue coordinada por los historiadores Nicolás Duffau y Lucía Rodríguez y la ingeniera agrimensora Verónica Fagalde. La coordinación del proyecto expositivo estuvo a cargo del director del Museo Histórico Nacional, Andrés Azpiroz y contó con la colaboración de un equipo de historiadores, con asesores en el área de agrimensura y con el trabajo del taller de restauración del museo. Leia Mais
Masculinidades y feminidades: estereotipos, estigmas e identidades colectivas (Latinoamérica en el siglo XX) | Historia y sociedad | 2021
Ruth López Oseira recebe distinção acadêmica | Imagem: UNAL
El torbellino de la modernidad generó un ciclo de permanentes transformaciones en la organización política de los nuevos Estado-nación, en la expansión capitalista ultramarina, en las metrópolis que fueron el escenario privilegiado de esos cambios y en la vida cotidiana de distintos sectores sociales. En un contexto que también era de una profunda incertidumbre ante el vértigo del movimiento incesante emergió la necesidad de hallar puntos de fijación a través de medios que incluyeron la reinvocación al estadio ejemplar que iluminaba el arquetipo, término que los griegos asociaron a la noción platónica de idea originaria y que Johann Winckelmann buscó plasmar mediante la historia del arte. Un paso más adelante fue dado cuando aquello que era un modelo idealizado tendió a convertirse en un presupuesto socialmente aceptado y por ello más proclive a plasmarse en hechos concretos.
La idea individualizada del arquetipo a seguir pasaba a ser el estereotipo, entendido como un patrón plasmado en la caracterización de colectivos sociales precisos. Nacido en el siglo XVIII en la imprenta, con el molde que sustituía al tipo original para reproducirse de manera sólida e inmutable en forma indefinida, el estereotipo no tardó en convertirse en una metáfora social que venía a exaltar la impresión de rasgos inmodificables devenidos del vínculo entre un registro, una imagen y las cualidades morales que le fueron atribuidas. Si en estos desplazamientos subyacía una voluntad de fijar algo inmutable en una sociedad de permanentes cambios, ello no entrañaba una desvaloración per se porque el estereotipo podía ser positivo o negativo, de manera que destacar esta última condición requirió adicionar las representaciones generadas desde el estigma, para convertir lo que inicialmente eran las marcas que llevaban en el cuerpo los esclavos, en un atributo deplorable para cualquier otro colectivo considerado indeseable. Leia Mais
Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica | Frank Gaudichaud, Jeffrery Webber e Massimo Modonesi
O livro [II] traz uma reflexão sobre os motivos que fizeram os governos progressistas latino-americanos, que outrora possuíam bastante força política para governar diversos países, a estarem atualmente sucumbindo frente a novas investidas da direita, como a eleição de Bolsonaro no Brasil, após mais de uma década de PT que se inicia em 2003 com Lula e se encerra em 2016 com Dilma. Nesse sentido, o livro realiza uma análise crítica dos governos de esquerda das duas primeiras décadas do século XXI com o objetivo de contribuir para as reflexões sobre essa temática.
O continente cresceu com lutas, rupturas e resistências. Entender o passado histórico nos permitirá compreender os fatos que sucederam a partir do fim da década de 1990 na região. O aspecto insurgente pode ser considerado um catalisador de mudanças que se associam aos governos progressistas.
O livro realiza uma análise crítica em torno desse tema. Podemos encontrar avaliações positivas e negativas dos chamados governos progressistas latino-americanos. Há, neste trabalho, uma narrativa imparcial, que avalia aspectos históricos, sociais e econômicos ocorridos entre o período das décadas de 1990 a 2000. Faz-se necessário destacarmos alguns pontos que se entrelaçam na análise dos três autores na obra, que se divide em três capítulos, o primeiro intitulado “Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana.” de Frank Gaudichaud [III], o segundo, “Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana” de Jeffery Webber [IV] e o terceiro “El Progresismo Latinoamericano: Un Debate de Época” de Massimo Modonesi [V].
Para melhor compreensão do período do final da década de 1990, é importante considerar anos anteriores. Por isso, Gaudichaud demonstra em seu capítulo dados econômicos e sociais desde a década de 1980. Por exemplo, no período de 1980 a 2003 o desemprego aumentou de 7,2% para 11%. Além disso, no mesmo período, o salário mínimo diminuiu em um em média de 25%, e o trabalho informal teve um aumento de 36% para 46%.[VI]
Além disso, no decorrer da década de 1980, houve a mobilização dos movimentos de esquerda e a formação de um novo ethos militante. Novos movimentos sociais ganharam força, como o feminista, o indígena e o negro. Os desgastes das ditaduras militares, sobretudo pelas crises financeiras que vinham enfrentando, serviram de combustível para esses movimentos conquistarem espaço. Contudo, apesar de a década de 1980 ser considerada favorável às manifestações democráticas, pois encerra-se um estado repressivo, pelo lado econômico, a década de 1980 foi desastrosa, marcada pelos ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), tais como as privatizações, restrições salariais e o fim de barreiras aduaneiras [VII].
Portanto, segundo os autores, no final da década de 1990 surgiram diversos debates e críticas sobre o neoliberalismo. Inúmeros movimentos sociais estavam insatisfeitos, na ocasião, com um sistema econômico neoliberal que, na narrativa de partidos políticos e movimentos sociais, sujeitava o Estado ao interesse de empresários e oligarquias.
Dessa forma, a partir dos anos 2000, podemos perceber que essa insatisfação com a hegemonia neoliberal começa a agitar os movimentos populares e de esquerda, que buscavam uma mudança nas estruturas, no Estado, ou seja, de baixo para cima. O cenário era propício para mudanças, as agitações nas calles, os movimentos sociais e a luta contra o imperialismo norte-americano. Portanto, a democracia novamente parecia o caminho para as mudanças, o que estimulou novamente a organização popular através de votos.
À vista disso, os autores apontam que o ciclo dos governos de esquerda, que se inicia em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela, tem continuidade durante os anos 2000. Essas experiências têm suas bases nas raízes históricas do continente e surgem com a intenção de refundar a sociedade. Porém, em alguns casos foi necessário romper com mais veemência com antigos poderes na região, como a própria Venezuela com revoltas anti-imperialistas, a mais famosa delas chamada de Caracazo que contou com a maioria da população lutando por mudanças sociais e políticas.
Porém, precisamos destacar que dentro dessa “Onda Rosa” [VIII] houve diferentes formas de governos progressistas. Isto é, existiram experiências mais radicais e outras mais moderadas, ainda que fazendo parte do mesmo movimento. Isso explica-se pelas próprias diferenças entre os países. Dessa maneira, não podemos generalizar as experiências, ou seja, os projetos de governos progressistas tiveram suas particularidades em cada região.
Neste contexto, líderes políticos como Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia) emergem no cenário político com grande apoio popular, tendo como conceitos principais de seus governos o anti-imperialismo e antineoliberalismo. Esses líderes políticos assumiram o embate político com os Estados Unidos como um aspecto central em sua inserção internacional.
Tal postura gerou reações dos Estados Unidos. Como exemplo disso, citamos a interferência norte-americana na Venezuela, que ocorreu com a tentativa de desestabilização à experiência progressista de Hugo Chávez, em abril de 2002. Os EUA utilizaram-se de agências, como a Central Intelligence Agency (CIA), para desestabilizar a gestão de Chávez. No capítulo de Webber, notamos inclusive, exemplos recentes de apoio norte-americano à instabilidade nos países Latino-americanos. Podemos citar o golpe militar de Honduras em 2009 que destituiu o presidente Manuel Zelaya e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012.
No caso venezuelano, o ocorrido pode ser explicado pelo fato da Venezuela ter a maior reserva de petróleo do mundo e isso estava no controle norte-americano. O golpe só foi frustrado pelo fato de Chávez ter contado com apoio de grupos da sociedade civil e das Forças Armadas venezuelanas. Como destacam os autores, as estratégias de intervenções imperialistas norte-americanas têm se adaptado para serem feitas através da grande mídia, com ataques constantes à credibilidade de governos de esquerda.
Para além do anti-imperialismo e anti-neoliberalismo que os governos progressistas de esquerda propuseram, podemos ressaltar a forte raiz nacionalista e libertária de Símon Bolívar nestes governos. Essa imagem de Símon aparece mais ainda na “Revolução Bolivariana” que Chávez promoveu na Venezuela. Faz-se isso na tentativa de libertar a América Latina por meio do conhecimento de seu passado histórico de luta e resistência, fazendo uso dos grandes heróis do passado, tal como Símon Bolívar, San Martin, dentre outros.
As diferenças entre as experiências de esquerda residem, por exemplo, no fato de algumas delas terem sido caracterizadas como revolucionárias ou experiências moderadas/reformistas, segundo os autores. Isso está baseado nas reformas econômicas, sociais, políticas que esses governos propõem em relação aos modelos que já estavam implementados. As experiências mais revolucionárias são aquelas que mais promoveram rupturas em uma resposta ao neoliberalismo. Já as mais moderadas/reformistas são as que, ainda que tenham promovido algumas mudanças progressistas, deram continuidade às práticas dessa doutrina.
Durante uma década de governos progressistas na América Latina, podemos concluir que a política de distribuição foi o foco principal. Esses governos buscaram implementar mudanças sociais e econômicas, sobretudo, para as grandes maiorias. Projetos como o “Bolsa família” do PT no Brasil são um exemplo disso. Não somente isso, os governos de esquerda buscaram aumentar o poder de consumo das classes menos favorecidas. Por isso, durante esses governos muitas famílias que outrora não tinham condições, conseguiram conquistar bens como casa própria. Grande parte deve-se ao fato dos governos progressistas terem se aproveitado da alta das commodities, ocorrida em 2003 com a alta demanda industrial que a China promoveu.
Este país foi o principal destino das exportações da região no período de 2002 a 2012. Matérias-primas exportadas, como petróleo, soja, dentre outras, tiveram um aumento de preço, favorecendo a economia latino-americana. Portanto, um dos méritos desses governos é ter aproveitado esse aporte financeiro para investir nos projetos sociais. Isto deu resultado, pois vimos que, durante uma década, um número considerável de pessoas saíram da pobreza. Como aponta Gaudichaud, “Según la CEPAL, 70 millones de personas salieron de la pobreza en una década…” [IX]
Durante os governos de esquerda, também podemos destacar as nacionalizações de empresas que anteriormente haviam sido privatizadas. Esse processo visou combater um “mal” para a economia dos países latino-americanos, pois, em contraponto com o setor privado, o Estado ficava com menos recursos financeiros do que poderia. Ou seja, as empresas estrangeiras repassavam mais capital para seus países de origem, do que ao Estado em que elas estavam sediadas, além disso, é importante ressaltar que as empresas foram nacionalizadas de acordo com as políticas do mercado, isto é, com negociações do Estado com as empresas e com taxas de indenizações.
Alguns exemplos dessas nacionalizações ocorreram na Bolívia e na Venezuela com as empresas de gás, petróleo, água, etc. Na Bolívia, em 2000 e 2005, ocorreram grandes vitórias populares antes mesmo de Evo Morales ser presidente, como as “Guerras da Água” em 2000. Esses episódios terminam com a expulsão de duas multinacionais: a estadunidense Bechtel e a filial de Suez, Aguas del Illimani. Essas vitórias fizeram o governo desmercantilizar a água. Além disso, também houve a vitória popular na questão do gás em 2003. Esse alavancou a imagem de Evo Morales como um líder pelas lutas nacionais. O acordo cancelado com a empresa americana Pacífic LNG tinha como principais justificativas o fato de que afetava a soberania da Bolívia, uma vez que fazia com que ela fizesse negócios com o Chile (recentemente há um histórico de embates entre os dois países). Outra justificativa era que a Bolívia receberia um valor “x” pelo gás, e este seria vendido em solo americano por outro bastante superior.
Já na Venezuela, Chávez recuperou o controle da Petróleos de Venezuela Sociedade Anônima (PDVSA) e multiplicou os contratos com empresas estrangeiras de origens distintas onde entra, por exemplo, a aproximação com a China. As nacionalizações foram essenciais para inversão da política social, saúde e educação que os governos progressistas promoveram durante seu período na América Latina.
O Produto Interno Bruto (PIB) durante os governos progressistas cresceu na América Latina com casos excepcionais como a Bolívia, cujo PIB subiu de $8 bilhões em 2002 a $30 bilhões em 2013, de acordo com Gaudichaud [X]. Isso pode ser explicado pela alta dos preços das matérias-primas (como o petróleo) e investimento no agronegócio, ainda que isso tenha desagradado a setores sociais. Além disso, as experiências nacionais-populares que os governos progressistas implementaram também contribuíram para a economia interna, com o aumento do número de empregos e maior poder de consumo. Isso se fez por políticas redistributivas, assistencialistas e com concessão de créditos.
Como debatido por Massimo Modonesi, essa estratégia, voltada para a democratização do consumo, permitiu às pessoas que saíram da pobreza ou extrema pobreza contribuírem para a economia, gerando mais riqueza. Por outro lado, essa estratégia contribuiu também para que os governos progressistas, no que diz respeito à parte econômica, possam ser analisados como projetos conciliatórios. Haja vista que a democratização do consumo favorecia também a classe dominante, ou seja, segmentos da sociedade que são compostos majoritariamente por empresários, bancários, e, segundo Gaudichaud, isso resultou em consequências negativas para a esquerda pois podemos compreender que politicamente teria sido melhor para a esquerda que a incorporação das classes populares tivesse sido através da politização e não somente através do acesso ao consumo.XI
Portanto, uma das críticas que o livro faz aos governos progressistas deve-se ao fato do grande capital ter tido uma alta lucratividade durante suas gestões. Como aponta Webber, “tales mejoras modestas para las clases populares coexistieron con ganancias netas sin precedentes para el capital privado extranjero y nacional invirtiendo en sectores de recursos” [XII]. O agronegócio foi uma atividade que pode ser citada como exemplo. Os seus membros contaram com incentivos financeiros à produção, diminuição da burocracia e as economias do Estado se mantiveram e se intensificaram dependentes desse setor. O Brasil é um exemplo cuja economia depende de maneira relevante da exportação de soja. Durante o governo de Dilma Rousseff, houve um grande incremento nessas atividades, segundo Jeffery Webber.
Como apontado por Massimo Modonesi, os grupos indígenas merecem destaque como agentes políticos bastante relevantes na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo na América Latina, entre as décadas de 1990 e 2000. Ao longo da história do continente, desde as invasões feitas pelos europeus, os indígenas têm sido perseguidos, exterminados e excluídos de um território que lhes pertencia. A mentalidade colonizadora que se faz presente até os dias atuais faz com que esses grupos sejam excluídos da sociedade, acentuando a vulnerabilidade desses povos indígenas. A constante perda de seus espaços, tão essenciais para a vida em comunidade que precisam, afeta diretamente a manutenção da cultura desses povos. Esses fatores geram um apagamento da cultura e identidade desses grupos, o que muitas vezes é legitimado pelo Estado, uma vez que falha em ter políticas que possam proteger esses grupos, suas terras e seu modo de viver.
Como debatido nos capítulos de Gaudichaud e Modonesi, após esse descaso e perseguição ao longo de diversos anos na América Latina, a resistência e a união se tornaram bastante presentes no modo de viver desses grupos indígenas, e por conta disso eles conseguem se mobilizar politicamente para continuar com suas reivindicações aos seus direitos à terra e à defesa da mãe natureza. Fazem ouvir suas vozes e marcham pelas ruas em manifestações agindo o ser político e chamando a atenção para o fato dos indígenas terem espaço em qualquer projeto de Estado na América Latina. Esses grupos estavam articulados, e com consciência política, e durante a época do descontentamento com o neoliberalismo, eles se uniram com outros grupos sociais em torno de um ideal comum, a luta contra o imperialismo.
Como afirma Gaudichaud, podemos destacar os Mapuches no Chile e a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) no Equador. Esses grupos apoiaram os governos de esquerda e obtiveram respeito e respostas quanto a muitas de suas reivindicações. Porém, antes de ser esquerda ou direita esses grupos são primeiramente indígenas, e vimos isso em diversas vezes em que eles também se chocaram com decisões dos governos de esquerda, como ocorreu a partir de 2013 no Equador em manifestações questionando o presidente Rafael Corrêa, principalmente após a decisão de explorar o Parque Nacional Yasúni, abrindo-a a empresas mineiras. Ou seja, Corrêa adotou o discurso de exploração para justificar seu projeto econômico de redistribuição, o que para muitos pode ser entendido como uma política que busca um plano mais amplo para a nação equatoriana, mas que foi visto por esses grupos indígenas como uma traição por afetar diretamente suas matrizes.
Diante do extrativismo e do avanço do setor capitalista do agronegócio sobre os recursos da natureza, diversos grupos resistentes a esses ideais têm se chocado com o capital privado, como os camponeses, que defendem o meio ambiente e, em especial, os indígenas, como apontado no livro. Logo, é correto afirmar, segundo o capítulo de Webber, que esses grupos indígenas possuem uma ação política muito importante e uma voz politicamente ativa [XIII].
Nesse sentido, em alguns países latino-americanos, observamos que a luta de classes é muito recorrente. Como apontado pelos autores, o enfrentamento de grupos com interesses antagônicos se faz presente no continente, como por exemplo os movimentos sociais, indígenas, que discordam de projetos defendidos pelos grandes empresários, bancários, dentre outros. No livro, percebemos um viés marxista na análise dos autores que mostram como a temática da luta de classes é relevante para compreendermos como ocorreu a luta pela terra, por direitos sociais, por um Estado amplo de direitos em diversos países da América Latina como, por exemplo, nas experiências mais notórias dos governos progressistas: Bolívia, Equador e Venezuela.
Notas
II. O livro Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica, 2019 de organização de Franck Gaudichaud, Jeffery Webber, e Massimo Modonesi, fazem uma análise geral dos movimentos de esquerda latino-americanos iniciando em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela até 2019 com o golpe a Evo Morales na Bolívia. Esses movimentos se acentuaram nesse período pois havia um descontentamento em diversos países latino-americanos com o projeto de direita: Neoliberalismo. Entretanto, o livro também irá apontar que o continente tem um histórico de revoltas, revoluções, e de lutas, em períodos que antecedem o neoliberalismo.
III. Frank Gaudichaud possui uma linha de pensamento marxistas além disso é francês, o que para esse estudo é bastante relevante pois permite ao mesmo uma análise de fora do objeto de estudo.
IV. Jeffery Webber é estadunidense mas visitou os centros de pesquisas da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) em Quito, Equador, além do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA) e o Centro Boliviano de Estudos Multidisciplinares (CEBEM) em La Paz, Bolívia.
V. Massimo Modonesi pode ser destacado pelos seus estudos de movimentos sócio-políticos em México e América Latina e de conceitos e debates marxistas, além de ser diretor da revista “Memoria del Centro de Estudios del Movimiento Obrero y Socialista (CEMOS) e da revista OSAL de CLASCO (2010-2015).
VI. GAUDICHAUD, Frank. Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 22
VII. Um reflexo da desastrosa economia da América Latina na década de 1980 pode ser a queda do Produto Interno Bruto (PIB). Em fins do século XX o PIB na América Latina caiu consideravelmente de 3,8% em 1997 para 0,9% em 1998. Ou seja, uma queda brusca que representa quase ¼ em menos de um ano.
VIII. O que nós conhecemos hoje pelo nome governos progressistas foi um giro político impulsionado pela esquerda em diversos países da América Latina. Exemplo de Equador, Bolívia, e Venezuela, que podem ser consideradas como as mais notórias experiências deste “giro a esquerda”. Mas também podemos citar Brasil, Argentina, Uruguai, entre outros. Essas experiências foram apelidadas também como “marea rosa“.
IX. Ibidem, p. 46
X. Ibidem, p. 46
XI. Ibidem, p. 83
XII. WEBBER, Jeffery. Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 114
XIII. Analisamos que em alguns países como Equador, a ruptura de Corrêa com os grupos campesinos, com grupos indígenas como a CONAIE, gerou um desgaste político do então presidente. Ou seja, essa ruptura pode ser entendida como relevante pois antes dela o próprio Rafael Corrêa havia recebido prêmios e grande visibilidade pelo projeto Yasúni, sendo coerente afirmar que este evento foi um ponto chave para sua imagem política.
Referências
GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019.
João Carlos Calzavara – Graduando do curso de História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI). Bolsista do Projeto de Extensão “Ideias Políticas e História do Tempo Presente da América Latina entre 1998 e 2018: uma comparação entre Bolívia, Equador e Venezuela”. E-mail: jccalzavara@gmail.com
GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019. Resenha de: CALZAVARA, João Carlos. Boletim Historiar. São Cristóvão, v.2, n.8, abr./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].
A vida e o mundo: meio ambiente patrimônio e museus | Paulo H. Martinez
Estela Okabayaski Fuzii, Angelita Marques Visalli, Paulo HenriqueMartinez e Chico Guariba | Foto: Agência UEL |
Estabelecer conexões concretas entre as potencialidades de ação educativa dos patrimônios e museus com o meio ambiente foi o desafio do historiador Paulo Henrique Martinez em seu mais recente trabalho A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. Publicado em 2020 pela editora Humanitas, o livro reúne textos de diferentes naturezas escritos pelo autor em sua extensa trajetória de pesquisa e ensino voltada a cooperação técnica, cuja atuação permeou universidades, Câmara dos Deputados, conselhos municipais, organizações não-governamentais, entre muitos outros.
A reunião das produções entre os anos de 2003 e 2017, demonstra a atuação deste historiador diante os acontecimentos que atravessaram as áreas de meio ambiente, patrimônio e museus.
A variedade do material, entre capítulos de livros, artigos de revista científica, resenhas de obras publicadas, artigos em revista universitária e jornais locais, evidencia um trabalho atento às transformações do presente e da vida cotidiana, além da preocupação em ampliar o acesso aos conhecimentos produzidos na universidade e nas instituições culturais ao público geral.
Nesses moldes, a primeira parte do livro denominada Museus e mudança social procura delinear um diagnóstico da situação dos museus no Brasil, no momento da escrita dos textos. Partindo de questões do presente e da esfera local, Martinez articula os acontecimentos com documentos, instituições e agendas nacionais e internacionais tal como a Política Nacional de Museus (2003), o Conselho Internacional de Museus (1946) e a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS, 2005-2014).
A sensível tarefa de repensar o processo de desenvolvimento, sobretudo mediante as significativas transformações no meio ambiente, analisando e promovendo a distribuição de seus benefícios ao conjunto da sociedade global, exige tratar as especificidades culturais, de gênero, classe social e raça. O desenvolvimento sustentável, conceito orientador no século XXI, contempla com atenção este último aspecto do desenvolvimento humano, emergindo as demandas de formação de cidadãos, geração de emprego, combate à pobreza, igualdade de gênero e acesso à educação e saúde de qualidade.
Qual o potencial dos museus na educação para o desenvolvimento sustentável? As diretrizes estabelecidas em documentos internacionais tal como a Agenda 21, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, documento gerador da já mencionada DEDS e, atualmente, da Agenda 2030 com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030) encontram um fértil terreno nos patrimônios ambiental e cultural presente nos museus.
A cultura, protagonista nas atividades museológicas, é uma das bases do desenvolvimento sustentável pois concentra os mecanismos e finalidades do desenvolvimento.
Vida humana e não humana se encontram em um mundo diversificado, identificado por valores, crenças, saberes, técnicas, instrumentos de produção e consumo que se estabelecem em meio as harmonias e conflitos entre estes dois universos profundamente conectados. A reordenação das atividades humanas e o meio ambiente, o “pensar ecológico” é, para Martinez, parte do trabalho de profissionais das ciências sociais, em geral, e dos historiadores, em particular, que atuam em instituições museológicas.
Atento às transformações do tempo presente, o caráter de experimentação proporcionado pelos museus em exposições e acervos apresentam um novo plano de realidade com o aprimoramento dos usos dos recursos naturais e do capital humano. Parece ser esta a participação institucional de parques e museus no desenvolvimento sustentável, a preservação, valorização, pesquisa e comunicação da cultura material e imaterial e dos patrimônios ambientais. Articulados, garantem a cidadania, inclusão social e vida digna a toda população.
Estas características ganham maior expressão quando vinculados à cultura indígena no Brasil.
A Lei n°11.645 de 2008 institucionaliza a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nos currículos escolares da educação básica e superior. O patrimônio indígena, fundamental para a constituição e conhecimento da história do Brasil, encontra debates fecundos e atuais na segunda parte do livro Patrimônio indígena no Brasil. A localização dos elementos indígenas na sociedade brasileira constitui um dos primeiros passos para o conhecimento da história nacional.
A rivalidade dos discursos hoje predominantes, como aquele vivido pela Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, nos auspícios da Copa do Mundo, corresponde aos conflitos de narrativas de dominação enraizadas no cotidiano brasileiro. As diferentes simbologias presentes nessa experiência narrada na obra, o futebol, a hostilidade com os indígenas, o desenvolvimento econômico no qual os grupos tradicionais são vistos como obstáculos naturais e o autoritarismo da política nacional, são explicativas para compreensão da realidade O sincretismo no uso da palavra “Maracanã” e a luta pela permanência da aldeia indígena naquela região do Rio de Janeiro complementa aquilo que já havia observado o historiador Caio Prado Jr sobre o passado vivo no cotidiano dos brasileiros. Os aspectos coloniais dessa experiência no Brasil, faz aquele “lugar de memória” converter o passado sua forma de resistência e respeito ao compreender os processos no qual deram origem a esta sociedade tão diversificada.
Em todas as situações discutidas, seja nos museus municipais, exposições itinerantes, centros culturais ou universidades, Martinez conduz a educação como inerente às transformações para o século XXI. Em consonância com documentos legislativos e acordos institucionais como as citadas Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e a Convenção sobre Diversidade Biológica, a afirmação e o reconhecimento da cultura e dos direitos dos povos indígenas, a inclusão na vida social, a garantia de participação nos planos de gestão é diretamente dependente de um processo educativo que valoriza a cultura, a natureza, as mulheres, a cooperação e a democracia.
O Parque do Xingu e o Museu do Índio no Rio de Janeiro são alguns exemplos concretos desses anseios que relembram a trajetória violenta da colonização e preservam a cultura e a memória dos grupos indígenas. Para além destas instituições, as universidades também desempenham função importante com o desenvolvimento de disciplinas que abordem os temas, no gerenciamento de museus universitários, na formação de profissionais qualificados e na inserção destes grupos no ambiente universitário.
Apresentando a “Universidade da Selva” como ficou proclamada a Universidade Federal do Mato Grosso através de uma resenha da obra Museu Rondon: Antropologia e indigenismo na Universidade da Selva da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado, Martinez testemunha os aspectos institucionais da identificação e preservação da cultura material e imaterial na universidade. Estas instituições acompanham os processos de formação intelectual e produção de conhecimentos em conjunto com os museus, embora os últimos tenham sua data de nascimento anterior às primeiras, no Brasil. Este fato, no entanto, reforça as complementaridades entre ambas e os benefícios do trabalho conjunto, adicionando, ainda, a escola de educação básica.
As perspectivas de trabalho nos museus para a abertura de temas relacionados ao meio ambiente, principalmente para a constituição da história dos municípios, destacam o valor do patrimônio indígena. Os processos de formação nacional em seus aspectos econômicos, sociais e políticos esbarram com a trajetória desses povos cujos reflexos ainda permeiam no século XXI. A PGNATI foi um material analisado para demarcar os complexos desafios de preservação e recuperação dos recursos naturais e o reconhecimento da propriedade intelectual e do patrimônio genético. A educação ambiental e indigenista é definida como a principal estratégia destes objetivos, beneficiando não apenas a população indígena, mas todos os cidadãos.
A partir dos exemplos observados, o volume encerra com um caráter pedagógico de demonstração prática das potencialidades da educação patrimonial e ambiental na formação da cidadania.
Uma organização documental para auxiliar historiadores, em especial aqueles dedicados à História Ambiental, aos profissionais da área de museus e professores de educação básica e superior, que permite visualizar as narrativas presentes nos objetos e paisagens como fontes de observação e pesquisa histórica.
O significado cultural da alta produção de carrancas, marcante na paisagem do São Francisco, os processos de utilização deste rio para transporte e comércio, a formação da cidade e da cultura material, dos valores, saberes e comportamentos da população da região são demonstrativos da promoção do patrimônio na construção do conhecimento histórico. Os objetos cotidianos, como o automóvel e os elementos da cultura afro-brasileira também são destacados como mecanismos para compreender a organização da vida social, os processos de industrialização e seus efeitos, principalmente nos centros urbanos.
A pandemia de COVID-19 colocou em evidência as consequências do modelo industrial globalizado na vida humana e não humana. O surgimento de novas doenças, a perda de ecossistemas e da biodiversidade desloca a atenção para fora das cidades e marca os estreitos vínculos entre seres humanos e natureza. Esta experiência demonstra os sintomas de um planeta cujos padrões da vida atual não consegue sustentar e no qual deve-se estar atento. Como observou Donald Worster, todas as epidemias ao longo da história tiveram origem onde o equilíbrio com a natureza estava abalado.
Em sua argumentação sobre o patrimônio indígena, Martinez reforça o utilitarismo como obstáculo para a proteção desses povos e do meio ambiente. Percebe-se que esta perspectiva atravessa diferentes dimensões da vida humana, atribuindo valores distintos, muitas vezes alimentados pelo objetivo do crescimento econômico. Assim, os recursos naturais são destruídos, os objetos musealizados perdem a importância em sua função prática e se fortalece a narrativa dos museus “viverem do passado”. São para estes critérios que a pandemia exige observação, pois escancarou as desigualdades sociais e a crise ambiental da atualidade.
Ao mesmo tempo o isolamento social, para impedir a propagação da doença, fortaleceu os meios de comunicação e incentivou as instituições culturais a se renovarem para acompanhar as novas demandas. As redes sociais se tornaram ferramentas apropriadas pelos museus. A 14° dos Primavera dos Museus, em 2020, trouxe como tema Mundo Digital: museus em transformação e convidou os profissionais a pensar a inserção destas instituições nos novos mecanismos de comunicação.
Martinez nos mostra que as possibilidades de atuação são muitas e trazem consigo resultados positivos à sociedade.
Ao demonstrar os frutíferos e os frustrantes trabalhos que presenciou ao longo de sua carreira, transmite um apelo para a expansão das instituições que já existem e para a valorização e o investimento daquelas que ainda não tem usufruído de seu potencial. Demonstra com clareza os benefícios da cooperação nas dimensões individuais, institucionais e sociais do trabalho. A leitura da obra é direcionada aos profissionais da educação e museus, em etapas de formação inicial ou continuada, para vislumbrarem os contextos no qual fazem parte, integrar e valorizar os conhecimentos locais e aplicar essas ações em todas as oportunidades que vierem à frente.
Os desafios emergentes já visíveis neste século e aqueles que ainda estão por vir convergem na ação educativa como ferramenta fundamental. O trabalho educativo dos museus na promoção da cidadania e da preservação do patrimônio cultural e ambiental convergem com as diretrizes de ação internacional, fortalecendo, ainda, a cooperação para o desenvolvimento sustentável.
Referências
MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020.
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.
WORSTER, Donald. Otra primavera silenciosa. Historia Ambiental Latioamericana y Caribeña, 10, ed. sup. 1, p. 128-138, 2020. Disponível em: https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/ issue/view/40 Acesso em: 26 fev. 2021.
Cíntia Verza Amarante – Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8845494592325213. E-mail: cintia.amarante@unesp.br.
MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020. Resenha de: AMARANTE, Cíntia Verza. Educação Ambiental em Museus. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.189-193, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].
Povos originários e Covid-19: Experiências indígenas diante da Pandemia na América Latina | Albuquerque | 2021
Covid-19 | Foto: OPAS |
Apresentação
Las bacterias y los virus fueron los aliados más eficaces. Los europeos traían consigo, como plagas bíblicas, la viruela y el tétanos, varias enfermedades pulmonares, intestinales y venéreas, el tracoma, el tifus, la lepra, la fiebre amarilla, las caries que pudrían las bocas. La viruela fue la primera en aparecer. ¿No sería un castigo sobrenatural aquella epidemia desconocida y repugnante que encendía la fiebre y descomponía las carnes? «Ya se fueron a meter en Tlaxcala. Entonces se difundió la epidemia: tos, granos ardientes, que queman», dice un testimonio indígena, y otro: «A muchos dio muerte la pegajosa, apelmazada, dura enfermedad de granos». Los indios morían como moscas; sus organismos no oponían defensas ante las enfermedades nuevas. Y los que sobrevivían quedaban debilitados e inútiles. El antropólogo brasilero Darcy Ribeiro estima que más de la mitad de la población aborigen de América, Australia y las islas oceánicas murió contaminada luego del primer contacto con los hombres blancos. (GALEANO, 2008, p. 35) La rápida expansión del COVID-19 ha tenido un fuerte impacto sobre la vida diaria y la organización sanitaria, escolar, política y económica de las sociedades en su conjunto. Si bien la pandemia afectó de modo simultáneo a poblaciones y territorios a lo largo y ancho del planeta, a partir de la proliferación de un virus que no distingue clivajes de clase, etnia, género ni religión, a poco tiempo de transcurrida no fue difícil discernir sus impactos diferenciales en territorios y poblaciones concretas. Leia Mais
Palavras ABEHrtas | ABEH | 2021
A proposta de Palavras ABEHrtas (Ponta Grossa, 2021) é que ele se configure como território amplo e aberto para divulgação, informação e debates no que se refere e afeta o ensino de História, conforme os atuais valores e missões da ABEH de estabelecer interlocuções cada vez mais abrangentes e de valorizar o trabalho de professores e professoras de História em todos os níveis e âmbitos de ensino, gestão, pesquisa e divulgação. A intenção é reunir depoimentos e relatos de experiências, produções de estudantes da Educação Básica e do Ensino Superior, debates conceituais no campo do Ensino de História, bem como discutir temáticas de demandas contemporâneas e divulgar projetos e iniciativas pelo Brasil e pelo mundo.
A revista será composta por sete colunas, cada uma contando com uma dupla de curadores/as e coordenada por uma editoria renovada anualmente. Os textos serão publicados quinzenalmente (com ahead of print), a partir de convites da curadoria e também por livre demanda. Os textos deverão estar conformes ao escopo de cada coluna e adequados às normas de formatação, além de respeitar os princípios éticos da Revista. Serão aceitos também diversos formatos de expressão, tais como: textos escritos, vídeos, podcasts, canções, entre outros meios de interação, sempre acompanhados de uma apresentação que contextualize o conteúdo.
Os materiais enviados serão submetidos a uma comissão editorial e a um conselho de consultores que avaliarão criticamente as propostas. Textos bilíngues também serão aceitos, privilegiando a publicação de versões em inglês e em espanhol.
Pretendemos constituir um espaço de divulgação científica em um formato ágil, que atue como um portal de atividades comentadas da área, de troca de experiências de sala de aula, de debate político geral e das políticas públicas para a área em particular. Vislumbra-se a perspectiva de integrar o periódico com as diversas iniciativas de produção de conteúdo no Ensino de História, como os projetos Chão da História, Bate Papo sobre ensino de História, atividades do GT Nacional e dos GTs regionais de ensino de História da Anpuh, laboratórios, grupos de pesquisa, ações de extensão, etc.
Por fim, é importante que os textos e outros materiais sejam provocadores de debates e de ampliação das trocas. Assim, as curadorias podem convidar pessoas para comentar os materiais publicados. Esses comentários poderão aparecer sob a forma de novos textos linkados aos iniciais, de modo a ir criando uma rede de materiais e de discussões. Adicionalmente, os conteúdos também serão divulgados e debatidos nas redes sociais da Abeh.
Propomos sete colunas com escopo definido, que publicarão tanto conteúdos encomendados quanto avaliarão o que for recebido em livre demanda, de modo a garantir a periodicidade semanal, mas que se adaptem às necessidades de discussão e comunicação da nossa comunidade. Cada coluna contará com uma dupla de curadores/as composta por sócias/os da ABEH.
Essa iniciativa da ABEH visa possibilitar, em seu site, a divulgação de trabalhos desenvolvidos no Brasil e no exterior sobre o ensino de história, no formato de divulgação científica. Além disso, o objetivo é amplificar discussões que vão dar sequência aos textos publicados, ou seja, buscamos criar oportunidade de encontros entre todas-os-es que pensam, refletem, pesquisam e mobilizam práticas sensíveis nos mais diversos espaços que envolvem o ensino de história: escolas, espaços culturais e de memória, redes sociais, arquivos, universidades, movimentos sociais, entre outros.
As publicações serão feitas semanalmente com textos, imagens, registros, descrições, lançamentos e informações sobre diversos temas do ensino de história, conforme o escopo de cada coluna. Serão aceitos materiais de docentes e discentes da educação básica assim como do ensino superior e das pós-graduações.
Periodicidade semanal.
Acesso livre.
ISSN 2764-0922
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Revista Brasileira de Educação | Rio de Janeiro, v.26, 2021. (S)
Edição v.26 (2021)
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- Resenha da obra Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo | Oliveira, Carolina Bessa Ferreira de · texto em Português · Português ( pdf )
Errata| · texto em Português | Inglês · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Ars Historica | Rio de Janeiro, v. 21, jan./jun., 2021. (S)
v. 21 (2021)
Publicado em: 26 maio 2021.
Editorial | Luis Henrique Souza dos Santos, Eric Fagundes de Carvalho | PDF
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- CIRCULARIDADES VISUAIS: IMAGENS DO CORDEL ENQUANTO SUPORTE DE MEMÓRIAS DO PADRE CÍCERO | José Rodrigues Filho | PDF
Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo | Roberto da Silva (R)
A obra Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo foi organizada por Roberto da Silva e publicada, em 2018, pela Editora Giostri. Resulta de um processo coletivo de produção de conhecimento, que se iniciou com uma versão experimental de 2017, com tiragem limitada aos profissionais envolvidos – cujo contexto se relaciona a processo formativo desencadeado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) em parceria com a Diretoria Regional de Ensino Centro-Oeste da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
A obra pauta-se no desafio de elaborar uma proposta metodológica destinada à educação nos espaços de privação de liberdade. É publicada após experimentação em salas de aula de unidades prisionais e de centros de internação de adolescentes em medida socioeducativa, resultando de uma experiência que envolveu cerca de cem profissionais da educação em doze meses de trabalho.
Esse processo iniciou-se no âmbito de um curso de aperfeiçoamento voltado a professores da rede estadual que atuavam em unidades do entorno do Campus Butantã, na capital paulista, onde se situa a FE-USP[1]. Destinou-se a oferecer conteúdos atualizados, bem como promover trocas de experiências e atividades em grupo voltadas à autoria coletiva, que refletissem cada componente teórico e suas didáticas, desdobrando-se em matrizes de aprendizagem.
O autor organizador da obra, cuja trajetória pessoal e profissional é diretamente relacionada à privação de liberdade, com vasta experiência, é doutor em Educação e lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação de Liberdade na FE-USP. Presidiu o referido curso, onde agregou pesquisadores e profissionais da educação básica e superior.
O título do livro, por si, levanta questões que se relacionam a inquietações decorrentes da prática docente e da pesquisa na área, sobretudo a partir da publicação, em 2010, das Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade pelo Conselho Nacional de Educação. Apesar do avanço normativo e da pretensa indução de políticas públicas, há limitantes estruturais e operacionais nesses espaços que incidem na prática educativa, razão pela qual há um desafio permanente que paira sobre o trabalho educacional. Diante disso, a obra aponta caminhos possíveis, com metodologias que incluem formas de se organizar e articular os componentes curriculares nas áreas do conhecimento, considerando-se as experiências prévias dos estudantes, bem como as peculiaridades do contexto.
O livro tem três partes. A primeira contextualiza a proposta pedagógica para docência em regimes de privação de liberdade, o perfil de escolaridade de jovens e adultos em privação de liberdade, além da fundamentação legal sobre o tema. A segunda parte reflete os marcos teóricos e metodológicos da proposta, pautados no universo, na natureza e no ser humano como matrizes de aprendizagem. A partir disso, são elaborados esquemas de análise e interpretação do ser humano e de mapas conceituais por área, em que os componentes teóricos e didáticos são refletidos, culminando nos processos de avaliação de competências e habilidades. Por fim, a terceira parte descreve o processo de criação coletiva, que em uma polifonia de vozes se encerra em relatos de experiências dos profissionais da educação participantes do curso e da elaboração da proposta.
Os fundamentos da proposta pedagógica remontam as categorias ontológicas e biológicas da aprendizagem humana, cuja “didática no cárcere” é pensada em torno da natureza. Referencia-se nos marcos da Pedagogia Social, cuja compreensão do processo educacional, da construção do conhecimento e da educação ao longo da vida é mais relevante que dominar códigos ou técnicas.
Considerando o contexto da privação de liberdade e o perfil das pessoas encarceradas – majoritariamente jovem, negro e com escolaridade básica incompleta – argumenta-se que é possível contribuir para o desenvolvimento das habilidades e competências sociais e socioemocionais, a partir da associação da dinâmica da vida natural e humana. Opta-se por uma abordagem que se traduza em múltiplas alfabetizações e que possibilite ao sujeito compreender a dinâmica da vida em suas variadas manifestações, isto é, exploram-se as leis naturais, as formas de organização e complexificação das plantas, animais e da sociedade. Entende-se que, assim, o sujeito poderá compreender o sentido e a singularidade da vida humana no contexto do mundo em que vive.
Portanto, a proposta parte da própria origem da vida, em que o humano se insere e decorre, para construir as bases matriciais de aprendizagem e fundamentar as competências e habilidades que comporão escolhas metodológicas suficientemente flexíveis, transversais e contextualizadas, dadas as peculiaridades da educação no espaço prisional – por exemplo, a rotatividade de alunos e as restrições de uso de alguns materiais.
A construção das matrizes de aprendizagem, por área do conhecimento, tem início em pressupostos do processo de compreensão do mundo natural. Por exemplo: a ideia de reinos na natureza e do átomo como partícula básica para a organização das moléculas, das quais originam todos os seres e suas diferenciações. São utilizadas palavras-chave das ciências da natureza, das quais decorrem conceitos e estruturas, para delinear as matrizes e se chegar às ciências humanas e sociais, matemática, linguagens e suas tecnologias. Isso explicaria o subtítulo da obra, “entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo”.
Ao discutir possibilidades epistemológicas, a obra sinaliza que é possível inferir formas de pensar e agir e apresenta um quadro elucidativo dos esquemas de análise e interpretação do ser humano, composto por forma de pensar (exemplo: marxista), categorias de análise (explorador/explorado), gradiente de comportamentos e atitudes (contestação) e formas de solução (revolução).
Ainda, discutem-se componentes avaliativos que valorizam habilidades e competências sociais, com destaque para os saberes construídos no mundo do trabalho e da vida. Busca-se exaltar as trajetórias singulares de vida e seus percursos (biológicos, cognitivos e sociais), em estreita consonância com a perspectiva da educação ao longo da vida, que implica uma visão ampliada de aprendizagens nos diversos espaços e tempos – escolares e não escolares.
Quanto às contribuições do livro para a área, é preciso considerar que, após a garantia do direito à educação das pessoas em privação de liberdade no Brasil, novas questões emergiram, com ênfase em práticas e pesquisas direcionadas à implementação de políticas pelo Estado e à prática docente. Verifica-se que a maior parte das publicações relaciona-se ao campo das políticas públicas, dos estudos de caso, das experiências das redes de ensino e do estudo de representações de estudantes, docentes e gestores[2]. Apenas mais recentemente, fundamentos epistemológicos e metodológicos têm se apresentado, representando ainda um campo fronteiriço e em crescente discussão na educação[3]. Assim, na ausência de materiais didáticos e de pesquisas sobre metodologias de ensino voltadas aos contextos de privação de liberdade, a prática docente segue, em geral, caminhos entre a adaptação de materiais disponíveis e o planejamento individual.
Demonstra-se, na obra, um esforço em produzir um material que reúna um conhecimento relevante do ponto de vista teórico-metodológico – enfaticamente para e por docentes. Fica evidente o engajamento em agregar diferentes atores ligados à área, com destaque para a construção da obra no âmbito de um curso que indica a salutar complementaridade entre educação básica e superior e a imprescindível polifonia de vozes na educação.
Destarte, sua relevância assenta-se não apenas na apresentação de uma proposta pedagógica específica, mas no processo de elaboração coletiva de metodologias e abordagens avaliativas que levem em conta os sujeitos e o contexto do ensino. Em particular, vale destacar que os esquemas apresentados no livro para a construção de mapas conceituais das áreas do conhecimento, com indicação gráfica de temas e questões pedagógicas de cada área, representam um contributo valoroso à comunicação, à síntese e à reflexão conceitual no âmbito da organização didática.
Notas
1. Trata-se do curso Docência em Regimes de Privação de Liberdade, ofertado em 2017. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=480200003&cod_edicao=16001&numseqofeedi=1. Acesso em: 15 mar. 2020.
2. Publicações na área da Educação, após vigência das Diretrizes Nacionais, focam nos desafios e nas perspectivas para a política de educação em prisões. Nesse sentido, os dossiês temáticos publicados pela Revista Em Aberto, do INEP “Educação em Prisões”, em 2012 (disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485895/Educa%C3%A7%C3%A3o+em+pris%C3%B5es/8b4d6cb0-12db-4ad8-87fc-47e7c52a6153?version=1.3, acesso em: 12 mar. 2020), pela revista Educação e Realidade, da UFRGS, em 2013 (disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/issue/view/2030, acesso em: 20 mar. 2020) e pela revista Cadernos Cedes da UNICAMP “Educação, Escolarização e Trabalho em prisões” em 2016 (disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622016000100001, acesso em: 02 abr. 2019).
3. Nesse sentido, o artigo “Fundamentos epistemológicos para uma EJA prisional no Brasil”, de Roberto da Silva, na Revista Brasileira de Execução Penal, v. 1, n. 1, 2020. Disponível em: https://rbepdepen.mj.gov.br/index.php/RBEP/article/view/49. Acesso em: 30 abr. 2020.
Referências
SILVA, R. (org.). Didática no cárcere: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri, 2017. [ Links ]
SILVA, R. (org.). Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri , 2018. [ Links ]
Carolina Bessa Ferreira de Oliveira – Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). E-mail: cbessafo@gmail.com
SILVA, Roberto da. Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira de. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v.26, maio. 2021. Acessar publicação original [IF].
Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos
Marcelo Badaró Mattos é professor titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo qual se doutorou. Trata-se de um dos mais importantes historiadores marxistas do país na atualidade, devido principalmente as suas contribuições à História social do trabalho, como o clássico Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/1988).2 Não obstante, tem trabalhos relevantes para o entendimento da teoria marxista e da História do tempo presente, campo ao qual pertence o livro Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, publicado em 2020. Nesse mais recente estudo, o pesquisador tem como objetivo analisar fenômeno político da chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, tentando entender o caráter de seu governo e o seu papel na dinâmica da luta de classes no Brasil de hoje. O seu método consiste na busca de comparações entre o quadro atual e os fascismos históricos, o que o levou também a refletir sobre a nossa trajetória histórica desde o século XX, para o melhor entendimento do processo político brasileiro atual.
Antes de se debruçar especificamente sobre o governo Bolsonaro, autor inicia o primeiro capítulo, intitulado “Fascismos”, com as reflexões realizadas pelos militantes revolucionários que viveram os anos 1920 e 1930 e, portanto, estavam comprometidos com o combate a esses fenômenos políticos. Assim, mostra que Leon Trotsky, Clara Zetkin e Antonio Gramsci apresentaram análises concordantes quanto à existência: de um contexto marcado pela crise política (na dimensão da dominação de classe) e econômica (em nível internacional) que favoreceu a eclosão de tais movimentos; de uma base social de massas composta pela pequena burguesia e por assalariados médios, que contou ainda com a presença de setores do proletariado, apesar de os regimes políticos implantados beneficiarem o grande capital; de um sentido de classe visto também na violência e no terror exercidos contra as organizações dos trabalhadores; de um recuo dessas entidades diante das possibilidades objetivas de revolução, o que estimulou a adesão da pequena burguesia à ação contrarrevolucionária burguesa; e de uma complacência de setores do Estado precedente com os fascistas, notadamente, a polícia e o judiciário. De forma geral, também são coincidentes as recomendações no sentido da adoção de uma linha política de frente única para enfrentar essa ameaça aos operários (p. 12-41). Leia Mais
Tempos de Pandemia | Estudos Históricos | 2021 (D)
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Este número da Revista Estudos Históricos é marcado especialmente pela contemporaneidade e interdisciplinaridade de seus artigos. A ideia do dossiê Tempos de pandemia surge pela urgência de debates e análises científicas promovidos em diferentes áreas com o advento da pandemia de COVID-19, decretada mundialmente no dia 11 de março de 2020. Como resultado, temos uma edição robusta, composta de trabalhos com pontos de vista metodológico e temático diversos.
Como linha comum dos artigos, observamos o debate sobre o tempo em diferentes perspectivas. A própria edição deste número pressupõe uma reflexão sobre tempo, na medida em que reunimos nesse conjunto incursões acadêmicas desenvolvidas no auge da pandemia, no seio de seus acontecimentos. Encontramo-nos, ainda, sem respostas concretas e objetivas sobre o curso desse longo processo. Reflexões sobre o tempo histórico e sobre a produção de pesquisas científicas pela ótica dinâmica do momento histórico são fruto de debates e discussões de longa data.
O tempo social, como proposto por Fernand Braudel (1949), pode ser dividido metodologicamente em três momentos: média, curta e longa duração. O exercício de pesquisa deve, sempre, levar em consideração a construção e o recorte temáticos nessas três perspectivas, que caracterizam o tempo múltiplo, compondo as principais características do tempo social.
Em suma, temos a longa duração como o âmbito das estruturas, a média duração como o tempo das conjunturas e a curta duração como a medida da atualidade, da vida do dia a dia. Os artigos que compõem este dossiê sobre a pandemia, acontecimento histórico contemporâneo, assim como as pesquisas e as autorias, pode dar uma primeira impressão equivocada. O distanciamento analítico na área das ciências humanas, há tempos colocado como essencial para o desenvolvimento de pesquisas científicas, caiu por tese há algumas décadas, especialmente com a eclosão do campo da história do tempo presente.
Nesse bojo, temos a proposição do tempo histórico de Reinhart Koselleck (2014), o tempo estratificado, formado por diferentes camadas de tempo, independentes e interdependentes entre si, proporcionando a base reflexiva de continuidades e rupturas de processos históricos. A proposta de Koselleck subsidia as análises do tempo presente com base no entendimento desses processos como constructos sociais inter-relacionados, proporcionando a base analítica da compreensão de eventos contemporâneos por seus cientistas sociais.
O coletivo de reflexões analisa em sua complexidade questões estruturais como as desigualdades sociais da sociedade contemporânea, refletindo diretamente no acesso à educação e à saúde no Brasil e no mundo. Nesse conjunto, encontramos reflexões de longa duração com perspectivas históricas, demonstrando os impactos políticos e sociais da gripe espanhola de 1918 na sociedade, o processo de exclusão digital de setores sociais e seus impactos na educação à distância e a questão da aprendizagem, bem como os muros epidemiológicos construídos ao longo de décadas.
Encontramos também análises estruturais sobre as democracias latino-americanas e sobre os Estados Unidos, o impacto econômico em populações historicamente em situação de vulnerabilidade, apontando as continuidades de um processo histórico estrondosamente desigual. Ainda pensando na perspectiva da longa duração, vemos a construção da memória social ao longo dos anos e os desafios enfrentados pela gestão e recuperação de documentos produzidos em meio digital. Análises sobre a estrutura midiática brasileira e as fronteiras entre o público e o privado, a construção social de contextos afrorreligiosos e suas nuances políticas, a utilização midiática para defesa de pautas específicas e práticas culturais de uma sociedade em isolamento compõem o tempo histórico de longa duração presente neste dossiê.
No contexto de média duração, no tempo das conjunturas, podemos inferir importantes recortes com elementos de continuidades e rupturas subsidiando o estudo do tempo presente. Envolvendo elementos como os citados no contexto de longa duração, observamos o recorte analítico de média duração no que diz respeito à compreensão conjuntural dos temas em questão. Como linha comum aos artigos, observamos a reconstrução de contextos históricos anteriores à pandemia de COVID-19, buscando alinhar as expectativas de análise políticas, econômicas e culturais na camada mais ampla do tempo histórico a fim de reconhecer os aspectos atingidos pelo momento atual. A preocupação com o contexto histórico conjuntural é inerente e presente em todas as análises, independentemente do tema trabalhado. Ainda que pareçam temáticas bastante diferentes, os textos aqui reunidos nos permitem traçar um quadro conjuntural de extrema qualidade para compreender o advento histórico da pandemia, nosso elemento de curta duração.
Nesse ponto, vemos detalhadamente o recorte mais específico dos artigos. Em grande parte, o ano de 2020 atua como medida da atualidade. Seja no debate acerca de questões educacionais como nos artigos “Direito ou privilégio? Desigualdades digitais, pandemia e os desafios de uma escola pública”, de Renata Mourão Macedo, e “Aprendizagem histórica em tempos de pandemia”, de Cristiano Nicolini e Kenia Erica Gusmao Medeiros, cujos recortes dão conta da urgente mudança para o ensino a distância e suas consequências, seja no debate sobre questões culturais e de memória nos textos de Alejandra Josiowicz, “Humanidades digitais e literatura nas redes sociais: ‘um placebo sanador em tempos de COVID-19’”, o artigo de Isabella Vivente Perrotta e Lucia Santa Cruz, “Objetos da quarentena: urgência de memória”, e o texto de Vítor Queiroz, “Quando o ser-humano cria, Iku vem à Terra: as mediações de Exu, a onipresença da morte e a COVID-19 em dois contextos afrorreligiosos”.
Tratando especificamente de questões políticas e econômicas que envolvem a gestão da pandemia em países da América Latina, temos o artigo de Rafael Araujo e Érica Sarmiento, “A América Latina, a COVID-19 e as migrações forçadas: perspectivas em movimentos, muros epidemiológicos e sombrias imagens”, apontando as medidas atuais do tempo histórico e os reflexos na migração forçada de populações vulneráveis, e a contribuição especial de André Pagliarini, “Possible Futures: COVID-19 as Historical Turning Point”, recortando a análise específica sobre a importância desse debate para a historiografia presente.
Analisando especialmente o aspecto midiático da pandemia, temos os artigos de Flavia Pinto Leiroz e Igor Sacramento, “Cronotopias da intimidade catastrófica: testemunhos sobre a COVID- 19 no Jornal Nacional”, mostrando o recorte do maior jornal diário do Brasil e seus impactos sobre a relação entre público e privado em nossa sociedade, e o texto de Luciana Almeida, “Pandemia, ‘agro’ e ‘sofrência’: jornalismo, propaganda e entretenimento no debate público sobre o modelo agrícola”, mostrando a relação instantânea da pandemia na indústria cultural nacional.
Em entrevista concedida por James Green, realizada por mim e por Ronald Canabarro, em que aplicamos a temporalidade múltipla no decorrer das perguntas, buscou-se criar uma narrativa que abarcasse suas opiniões estruturais das sociedades brasileiras e norte-americanas, chegando às análises conjunturais mais recentes de ambos países de maneira que confluísse no momento atual da pandemia, suas consequências políticas, econômicas e culturais da COVID-19 no mundo pela ótica do historiador e militante norte-americano.
Quando falamos em tempos de pandemia, estamos definindo tempo como social, como o tempo composto de diacronias e sincronias, continuidades e rupturas. A urgência evidenciada pelas necessidades informacionais e analíticas, que perpassam diferentes temas, nesse último ano pandêmico pelo qual nossa sociedade passou em todo o globo estão reunidas nesse dossiê interdisciplinar e diverso que montamos. Nosso desejo é o de que possamos reler suas páginas como documentos históricos em alguns anos, proporcionando compreensões fundamentadas e científicas da história presente.
Por fim, e em nome da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), prestamos nossa solidariedade coletiva às famílias de 3 milhões de pessoas1 em todo mundo vítimas da COVID-19.
Nota
1. Dados coletados em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em: 12 abr. 2021.
Referências BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949.
KOSELLECK, R. Estratos de Tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-RJ, 2014.
Martina Spohr – Doutora em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (martina.spohr@fgv.br). Escola de Ciências Sociais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
SPOHR, Martina. Editorial: Tempos de Pandemia. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 34, n.73, p.1-3, p.235-238, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [IF]. Acessar dossiê
Zika no Brasil: história recente de uma epidemia | Ilana Löwy
O livro de Ilana Löwy, lançado em 2019 pela coleção Temas em Saúde da Editora Fiocruz, faz um balanço das principais questões de saúde pública envolvendo a epidemia de zika no Brasil a partir de 2015 e a sua relação com os casos de microcefalia. Historiadora das ciências biomédicas e atualmente pesquisadora do Instituto Nacional Científico e de Pesquisa Médica da França (Inserm), Löwy apresenta diferentes ângulos científico-políticos dessa epidemia de forma didática, articulando uma questão fundamental: o que de fato conhecemos sobre a trajetória do vírus da zika no Brasil?
A autora articula as diferentes dimensões em um campo temático com o qual já possui bastante familiaridade. Exemplo disso são seus trabalhos anteriores sobre as práticas científicas e de saúde pública em relação à febre amarela – doença que também é transmitida pelo Aedes aegypti –, (in)visibilidades dos objetos das ciências biomédicas, diagnósticos e direito reprodutivo. Essas abordagens são mobilizadas com naturalidade e fluidez na sua proposta de uma história “recente”, como está no título, ou “do presente” e seus desafios ( Löwy, 2019 , p.13). Leia Mais
História Pública e divulgação da história / Bruno L. P. de Carvalho e Ana Paula T. Teixeira
Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira / Fotos: Comunicação Ages e Café História /
Este livro tem como proposta apresentar as experiências e as reflexões sobre as formas de divulgar o conhecimento histórico acumulado, demonstrando a ampliação dos suportes de circulação da produção historiográfica.
A obra é uma coletânea composta de seis capítulos e três entrevistas produzidas por historiadores, jornalistas e por gente que transita nesses dois campos. São profissionais com perspectivas históricas variadas, com diferentes experiências e inserções distintas como produtores/mediadores de representações da História. O conjunto dos textos deste livro compreende diferentes linguagens e suportes da História Pública, com discussões sobre como ampliar o acesso do conhecimento histórico pesquisado em revistas acadêmicas, livros, vídeos do Youtube, sites, museus e espaços públicos da cidade.
Os coordenadores Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira são investigadores da História Pública no Brasil e contribuíram neste volume para o desenvolvimento da temática ao colocar juntos colegas que trabalham a dimensão pública do conhecimento histórico. Leia Mais
Gênero Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina | Flavia Biroli, Juan M. Vaggione e Maria das Dores C. Machado
O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina, organizado e escrito por Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado, publicado no ano de 2020 pela Editora Boitempo, analisa o crescimento do neoconservadorismo no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, à educação voltada ao gênero e sexualidade, aos estudos de gênero e aos direitos humanos. Sobretudo, o objetivo do livro, como identificado nas primeiras páginas, é de entender o avanço neoconservador em relação ao gênero a partir de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa ao relacioná-lo com os debates que envolvem religião, direitos e democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O livro traz um debate significativo ao mobilizar as disputas e discussões políticas atreladas à “ideologia de gênero”, à “cultura da morte” e à igualdade de gênero que tomou corpo nas últimas duas décadas do século XXI na América Latina.
Já faz algumas décadas que as autoras e o autor do livro têm se dedicado às pesquisas que envolvem gênero, política e religião. Como poder ser visto, Flávia Biroli é professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde tem realizado inúmeras publicações, e tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista no Brasil contemporâneo. Já, Juan Marco Vaggione é doutor em direito pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e em sociologia pela New School for Social Research, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor titular de sociologia da Faculdade de Direito da UNC e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas (Conicet) da Argentina; também dirige o Programa de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UNC. Por sua vez, Maria das Dores Campos de Machado é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e tem se dedicado aos estudos das religiões, neoconservadorismo e à política brasileira. Atualmente, é professora aposentada e voluntária na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A soma das diferentes trajetórias de pesquisas e análises acaba dando destaque à obra resenhada aqui. A análise está centrada na emergência do neoconservadorismo e no avanço sobre a democracia ao inter-relacionar os ataques ao gênero no contexto atual; aspecto, este, considerado muitas vezes menor nas principais produções que hoje se voltam a pensar a democracia na América Latina. Para analisar o fenômeno, Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado (2020) propõem cinco dimensões, a fim de identificar as características contemporâneas do neoconservadorismo: 1º) “o conceito de neoconservadorismos permite jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 28); 2º) a expressiva utilização da juridificação da moralidade; 3°) o fato de que o neoconservadorismo opera em contexto democrático, ao mesmo tempo em que o fere; 4°) o caráter global e transnacional (adicionado aqui por mim) do neoconservadorismo do século XXI; 5°) a relação entre neoconservadorismo e a agenda neoliberal no que tange aos direitos das mulheres e dos sujeitos LGBTQI.
O livro foi dividido em três capítulos, em que foram abordadas as seguintes temáticas: as reações dos atores religiosos (católicos ou evangélicos), as tentativas de restrição das agendas ligadas à igualdade de gênero, as disputas entre os movimentos feministas e LGBTQI e os movimentos conservadores; o transnacionalismo dos avanços das agendas conservadoras na América Latina, os ataques políticos em diferentes esferas institucionais (jurídicos, parlamentar, etc.) aos poucos avanços nas últimas décadas que envolveram a igualdade de gênero; a interconexão entre o avanço conservador com as políticas neoliberais, a mobilização dos direitos humanos como argumento para participação e defesa dos projetos conservadores, a centralidade da família como uma tendência transnacional no projeto político neoconservador, os padrões do neoconservadorismo religioso, o caráter novo do conservadorismo que emerge no século XXI e a aliança entre distintos setores nas agendas antigênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
No primeiro capítulo, intitulado A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina, escrito por Juan Marco Vaggione, o objetivo foi compreender como “o neoconservadorismo se instalou como um problema complexo para a reflexão analítica e normativa” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Mais precisamente, por meio do conceito de “juridificação reativa” [1], o autor se dedicou a entender como se deu (por meio de quais sujeitos e de que maneira) o crescente “movimento de restauração moral por meio do direito” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Em outras palavras, foi pensado como o direito vem sendo instrumentalizado para a defesa dos princípios morais neoconservadores na ofensiva contra o gênero. O capítulo é denso, cheio de exemplos e discussões que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos das últimas décadas na América Latina e esteve pautado na ideia de que a juridificação reativa seria tanto uma arena quando uma estratégia para o avanço neoconservador (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Já, no capítulo de Maria das Dores Campos Machado, com o título O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia, o aspecto central foi a comparação entre os dois países que compõem o título no que diz respeito à emergência neoconservadora dos grupos cristãos. O capítulo traça um panorama ao abordar questões ligadas ao ensino, religião, projetos de leis, crescimento de percentuais religiosos, avanço do conservadorismo entre os anos de 2014 até 2018, o papel das ONG’s religiosas para a interversão no debate público, entre outros aspectos. Também sublinhou, graças à circulação dos líderes religiosos, sobre a propagação dos valores e da agenda antigênero, a construção de redes e eventos transnacionais e como as novas tecnologias facilitaram na promoção de agendas que desafiam a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O grande destaque do capítulo refere-se à autora ter chamado a atenção para a atuação das mulheres conservadoras (seja como deputadas, pastoras ou ministras) na agenda antigênero, contra os debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos, na desqualificação do feminismo e em defesa da moral cristã.
Na tentativa de entender a relação entre gênero e democracia, Flávia Biroli, no capítulo Gênero, “valores familiares” e democracia, analisou “os processos de transformação das democracias no mesmo contexto em que as disputas em torno do gênero ganham novos padrões” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 136). A autora foca na discussão dos estudos que vêm se indagando sobre a desdemocratização e como o gênero vem sendo considerado nas análises; a relação entre as evidências empíricas no combate ao gênero, principalmente, os valores democráticos e a maneira como se dá a contestação dos estudos de gênero na qualidade de área científica e acadêmica (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Os aspectos mais interessantes do capítulo tratam de demarcar as ideias que constituem os argumentos dos grupos neoconservadores, de que os lobbies feministas e LGBTQI ameaçam as crianças e a família, que as organizações internacionais têm como objetivo subjugar a nação por meio do enfraquecimento da família, que as crianças precisam ser protegidas dentro das autoridades reconhecidas, a família, e que os movimentos de minorias ameaçam as maiorias agindo contra a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). Por isso, o sentido de democracia está em disputa no tempo presente e precisa ser debatido.
As discussões propostas no livro tiveram como base dois grandes marcos conceituais (apresentados na introdução): o neoconservadorismo e a temporalidade. Foi com o segundo eixo que tive certo incômodo, uma vez que sua construção se deu ao tentar verificar as políticas antigênero. As autoras e o autor falam em “uma nova temporalidade” a partir das ameaças ao gênero, pautadas em termos como “ideologia de gênero”. No entanto, o tempo parece compacto em um grande bloco único, o que me faz questionar: não seriam múltiplas (no plural) temporalidades na América Latina? Em todos os países da América Latina, as ameaças se deram da mesma maneira e nos mesmos marcos temporais? Conforme foi sendo demostrado ao longo dos capítulos, ocorreram trânsitos, projetos, avanços e derrotas que não foram lineares e homogêneos em todos os países. Sem falar que o avanço neoconservador não tomou corpo em todos os países e já vendo sofrendo limitações. Em outras palavras, as temporalidades foram muito diversas e ainda precisam ser mais bem exploradas. Por último aqui, os avanços neoconservadores estão alinhados ao negacionismo enfrentado, de uma maneira geral, em diferentes âmbitos, como, aqueles ligados às ciências e às universidades; pouco citado em suas multiplicidades no livro.
O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia é uma leitura precisa ao dar historicidade aos embates políticos presentes na América Latina do século XXI. Mobiliza diferentes disciplinas para a análise dos segmentos sociais, culturais e econômicos, que fizeram com que disputas e conservadorismo tomassem corpo e significado durante o período. O tema é extremamente atual, pertinente e importante, tanto para pesquisadores quanto para quem busca entender como se manifestou o avanço neoconservador nas últimas duas décadas. Por isso, o livro é importante a fim de entendermos mais sobre a história do tempo presente no que tange ao neoconservadorismo, às ameaças à igualdade de gênero e às democracias na América Latina. Também significa uma análise do quão complexo e novo são esses movimentos e os desafios que têm sido enfrentados pelos diferentes movimentos sociais, ativistas e pesquisadores, com os avanços das agendas antigênero. Como sinalizou Flávia Biroli, “há mais em jogo do que visões de mundo conflituosas” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 185); entender, historicizar e analisar o que acontece (como foi feito neste livro) é valoroso para quem se interessa pela história do tempo presente.
Nota
1. Juridificaçãoreativa é o termo utilizado para designar o uso do direito por parte dos atores neoconservadores para a defesa dos seus princípios morais e para avançar na disputa contra o gênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Eloisa Rosalen – Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC – BRASIL. lattes.cnpq.br/3857428948780807 . E-mail: rosaleneloisa@gmail.com.
BIROLI, Flavia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos Machado. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. O avanço neoconservador antigênero na América Latina durante o século XXI. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].
Passe Livre. As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização | Daniel Santini
Há algum tempo, ouvir o termo passe livre despertava, apesar do ceticismo inicial, certa inquietação, curiosidade e abertura para uma discussão com enorme potencial de abarcar questões fundamentais à vida nas cidades. Para as pessoas da nossa geração, que estiveram nas ruas em 2013 contra o aumento da tarifa de transporte, o passe livre surgia como ferramenta de democratização da sociedade. Na contramão dessa percepção otimista, após a aparente sedimentação das manifestações de 2013, tal debate passou a ser encarado com desconfiança, como questão encerrada e pauta esgotada. O que acontecia neste meio tempo para que algo potencialmente tão transformador fosse deixado de lado? Principalmente pelo campo progressista?
Não é sequer necessário recorrer aos liberais ou aos grupos conservadores que emergiram na esteira – ou no vácuo – dos protestos daquele ano para encontrarmos posições contrárias. Para estes o passe livre desde o início representava um modelo “estatista” e antiliberal de transportes. Antiliberal evidentemente que sim. A própria esquerda, que já se dividia sobre o tema antes de 2013, parece hoje relembrar o assunto como um episódio traumático, com enorme desconfiança, algo irreparável e um erro estratégico de grupos autonomistas que conduziram os protestos em torno do Movimento Passe Livre. Leia Mais
Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos / Thaís Oyama
Thaís Oyama / Foto: João Henrique Moreira /
No início de 2020 foi lançado o livro Tormenta: o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, no qual a jornalista Thaís Oyama analisa o primeiro ano do governo Bolsonaro. Dada a velocidade com que a política se movimenta no atual contexto e, principalmente, o impactante acontecimento da pandemia de Covid-19 que se alastrou pelo Brasil e no mundo ao longo de 2020 – e que continua a afetar drasticamente nosso cotidiano −, o livro de Oyama pode parecer, a princípio, um apanhado de notícias velhas, um acúmulo de fatos registrados que parecem perder seu sentido no tempo, ainda mais quando o protagonista da trama é um presidente que, sem competência suficiente para tratar dos assuntos de Estado, faz de sua boca uma metralhadora verborrágica, cuja munição são afirmações negacionistas em meio à maior crise da saúde desde o advento da Gripe Espanhola, no início do século passado.
Mas esse não é o caso do livro de Oyama. Após quase um ano de sua publicação, ele parece um importante registro das ações, dos bastidores e da personalidade do atual presidente, Jair Bolsonaro. Na verdade, o poder de um livro encontra-se mais nas suas possibilidades de leitura que nos eventos que ele relata. Sendo assim, proponho um ensaio a partir de Tormenta, pensando o texto como um ponto chave entre o passado que leva Bolsonaro ao poder e seu primeiro ano de governo, o nosso presente, marcado pela pandemia, e nossas possibilidades de futuro, que não parecem ser as melhores. Leia Mais
(Des)Arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no Tempo Presente / Maria Teresa S. Cunha
“O trabalho com esse material ao longo de minha trajetória e o encantamento pelos seguros indícios de vida ali presentes e nunca abandonados acabaram por fazer de mim uma historiadora dessas coisas ditas ordinárias” (CUNHA, 2019, p. 12). É assim que Maria Teresa Santos Cunha anuncia os propósitos do livro de sua autoria e declara suas afinidades historiográficas.
Essas palavras, que estão logo nas primeiras páginas de “(Des)Arquivar”, incitam à leitura da obra que reúne produções acadêmicas representativas dos percursos da autora.
Ao apreciar cada capítulo, como não se deixar comover pelas abordagens sensíveis e fecundas desenvolvidas por Maria Teresa? Como não se emocionar ao perceber os frutos de pesquisas de muitos anos em que guardou, garimpou, manuseou, leu e examinou papeis da ordem do comum, outrora desprezados pela historiografia? Leia Mais
Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016) | Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr e Raíssa Rodrigues
Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016) | Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr, Raíssa Rodrigues | Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v. 13, n.39, 2021.
Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência / Revista Brasileira de História das Religiões / 2021
O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.
1 A laicidade e o esboço de suas formas
Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.
A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.
De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).
2 Laicidade no âmbito da sociedade
A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos.
Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões/ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.
Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).
Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.
Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.
3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil
No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.
É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).
Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.
4 Os artigos do dossiê
Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.
A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.
O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.
O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via Google-Forms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.
Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.
Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.
O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.
Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.
O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.
O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.
Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.
E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.
Referências
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007
POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.
SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.
Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Riveiro. E-mail: pymurta@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-8615.
Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.
Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP/CNPq). E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0380-3007.
PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Reis. Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.13, n.39, p.5-12, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].
Hacer la revolución. Guerrillas latino-americanas, de los años sesenta a la caída del Muro | Aldo Marchesi
Aldo Marchesi | Foto: Brecha |
Uno de los temas recurrentes en los estudios sobre la historia reciente de America Latina es la violencia politica de la segunda mitad del siglo xx. En particular, para el caso de los paises del Cono Sur, las reflexiones academicas en torno a las luchas sociales y politicas protagonizadas por distintos sectores y organizaciones armadas o civiles; la respuesta autoritaria de las dictaduras militares; sus respectivas consecuencias humanitarias; y los procesos de transicion politica hacia la democracia, han sido temas relevantes para el conjunto de las ciencias sociales de la region y del mundo. Pues bien, el libro del historiador uruguayo Aldo Marchesi, ganador del premio a “Mejor libro en Historia reciente y Memoria” de la Latin American Studies Association en 2020, nos presenta una version novedosa e integral sobre estas tematicas como resultado de su investigacion doctoral.
En el texto, el autor dibuja una geografia politica de la izquierda radical de los paises del Cono Sur a partir del trabajo riguroso con fuentes documentales y testimoniales que son utilizadas para presentar los distintos flujos estrategicos, biograficos e ideologicos de una cultura politica transnacional que fue construida y compartida por cuatro organizaciones armadas en el arco temporal comprendido por el estudio. Estas organizaciones fueron el Movimiento de Liberacion Nacional-Tupamaros (mlnt) uruguayo; el Ejercito de Liberacion Nacional (eln) boliviano; el Partido Revolucionario de los Trabajadores (prt) argentino y su estructura militar, el Ejercito Revolucionario del Pueblo (prterp); y el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (mir) chileno. Leia Mais
Y a la vida por fin daremos todo… Memorias de las y los trabajadores y extrabajadores de la agroindustria de la palma de aceite en el Cesar, 1959-2018 | Centro Nacional de Memoria Histórica
SMNH. Y a la vida por fin daremos todo… | Detalhe |
Este libro es una reconstruccion colectiva de la memoria de las y los trabajadores y extrabajadores de la palma en el departamento del Cesar (Colombia) entre 1950 y 2018, donde hubo al menos 249 victimas que tuvieron relacion directa con la organizacion sindical. Las organizaciones que participan del informe son la Fundacion de Apoyo y Consolidacion Social para los desplazados por la Violencia en Colombia —fundesvic—, el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria del Cultivo y Procesamiento de Aceites y Vegetales —sintraproaceites— y el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria Agropecuaria —sintrainagro—.
Este ejercicio de memoria se llevo a cabo entre el 2017 y el 2018 y abarca seis decadas. Tuvo como trasfondo un conjunto de informacion proveniente de distintas tecnicas y fuentes: entrevistas, documentos personales de los afiliados a los sindicatos, talleres de memoria, prensa escrita, archivos institucionales, material secundario. Aunque es el primero que, desde el Centro Nacional de Memoria Historica (cnmh), tiene como eje central al sector palmero, la violencia antisindical ha sido abordada, a nivel de registro e investigacion, tanto por organizaciones no gubernamentales, como por entidades sindicales y academicos, desde hace ya al menos tres decadas en el pais.[1] Si bien el informe fue publicado por el cnmh en 2018, su lanzamiento publico no estuvo exento de polemica con la actual direccion del cnmh, en cabeza del historiador Ruben Dario Acevedo Carmona, teniendo lugar finalmente en la Universidad de los Andes, el 29 de mayo de 2019. En su momento, el portal La Silla Academica titulo el episodio como “la lucha de poder detras de la memoria”.[2] El capitulo introductorio del informe lleva por nombre “Siembra y ampliacion del cultivo de palma, conflictos laborales e inicios de la organizacion sindical”. Alli se describen los antecedentes de la llegada de la palma y el proceso social y politico de formacion de la organizacion sindical. El capitulo narra que antes de la llegada de la palma, en el Copey (norte del Cesar), habia cultivos de algodon, arroz, tabaco y sorgo, donde empresas como El Labrador s.a. y empresarios que vinieron de menos a mas en la region —tal es el caso de Alfonso Lozano Pinzon o Misael Carreno— jugaban un papel importante. A partir de relatos de exfuncionarios de una de las empresas formada en 1971, Palmeras de la Costa s.a., y de extrabajadores de Indupalma, se reconoce que el cultivo de palma comienza a entrar en San Alberto (sur del Cesar) entre 1958 y 1961 a traves de Agraria La Palma o Indupalma, y que su llegada, ademas de traer consigo “gentes de todas las regiones, facilita las primeras formas de organizacion de los trabajadores […] y la creacion del primer sindicato de Indupalma en 1963” (p. 39). Estos relatos dan cuenta del rol de los sindicatos en las huelgas de 1971 y 1977 y las distintas “acciones de presion” a Indupalma. Ademas, describen la institucionalidad comunitaria local impulsada por el activismo sindical, especialmente en San Alberto, a traves de la creacion de juntas comunales, comites de mujeres, comite de presos politicos, fondo de solidaridad, comite deportivo y creacion de barrios obreros como El Primero de Mayo (pp. 80-84). Leia Mais
Caliandra | ANPUH-GO | 2021
Caliandra – Revista de História da ANPUH GO (Goiânia, 2021-) foi criada para fortalecer um processo de construção coletiva de conhecimento que já vem se realizando com reconhecida qualidade no estado. O periódico tem a intenção de participar desse esforço e ampliar possibilidades de divulgação científica, numa perspectiva plural e democrática.
Para isso, a revista foi pensada a partir de inúmeras sugestões, através de reuniões com membros da diretoria, coordenações de Grupos de Trabalho (GTs) e consulta aos filiados e filiadas, utilizando-se de formulários virtuais. Neste percurso, fizemos uma primeira consulta para coletar sugestões de nomes para o periódico. Numa segunda etapa, disponibilizamos as sugestões apresentadas e o nome mais votado foi esse que agora intitula a revista.
CALIANDRA, conforme o autor da sugestão, é o nome de uma flor típica do cerrado que representa práticas e vivências plurais. Essa é a intenção desse espaço, para o qual contaremos com um conselho editorial composto por pessoas de diferentes instituições do estado e do país. A equipe editorial estará assim composta: Kênia Érica Gusmão Medeiros e Cristiano Nicolini, como editores chefes; Álvaro Ribeiro Regiani, Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Eliane Martins de Freitas, Ricardo Lenard Alves e Thais Alves Marinho, como editores científicos.
A Caliandra – Revista de História da ANPUH GO pretende ser um espaço amplo de discussão acadêmica de temas históricos. Tem como objetivo a publicação de produções originais resultantes de pesquisa científica.
[Periodicidade semestral].Acesso livre.
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Pandemia. COVID-19 e a reinvenção do comunismo | Slavoj Žižek
Nascido em 1949 em Liubliana na Eslovênia, Slavoj Žižek, é filósofo e psicanalista. Sua produção intelectual tem sido influenciada principalmente por obras de Karl Mark e Jacques Lacan, e pautada em crítica e reflexões originais sobre diversas áreas do conhecimento, com destaque para a cultura e política da pós-modernidade. Atua como professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Luibliana, bem como presidente da Sociedade de Psicanálise Teórica, de Liubliana. É diretor de relações internacionais do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck, de Londres, Inglaterra. Autor de diversas obras com os títulos Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917 (2005), e O sujeito incômodo (2016). A obra objeto desta resenha constitui uma congregação de ensaios relacionados a pandemia da COVID-19, organizado em treze capítulos, o autor inicia seu texto com críticas a exposição que se fez sobre o surgimento do perigo, na época eminente, do novo Coronavirus, em comparação com outras epidemias anteriores. O autor faz alusão a última grande pandemia de influenza, a gripe espanhola, que entre 1918-1920 atingiu mais de 50 milhões de vítimas. Destaca, ainda, que na contemporaneidade a influenza ainda se faz presente e tem ceifado milhares de vidas todos os anos. Com essa breve contextualização do problema, o autor nos remete ao que ele considera a raiz da questão, que é a conectividade do nosso mundo, “quanto mais nosso mundo estiver conectado, mais um desastre local pode deflagrar um pavor global e, eventualmente, uma catástrofe” (Žižek, 2020, p. 13). Neste ponto o autor critica as medidas de isolamento e quarentena, que nos remetem a ideia de comunismo, ressaltando a importância de uma resposta global com ações coordenadas. Ainda nos capítulos iniciais, o autor destaca que em se tratando de uma pandemia, será necessário que os governos tomem medidas fortes que em muito se parecem ideias comunistas, como controlar a produção e a distribuição principalmente de alimentos, para evitar desabastecimento e consequentemente fome. Neste ponto, tendo em vista que esse ensaio foi escrito no começo da pandemia, observa-se que alguns países como Itália, França, Espanha, Inglaterra, China, Estados Unidos, dentre outros, já estão adotando plenamente esses esforços de controle, fugindo assim da lógica do capital. Verifica-se que se não houver esforço coletivo de cooperação e colaboração dos governos em combater os efeitos socioeconômicos da pandemia da COVID-19, deixando de lado a lógica exploratória e brutal do capital para pensar nas pessoas, em termos de sobrevivência, o mundo como o conhecemos necessitará ser reinventado devido a ampliação da desigualdade, pobreza e conflitos. Isto remete reflexões sobre um novo modelo socioeconômico para substituir o capitalismo, que desde a algum tempo já vem demonstrando ser insustentável, como tem reiterado as sucessivas crises econômicas que expõe a fragilidade do sistema capitalista. Neste sentido, retomando o título do livro desta resenha, constata-se que a proposta de reinvenção do comunismo, é a tentativa do autor em provocar reflexões sobre o futuro do capitalismo, congregando novos fatos e evidências a partir da eminência da COVID-19. Um desses fatos abordados na obra de Žižek são suas explicações acerca da reação das pessoas frente a pandemia. Para tanto, o autor busca na psicologia uma associação oportuna a partir do livro “Sobre a morte e o morrer”, publicado em 2008, de autoria da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que propõe cinco estágios de reação quando as pessoas são diagnosticadas com uma doença terminal, que são eles: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Ao relacionar a abordagem de Kübler-Ross (2008) com a pandemia, Žižek (2020, p. 24-27) discute esses cinco estágios destacando slogans que disseminados nas mídias e redes sociais como sobre a negação: “Não há nada grave ocorrendo, há apenas alguns indivíduos irresponsáveis disseminando pânico”; raiva: “Os culpados são os chineses sujos ou a ineficiência do Estado em lidar com esse tipo de crise”; negociação: “Ok, há algumas vítimas, mas a situação é menos grave que a SARS e ainda podemos limitar o estrago”; depressão: “Não nos enganemos mais, estamos todos perdidos” e, por ultimo a aceitação: “Ok, as pessoas vão continuar morrendo, mas a vida vai seguir, talvez haja alguns efeitos colaterais positivos”. O autor também destaca que a pandemia pode suscitar um vírus ideológico que nos motive a pensar além de Estado-nação e nos leve a refletir sobre novas formas de cooperação e solidariedade globais. Destaca ainda que, assim como a catástrofe de Chernobil na Rússia em 1986, que deflagrou o fim do comunismo soviético, especula-se que o coronavírus possa fragilizar ou até mesmo provocar ações para mudanças no governo comunista na China. Todavia, o autor admite que a COVID-19 pode nos estimular a reinventar o comunismo com base na confiança no povo e na ciência, mesmo com o negacionismo e a banalização desses temas por governantes nacionais de alguns países como o Brasil. A partir da narrativa de Fredric Jameson, conceituado crítico literário e teórico marxista, o autor fala do enredo utópico apresentado em filmes de catástrofes, onde uma ameaça como um asteroide ou uma pandemia põe em risco a vida (Žižek, 2020). Frente a isso, a humanidade é capaz de ensejar uma nova solidariedade global, colocando as diferenças em segundo plano e se unindo por uma causa comum, a busca de uma solução. O autor pondera que já estamos vivenciando um acontecimento como esses retratados nos filmes, mas que ainda estamos muito aquém de uma união global para uma solução solidária. O autor destaca que ainda precisamos repensar nossas prioridades, além da ameaça viral, vivenciamos outras catástrofes ou crises paralelas como as de natureza climática: seca, ondas de calor, tempestades massivas etc. Além disso, segundo o autor, há inúmeras notícias nas mídias de massa que se preocupam mais com o mercado e os efeitos da pandemia na economia do que em relação a outras questões, considerando as centenas de milhares de pessoas que já morreram e que ainda irão morrer. Nesse sentido, o autor menciona ser necessário repensar a economia para que as pessoas não se tornem extremamente dependentes do mercado da conectividade, como algum tipo de organização global capaz de controlar e regular a economia. Eis um dos ápices do livro de Žižek onde sustenta a noção de reinvenção do comunismo. Com base nos escritos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, escritos da juventude, para descrever a atual situação, o autor destaca que, o que aprendemos com a história é que não aprendemos nada com a história (Žižek, 2020). Aplicando a atual situação, o autor, destaca que a epidemia não nos deixará mais sábios, mas sim confrontará os fundamentos de nossas vidas, causando dor, sofrimento e caos econômico possivelmente pior que a Grande Recessão de 1929 ou ainda em relação a outras pandemias. Žižek sustenta que não existe um retorno ao normal da vida cotidiana pré pandemia, mas sim que o novo ‘normal’ deverá ser construído sobre o que sobrar ou se mantiver de nossas antigas vidas antes da pandemia, evidenciando a necessidade de se repensar tudo. Nesse aspecto o autor propõe que a pandemia COVID-19 poderia revitalizar o comunismo, pois, segundo o autor, nesses momentos de pânico é necessário uma abordagem mais centralizada e articulada, como a adotada pelo Estado chinês, como seu regime comunista. O autor menciona que o uso do termo ‘comunismo’ ou reinvenção do comunismo em sua obra está associada a necessidade de resposta globais coordenadas a ameaça da atual pandemia. Destaca que, os governos precisam se unir, como se estivessem em guerra, neste caso, não contra uma nação inimiga, mas sim contra um inimigo comum e invisível: a COVID-19. Contudo, a maior preocupação do autor indicada na obra é a possibilidade da aplicação de medidas de sobrevivência orientadas pelos governos e com respaldo de especialistas. O autor destaca que isso não está longe de acontecer e pondera que se pode observar no tom dos pronunciamentos e discursos das autoridades a proposição de novos hábitos e rotinas de convivência com a pandemia. Ressalta-se que de forma subliminar estamos sendo convencidos a aceitação da lógica da sobrevivência. Isso implicaria em deixar de lado os cuidados com os fracos ou idosos e que sobreviva o mais apto. Ainda nesse contexto, o autor critica a atitude de alguns governantes, sobretudo o de Donald Trump que buscou reservar doses de vacinas, ainda em testes e experimentação, exclusivamente para os Estados Unidos. O autor argumenta que no contexto de pandemia, os governos se veem diante de escolhas radicais, em alguns casos pode haver conflitos e lutas pelo poder, em outros o incentivo é para proteger a economia a todo custo. Assim, o autor destaca que é necessário que se reflita acerca das ações dos governantes e da própria forma de agir do Estado. Como conclusão o autor pondera que se deve repensar a forma de se pensar política, de se pensar o Estado, de se pensar em nações, pondera a necessidade de solidariedade global. Destaca que, além do coronavírus, outras questões precisam de atenção, são ameaças eminente como as questões ambientais e assim por diante. Que se aproveite esse momento para se por em discussão questões pertinentes que se façam ajustes necessários não só para se conter o coronavírus, mas para a própria sobrevivência humana. Ao analisar a obra como um todo, observou-se mudança de posicionamentos do próprio autor no decorrer de seus escritos. Como se trata de ensaios escrito no início da pandemia do novo coronavírus, inicialmente o autor adota uma postura muito mais cética em relação a COVID-19 e se de fato seria uma ameaça real ou se tratava mais de uma paranoia exagerada pela mídia e pelos governos, o que fica bem evidente nos capítulos iniciais onde, critica duramente as ações tomadas por governantes quanto aos decretos de limitação de circulação das pessoas. No entanto, à medida que os capítulos avançam, o que corresponde ao próprio avanço da pandemia, nota-se uma mudança de postura quanto a pandemia e seus efeitos, bem como com as medidas tomadas para se conter o avanço do vírus. Tal comportamento explicitado pelos ensaios do autor, indica um pouco do que as pessoas sentiram e ainda sentem, mas que estão aprendendo e revendo, durante a pandemia, que ainda perdura. Em suma, é possível que todos que lerem a obra de Žižek, se identifiquem com algo tratado por este autor. Quanto a questão central da obra de Žižek, a reinvenção do comunismo, primeiramente se refere a uma crítica ao regime comunista chinês, que segundo o autor pode ser abalado e correr o risco de colapsar devido a forma como lidou com o início da catástrofe causada pelo novo coronavírus. No desenrolar de sua obra o autor destaca que essa reinvenção do comunismo, não necessariamente se refere a um novo regime politico econômico, mas a atitudes adotadas por governantes que em muito relembram ideais comunistas, em destaque a solidariedade, participação mais ativa e provedora do Estado em prover segurança, saúde e demais serviços básicos e, que em alguns casos, levou governos a estatizarem, mesmo que temporariamente, alguns setores da economia para garantir seu funcionamento. Em suma, a reinvenção do comunismo, trata-se de uma ideia de união e solidariedade global, como a apresentada em filmes apocalíticos, nos quais a humanidade se depara com um evento catastrófico que pode levar a extinção da raça humana, como a atual pandemia. Isso fomenta a união global, deixando de lado as diferenças e juntando esforços para a resolução dos problemas. Embora um tanto utópico a ideia de politicas públicas globais em prol da humanidade, o autor destaca que algumas coisas já tem sido feitas, como uma frente mundial contra a COVID-19, liderada pela Organização Mundial de Saúde – OMS e que as discussões nesse respeito se intensificaram cada vez mais com a ameaça do novo coronavírus. Por fim, esta obra é dirigida a todos que desejam se aprofundar em uma discussão filosófica sobre a organização político-econômica mundial, críticas as ações de combate a pandemia e reflexão sobre nossa natureza frente a uma pandemia e nossa forma de pensar nossa existência e repensar nossas ações como seres humanos. Leia Mais
Key Thinkers of the Radical Right | Mark Sedgwick
SEDWICK Mark. Foto: Rascunho.com /
Quando pensamos em uma direita radical, podemos imaginar skinheads e neonazistas usando suásticas. Existem, porém, intelectuais da direita radical que ocupam um espaço cada vez mais relevante e, embora alguns tenham explicitamente apoiado nazistas e fascistas, outros, de fato ou retoricamente, se afastam dos estereótipos mencionados. O livro organizado por Mark Sedgwick, historiador especializado no estudo do tradicionalismo, islamismo, misticismo sufi e terrorismo, busca expor, de forma sintética, os pontos centrais do pensamento de 16 intelectuais ligados à direita radical.
Cada capítulo é escrito por um autor diferente e dedicado a um dos intelectuais, passando por autores clássicos, da chamada Nouvelle Droite, identitários, libertarianos (ou libertários), neoconservadores, paleoconservadores, contrajihadistas, neorreacionários e a denominada alt right.
É importante ressaltar que a obra não é uma apologia dos pensamentos desses formadores de opinião da direita radical, mas uma relevante ferramenta para compreender os argumentos, posicionamentos e táticas desse campo ideológico bastante plural, uma vez que é possível verificar no decorrer do livro uma variação muito grande de pensamento e uma forte discordância entre os autores, o que serve para demonstrar as nuances existentes dentro da direita radical, a qual poderia ser considerada, erroneamente, como monolítica.
O livro é dividido em três partes: Classic Thinkers, Modern Thinkers e Emergent Thinkers. O primeiro capítulo aborda quatro pensadores clássicos: Oswald Spengler, Ernst Jünger, Carl Schmitt e Julius Evola. Todos, exceto Spengler, produziram durante o período em que o nazismo alemão e o fascismo italiano estavam no poder, mas apenas Schmitt foi um membro ativo do partido nazista, enquanto Evola teve aproximações com nazistas e fascistas.
A obra mais conhecida de Spengler [2] é “O declínio do Ocidente” cujo primeiro volume foi publicado logo após o final da Primeira Guerra Mundial. A filosofia histórica de Spengler era baseada em dois pontos: a existência de entidades sociais chamadas de “culturas” como os maiores atores da história, sendo que esta não possuiria objetivo ou sentido metafísico. O segundo ponto é que a evolução dessas culturas corresponderia aos estágios de um ser vivo, tendo uma infância, juventude, idade viril e velhice. A cultura ocidental teria adentrado seu último estágio com a ascensão de Napoleão e as ideias calcadas na tecnologia, expansão, imperialismo e sociedade de massas. Seu declínio se daria a partir do ano 2000. Esse pensamento é responsável por duas ideias importantes da direita radical: a visão apocalíptica de um declínio e o foco em culturas e civilizações em detrimento de nações ou Estados.
Jünger [3], por sua vez, possui como obra de destaque In Stahlgewittern (Tempestades de aço), uma memória de sua participação na Primeira Guerra Mundial e que apresentava um olhar sobre sua atuação na guerra, apresentada como heroica e masculina. Na sua visão, a guerra trazia os homens de volta a um estado natural, revelando os ritmos primordiais violentos da vida que ficavam abaixo do verniz da civilização. As suas ideias de virilidade e luta, bem como uma construção posterior de que a única forma de se proteger de demagogos e tiranos que manipulavam a tecnologia para atingir as massas seria se afastar para um “eu autônomo”, ou, como Jünger coloca, um Anarco, repercutem até hoje nos meios da direita radical.
O jurista alemão Carl Schmitt [4] talvez seja o mais conhecido fora dos círculos de direita, uma vez que foi considerado o jurista principal do nacional-socialismo. Sua maior contribuição para a direita radical é sua distinção entre amigo e inimigo, nós e eles, um pensamento binário ainda facilmente encontrado na retórica extremista. Schmitt também opôs dois conceitos, o “Estado de Normalidade” e o “Estado de Exceção” para argumentar que, em certos casos, seria necessário um governo ditatorial para representar uma comunidade política através de decretos, não da lei, como forma de estabilizar as relações legais. Obviamente esses argumentos possuíam um potencial antidemocrático e foram utilizados pelos nazistas.
O italiano Julius Evola [5] tem forte ligação com o tradicionalismo no sentido dado pelo francês René Guénon [6], apesar de possuírem pontos de discordância. Seu estudo do tradicionalismo é mais bem refletido em sua obra “Revolta contra o mundo moderno”. A tradição integral derivaria de um perenialismo no qual todas as visões metafísicas de mundo e as mais importantes religiões seriam teriam uma origem divina, imutável e inquestionável. O mundo moderno, caracterizado pela civilização ocidental, tecnologia e baseado no materialis materialismo, seria “vindo de baixo”, o exato contrário da tradição. O tradicionalismo poderia ser visto em suas últimas luzes no catolicismo medieval, entrando em declínio durante a Renascença e, especialmente, após a Revolução Francesa. O mundo estaria, portanto, em declínio, e uma recuperação só seria possível após o colapso do mundo moderno, ou seja, seria necessário “cavalgar o tigre” (Cavalcare la tigre, título de sua obra pós-guerra) até que ele desabe.
A segunda parte do livro, destinada aos pensadores modernos, inicia com dois autores franceses ligados à Nova Direita (Nouvelle Droite), Alain de Benoist e Guillaume Faye. De Benoist [7], autodeclarado pagão, assim como Evola, publicou 106 livros e mais de 2 mil artigos. Após a independência da Argélia, de Benoist decidiu deixar de lado o ativismo nas ruas, visto como inútil, e focar na metapolítica, retirando do comunista Antonio Gramsci a ideia de que a hegemonia ideológica é a condição da vitória política. Assim, se alguém quer que suas ideias modelem a sociedade, é necessário trabalhar no plano das ideias antes.
As bases principais nas obras escritas por de Benoist podem ser sumarizadas em três pontos: primeiramente, a crítica à primazia dos direitos individuais, que seriam uma consequência do humanismo do século XVIII e resumidos nas Revoluções Americana e Francesa. A segundo base é que o perigo central que o mundo estaria enfrentando poderia ser visto na hegemonia do capital e na busca de interesses próprios. Sua crítica ao capital não deve ser tomada em um sentido marxista, mas dentro da tradição anticapitalista nacionalista, uma vez que o risco do consumismo e do livre mercado seria o apagamento das identidades dos povos. Por fim, o terceiro ponto é sua oposição ao Estado-nação, favorecendo a ideia de uma Europa federalizada com o reconhecimento de comunidades baseadas na etnia, linguagem, religião ou gênero.
Faye [8], por sua vez, contribuiu para a direita radical com o que chamou de “arqueofuturismo”, a aceitação dos avanços científicos e tecnológicos combinada com uma sociedade que permaneceria tradicional. Após considerar os regimes árabes como aliados naturais da França e criticar o papel dos EUA, Faye se transformou em um defensor do nativismo, discursando contra a imigração e os muçulmanos e em defesa dos interesses étnicos europeus. Os imigrantes estariam colonizando a Europa através de altos índices de natalidade, impondo uma substituição étnica. Seguindo uma ideia pseudodarwinista, a luta pela sobrevivência se daria no plano das civilizações.
Os três autores seguintes explorados no livro são norte-americanos: Gottfried, Buchanan e Taylor. Os dois primeiros são conhecidos paleoconservadores, sendo que Gottfried [9] se destaca pela sua desconfiança em relação às elites globais que, segundo ele, suportariam um “Estado gerencial” contrário às bases tradicionais da sociedade, aproximando-se, portanto, do tradicionalismo.
Buchanan [10] assemelha-se a Gottfried na visão de que a sociedade norte-americana é baseada na sua história e na herança europeia branca, não em princípios universais abstratos. É possível verificar uma visão apocalíptica em seu pensamento, especialmente em sua obra principal, The Death of the West, segundo a qual os EUA e os países europeus estariam na linha de frente de um ataque. Os europeus (brancos) estariam enfrentando uma ameaça comparável à peste negra, uma vez que as taxas de natalidade teriam caído drasticamente. Um dos culpados por essa decadência seria o feminismo, que, somado a outras formas de ataques culturais à tradição ocidental, poderia ser ligado a pessoas com objetivos marxistas ou à Escola de Frankfurt, a qual Buchanan considera um suspeito principal. Sua combinação de um comunitarismo europeu branco, hostilidade às elites globais que não dariam importância às raízes locais e preocupação com a imigração mexicana nos EUA teve impacto nas eleições norte-americanas de 2016.
Jared Taylor [11], de seu lado, possui um foco quase exclusivo na questão racial. Apesar de acreditar em fatores culturais e históricos, Taylor enfatiza o papel da genética e das raças nos tipos de sociedades existentes. Uma das intenções de Taylor é fazer com que as pessoas brancas possam se expressar em relação a si mesmas e à questão racial sem ser demonizadas em relação a isso. Vendo como imprescindível para a nação uma homogeneidade cultural, racial e linguística, argumenta que a maior preocupação nos EUA deveria ser a limitação ou impedimento da imigração de não brancos.
O autor abordado na sequência é Alexander Duguin [12], conhecido ideólogo russo que mistura doutrinas diversas, passando pelo tradicionalismo, a nova direita francesa e o eurasianismo, pregando uma renovação do nacionalismo russo por meio das tradições europeias. Para isso, seu pensamento se apoia em dois conceitos-chave: a questão da Eurásia, através da qual Duguin acredita no papel central da Rússia como Estado e da Eurásia como civilização capaz de regenerar a nação russa. Em segundo lugar, o conceito de uma revolução conservadora. Ao contrário de prezar mudanças graduais, Duguin acredita em uma revolução conservadora para se opor ao liberalismo e avançar as pautas conservadoras. No seu livro The Fourth Political Theory, ele renuncia ao que chama de segunda e terceira teorias políticas (comunismo e nacionalismo/ fascismo) e considera o liberalismo uma ideologia totalitária em virtude de seu caráter normativo. A quarta teoria política viria para negar a modernidade como um todo. Duguin talvez tenha mais impacto fora da Rússia do que dentro, tendo inclusive participado de um debate online com Olavo de Carvalho em 2011.
A última autora abordada é Bat Ye’or [13], proeminente contrajihadista que descreve a existência de uma conspiração envolvendo a União Europeia e países de maioria muçulmana do norte da África e Oriente Médio que buscariam estabelecer o controle muçulmano da Europa, ou “Eurábia”. Seu trabalho inspirou o terrorista de extrema-direita Anders Breivik na Noruega e continua a ser debatido no campo da direita radical em relação a uma “islamização” da Europa.
A terceira e última parte do livro diz respeito aos pensadores emergentes, mais jovens que os tratados anteriormente e que propagam suas ideias principalmente através da internet. Dos cinco autores tratados, quatro são norte-americanos e um é sueco, o que revela que a direita radical europeia ainda está dominada por pensadores da geração anterior, especialmente ligados à nova direita francesa e Duguin.
Mencius Moldbug [14], apelido de Curtis Yarvin, é um ex-libertariano (ou libertário, como preferem se autodenominar no Brasil) que prega a necessidade de se livrar do “controle de pensamento” feito por uma elite progressista e rejeitar o “vírus” da democracia, fazendo uma fusão entre o libertarianismo radical e o autoritarismo no que denomina “neorreação”. O regresso a uma autoridade e hierarquia contra a democracia e o igualitarismo poderia salvar a sociedade do seu declínio. Sua utopia envolve liberdade máxima, exceto na política. A ordem econômica seria gerida por uma sociedade inteiramente privatizada, enquanto a ordem política teria o modelo de uma corporação, com o Estado privatizado encabeçado por um CEO-monarca eleito por grandes proprietários.
Apesar de suas ideias parecerem esdrúxulas, Moldbug possui contatos com o site Breitbart, Steve Bannon e o bilionário Peter Thiel, além de ter boa inserção nos meios jovens ligados à tecnologia, bem como na alt right.
Greg Johnson [15], por sua vez, também esteve próximo do libertarianismo e é editor-chefe do site Counter–Currents, que se propõe a criticar a liberdade liberal na América do Norte à luz do tradicionalismo e das ideias da nova direita europeia. Johnson é mais um pensador que foca seus esforços na questão da metapolítica, visando criar um movimento cultural e intelectual que seja capaz de promover mudanças políticas reais e, finalmente, o estabelecimento de um etno-Estado branco, uma vez que ele é defensor de uma etnopluralidade, segundo a qual todas as raças e etnias deveriam ter sua própria pátria. Johnson é o único entre os autores modernos e emergentes que expressamente revela simpatia pelo nazismo.
O terceiro pensador emergente tratado é o conhecido Richard Spencer [16], presidente do National Policy Institute, um think tank nacionalista branco fundado pelo multimilionário William Regnery II. Spencer se diz responsável pela criação do termo “alt right”. Tamir Bar-On, autor do capítulo sobre Spencer, sintetiza os contornos do seu pensamento:
Uso da internet como o principal veículo para provocar tanto conservadores quanto liberais com ideias e linguagem politicamente incorretas; rejeição do multiculturalismo liberal; desdém pelo capitalismo, já que ele tem a tendência de homogeneizar diversos povos e culturas; apoio a comunidades políticas unidas a identidades europeias brancas; o desafio a elites “heroicas”, brancas e europeias a criar uma revolução nas mentalidades e valores […] contra o multiculturalismo e a imigração; e o desejo de criar etno-Estados brancos homogêneos (“pátrias”) dos dois lados do Atlântico (2019, p. 225).
Como pode ser visto, a questão racial é central no discurso de Spencer, bem como o chamado à ação para uma direita revolucionária, antiliberal e anticapitalista que tenha como foco a metapolítica e as táticas da nova direita.
O capítulo 15 é dedicado a Jack Donovan e seu tribalismo masculino.[17] Donovan acredita que a igualdade é uma farsa, a violência é necessária e que a questão principal não é a raça, mas sim o gênero. Não somente homens brancos, mas todos os homens devem ser livres e fortes. Donovan é abertamente homossexual e prega o tribalismo masculino, uma ideologia de supremacia masculina formada ao redor da ligação entre guerreiros através de rituais de união. Na sua visão, a masculinidade é atacada atualmente por feministas, burocratas e homens ricos que buscam a passividade dos homens. Em 2013, Donovan passou a defender o que denominou de “anarcofascismo”, em que tribos de homens se unem em oposição à ordem institucional feminista, corrupta e antitribal. Donovan possui influência na chamada manosphere, uma subcultura da internet que acredita que as mulheres possuem poder em demasia, e na alt right, que adota sua posição misógina.
O último autor abordado é Daniel Friberg [18], sueco, para quem o método é mais importante do que a própria questão ideológica. Assim como outros autores citados, Friberg acredita que a mudança política só pode ser obtida através da educação, mídia e expressão criativa, ou seja, na metapolítica. Em virtude disso, Friberg tomou diversas inciativas para popularizar obras tradicionalistas, como a Arktos, maior editora de obras da direita radical e tradicionalistas, e o site Metapedia, uma alternativa à Wikipedia. Em 2015, publicou o livro The Real Right Returns, um manual de estratégias para ativistas da direita radical de como se conduzir politicamente e atacar o establishment liberal.
A obra editada por Sedgwick é de extrema importância na atualidade, permitindo compreender a pluralidade de pensamentos existentes dentro de uma direita radical que se torna cada vez mais proeminente em vários países do mundo, especialmente na América Latina, Estados Unidos e Europa.
Assim, o livro se mostra como uma importante ferramenta para todos os que buscam entender as linhas de pensamento da direita radical desde seus primórdios até a atualidade, sem, claro, esgotar todos os autores que impactam nesse meio. René Guénon e Frithjof Schuon, por exemplo, são escritores interessantes para o estudo da ala da direita brasileira encabeçada por Olavo de Carvalho, enquanto David Duke poderia ainda ser visto como uma influência para os supremacistas brancos norte-americanos.
A leitura de Key Thinkers of the Radical Right é bastante agradável; todos os capítulos contam com extensas referências e deixam em aberto um caminho para quem pretende se aprofundar em algum dos pensadores abordados. Certamente historiadores que pesquisam movimentos ligados à extrema radical tirarão bom proveito da obra, uma vez que são raros os livros que tratam de forma séria e criteriosa a respeito do tema.
Notas
3. Capítulo escrito por Elliot Y. Neaman.
4. Capítulo escrito por Reinhard Mehring.
5. Capítulo escrito por H. Thomas Hakl.
6. Os autores tradicionalistas possuem divergências entre si. Para melhor compreensão sugerimos o livro Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century, também de Mark Sedgwick.
7. Capítulo escrito por Jean-Yves Camus.
8. Capítulo escrito por Stéphane François.
16. Capítulo escrito por Tamir Bar-On.
17. Escrito por Matthew N. Lyons.
18. Capítulo escrito por Benjamin Teitelbaum.
Referências
SEDGWICK, M. (org). 2019. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. New York, Oxford University Press, 325 p.
SEDGWICK, Mark. 2009. Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century. New York, Oxford University Press, 2009, 369 p.
Felipe Cittolin Abal – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. BR 285, Bairro São José. 99052-900 Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: felipe.c.abal@hotmail.com
SEDGWICK, Mark. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. Resenha de: ABAL, Felipe Cittolin. Os pensadores da direita radical: de Oswald Spengler a Daniel Friberg. História Unisinos, Porto Alegre, v.25, n.1, p.168-171, jan./abr., 2021. Acessar publicação original
Dicionário de Ensino de História | Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira
Composto de 38 verbetes, o Dicionário de Ensino de História é produto de um conjunto de profissionais que atuam junto aos programas de pós-graduação, em especial, do Mestrado Profissional de Ensino de História, o ProfHistória. Como destacado pelas coordenadoras, esse material foi “Elaborado visando subsidiar pesquisadores e professores nas suas variadas atuações de construção do conhecimento histórico” e acrescenta que ele “[…] objetiva chamar a atenção de pesquisadores de outros campos para as especificidades da historiografia, teóricos e áreas de diálogos do ensino de história” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2019, p. 10).
Tende-se a acreditar que o dicionário é um material cuja finalidade é expressar o sentido de determinados termos. Entretanto, a dimensão enciclopédica do mesmo, ao menos em algumas áreas, já não é o mesmo. Não é de hoje que a produção desse tipo de material caiu no gosto dos historiadores. Temos como exemplos, alguns emblemáticos, a produção de Jacques le Goff e Jean Claude Schmitt, Dictionnaire Raisonné de l’Occident medieval, o recente Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilian Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, ou ainda, o Dicionário Crítico de Gênero, organizado por Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi. O dicionário que é objeto dessa resenha, não se distancia dos que foram citados, a não ser por sua temática, o ensino de história. Leia Mais
A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais | José Luciano Vianna
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Antígona | UFT | 2021
A revista Antígona (Porto Nacional, 2021-) destina-se a publicações no campo de História, Educação e Áreas afins, prezando pela produção, pelo ineditismo e pela inovação. Visando difundir as pesquisas dos professores e dos alunos e, assim, ampliando a visibilidade do Curso de História e do PPGHispam.
Antígona, de Sófocles, coloca-se no espaço público como expoente e defensora dos direitos individuais e coletivos, heroína do direito natural, da ética, do desejo, da resistência e da subversão. Por seu nome e sua inspiração, a Revista Antígona deve vivificar propostas que questionam doutrinas pré-estabelecidas, levantando novas problematizações, novas abordagens, novos temas e novas metodologias.
Seus dossiês, artigos, resenhas e traduções devem contribuir para o aprofundamento e consistência da História e da Historiografia, da Licenciatura em História, das Ciências Humanas e Áreas afins, bem como para o debate sobre o Direito dos Povos, desenvolvidos nesse campus. Seu candelabro simboliza a inspiração da chama do conhecimento, da solidão do trabalho intelectual e da luz regeneradora que atravessa caminhos na escuridão.
Periodicidade semestral.
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Acción Constituyente: un texto ciudadano y dos ensayos históricos | Gabriel Salazar
El viernes 18 de octubre de 2019, al final de la jornada laboral, se iniciaba un episodio de protesta que cambiaría el panorama político y social de Chile. Luego de varios días de protestas encabezadas por estudiantes secundarios contra el alza de tarifas del transporte público, el presidente de Metro ordenaba el cierre de las estaciones ante la enorme cantidad de personas que estaban saltando los torniquetes para evadir el pago de la tarifa, ante lo cual los guardias de seguridad y carabineros estaban desbordados. Ese día viernes, a pesar del calor, miles de personas caminaban por las calles rumbo a sus casas sin poder tomar transporte y muchos de ellos se encontraron en la plaza Baquedano para protestar por los eventos recientes. Ese fin de semana, diecinueve estaciones de Metro serían incendiadas por desconocidos y el sistema de transporte público colapsaría en el inicio de un evento histórico que se ha llamado como “estallido social”.
Una de las principales consecuencias de ese evento es que el 15 de noviembre de 2019 la clase política, acorralada por una ciudadanía en pleno proceso de repolitización, en los pasillos del Congreso Nacional decide firmar un acuerdo para llamar a plebiscito con el fin de cambiar la Constitución. Si bien el movimiento de personas que surge del estallido social no necesariamente reclama una nueva Constitución, es la única respuesta que la clase política encuentra para tratar de apaciguar los ánimos e intentar retornar a ciertos niveles de gobernabilidad. El libro Acción Constituyente: Un texto ciudadano y dos ensayos históricos de Gabriel Salazar ofrece una perspectiva histórica del proceso constituyente en ciernes, a partir del marco interpretativo que ha desarrollado el destacado historiador desde los métodos y enfoques de la historia social. Leia Mais
Uberização: a nova onda do trabalho precarizado / Tom Slee
Tom Slee / Foto: Sally Montana – Divulgação /
Sobre a obra
O fenômeno da economia do compartilhamento − que se populariza pela propaganda de um negócio em escala local, que conecta proprietários de dados recursos com pessoas em necessidade desses bens − é retratado na obra de SLEE (2017). Através de intensa pesquisa em fontes jornalísticas e utilização de bancos de dados públicos, o autor analisa a atuação de empresas no setor de economia do compartilhamento e desmistifica a propaganda que levou essas corporações a assumirem proporções gigantescas. Ocupando uma significativa proporção no mercado de Wall Street, corporações, como Rappi, Ifood, Lyft, TaskRabbit, WeWork e Airbnb, promoveram lobby nos setores financeiro, jurídico e imobiliário visando à garantia da flexibilização do vínculo trabalhista adotado por essas empresas.
O estudo minucioso de Slee (2017) pode ser tomado como referência para além dos casos descritos pelo autor. Assim, seria possível o extravasamento dessa análise fazendo paralelos com iniciativas atuais de flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores nos quais esse impacto ainda é mais tímido, como, por exemplo, no setor educacional. Além do exemplo da massificação de cursos online no Ensino Superior (SLEE, 2017, p 52), nos últimos anos, a categoria do magistério assistiu à implementação de flexibilização do trabalho docente no setor público através da criação do vínculo empregatício de professor eventual. Esse tipo de vínculo não oferece ao trabalhador uma renda fixa, sua remuneração é calculada mediante à demanda por seu trabalho. Dessa forma, o professor eventual trabalha substituindo faltas ou licenças de professores efetivos, recebendo por aulas lecionadas (VENCO, 2018, p 9). Um vínculo empregatício com características que se enquadram no fenômeno de economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p14-16) ou uberização do trabalho (FONTES, 2017, p 54). Ainda no campo educacional, as projeções para os próximos anos se relacionam com o desafio da garantia de direitos trabalhistas do magistério a longo prazo. Após a pandemia provocada pela Covid-19, expandiu-se a compra do uso de plataformas para veiculação de atividades pedagógicas por acesso remoto. Essa conjuntura fomenta incertezas sobre a continuidade dos programas de oferecimento de atividades pedagógicas não presenciais fora do período da pandemia. Aponta-se que em uma eventual decisão de continuidade dessas políticas de acesso remoto, estas seriam beneficiadas pela estrutura utilizada no período da Covid-19. Além disso, há receio sobre o investimento no vínculo de trabalho docente por tutoria remota em detrimento da promoção de editais de concurso público para sanar o déficit de professores nas redes públicas de ensino. Dessa maneira, o estudo de caso das corporações da economia do compartilhamento de Slee (2017) permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam esse mesmo modelo de flexibilização dos vínculos trabalhistas. Nesse sentido, a obra apresenta relevância para o campo das humanidades por sua análise de um fenômeno atual e em corrente expansão. O livro divide-se em nove capítulos que serão descritos a seguir.
Nas notas de edição, por Tadeu Breda e João Peres, e no prefácio à edição brasileira, de Ricardo Abramovay, fica explícito, que no original, Tom Slee (2017) não se utiliza do termo “uberização”. Esse emprego poderia restringir o fenômeno da economia do compartilhamento a apenas essa corporação. O autor utiliza os termos economia do compartilhamento (sharing economy), economia dos bicos (gig economy), consumo colaborativo (collaborative consumption), economia em rede (mesh economy), economia sob demanda (on-demand economy) e plataformas igual para igual (peer-to-peer plataforms) para definir a atuação dessa modalidade de negócios. Dessa maneira, o título original em inglês, What’s yours is mine: against the sharing economy (O que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento), não foi traduzido de maneira literal para o português. Essa foi uma opção assumida pelos tradutores por compreenderem que a discussão sobre economia do compartilhamento no Brasil se intensifica a partir da popularização da Uber nas principais capitais nacionais.
O primeiro capítulo da obra de Slee (2017), intitulado “A economia do compartilhamento”, introduz a temática e apresenta o discurso sedutor de propaganda desse setor. A economia do compartilhamento se autodefine como plataformas de conexão de pequenos grupos de compartilhamento com foco comunitário. Contudo, as pequenas empresas que se enquadrariam nesse perfil ou foram compradas ou serviram de transferência de clientes para grandes empresas. Já as grandes corporações desoneram-se de sua responsabilidade com os trabalhadores que empregam, conclamando-se como intermediadores entre aqueles que prestam o serviço e aqueles que o demandam. Ainda no primeiro capítulo, são apresentadas a sequência e a segmentação da obra, a justificativa para sua elaboração e a defesa sobre o perigo da desregulação trabalhista trajada sob o discurso da sustentabilidade e empreendedorismo individual.
O segundo capítulo, intitulado “O cenário da economia do compartilhamento”, apresenta alguns mecanismos que as corporações utilizaram para manterem seus interesses. A organização Peers teve protagonismo na representação das corporações da economia do compartilhamento. Em específico, sobre a promoção de lobby nos setores legislativos e no movimento pela desregulação. A Peers atuou nas disputas judiciais entre a Airbnb contra ações mobilizadas pelo ramo da hotelaria de distintas cidades, assim como atuou na flexibilização de regras para o setor de transporte no estado da Califórnia, o que beneficiou a Uber. Tom Slee afirma que os três setores mais expressivos na economia do compartilhamento seriam o setor de hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%) (SLEE, 2017, p 55). Em relação ao setor educacional, mostra-se plausível a hipótese de que seu percentual pode ser maximizado a partir da oferta de atividades pedagógicas não presenciais em virtude da pandemia pela Covid- 19. Período no qual houve grande expansão da venda de plataformas para vinculação de aulas online.
O terceiro capítulo, intitulado “Airbnb, um lugar para ficar”, dedica-se à descrição da origem do Airbnb até seu crescimento exponencial, alterando a mobilidade nos centros urbanos de cidades turísticas como Paris. Entre 2013 e 2015, o Airbnb em Nova York contava com 40% de seus anunciadores sendo proprietários de mais de um imóvel. Os anúncios desses proprietários representavam 43% das reservas efetivadas pela plataforma. Fato que invalida o discurso da empresa de representar pessoas comuns, compartilhando acomodações em seus apartamentos com turistas que buscam reservas temporárias. Da mesma maneira, a narrativa Airbnb contra o monopólio de grandes hotéis torna-se retórica vazia diante do investimento de grandes empresas hoteleiras no setor da economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p 83). Se há algum prejuízo no setor de hospedagens, este tem sido acumulado por pequenos hotéis independentes com o maior gasto com taxas e regulações. O que torna desigual a competição entre essas acomodações com aquelas que não arcam com os custos da regulação (SLEE, 2017, p 84).
O capítulo 4, intitulado “De rolê com a Uber”, é dedicado à atuação do setor de transporte na economia do compartilhamento. O autor aponta que o manual de redação da agência de notícias Associated Press afirma que o termo economia do compartilhamento não deveria ser usado para descrever as ações da Uber, designando o serviço prestado pela empresa como “serviço de viagem chamada” (SLEE, 2017, p 102). Como a Uber se beneficiou da atuação da Peers e como a relação que a empresa estabelece com seus motoristas enquadra-se nos moldes da desregulação, Slee localiza a empresa no setor da economia do compartilhamento, ao lado da Zip car e Lift. A Uber, ainda que não tenha se associado diretamente aos lobistas da Peers, beneficiou-se de uma campanha promovida por essa associação na Califórnia. Este estado criou, em 2013, uma regulação específica para o setor de Empresas de Rede de Transporte. Esse segmento conta com motoristas sem registro na prefeitura, que não precisam submeter seus veículos ao mesmo tipo de inspeção pelo qual passam as empresas de táxi, por exemplo. Para além da atuação da Uber lucrando mediante a não garantia de direitos trabalhistas e da dispensa de gastos com regulação, a empresa também se mostrou falha na seleção de seus motoristas a partir de critérios de idoneidade que garantam a segurança dos passageiros (SLEE, 2017, p 132).
No capítulo 5, intitulado “Vizinhos ajudando vizinhos”, o autor se dedica a analisar as plataformas que oferecem serviços domésticos de limpeza, trabalhos de manutenção e entregas de supermercado, como a Taskrabbit, Instacart, homejoy e handy. Apesar de serem menos conhecidas no Brasil, são empresas comumente acessadas nos Estados Unidos. A receita é bem parecida com a dos outros setores da economia do compartilhamento: uma plataforma se populariza com o slogan de conectar pessoas que precisam de um serviço e aquelas dispostas a oferecê-lo. Contanto que aqueles que oferecem o serviço aceitem que o deslocamento, que as ferramentas e que os recursos para realização do trabalho sejam custeadas pelo próprio trabalhador. Enquanto, por exemplo, a plataforma homejoy que oferece o serviço, recebeu 40 milhões de fundos de investimento da google (SLEE, 2017, p 166-167).
O capítulo 6, intitulado “Estranhos confiando em estranhos”, dedica-se ao trato dos sistemas de avaliação das plataformas como um mecanismo que aferiria confiabilidade. Slee (2017) aponta que o sistema de avaliação pode refletir como o usuário avalia a eficiência do serviço prestado, como o conforto ou presença de lençóis limpos em uma diária de hospedagem.
Contudo, a maioria dos hóspedes não conseguiria avaliar se a acomodação respeita as prescrições de prevenção e combate a incêndio ou se os alimentos a serem consumidos foram manipulados com higiene (SLEE, 2017, p 181-182). Ou seja, o sistema de avaliação dos aplicativos não consegue cobrir questões referentes à regulação do serviço prestado. O sentido de avaliação das plataformas baseia-se em um sistema de reputação sem critérios prévios que orientem a avaliação. Portanto, de maneira subjetiva e informal, em uma sociedade fortemente estruturada pela estratificação social, misoginia e racismo. Como não considerar que esses elementos incidam sobre essas avaliações? Para além disso, Slee aponta para uma tendência no sistema de avaliações, evidenciando a relação frágil entre qualidade do serviço e as notas recebidas (SLEE, 2017, p 189-190).
O capítulo 7, intitulado “Uma breve história da abertura”, assim como o capítulo 8, traça um panorama do ambiente digital do qual emergiu a economia do compartilhamento. Slee afirma que a política de dados abertos em vez de produzir mais equidade, substituiu um conjunto de instituições poderosas por outro (SLEE, 2017, p 207). A abertura não poderia ser considerada uma alternativa ao mercado comercial ao passo que convive com este. Por exemplo, o Youtube, ao mesmo tempo que compartilha conteúdo gratuito, também, gera lucro a uma grande empresa (SLEE, 2017, p 210). Assim, o autor aponta que a abertura apresenta uma tendência a criar “mercados menos competitivos e negócios mais poderosos” (SLEE, 2017, p 211).
O capítulo 8, intitulado “Escancarado”, analisa a combinação entre lucro e a evocação de um caráter mais pessoal advindo da noção de compartilhamento, manifesto através da internet. O livro encerra-se com a conclusão de Slee (2017), já anunciada no título do capítulo 9 “O que é seu é meu”. O autor afirma que os valores não comerciais na economia do compartilhamento foram deixados de lado em prol da expansão do livre mercado. A evocação de um modelo mais humano para o universo corporativo resultou em uma forma mais agressiva do capitalismo, com desregulação das garantias trabalhistas e uma nova onda de trabalho precarizado (SLEE, 2017, p 297).
Síntese
A obra de Slee (2017) brinda a literatura do campo das humanidades ao apresentar um texto que sumariza a gênese e a atuação das corporações da economia do compartilhamento, fenômeno recente e em crescente expansão. O estudo de caso das corporações retratadas permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores em que esse impacto ainda é mais tímido. Como, por exemplo, no setor educacional. Aqui, infere-se que esse setor pode apresentar significativa expansão dentro da economia do compartilhamento a partir da compra em larga escala de pacotes de vinculação de aulas remotas em plataformas online, em virtude da suspensão de atividades pedagógicas presenciais como uma das medidas de contenção do espalhamento da Covid-19, durante o ano letivo de 2020.
Referências
FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, v. 5, n. 8, jan./jun. 2017. Disponível em: http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/220/177. Acesso em: 09/07/2020.
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
VENCO, Selma. Situação de quasi-uberização dos docentes paulistas? Revista da ABET,v. 17, n. 1, janeiro a junho de 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41167. Acesso em: 09/07/2020.
Regina Lucia Fernandes Albuquerque – Doutoranda no Programa de Pós graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre pelo Programa de Pós graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro na modalidade técnica de Formação de Professores. Atua com pesquisa em Sociologia da Educação.
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017. Tradução de João Peres. Resenha de: ALBUQUERQUE, Regina Lucia Fernandes. Cantareira, [Niterói], v.34, p.678-683, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].
Lugares da História no século XXI | Revista Latino-Americana de História | 2020
O trabalho historiográfico necessita de teoria e método, mas não se faz apenas um ofício. É necessário a/o historiador/a atribuir sentido ao que pesquisa. Através do engajamento, teoria e prática se encontram, ultrapassando os limites da universidade e, até mesmo, criando uma ponte entre essa e a comunidade.
A História precisa abarcar a todos, sem excluir suas particularidades. Necessita contemplar vários aspectos, incluindo diferentes ângulos, sendo crítica em seus olhares. O fazer histórico deve estar aliado à educação e, atualmente, à tecnologia, se fazendo conhecer entre os especialistas e o grande público. Leia Mais
Filosofia e História da Biologia | USP | 2006
Filosofia e História da Biologia (São Paulo, 2006-) é uma revista da USP com a parceria da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB). Ela integra as publicações do Centro Interunidades de História da Ciência (CHC) da Universidade de São Paulo. Criada em 2006, passou a ter periodicidade semestral a partir de 2010.
Publica artigos resultantes de pesquisas originais referentes a filosofia e/ou história da biologia e suas interfaces epistêmicas, como história e filosofia da biologia e educação científica.
[Periodização semestral].Acesso livre.
ISSN 1983-053X (Impressa)
ISSN 2178-6224 (Online)
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Infectious change: reinventing Chinese public health after an epidemic | Katherine A. Mason
Between 2002 and 2003, a coronavirus epidemic broke out in China and spread across the world, infecting more than 8,000 people and causing approximately 10% of this contingent to die. In the months when the Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) was active in China, severe sanitary measures were adopted, such as quarantines, isolation, the closing of public places, the use of large-scale diagnostic tests, and the construction of isolated health units in record time. The world has witnessed very similar protocols in China’s current fight against the SARS-Cov-2 epidemic in 2020.
The 2002-2003 epidemic drastically changed the structure of China’s health services. And the book Infectious change: reinventing Chinese public health after an epidemic , by Katherine A. Mason, published in 2016 by Stanford University Press, was written to bring to light and analyze these transformations and their impacts on public health in that country. Leia Mais
Historia Global: Perspectivas y Tensiones / Carlos Rojas
O livro História Global: perspectiva e Tensiones foi organizado por Carlos Riojas e Stefan Rinke com a seleção de autores que participam de grupos de trabalho voltados à História Global e à História da América Latina. Na introdução do livro, os organizadores relembram os grupos de estudos sobre História Global, bem como publicações, que juntas, articulam uma agenda. A ideia deles foi pensar quais eram as premissas básicas para reconhecer o que a bibliografia especializada chama de História Global. Delineia-se uma teoria que evita a história única, a história événementielle ou que tenta somar as partes para fazer o todo. Sem se inscrever numa geografia específica, trata-se de um enfoque que dá ênfase às redes, às conexões, ao mecanismo de sustentação ou difusão de constelações.
O primeiro capítulo dedicado a História Global, escrito por Sebastian Conrad, defende a abordagem enquanto uma tentativa de fugir da história da nação e da herança de uma matriz disciplinar fundada no século XIX. Para a sua superação propõe-se uma virada heurística a partir de objetos já pesquisados e documentos já descobertos (CONRAD, 2017, p. 36). Portanto, não se trata de buscar uma história ainda não descoberta, mas olhar de outra maneira para o mundo que já conhecemos.
Nesse sentido, o livro foi estruturado em oito capítulos com abordagens que problematizam narrativas amplamente difundidas no ambiente historiográfico. Por exemplo, categorizar a América Latina como periferia do mundo ou menosprezar este continente – e outros como Ásia –, no papel de globalização, ainda no século XVI.
A maneira como o livro traz a perspectiva global é uma revisão a partir de abordagens que vem sendo debatidas desde os anos 1950, como uma nova história política, uma nova história intelectual, as teorias desconstrutivistas, a crítica pós-colonial entre outras. Mas, em vez de destacar o acirramento entre tais teorias, há uma tentativa de conciliação. Por exemplo, para falar do equívoco do eurocentrismo, isto é, uma história feita a partir de uma visão sobre povos e culturas, que os classifica segundos uma hierarquia cujo ponto de chegada é a civilização europeia, com seus Estados, suas leis, sua urbanização, são retomadas questões sobre viajantes da modernidade (RIOJAS; RINKE, 2017, p. 16). Tais viajantes geralmente são entendidos como um instrumento do eurocentrismo, por viajarem pelas Américas a fim de explorar os continentes e produzirem o conhecimento necessário para a conquista. Além disso, esses relatos de viagem teriam sido usados exaustivamente por intelectuais residentes nas Américas para formar a própria visão do país, como na Literatura Indianista Brasileira. No livro não há a negação de tais fatos, mas a sugestão “de una dinámica intercultural la cual modificó paulatinamente el carácter de todos los actores inmiscuídos en estos viajes conforme los contactos se hicieron más estrechos y frecuentes” (RIOJAS; RINKE, 2017, p. 12). Portanto, tanto metrópole como colônia transformam-se pari passu uma a outra.
Alguns trabalhos, hoje clássicos, já problematizaram a relação entre metrópole e colônia, como Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens Livres na Ordem Escravocrata (1969), em que evidencia os vínculos entre trabalhos escravo e homens livres, de modo que a escravidão colonial faz parte do desenvolvimento capitalista nascente das metrópoles. Este argumento contraria visões que postulam diferenças essenciais e dicotômicas que podem ser percebidas em nomenclaturas como metrópole e colônia, desenvolvidos e subdesenvolvidos, periféricos e centro (FRANCO, 1976). Dessas diferenças viriam uma causalidade de acontecimentos da economia agrícola à industrialização, do atraso ao desenvolvimento, da barbárie à civilização. As teses de Franco não estiveram sozinhas e fizeram escola em livros como O Nascimento das Fábricas (1993), de Edgar De Decca, que interpretou a organização da sociedade em torno do engenho como uma forma de modelo industrial; e Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza (1986), de Stella Bresciani, que enxergou a barbárie nos ditos civilizados. Perceba, portanto, que a História Global é um guarda-chuva de debates historiográficos sustentados por uma noção de totalidade que reformula a percepção sobre a história. Para Rinke e Riojas, “el todo es más que la soma de las partes” (RIOJAS; RINKE, 2017, p. 14).
A história total já foi proposta outras vezes, seja com uma variante de universalidade, como em Friedrich Schiller (2019), para quem as histórias da Ilustração eram um amontado de fragmentos faltado conexão entre os eventos; ou a História Total pensada por Hippolyte Taine, que em seu recorte deveria abarcar a raça, o meio e o momento (DE DECCA, 2002, p. 163). Hoje não restam dúvidas que essas ambições modernas e iluministas produziram formas de engajamentos pelo mundo, que, por exemplo, encontram lugar comum em Victor Hugo, Euclides da Cunha, Marc Bloch, Domingo F. Sarmiento entre tantos outros. Não por acaso, Rinke e Riojas citam O mediterrâneo (1949) de Fernand Braudel como pioneiro na História Global. Entretanto, será possível conseguir se distanciar da história nacional e sua matriz disciplinar do século XIX com uma proposta fundada nessa mesma matriz disciplinar?
Adentrando ainda mais no livro, percebe-se textos que procuram reinterpretar os acontecimentos históricos para dar um novo sentido. Há também outros textos que enfatizam a inescapável globalização do período contemporâneo. A exemplo da proposta de Bernd Hausberger, até mesmo alguns livros recentes como Globalization in World History, organizado por A. G. Hopkins, pecam por dedicar poucas páginas ao papel da América Latina. O objetivo Hausberger foi lembrar que o comércio e a indústria desenvolvida na Europa nos séculos XVIII e XIX só foi possível com o ouro, com a prata, com as mercadorias e com consumo das colônias, sobretudo da América Latina (HAUSBERGER, 2017, p. 57). Percebe-se, portanto, que a história global caminha para um eixo historiográfico de não apenas fazer síntese, mas ser crítica sobre a própria produção.
Outro exemplo de abordagem da história global foi ensaiado por Carlos Riojas, ao comparar a agenda da globalização no final do século XX entre Hungria, Argentina e México. Estes países tinham em comum alto grau de endividamento, ficando à mercê de mais empréstimos e regras ditadas internacionalmente por instituições financeiras. Porém, as reformas econômicas não necessariamente acompanhavam processos democráticos, como no caso do Chile, em que se justificava a ditadura do Pinochet para fazer as implementações solicitadas pelo mercado e pela imprensa internacional (RIOJAS, 2017, p. 147). Essa abordagem de história comparada é pertinente até para pensar o tempo presente, porque hoje, os países citados por Rojas, sofrem novamente por problemas econômicos, escaladas autoritárias e repressão a população civil.
A história global aparece como uma forma de mediar as diversas formas de escrita da história pelo mundo, investindo na pluralidade, na diversidade e na perspectiva. A história global ainda estará sob às críticas mais duras ao eurocentrismo no ofício do historiador, por deixar dúvidas em relação às ambiguidades presentes na terminologia história. Ainda assim, em um século XXI de nacionalismos, reinvindicações identitárias, aceleração do tempo, pandemia, uma historiografia de mediações é fulcral para estabelecer diálogos e agendas.
Referências
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. Brasiliense, 1982.
CONRAD, Sebastian. História Global – Agendas y Perspectivas. In: RIOJAS, Carlos; RINKE, Stefan (org). Historia Global: Perspectivas y Tensiones. Verlag Hans-Dieter Heinz: Akademischer Verlag Stuttgart, 2017.
DE DECCA, Edgar. Euclides e os Sertões: entre a literatura e a história. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org). O Clarim e a Oração. Cem anos de os Sertões. São Paulo: geração editorial. 2002.
DE DECCA, Edgar Salvadori. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1982.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão no lugar. Cadernos de debate. Vol 1. História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. Unesp, 1969.
HAUSBERGER, Bernd. Consideraciones acerca del papel de América Latina para el arranque de la globalización. In: RIOJAS, Carlos; RINKE, Stefan (org). Historia Global: Perspectivas y Tensiones. Verlag Hans-Dieter Heinz: Akademischer Verlag Stuttgart, 2017.
RIOJAS, Carlos; RINKE, Stefan (org). Historia Global: Perspectivas y Tensiones. Verlag Hans-Dieter Heinz: Akademischer Verlag Stuttgart, 2017.
RIOJAS, Carlos Agendas Globales Agendas Locales. In: RIOJAS, Carlos; RINKE, Stefan (org). Historia Global: Perspectivas y Tensiones. Verlag Hans-Dieter Heinz: Akademischer Verlag Stuttgart, 2017.
SCHILLER, Friedrich. O que significa e com que fim se estuda a história universal? Trans/Form/Ação. Vol.42 no.3 Marília July/Sept. 2019 Epub Oct 07, 2019.
El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823)
O bicentenário do triênio liberal (1820-1823-2020-2023) espanhol ensejou comemorações e lançamentos menores do que o impacto dos eventos de duzentos anos atrás. Se ninguém mais afirma, como Menéndez Pelayo, que foi um tempo “patológico” na história espanhola [3], a atenção concedida ainda é pequena, principalmente se comparada aos conflitos atlânticos da década anterior.
A “Espanha de Fernando VII” voltou a ser estudada com afinco ao menos desde a célebre obra de Artola, [4] mas o triênio liberal ainda tinha como seu livro mais conhecido um opúsculo do começo da década de 80, a síntese de Alberto Gil Novales [5]. Desde então, houve uma renovação historiográfica gigantesca, principalmente na história política. Ganharam maior fôlego os estudos sobre territórios específicos, sobre a imprensa, novas sociabilidades e, principalmente, aqueles que “desnacionalizavam” os episódios [6].
Dentro dessa perspectiva “internacionalista”, o triênio liberal tem dois atrativos únicos. O primeiro é seu inegável impacto europeu, pois o levantamiento de Riego foi feito numa Europa que, no começo de 1820, era dominada pela Santa Aliança e pelas monarquias restauradas. Ao impulso espanhol, houve também revoluções importantes em Portugal e nos territórios italianos. O segundo é sua faceta atlântica. Se no começo da década de 20 se concretizaram as independências na América, também foi naqueles anos que mais uma vez se colocou em jogo a possibilidade de uma nação atlântica, experiência fundamental tanto para o mundo hispânico quanto para oportuguês [7]:
La revolución española de 1820 tuvo desde el inicio una repercusión que trascendía al espacio peninsular. En primer lugar, porque habiendo estallado en el seno de las tropas reunidas en Andalucía para combatir la insurrección de los territorios de ultramar, su triunfo supuso la paralización de la política de expediciones militares que pretendía devolver los territorios de América a la obediencia de la monarquía española. (…) Y, en segundo lugar, porque el triunfo del movimiento en España colocó en el primer plano de la actualidad el valor de la Constitución de 1812 como instrumento para transformar las monarquías en regímenes liberales. (p. 155)
É justamente no esforço de desnacionalizar o período que a nova obra de Pedro Rújula e Manuel Chust faz sua maior contribuição ao condensar em poucas páginas um apanhado das últimas contribuições historiográficas dos dois lados do Atlântico. A envergadura espacial da obra também resulta, em parte, das trajetórias individuais dos dois autores. Ao passo que Chust tem enveredado pelo tema americano, Rújula é especialista nas questões aragonesas entre o triênio liberal e as guerras carlistas [8].
O resultado é um livro único que atualiza o objetivo de Gil Novales nos anos 80, o de fazer uma obra de referência para os estudos do triênio liberal, agora juntando a questão americana, antes ausente. De fato, não apenas adiciona o tema das independências, mas o toma como um dos mais importantes para definir os rumos do Triênio.
Há um esforço de distanciamento dos antigos preconceitos acerca do Triênio, de ter sido um intervalo liberal de pouca profundidade, com baixa popularidade entre as classes populares e tomado pelo caos das facções. Para isso, enfatiza principalmente a experiência política que significou, extrapolando o caráter parlamentar e difundindo novas culturas políticas tanto entre os liberais – exaltados e moderados [9] – como entre os absolutistas:
el marco constitucional establecido por la revolución de 1820 permitió la aparición de una esfera pública donde los ciudadanos comenzaron a participar según sus posibilidades y sus intereses. El Gobierno moderado hubiera deseado que la política se hiciera en el seno de las instituciones, pero existían otros actores que habían experimentado la posibilidad de actuar en el terreno político y que no estaban dispuestos a renunciar a potenciales parcelas de poder. El debate fue muy intenso. (p. 46)
Como é negada a tese reacionária de que a Constituição de 12 e o primeiro liberalismo eram ideias importadas, exógenas à Espanha, resta aos autores pincelar respostas a questões inevitáveis para o triênio. Por que fracassou? Qual a relação entre os liberais e as independências na América?
A resposta que os autores oferecem para explicar o “fracasso liberal” passa pela atuação do rei Fernando VII e pela reação estrangeira. A tentativa liberal de reformar a monarquia, desde as propostas moderadas de instituir uma segunda câmara, tendo os exemplos ingleses e franceses como mote, até as mais revolucionárias, com as Sociedades Patrióticas e a diminuição do poder da nobreza e da Igreja, criava uma ameaça institucional permanente às monarquias mais absolutistas. Daí que foi justamente a Rússia a dar maior apoio a Fernando VII para abolir qualquer tipo de Constituição. Ao mesmo tempo, a invasão francesa de 1823 servia para reposicionar a monarquia bourbônica na balança internacional de poder, enfraquecida como estava após as derrotas napoleônicas.
É perceptível que a resposta de Chust e Rújula nega a própria ideia de “fracasso liberal”. O triênio acabou não por seus erros internos, mas por um verdadeiro golpe reacionário europeu. A inversão procedida pelos autores também é uma negação da historiografia que visava mais as questões socioeconômicas da época, muitas vezes crítica à ineficiência prática das medidas liberais. [10]
Quanto à questão americana, os autores também se alinham com a nova história política, principalmente na negação das nacionalidades pré-existentes [11]. Logo, não se poderia explicar as independências como luta da nação mexicana para se libertar da Espanha. Com a tomada do poder pelos liberais, os autores também negam que houvesse uma arbitrariedade por parte da Espanha em relação aos americanos, visto que a igualdade estava concedida pela Constituição, que transformava o Império num gigantesco Estado-Nação. Essa tese igualitária tem mais oponentes historiográficos, como Portillo Váldes.[12]
Recusando as explicações tradicionais, os autores mais uma vez se voltam às questões políticas, pensando principalmente o caso novohispano, o de maior repercussão ao longo do Triênio e também aquele sobre o qual Manuel Chust tem mais familiaridade.[13] Com base na análise do Plano de Iguala [14], a conclusão do livro é que um dos principais motivos para a independência foi o caráter revolucionário da Constituição de Cádis, que tirava poder da elite Criolla para distribuir a outros setores sociais, com destaque para o voto indígena. Sendo assim, a independência ganhava contornos moderados e até reacionários, em perspectiva já ensaiada também para o caso brasileiro:
Para la insurgencia fue mucho más difícil enfrentarse políticamente al liberalismo doceañista que al monarquismo absolutista, dado que ahora podían participar de los mismos presupuestos ideológicos, pero no políticos ni nacionales. Y además estaban los intereses particulares de las diversas fracciones del criollismo, cada vez más proclives a la independencia. No porque esta solo estaba ganando por las armas, sino porque su creciente moderantismo le podía asegurar un control social y político que el liberalismo doceañista podía poner en duda al ser más progresista en bastantes medidas políticas y sociales como, por ejemplo, dar voto a los indígenas universalmente (p. 112).
Livro de entrada nos estudos do período e de síntese de uma nova perspectiva política, El Trienio Liberal é uma defesa do período do liberalismo espanhol do início do século XIX. É notável a simpatia dos autores com os protagonistas estudados, como se escrever a história deles fosse também escrever a defesa de sua luta. Poucas épocas hispânicas foram vividas tão passionalmente quanto aqueles anos, daí que esse resgate histórico não deixa de ser um tributo àqueles sonhos e ilusões.
Notas
3MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003, p. 1362. Vide DURÁN LÓPEZ, Fernando. “Menéndez Pelayo contra Blanco White, o la heterodoxia como patología.” TEJA, Ramón; ACERBI, Silvia. (org.). “Historia de los heterodoxos Españoles”. Estudios. Santander: PubliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, 2012.
4. ARTOLA, Miguel. La España de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999 [1968].
5. GIL NOVALES, Alberto. El trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.
6. ROCA VERNET, Jordi. Política, liberalisme i revolució. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea). Universitat autònoma de Barcelona, Barcelona, 2007; El argonauta español, nº 17, 2020. Exemplar dedicado a “El trienio liberal en la prensa contemporánea (1820-1823); RUIZ JIMÉNEZ, Marta. El liberalismo exaltado. La confederación de comuneros españoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007. LA PARRA, Emílio. RAMÍREZ ALEDÓN, Germán (coord.) El primer liberalismo: España y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Colección literaria, 2003.
7. BERBEL, Márcia Regina. “A constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.
8. HUST, Manuel. La cuestión nacional americana en las Cortes de Cádiz. Valencia: Centro Francisco Tomás y Valiente UNED Alzira-Valencia. Fundación Instituto Historia Social/ Instituto de Investigaciones Históricas de la Universidad Nacional Autónoma de México, 1999; Pedro Victor Rújula. Constitución o muerte: el Trienio Liberal y los levantamientos realistas en Aragón (1820-1823). Zaragoza: Edizións de l’Astral, 2000.
9. pesar dos nomes já consagrados, os estudos específicos sobre cada um desses “liberalismos”, inclusive para apontar seus muitos pontos de fricção internos, são bastante recentes. Vide MORANGE, Claude. En los Orígenes del moderantismo decimonónico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e índice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019; e BUSTOS, Sophie. La nación no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinión Pública. Tese (Doutorado em História). Universidad Autónoma de Madrid, Madri, 2017.
10. A crítica vinha desde os próprios liberais exilados, passando depois por Marx e sua famosa análise: “en la época de las Cortes, España se encontró dividida en dos partes. En la Isla de León, ideas sin acción; en el resto de España, acción sin ideas”. New York Daily Tribune, 27/10/1854. Disponível em MARX, Karl; ENGELES, Friederich. La Revolución española. Artículos y crónicas, 1854-1873. Madri: AKAL, 2017. A crítica foi atualizada para os termos mais técnicos da historiografia na influente visão de FONTANA, Josep. La crisis del Antiguo Régimen, 1808-1823. Barcelona: Crítica, 1979.
11. As referências para o assunto, por vezes em vieses muito diferentes, são GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica e Fundación MAPFRE, 1992; e RODRÍGUEZ, Jaime. The independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
12. PORTILLO VÁLDES, José María. Crisis Atlántica – Autonomía e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.
13. Embora Chust tenha organizado livros sobre a independência em toda a América, nos artigos costuma trabalhar mais com a do México, como emCHUST, Manuel; SERRANO, José Antonio. “El ocaso de la monarquía: conflictos, guerra y liberalismo en Nueva España. Veracruz, 1750-1820”. Ayer, nº 74, 2009.
14. Sobre o Plan de Iguala, em abordagem também bi-hemisférica, vide FRASQUET, Ivan. Las caras del águila. Del liberalismo gaditano a la república federal mexicana. Castellón: Universitat Jaume I – Instituto Mora – Universidad Autónoma de México – Universidad Veracruzana, 2008.
Referências
ARTOLA, Miguel. La Espana de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999.
BERBEL, Marcia Regina. “A constituicao espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.
BUSTOS, Sophie. La nacion no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinion Publica. Tese (Doutorado em Historia). Universidad Autonoma de Madrid, Madri, 2017.
FONTANA, Josep. La crisis del Antiguo Regimen, 1808-1823. Barcelona: Critica, 1979.
GIL NOVALES, Alberto. El trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.
GUERRA, Francois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispanicas. Cidade do Mexico: Fondo de Cultura Economica e Fundacion MAPFRE, 1992;
LA PARRA, Emílio RAMIREZ, ALEDON, German(coord.) El primer liberalismo: Espana y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Coleccion literaria, 2003.
MORANGE, Claude. En los Origenes del moderantismo decimononico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e indice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019.
PORTILLO VALDES, Jose Maria. Crisis Atlantica – Autonomia e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.
ROCA VERNET, Jordi. Política, liberalisme i revolucio. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em Historia Moderna e Contemporanea). Universitat autonoma de Barcelona, Barcelona, 2007.
RODRIGUEZ, Jaime. The independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
RUIZ JIMENEZ, Marta. El liberalismo exaltado. La confederacion de comuneros espanoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007.
Lucas Soares Chnaiderman1;2 – Possui graduação em História – Universidade de São Paulo, mestrado em história pela mesma universidade (2015) e atualmente cursa o doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.
RÚJULA, Pedro; CHUST, Manuel. El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823). Madri: Catarata, 2020. Resenha de: CHNAIDERMAN, Lucas Soares. Em defesa da experiência liberal. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]
Research on teaching global issues: Pedagogy for global citizenship education – MYERS (JISS)
John Myars. Florida State University .
MYERS, J. P. (Ed.). Research on teaching global issues: Pedagogy for global citizenship education. Information Age Publishing, 2020. Resenha de: SAPERSTEIN, Evan. Journal of International Social Studies, v.10, n.3, p. 102-104, 2020.
The recent novel coronavirus (COVID-19) pandemic has brought a number of urgent global issues to the fore, including public health, economic development, and universal education. Addressing these issues requires increased international collaboration, research, and instruction. In recent decades, global citizenship education (GCE) has sought to foster the very cross-cultural awareness and cooperation needed to solve pressing global challenges. As an increasingly important and timely discipline, GCE continues to be a source of growing scholarship.
Research on Teaching Global Issues: Pedagogy for Global Citizenship Education is the latest look at critical global issues and the need for related education. It is a topical read for educational stakeholders (teachers, administrators, curriculum writers, policymakers) trying to navigate the pedagogical priorities of an increasingly globalized world, particularly now in light of COVID-19. Edited by John Myers, Research on Teaching Global Issues serves as a guide for incorporating pressing global issues in curricula and classrooms, be they issues of public health, sustainability, poverty, hunger, gender equality, or education.
Research on Teaching Global Issues comprises two parts. The first (Chapters 2-4) considers “the educational contexts and policies that shape how global issues are taught in schools” (p. 7). The second (Chapters 5-9) covers “case studies of global issues in classrooms and schools” (p. 8). In the introductory chapter, Myers provides helpful context and frames the book’s raison d’être: “to bring the worlds of youth interest and engagement with global issues in closer alignment with the democratic purposes of schooling in a global age” (p. 3). Myers accordingly stresses that schools and teachers prepare students to become engaged citizens through the critical examination (e.g., pedagogy debates and discussions in a democratic classroom) of global issues.
In Chapter 2, Yemini, Goren, and Tibbitts undertake an ambitious quantitative network analysis of scholarship concerning GCE and teacher education. Focusing on scholarly literature from 2006 to 2017, the authors identify four main clusters: “subject areas and disciplines”; “globalization and culture”; “education for environmental sustainability”; and “language learning” (p. 16). While observing an increased scholarly interest in these fields, they recognize the need for more research on GCE and teacher education.
In Chapter 3, Shultz, Pillay, Karsgaard, and Pashby use a deliberative pedagogy to engage students from various nations in remote and in-person instruction as part of a UNESCO initiative. Notably, the participating students viewed global citizenship through the prism of equity and justice (i.e., interconnection and complexity; diversity and difference; community, relationality, and compassion). The authors emphasize the importance of student input (16- to 18-year-olds) in designing and developing GCE curricula, while providing a critical look at mainstream GCE views.
In Chapter 4, Rapoport conducts a content analysis of U.S. state social studies standards and related curricular documents that refer to an inquiry-based framework (C3 Framework). While more states over the past decade have incorporated global citizenship (or similar terminology) in their social studies standards, Rapoport rightly concludes that there is insufficient emphasis on transformative critical GCE.
In Chapter 5, Bourn reviews how certain schools in the UK, in conjunction with the Fairtrade Foundation’s Award Program, address fairtrade through classroom activities and school clubs. Despite the potential limitations of such instruction (e.g., providing simplistic causes or answers to unjust trade practices or poverty), Bourn finds that teaching about fairtrade generates student interest, engenders empathy, and develops a global mindset based on awareness and social justice.
In Chapter 6, Cruz, Ellerbrock, Denney, and Viera spotlight InsideART, an innovative University of South Florida program for secondary social studies and visual art teachers incorporating contemporary art into their curriculum (e.g., using open-access material) and teaching global issues. Through workshop evaluations and teacher interviews, the authors conclude that collaboration with museum curators/educators, college professors, and global artists can increase awareness of global and social issues, make these issues relevant for students, and provide more instructional flexibility despite implementation obstacles.
In Chapter 7, Baildon and Bott conduct a revealing case study at a public secondary school in Singapore that adopted a GCE curriculum focused on experiential and student-centered learning. According to the authors, the school does provide more opportunities for students to discuss and analyze global issues by emphasizing values (e.g., caring, empathy) and volunteerism, despite national curricular constraints. However, with insufficient critical inquiry of certain global issues, the authors correctly point out the need for a more transformative GCE curriculum.
In Chapter 8, Bardo advances a thought-provoking conceptual model that serves to foster cultural self-awareness. Through a simulation, he demonstrates how experiential learning activities can help students separate themselves from their cultural positioning and develop a more informed global outlook.
In Chapter 9, Chong argues, persuasively, why the Hong Kong Special Administrative Region should make GCE an integral part of school curricula and teaching methods, in response to recent government efforts to promote national identity over the teaching of global issues. He also provides conceptual, curricular, and pedagogical considerations for teachers tasked with preparing active global citizens.
Despite the range of topics covered in the book, three common themes emerge. First, teachers need more professional development and training to help students critically examine global issues. Second, schools need to embrace critical and transformative GCE, including analyzing non-Western perspectives from the Global South and examining sources of inequality and poverty. This also involves rewriting curricula, designing frameworks, and implementing new pedagogical approaches consistent with forward-thinking GCE values. Third, schools should groom justice-oriented citizens prepared to take action to solve urgent global challenges. This requires students not only to exercise basic civic duties locally or nationally but to become global agents of change.
In sum, Research in Teaching Global Issues spans far-reaching GCE-related topics ranging from teacher education to student engagement, from curriculum frameworks to an interdisciplinary whole-school approach, from school-university partnerships to innovative global studies programs, and from new conceptual models to novel pedagogical practices. For aspiring and established GCE scholars, the book offers insight into recent related literature and an opportunity to consider and analyze new perspectives. For teachers, department chairs, and directors of curriculum and instruction, the book offers lessons from on-point case studies. And, for scholar-practitioners, it is a how-to guide to translate research into practice and reflect on the multi-purpose value of GCE.
This book methodically examines the complexities associated with teaching such a broad discipline. The coherence and flow of each chapter stand out. The careful scrutiny of GCE curriculum and pedagogy also warrants note. Research in Teaching Global Issues serves as a springboard for future research. More attention should be given to both pre-service and in-service GCE training. More studies should look at pioneering schools already engaged in critical inquiry of GCE. And, in a post-COVID-19 world, more should connect with like-minded GCE educators committed to helping students create a better world.
Evan Saperstein – Is an adjunct professor at William Paterson University and a high school social studies teacher in New Jersey. His research interests include global citizenship education, experiential learning, service-learning, curriculum development, and pedagogy. E-mail: sapersteine@wpunj.edu
[IF]Una politica senza religione – De LUNA (CN)
De LUNA, Giovanni. Una politica senza religione. Torino: Einaudi, 2013, p. 137. p. Resenha de: GUANCI, Vicenzo. Clio’92, 7 ago. 2019.
“Per risvegliarci come nazione, dobbiamo vergognarci dello stato presente. Rinnovellar tutto, autocriticarci. Ammemorare le nostre glorie passate è stimolo alla virtù, ma mentire e fingere le presenti, è conforto all’ignavia e argomento di rimanersi contenti in questa vilissima condizione”
Con queste parole di Giacomo Leopardi, G. De Luna conclude il suo saggio sulla mancanza di una “religione civile” nella nazione italiana e sui tentativi (sporadici) di costruirne una nel corso dei centocinquant’anni di storia unitaria.
In premessa, l’autore esplicita cosa intende per religione civile: “uno spazio in cui gli interessi che tengono insieme un paese si trasformano in diritti, in doveri civici, in valori consapevolmente accettati, nel nome dei quali i cittadini italiani sono sollecitati ad abbandonare le nicchie individualistiche o comunitarie, quei progetti esistenziali racchiusi nel terribile slogan ‘tengo famiglia’ e ‘mi faccio i fatti miei’, condividendo un universo di simboli in grado di legare il singolo e la società in un rapporto di dipendenza e di identificazione”.
Si tratta quindi di uno spazio in continua costruzione, attraverso l’invenzione di tradizioni e il loro consolidamento mediante simboli riconosciuti che creano una realtà pubblica di appartenenza e di cittadinanza. E questo chiama in causa direttamente le Istituzioni e la Politica.
L’autore svolge il rotolo della storia unitaria d’Italia incontrando prima i fallimenti del “fare gli italiani” dell’Italia liberale di fronte al trasformismo della politica, poi quelli del “ciascuno al suo posto” della gerarchia fascista che non riuscì a imporre un vero totalitarismo perché non affrancata da una “marcata subalternità nei confronti di quelli che erano i valori proposti dalle gerarchie cattoliche” ( p. 29).
Il momento nel quale gli italiani furono sul punto più vicino a costruire una loro religione civile fu senza dubbio quello della realizzazione della Costituzione nata dalla Resistenza. Largo spazio G. De Luna dedica all’impegno del Partito d’Azione, individuando nei loro esponenti gli autentici ispiratori di un pensiero laico in grado di farsi civilmente religioso. Piero Calamandrei “cercava di sottrarre il paradigma di fondazione della nostra Repubblica all’ipoteca (che gli appariva effimera) dei partiti antifascisti per riconsegnarla direttamente al vissuto e all’esperienza collettiva di tutti gli italiani. Di qui la sua insistenza sul ‘carattere religioso’ della lotta partigiana…
A fondamento di un nuovo spazio pubblico in cui ci si potesse riconoscere come cittadini di uno stesso Stato nel nome di valore condivisi, Calamandrei chiamava così ‘il popolo dei morti’ (di quei morti che noi conosciamo uno a uno, caduti nelle nostre file, nelle prigioni e sui patiboli, sui monti e sulle pianure, nelle steppe russe e nelle sabbie africane, nei mari e nei deserti) presentato non nella dimensione ‘vittimaria’ dell’innocenza e dell’inconsapevolezza, ma come fonte attiva di una nuova legittimazione dello Stato” (pp. 40-41).
Il tentativo naufragò sugli scogli del clericofascismo democristiano, favorito dall’art. 7 della Costituzione che integrandovi i Patti Lateranensi creò un “pericoloso innesto confessionale” nella costruzione della Repubblica.
Nel luglio 1960 l’Italia del boom economico scoprì l’antifascismo. Manifestazioni e scontri cruenti con la polizia impedirono il congresso del partito neofascista MSI a Genova, medaglia d’oro della Resistenza, e causarono le dimissioni del governo Tambroni, un monocolore democristiano con l’appoggio esterno del MSI. Si aprì una stagione di importanti riforme: la scuola media unica, la nazionalizzazione dell’energia elettrica, lo Statuto dei Lavoratori, la chiusura dei manicomi. Ciò nonostante, sostiene De Luna, “il rilancio della Costituzione nel suo significato di testo fondamentale della nostra religione civile fu una grande occasione mancata” (p. 60) perché la stagione si esaurì presto e gli anni Ottanta si aprirono con la famosa intervista a E. Scalfari, nella quale Enrico Berlinguer poneva alla politica tutta la “questione morale”. I partiti ormai non provvedevano più a formare la volontà popolare, non svolgevano più alcuna funzione pedagogica, di dibattito tra le masse. Essi erano diventati pure macchine per l’occupazione del potere.
L’Italia si stava avviando verso una condizione nella quale l’unica “religione” poteva essere quella cattolica vaticana, affiancata, seppur tra mille problemi, da quelle dei nuovi immigrati; non vi sarà più spazio per alcuna religione civile.
O meglio.
L’unica vera, trionfante, religione sarà quella officiata dal “mercato” a cui la politica si sottometterà. Berlusconi sarà il suo eroe. Tutto sarà immerso nella religione dei consumi. E gli italiani, memori di secoli di povertà, si immergeranno in un benessere fondato su consumi indotti massicciamente dai nuovi media, soprattutto dalla televisione invadente. Tutto, ma proprio tutto, sarà ordinato dai totem dell’audience, dello share, della pubblicità, della visibilità, del culto dell’immagine. A questo proposito De Luna ricorda opportunamente come neanche il Vaticano si sottrarrà alle leggi del mercato: basti pensare alle figure degli ultimi tre pontefici, al carisma di Giovanni Paolo II di cui fu perfino spettacolarizzata la lunga agonia, al coup de theatre delle dimissioni si Benedetto XVI, alla capacità meravigliosa di tenere la scena di papa Francesco.
[IF]
Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020 | Abilio Guerra, Marcos Grinspum Ferraz e Silvana Romano Santos
Tempos difíceis estes que estamos vivendo. Especialmente difíceis para nós, ofendidos e maltratados brasileiros. Muito difíceis para terra e homens ressecados e silenciosos, apiloados pela marcha dura de botas e coturnos. Enquanto isso os espíritos xapiri continuam fugindo, os xamãs quase não conseguem mais fazê-los dançar para nos proteger e o céu que vem se aproximando cada vez mais da terra, não tendo mais ninguém que consiga sustenta-lo, corre sério risco de desabar de vez; assim profetizou Davi Kopenawa narrando uma lenda comum a vários povos indígenas (1). A proximidade cada vez maior do céu é que vai explicar esta sensação estranha de angústia e sufocamento. E porque os coqueiros e mamoeiros não dão mais conta sozinhos de suportar o céu, vamos fazendo exercícios diários para ajudar a segurá-lo, lembrando de brasis mais justos, ou mais alegres, ou mais serenos, ou mais criativos, ou mais tolerantes, ou mais singelos, ou tudo isso mais ou menos combinado. Saudades das aquarelas do Brasil… Leia Mais
Kentukis / Samanta Schweblin
Em uma das primeiras vídeo-chamadas que fiz com minha família em razão da pandemia de Covid-19, minhas tias pediram para que eu mostrasse minha casa. Moro sozinha, em um apartamento pequeno, e sou uma pessoa reservada; raramente convido pessoas a virem aqui e vídeo-chamadas eram incomuns. Até que então me encontrei arrastando o computador por diferentes cômodos, repetindo a frase “não notem a bagunça” para minhas tias e minha prima, então espalhadas entre Porto Alegre, Florianópolis, e Valencia, na Espanha. Partes dele também se tornaram visíveis às minhas instrutoras de Pilates e de Yôga, à minha terapeuta e a inúmeras outras pessoas com quem conversei dessa forma nesse meio tempo.
Não que eu não “exibisse” partes da minha casa na internet; no começo do ano, quando o novo coronavírus ainda era uma abstração que acometia outro hemisfério, um amigo entrou na minha sala pela primeira vez e disse:
– Ah! Essa mesa! – Porque minha mesa, entre outros recortes do apartamento, figura volta e meia em raros posts de Instagram.
Imediatamente antes das nossas vidas sociais (e profissionais, para alguns privilegiados) serem mediadas por telas, delays de áudio e a frase “Ih, travou”, puseram em minhas mãos o romance Kentukis, da escritora argentina Samanta Schweblin, publicado em outubro de 2018 e indicado ao International Booker Prize. Autora de outras seis obras, das quais a antologia de contos Pássaros na Boca e o romance Distância de Resgate encontram-se publicados no Brasil, Schweblin, motivada pelo diagnóstico da ausência da tecnologia na ficção contemporânea, aqui imagina uma nova forma de relação virtual. Na trama, o gadget do momento é um brinquedo de pelúcia com câmera e microfone, chamado kentuki, que leva a forma de diversos animais. Os usuários têm duas opções de uso: eles podem “ser” o kentuki, habitar o animal de pelúcia através de um tablet; ou “ter” o kentuki, comprar o animalzinho, ligá-lo e de pronto ter um estranho circulando pela casa. Os verbos “ser” e “ter” aqui não são usados despropositadamente: quem possui o aparelho é considerado seu “amo”. Para além disso, a conexão é única: em caso de dano ou de não carregamento da bateria, ela se desfaz permanentemente. O enredo segue múltiplas narrativas, em várias cidades do mundo, nas quais os personagens são kentukis, têm kentukis ou deparam com eles.
Através delas, se apresentam diferentes possibilidades desta forma de relação. O otimismo, quase reminiscente daquele relacionado à web 2.0, está encarnado em Marvin, um menino de Antigua, órfão de mãe e com um pai ausente, que quer “ser um dragão” e ver neve. Há também o igualmente promissor potencial de se mitigar a solidão, como é o caso da peruana Emilia, que ganha uma conexão do filho que vive em Hong Kong e que, transmutada em um coelho, passa a habitar um apartamento na Alemanha, sendo paparicada por uma jovem. Por outro lado, está ali a chance para o estabelecimento de relações de poder, como as que Alina, uma jovem sem rumo, vivendo no México, estabelece com seu corvo. Dada a vulnerabilidade dos aparelhos, que podem ser abandonados, destruídos ou ter seu direito de ir e vir cerceado por seus “amos”, surge em um dos arcos um incipiente movimento pela sua libertação. Também, como um desdobramento quase natural do capitalismo, aparece a compra em massa de conexões para que possam ser oferecidas experiências personalizadas, pois pelas regras, os usuários não têm poder de escolha a respeito de onde e com quem vão parar. É aí, justamente nessa falta de controle, que também moram os perigos.
Para além de ser uma reflexão sobre a nossa relação com a tecnologia e as formas com que nos apresentamos através dela, há um momento no romance em que se coloca uma questão singela, já aludida aqui, e que tem a ver, sim, com controle: a de que haveria dois tipos de pessoas no mundo – os que têm e os que são; isto é, aqueles que desejam ser vistos por outrem e aqueles que desejam ver. É necessário dizer que embora os aparelhos contenham tradutores embutidos de forma a permitir a comunicação dos amos com seus kentukis, estes só emitem ruídos condizentes com os dos animais que representam. Quem é, portanto, a princípio, é também totalmente passivo e anônimo. A princípio.
Essa dinâmica entre quem se expõe na internet e quem apenas observa existe desde que ela começou a possibilitar a interação imediata das pessoas com o conteúdo nela disponível e a formação de comunidades em torno de interesses em comum. Quando da leitura do romance, meu primeiro impulso foi o de comparar quem habitava kentukis com os lurkers de fóruns de internet: pessoas que apenas leem posts ou consomem o conteúdo produzido por dada comunidade sem realmente participar dela. Contudo, outros paralelos são possíveis, principalmente em relação ao anonimato e ao poder que esses anônimos supostamente passivos podem deter sobre quem está se expondo, algo que tem sido pauta nas redes sociais, principalmente em relação ao tratamento conferido às mulheres.
O romance de Schweblin é inquietante precisamente por imaginar um mundo aparentemente distópico – a própria imagem de inofensivos bichos de pelúcia sugere certo elemento macabro –, mas que é bastante plausível, dado o fato de que as fronteiras entre o que é público e privado têm-se tornado cada vez mais elusivas através das redes sociais, independente de nós agora em isolamento estarmos mostrando nossas casas, filhos, animais de estimação e até mesmo o interior de nossas geladeiras em reuniões de trabalho. Para além das opções do quanto nos expomos na internet, a vida privada ou uma versão dela é muitas vezes o principal conteúdo que muitos influencers produzem e, de modo geral, tem-se tornado cada vez mais rentável. Já nos dividimos em variados graus e, de certa forma, entre quem deseja ser visto e aqueles que desejam ver.
Renata Dal Sasso Freitas – Professora de Teoria da História no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul, e pesquisa as relações entre a história e a escrita de prosa de ficção.
SCHWEBLIN, Samanta. Kentukis. Buenos Aires: Literatura Random House, 2018. Resenha de: FREITAS, Renata Dal Sasso. Sobre Kentukis, de Samanta Schweblin. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]
Brasil em crise: o legado das jornadas de junho | David G. Borges e Victor Cei
A obra apresenta uma análise, sob a perspectiva de vários autores, do que se convencionou chamar de “as jornadas de junho de 2013”, fazendo referência aos protestos ocorridos no Brasil nesse mesmo período. Considerado como um dos maiores movimentos políticos da história, as manifestações deram início a uma crise política, que culminou na eleição presidencial mais acirrada do país.
A obra é composta dos seguintes autores e seus respectivos capítulos: Felipe de Aquino e Flávio Soeiro (Que país é este? Seminário sobre o pós junho de 2013), David G. Borges (As jornadas de junho de 2013: histórico e análise), Davis Alvim (“Destruir, para reconstruir”: a tática black bloc e a pedagogia das vidraças), Guilherme Moreira Pires (A palavra do poder que engole o poder das palavras), Marcelo Martins Barreira (Sem medo de ser… Megamanifestante feliz), Paulo Edgar da Rocha Resende (A tática black bloc e a liberação anárquica do dissenso) e Vitor Cei (Contra-isso-que-está-aí: o niilismo nas jornadas de junho), Leia Mais
Apprendre. Archéologie de la transmission des savoirs – PION; SCHLANGER (APHG)
PION, Patrick; SCHLANGER, Nathan. Apprendre. Archéologie de la transmission des savoirs. Paris: La découverte, Paris, 2020. Resenha de: LEMENNAIS, Noémie. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG) 13 jul. 2020. Disponível em < https://www.aphg.fr/Apprendre-Archeologie-de-la-transmission-des-savoirs>Consultado em 11 jan. 2021.
Qu’est-ce qu’apprendre ? Qu’est-ce que savoir ? Qu’est-ce qu’un savoir ? Toutes ces questions recouvrent un phénomène complexe et mouvant faisant appel à de nombreux champs des sciences humaines. Ces interrogations sont aujourd’hui primordiales dans cette « société de la connaissance » qu’est la nôtre au XXIe siècle.
Le livre Apprendre. Archéologie de la transmission des savoirs (publié en juin 2020 aux éditions La découverte) permet d’approcher ces questionnements centraux aujourd’hui. Patrick Pion [2] et Nathan Schlanger [3] ont rassemblé les textes du colloque international « Transmettre les savoirs, archéologie des apprentissages » organisé par l’Institut national de recherches archéologiques préventives (INRAP) les 28 et 29 novembre 2017. L’ouvrage, de belle facture, propose 37 illustrations, et une bibliographie à la fin de chaque communication.
Ce recueil offre une approche transdisciplinaire pour éclairer et enrichir la réflexion sur ce que signifie « apprendre ». L’objectif principal est « d’étoffer le débat au-delà du cercle des spécialistes, en mêlant la voix singulière de l’archéologie, qui étudie la matérialité et la temporalité du passé à travers les traces des activités humaines » (p.15), et qui était restée jusqu’à présent peu audible sur ce sujet. Cet ouvrage est profondément pluridisciplinaire faisant intervenir aussi bien l’archéologie, que l’éthologie, l’anthropologie, l’histoire et la sociologie. L’ensemble des études présentées ont un point commun : l’importance de la matérialité même des informations, des savoirs et des savoir faire qui entraînent des changements et des transformations des conditions d’accès, économiques et psychologique à l’information, au savoir. Les contributions permettent également d’interroger sur des notions qui semblent évidentes aujourd’hui mais qui nécessitent une redéfinition : nature/culture ; acquis/inné ; expérience/science. Cet enrichissement de la réflexion se fait grâce à série d’études de cas permettant d’élargir l’horizon de la réflexion dans des contextes historiques, sociaux et culturels très variés, « car l’archéologie – tout comme l’anthropologie sociale et culturelle – s’avère un outil de décentrage et de défamiliarisation, en encourageant la connaissance de sociétés autres, soient-elles du passé ou du présent ». (p. 17)
Le livre est composé de quatre parties, dont une première introductive avec une préface de Dominique Garcia (Président de l’INRAP) et une introduction de P. Pion et N. Schlanger permettant de revenir sur les objectifs et la démarche de cet ouvrage.
Ensuite, il y a une ouverture de Christian Jacob [4] intitulée « L’économie sociale de la circulation des savoirs : perspectives anthropologiques ». Cette ouverture permet au lecteur non spécialiste de saisir les enjeux épistémologiques sur les questions de transmission, savoirs, et apprentissages. L’auteur propose une distinction entre les savoirs et ce qui se prête à la transmission à l’intérieur de ces mêmes savoirs. Il précise la dimension sociale des savoirs qui ont vocation à être partagés dans une société, amenant ainsi à une réflexion sur ce qu’est une économie des savoirs, puisque ceux ci possèdent une valeur, qu’elle soit marchande, symbolique ou culturelle. C’est parce qu’il y a cette valeur intrinsèque aux savoirs que se pose finalement la question de l’apprentissage et des modalités de celui-ci.
Après cette partie, le livre est divisé en trois parties abordant des thèmes complémentaires : Entre l’inné et l’intentionnel ; L’oral, l’écrit, l’image : diversité et complémentarité des supports ; et Apprendre et innover : stabilité et mutations des savoir-faire et des savoirs.
Dans la première partie plus théorique, Gaëlle Pontarotti [5] propose un article intitulé : « La distinction entre l’inné et l’acquis a-t-elle encore un sens ? ». Elle revient sur la distinction entre l’inné et l’acquis ancrée dans les traditions de pensée dans les sciences du vivant. Or, des recherches récentes mettent à mal cette opposition, pourtant souvent perçue comme centrale dans les processus d’apprentissage. G. Pontarotti analyse dans un premier temps les différents domaines où la dichotomie inné/acquis semble judicieuse, ensuite les éléments qui fragilisent cette distinction, pour enfin souligner la nécessité de dépasser cette opposition. Pour elle, il conviendrait plutôt d’utiliser la distinction entre « non appris » et « appris », voire même entre différents types d’ « appris » puisque le concept d’innéité est porteur de confusion tout en n’étant pas étayé d’un point de vue empirique.
Jean-Louis Dessalles [6] dans le deuxième article (« La transmission « naturelle » des savoirs » ») réfléchit sur les motivations de la transmission des savoirs dans l’espèce humaine, comportement au caractère contre-nature. La théorie darwinienne met à mal l’idée selon laquelle notre espèce produit des savoirs et les transmet dans l’optique de s’entraider. Pour expliquer cette opposition, l’auteur revient sur l’importance de la conversation spontanée comme source de savoir, et son caractère inattendu. L’objectif de ces conversations est de constituer un réseau social. Or, si de nombreux individus consacrent un temps important à l’apprentissage d’un savoir, d’un savoir faire c’est pour son utilité sociale, l’objectif étant de se distinguer. En donnant une information, on démontre que l’on détient cette information. Ainsi, Jean-Louis Dessalles met en valeur le rôle social de la transmission des savoirs plus que son utilité scientifique.
Blandine Bril [7] s’interroge, quant à elle, sur les savoirs et savoir-faire nécessaires à acquérir pour être expert dans un domaine précis, dans son article « Geste technique et apprentissage : une perspective fonctionnelle ». Elle revient tout d’abord sur les cadres théoriques dans les travaux des savoirs d’action et leurs apprentissages. Ensuite, elle analyse l’approche « cognitiviste » de ce processus, pour enfin s’interroger sur le rôle de l’environnement dans ce questionnement replaçant finalement l’homme dans un système plus large. L’ensemble de ces réflexions amène à se questionner sur la définition d’une tâche technique en termes fonctionnels, c’est-à-dire sa causalité.
Dans le quatrième et dernier article de cette partie, « Évolution de l’enseignement intentionnel », Anders Högberg [8] questionne l’évolution de l’enseignement intentionnel présent dans toutes les sociétés humaines. Mais cette compétence est très limitée, voire absente, chez les autres espèces. L’objectif est donc de s’interroger sur la part Homo docens de l’Homo sapiens. A. Högberg rappelle que l’enseignement intentionnel repose sur l’aptitude à saisir que quelqu’un d’autre ne sait pas comment faire telle chose, supposant donc la capacité à reconnaître des états mentaux. Ainsi, si l’enseignement non intentionnel existe chez d’autres espèces, la transmission culturelle de faits ou de concepts d’une génération à l’autre par le biais de l’enseignement intentionnel est unique à l’homme. Pour A. Högberg, le développement cognitif crucial lors de l’évolution humaine n’a donc peut-être pas été la fabrication ni l’usage d’outils (que l’on peut retrouver chez les chimpanzés), mais cette capacité à effectuer un transfert intentionnel de savoirs d’une génération à l’autre.
La deuxième partie de l’ouvrage, la plus longue, est constituée de neuf études de cas sur différentes aires géographiques, culturelles et historiques. Nous les présenterons donc rapidement, et nous insisterons sur l’utilisation possible pour le professeur d’histoire-géographie dans la préparation des programmes.
Olivia Rivero [9] ouvre cette deuxième partie avec son article « L’apport des analyses technologiques à l’étude des savoir-faire artistiques du Paléolithique ». L’objectif est de sortir de l’analyse artistique de l’art préhistorique, pour se concentrer sur l’étude de ces œuvres du point de vue de leur production et de ce qu’elles impliquent au niveau de l’individu, du groupe et de la société.
Ensuite, Maria-Iluminada Ortega-Cordellat [10] propose une étude intitulée « Niveaux de compétences et apprentissage de la taille du silex au Paléolithique supérieur : l’exemple des sites du Bergeracois ». Elle s’interroge sur les critères « vouloir-faire », « savoir faire » et « pouvoir faire » en synergie dans la taille du silex, production témoignant pour la première fois de l’existence de spécialistes.
Jean-Pierre Nguede Ngono [11] offre une analyse très intéressante sur « La transmission orale chez les Baka du Cameroun dans un contexte de mutations socio-environnementales ». Il revient sur l’utilisation de l’oralité pour transmettre les savoirs et savoir-faire dans les sociétés africaines, principalement chez les Baka, des Pygmés du sud-est Cameroun. Ces questions de transmission orale chez des peuples de chasseurs-cueilleurs, peuples dépendant écologiquement de leur environnement, se posent avec acuité dans un contexte de sédentarisation promulguée depuis 1955 et d’urbanisation grandissante. Cet article explique donc l’importance du milieu pour la transmission des savoirs dans un peuple. Il pourra intéresser le professeur préparant le programme de géographie en 1er pour le thème 4 : L’Afrique australe : un espace en profonde mutation, même si évidemment le Cameroun ne fait pas partie de l’Afrique australe, mais cela offrira un enrichissement de la réflexion sur les dynamiques actuelles en Afrique.
La quatrième article est celui de Patrick Johansson Keraudren [12] : « Le savoir et sa transmission dans la pictographie nahuatl, avant et après la conquête espagnole ». Il analyse dans cet article la question de la production, du maintien et de la transmission du savoir à l’époque précolombienne, ainsi que les conséquences de l’arrivée hispanique sur cette transmission à l’origine principalement orale et par l’image. Cet article est accompagné de très belles illustrations pour montrer l’évolution de ces pratiques.
Cécile Michel [13] propose, dans l’article « L’écriture cunéiforme au Proche-Orient antique : enseignement, apprentissage et acteurs », d’étudier les acteurs de l’apprentissage de l’écriture cunéiforme, c’est-à-dire, les maîtres et les élèves à travers un corpus de textes reconstituant des tablettes retrouvées.
Le sixième article est celui de Michel Bats [14] intitulé : « L’apprentissage de l’écrite en Gaule méditerranéenne protohistorique (VIe – Ie siècle avant notre ère) ». Cet article revient sur le développement de l’apprentissage et de l’utilisation de l’alphabet grec dans la langue gauloise à partir du IIIe siècle comme conséquence des échanges commerciaux autour de Massalia. Cet article permettra aux professeurs d’enrichir leur réflexion dans le cadre du programme de 2nd dans le thème 1 : Le monde méditerranéen, Chapitre 1 : La Méditerranée antique : les empreintes grecques et romaines. L’intervention de M. Bats offre un exemple de la construction d’un monde connecté par l’intermédiaire des connaissances, de la transmission des savoirs, et non seulement par la politique et les conquêtes.
Marc Smith [15] réfléchit sur l’évolution de l’apprentissage de l’écriture en France à travers les sources archéologiques dans son article « Les modèles d’apprentissage de l’écriture en France depuis la Renaissance ». L’intervention de M. Smith peut être utilisée par le professeur pour la préparation du chapitre « Renaissance, humanisme et réformes religieuses » du thème 2 du programme de 2nd. De fait, le programme invite à travailler sur l’imprimerie, les conséquences de sa diffusion et sur le nouveau rapport aux textes de la tradition. Cette intervention offre un exemple enrichissant sur la transmission du savoir et savoir-faire de l’écriture dans une France qui n’est pas encore majoritairement alphabétisée, mais dans laquelle l’écrit prend progressivement une place de plus en plus importante.
Gilles Bellan [16] conduit une analyse archéologique de l’école républicaine en France à la période contemporaine, offrant notamment des photographies d’écoles. L’article de G. Bellan peut être utilisé par le professeur pour compléter et alimenter sa préparation du chapitre « La mise en œuvre du projet républicain » du thème 3 en classe de 1er générale. Le programme invite à travailler sur le projet d’unification de la nation française autour des valeurs de 1789 et de ses modalités de mise en œuvre (symboles, lois scolaires). Cette analyse de l’archéologie scolaire constitue donc un parfait exemple de cette mise en œuvre de projet républicain à travers les symboles républicains que l’on peut retrouver dans les bâtiments scolaires, eux-mêmes représentatifs de l’évolution des politiques scolaires des différents gouvernements. L’unification de la nation passe également par une unification des modes de transmissions et d’apprentissages d’un projet commun.
Enfin, le dernier article de cette deuxième partie, est celui d’Aissa Kadri [17] « Transmissions des savoirs en situation coloniale : l’imposition du système d’enseignement français en Algérie ». Cet article passionnant enrichit clairement la réflexion du professeur d’histoire-géographie sur le processus multiforme de la colonisation de l’Algérie dans un domaine rarement abordé dans les programmes scolaires, celui de la transmission du savoir (ou non) dans le cadre colonial. Ce contrôle sur la transmission des savoirs fait partie intégrante des politiques mises en œuvre pour contrôler les populations sur place, c’est un aspect du colonialisme qu’il serait pertinent de faire travailler aux élèves de classe de 1er générale dans le chapitre « Métropole et colonies » du thème 3.
La troisième partie est composée de six articles portant sur la stabilité et les mutations des savoir-faire et des savoirs. Le premier article est celui de Valentine Roux [18] « Apprentissage et inventions : des individus qui font l’histoire ». Sont traitées dans cet article les questions de l’apprentissage et de la reproduction des tradition, ainsi que la relation entre apprentissage, expertise et inventions.
Joanna Sofaer [19] signe le deuxième article : « Créativité, apprentissage et « arts de faire » : une archéologie du quotidien à l’âge du Bronze à Százhalombatta-Földvár en Hongrie ». Elle revient sur les trois aspects du lien entre créativité et apprentissage, tels qu’ils sont accessibles dans les données archéologiques, afin de comprendre leur expression dans la vie quotidienne à l’époque de l’âge du Bronze.
La troisième contribution est celle d’Anne Lehoërff [20] « Savoir-faire métallurgique et savoir transmettre en archéologie ». Cet article s’intéresse aux traces laissées, volontairement ou non, par les hommes du passé, comme preuve pour pouvoir restituer la vie des sociétés. Or, ces traces sont le résultat final d’un processus beaucoup plus complexe, transmis au fil du temps à d’autres individus, conduisant à des évolutions. L’objectif est donc de s’interroger sur ces productions humaines, leur variabilité et les modalités d’apprentissage qui sont derrière.
Françoise Labaune-Jean [21] propose une étude sur les gestes de l’artisanat du verre durant l’Antiquité et le premier Moyen-Âge, le verre étant un des premiers matériaux de synthèse créés par l’homme. Les sources archéologiques récentes permettent de renouveler la géographie de cet artisanat, la connaissance des infrastructures, des techniques et donc de la transmission de celles ci.
Danielle Arribet-Deroin [22] signe le cinquième article de cette partie : « Appréhender les savoirs des travailleurs des grosses forges à fer de la fin du Moyen-Âge et de l’Époque moderne ». A travers l’exemple des travailleurs des grosses forges, elle s’interroge sur l’innovation de nouveaux savoir faire ou de savoirs pratiques tout en étudiant leur émergence et leur diffusion.
La dernière contribution à ce recueil est celle de Séverine Hurard [23], « Branle-bas de combat ! Apprentissage et préparation de la guerre de siège sous Louis XIV » à la suite de fouilles préventives en 2011-2012 du fort de Saint-Sébastien de Saint-Germain-en-Laye. Ces fouilles ont permis de révéler, aux archéologues comme aux historiens, un investissement dans la préparation à la guerre de siège, insoupçonnée jusqu’alors, permettant ainsi l’apprentissage de la guerre, mais aussi de l’altérité et de la vie en communauté.
En conclusion, Apprendre. Archéologie de la transmission des savoirs est un livre important pour remettre en perspective cette « société de l’information » dans laquelle nous vivons. Cet ouvrage montre au lecteur que les connaissances et les moyens d’y accéder ne sont pas une préoccupation récente. Il contextualise cette quête de la connaissance et du savoir très contemporaine dans un temps long, très long (3 millions d’années), et parfois même avant l’apparition de l’écriture qui n’est pas une condition nécessaire à la transmission des savoirs, contrairement à ce qui a été longtemps considéré. De plus, ces multiples études interrogent également sur la place de l’apprentissage, de la transmission de savoirs et savoir-faire dans l’identité humaine. La lecture de ces articles offre donc une réflexion riche et parfois émouvante au lecteur sur ce que signifie concrètement connaître et savoir, questionnement inhérent à tous. L’objectif du livre est rempli en démontrant l’intérêt incontestable de l’apport de l’archéologie dans ces études sur la transmission du savoir. Cet ouvrage s’inscrit également dans une des nombreuses missions de l’INRAP qui est la communication et la valorisation auprès du public de l’actualité des découvertes, ainsi que de leur analyse scientifique. Ainsi, cet ouvrage, en plus de présenter l’archéologie de la transmission des savoirs, participe également à son propre objet d’étude.
Cet ouvrage fait finalement écho au nouveau programme de spécialité HGGSP de terminale qui porte dans le thème 6 sur « L’enjeu de la connaissance ». La lecture de certains morceaux choisis de ces articles (notamment l’ouverture de Christian Jacob) avec la réalisation d’une fiche de lecture par les élèves ne pourra qu’enrichir leur réflexion personnelle et scientifique sur un thème central dans nos sociétés du XXIe siècle.
Ce questionnement touchera également les professeurs de toutes les matières, tant ces questions sont au cœur de leur activité quotidienne. En effet, le livre permet au professeur de s’interroger sur son rôle dans la transmission du savoir auprès des élèves : que se passe-t-il entre les deux parties ? Cette lecture entraîne donc un questionnement réflexif sur notre métier, nos pratiques et les dispositifs mis en œuvre en classe.
Notes
[2] INRAP ; CNRS, UMR 7055 « Préhistoire et technologie », Nanterre [3] École nationale des Chartes, Paris ; UMR 8215 « Trajectoires », Nanterre [4] EHESS ; CNRS, UMR 8210 « Anthropologie et histoire des mondes antiques » [5] Université Paris-Diderot (Labex Who am I ?) ; Institut d’histoire et de philosophie des sciences et des techniques [6] Laboratoire traitement et communication de l’information, Telecom-ParisTech, Institut Polytechnique de Paris [7] EHESS [8] École des études culturelles et d’archéologie, faculté des arts et humanités, Université Linne, Kalmar, Suède ; Palaeo Research Institute, University of Johannesburg, Afrique du Sud [9] Université de Salamanque, Espagne [10] Institut national de recherches archéologiques préventives ; UMR 7041 « Archéologies et sciences de l’Antiquité », Nanterre [11] EHESS, Institut des mondes africains [12] Université nationale du Mexique, Mexique [13] CNRS, UMR 7041, « Archéologies et Sciences de l’Antiquité », Nanterre ; Université de Hambourg, Allemagne [14] CNRS, UMR 5140 « Archéologie des sociétés méditerranéennes », Lattes-Montpellier [15] École nationale des Chartes-PSL, Paris [16] INRAP [17] Université Paris VIII ; UMR 8235 « Laboratoire interdisciplinaire pour la sociologie », Conseil national des Arts et Métiers/ CNRS) [18] CNRS, UMR 7055 « Préhistoire et technologie », Nanterre [19] Université de Southampton, Royaume-Uni [20] Université de Lille ; Institut universitaire de France ; Conseil national de la recherche archéologique [21] INRAP [22] Laboratoire de médiévistique occidentale de Paris, UMR 8589, CNRS-Université Paris-1 Panthéon-Sorbonne [23] INRAP ; UMR 7041 Archéologies et sciences de l’Antiquité « TranSpheres » NanterreNoémie Lemennais – Professeure d’histoire-géographie au lycée Maxence Van der Meersch de Roubaix, doctorante en histoire romaine, HALMA – UMR 8164, Université de Lille.
[IF]História & Distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 / Julio Bentivoglio
Bentivoglio, animado pelas reflexões de Hayden White sobre a imaginação histórica e a nova filosofia da história (Cf.: WHITE, 2002), argumenta que uma inédita consciência historiográfica emergiria no alvorecer do século XXI, notoriamente pós-moderna e distópica. Isso significaria dizer, que a forma pela qual o historiador trata, enreda, e apresenta o passado que lhe é disponível, seria resultado de uma experiência da história determinada pela produção de um lugar deslocado, impróprio, fora do eixo e hostil, sendo analiticamente sintetizado pela noção de deslugar. O passado, longe de responder a uma verdade absoluta, é desprendido das coerções praticadas pelo método da ciência histórica, para se deslocar em diversos sentidos que lhe são atribuídos por narrativas, representações e simulacros.
Minha hipótese é a de que acompanhamos a emergência de um novo paradigma poético-linguístico, pré-crítico e meta-histórico. E que esse paradigma, no século XXI, é eminentemente distópico. Ou seja, a atual consciência na historiografia é um modo preciso de pensamento, cuja pré-elaboração do enredo de início é, em si mesma desconfiada, seja das capacidades científicas da história, seja das realizações da historiografia, seja das evidencias ou da materialidade do passado, seja das verdades produzidas pela história a ele. O passado tornou-se deslocamento, deslugar (BENTIVOGLIO, 2019, p. 58).
Tal definição de distopia como deslugar, é uma abertura para pensarmos a própria temporalidade do conceito, rompendo sua definição mais comum e imediata, que o coloca como o contrário da utopia. Nesse sentido, distopia não é apenas uma relação temporal distante entre futuro e presente, mas pode se caracterizar como uma irradiação de forças que deslocam um imaginário compartilhado sobre o passado irrevogável, admitindo dessa maneira, sua interferência assombrosa e fantasmagórica no presente. Considera-se, portanto, que a distopia na história remete a espectralidade de um passado-presente (cf: HARTOG, 2013; HUYSSEN, 2014). “A distopia não é uma antiutopia, ela é um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no passado” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 96).
O trabalho de Bentivoglio, ao revisitar a formação da ciência histórica no século XIX, demonstra que a consciência historiográfica moderna estaria marcada por uma “tensão entre os objetivos utópicos e a adoção de práticas disciplinares distópicas” (BENTIVOGLIO, 2019, p.26). Esse conflito viria à tona com as reflexões epistemológicas que são caracterizadas como pós-modernas – como os passados práticos de Hayden White – que admitem uma ampla circulação do passado, destituindo assim, o próprio privilégio da historiografia em organizar arbitrariamente o passado. Bem como, as reflexões de Foucault sobre as condições de possibilidade que fundam a ciência histórica moderna.
Contudo, se o caráter distópico da moderna historiografia residia no método, hoje a distopia se autonomizou como imaginação histórica (o impacto dos sentidos da experiência da história sobre os modos de pensar) e consciência historiográfica (os artefatos e técnicas usados para conferir forma a uma narrativa). Nesse cenário, portanto, seria possível afirmar que assim como a utopia estava para a modernidade, a distopia está para a pós-modernidade. A história utópica, que transcorre sobre a racionalidade moderna, seria uma tentativa arbitrária de produzir sentido as metanarrativas do progresso e disciplinar o passado em um único regime de verdade. No sentido que submete o passado ao controle único do historiador sob as premissas de um regime de cientificidade de pretensão realista. O autor observa que a noção de objetividade do projeto historiográfico ocidental, caracteriza esse desejo da narrativa histórica em conhecer o passado como ele realmente foi ou de reconstruí-lo o mais fielmente possível através de modelos (métodos) científicos. A diferença decisiva entre uma história utópica e uma história distópica seria então que a natureza distópica da história de algum modo acaba por abalar não somente o mito fundador do passado, como o próprio mito de fundação científica da história na modernidade, porque se patenteia a existência de tantos passados quanto as obras de histórias serão capazes de produzir” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 30).
Num panorama geral, o pequeno livro oferece uma densidade admirável. A quem interessar a leitura, encontrará um percurso de investigação que passa pelas raízes da literatura distópica; pela formação da ciência histórica no século XIX; pela crise de representação e o esgotamento das filosofias especulativas da história (o já conhecido debate sobre o fim da história). Tal caminho, que ao primeiro olhar pode parecer desconexo, é uma tentativa bem-sucedida de ilustrar que há sobre a historiografia, uma incidência de outro tipo de imaginação histórica, que se distancia do conceito moderno de história. Alguns aspectos dessa distinção podem ser abordados pela passagem do passado lugar ao passado deslugar; do regime de cientificidade ao narrativismo; da verdade absoluta aos confrontos de sentido sobre o passado; do modernismo ao pós-modernismo; do futuro aos passados-presentes; do otimismo ao ceticismo; enfim, da utopia à distopia.
O trabalho em questão também é importante pois se torna uma base teórica imprescindível para que a historiografia possa alcançar novos objetos de pesquisa. O objeto não deve ser apenas aquilo que esgotamos em análises exaustivas, como se fosse algo cristalizado no tempo e no espaço; uma historiografia que tem a distopia como parte fundamental de sua prática deve transformar o objeto naquilo que nos leva ao caminho do pensamento, da reflexão filosófica sobre nossas bases epistemológicas, e que principalmente, propõe questões ao tempo presente. Tais objetos não-convencionais fazem parte desse movimento de produzir a partir do estranhamento, de enxergar soluções a partir da catástrofe que se aproxima. É pensar o mundo contemporâneo de um lugar, ao mesmo tempo, perigoso e privilegiado. Somente assim, enxergando o passado a partir de outras perspectivas, poderemos conferir espessura a um presente fraturado e pensar sobre o que o futuro poderá vir a ser.
O livro de Júlio Bentivoglio, reforça que a distopia deve ser encarada como uma noção organizadora dos fenômenos do tempo presente. Não podemos mais acusa-la de extrapolar os limites da ficção e do real. É justamente essa preponderância em trazer à tona o absurdo, que constitui seu lugar como um potente meio de crítica ou de reflexão em relação ao nosso presente. Trata-se de questionar o real, tensionar o cotidiano e as relações socias já estabelecidas. Esse incomodo que é provocado pela agressividade da imaginação distópica deve assumir-se como um despertar para a historicidade que atravessa, dentre outras dimensões, o saber histórico. Perceber a relevância de elementos da vida contemporânea como a tecnologia, a vigilância, e a catástrofe, é interrogar, mas sobretudo, encarar os sentidos que compõem a experiência da história hoje.
Por fim, fica o convite à leitura desse livro que se torna uma referência de maior grandeza para aqueles interessados, principalmente, nos estudos em Teoria da História. Para além de sua amplitude argumentativa, o livro cumpre um papel importante na afirmação do protagonismo brasileiro como importante centro de pesquisa e reflexão teórica sobre a historiografia. Nele o leitor poderá encontrar as discussões mais atuais das pesquisas na área, juntamente com uma originalidade teórica, que confere ao texto aquilo que alguns historiadores ainda não entenderam muito bem: teorizar não é se limitar a comentar teorias alheias, mas sim traçar um diálogo sólido com a tradição e arriscar novas propostas e conceitos que movimentem a historiografia de seu lugar-comum.
Referências
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.
WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 2002.
Notas
1. Podemos citar teóricos da história como Ewa Domanska, Berber Bevernage, Sanjay Seth, Dipesh Chakrabarty, Ethan Kleinberg, Ivan Jablonka, Zoltán Simon, entre outros. No Brasil destaca-se a organização de pesquisadores em torno da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), algo que tem promovido um avanço qualitativo nas pesquisas da área. Além do trabalho de Bentivoglio, devemos destacar as recentes pesquisas de Valdei Araujo e Mateus Pereira sobre o atualismo, e o importante livro A história (in)disciplinada, organizado por Arthur Ávila, Rodrigo Turin e Fernando Nicolazzi.
2. O gráfico pode ser visualizado neste link. Acesso em: 18/06/2020.
3. Podemos citar como exemplo dois movimentos principais que percorrem a filosofia do século XX, são eles: o pós-estruturalismo e o esclarecimento da Escola de Frankfurt.
4. Simultânea a escrita desta resenha, foi lançada a série de entrevistas Crise & Historicidade – uma iniciativa de LETHIS-UFES e do NIET-UFMG, em parceria com a HH Magazine: humanidades em rede – que tem como segundo episódio uma entrevista do professor Júlio Bentivoglio sobre a relação entre história, distopia, e crise. Ela está dividida em duas partes, as quais podem ser acessadas através dos seguintes links:
Episódio 02, Parte 01: https://www.youtube.com/watch?v=AzKFECirBIk
Episódio 02, Parte 02: https://www.youtube.com/watch?v=dGG-5ufAUs0
Conversas sobre o Brasil – Géssica Guimarães, Leonardo Bruno e Rodrigo Perez / Rodrigo Perez / 07 jul 2020
Esse livro nos ajuda a entender como a Operação Lava Jato, nascida em 2014, se apropriou com sucesso de uma determinada interpretação do Brasil extremamente capilarizada no imaginário coletivo. Segundo essa interpretação, o Estado brasileiro é antro de corrupção.
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Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais / Silvia Federici
Silvia Federici / Foto: DeliriumNerd /
Quando ouvimos falar de Silvia Federici, quase sempre lembramos de Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, publicado pela primeira vez em 2004. No Brasil, foi traduzido pelo Coletivo Sycorax e publicado em 2017 pela editora Elefante. Esse livro, que teve uma ótima recepção, nos apresentou ideias ainda pouco difundidas por aqui. O impacto de Calibã e a Bruxa para o pensamento feminista foi tão grande que levou Federici a receber diversas solicitações para produzir um livro em que revisitasse algumas questões abordadas nele, mas com uma linguagem capaz de atingir um público mais amplo. Tais solicitações, somadas ao desejo da autora de continuar pesquisando aspectos da caça às bruxas, resultou em Mulheres e Caça às bruxas, lançado em 2018 e publicado no Brasil pela editora Boitempo em 2019.
Mulheres e Caça às bruxas é composto por sete capítulos, divididos em duas partes. Os capítulos são, em sua maioria, edições revistas de artigos e ensaios publicados anteriormente.
Na primeira parte, Federici dialoga mais especificamente com Calibã e a Bruxa, colocando a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII na Europa no rol dos processos sociais que prepararam terreno para o surgimento do capitalismo, junto com o comércio escravista e o extermínio dos povos indígenas. Na segunda parte, Federici esboça novas investigações, trazendo para a conversa sociedades contemporâneas e “novas formas de acumulação de capital e caça às bruxas”.
Para a autora, as transformações sofridas pela Europa resultaram em um aumento vertiginoso de práticas misóginas e patriarcais, cujas consequências mais perversas foram a tortura e a morte na fogueira de milhares de mulheres acusadas de bruxaria. Federici tenta explicar como as mulheres passaram a ser vistas como ameaça à nova ordem que se impunha, passando a ser controladas, vigiadas e punidas. Ela aponta os cercamentos das terras a partir do final do século XV, como fundamentais para a compreensão deste processo e afirma que estes, somados ao crescimento das relações monetárias, resultaram em pauperização e exclusão social da população, sendo as mulheres as mais atingidas. Isso ocorre por múltiplos motivos.
As mulheres, que até então viviam em terras comunais, exercendo suas atividades coletivamente e gozando dos direitos consuetudinários, viram a privatização das terras desmantelar os laços comunais e toda uma rede de saberes compartilhados por elas, bem como a maneira como se relacionavam com a terra, a natureza e seus corpos, que nesse processo passam a servir à produção e reprodução da mão de obra. Para garantir a força de trabalho que serviria ao sistema capitalista, as mulheres foram confinadas no trabalho doméstico não remunerado, bem distante do trabalho coletivo praticado anteriormente.
Dessa forma, a autora relaciona a caça às bruxas à necessidade do controle da reprodução e, consequentemente, dos corpos das mulheres. Nesse sentido, é interessante notar que as mulheres mais velhas eram vistas como as mais perigosas e foram as mais perseguidas e mortas em países como a Inglaterra. As idosas, especialmente as sem família, foram as maiores vítimas da miséria e da exclusão social, sendo muito comum que se rebelassem contra essa situação praguejando, furtando, etc. Além disso, as mais velhas eram as grandes portadoras dos saberes sobre a comunidade e a natureza, saberes estes que poderiam “corromper” as mais jovens, ensinando-as sobre controle de natalidade, ervas abortivas e outros conhecimentos proibidos que iam contra as perspectivas das novas normas que pretendiam disciplinar os corpos para o trabalho.
Era preciso arruinar esses conhecimentos “mágicos” e garantir o total controle do Estado e da Igreja sob o comportamento sexual e reprodutivo das mulheres. Isso pressupunha interferir na maneira como elas se relacionavam entre si, estimulando as suspeitas e denúncias. Federici aprofunda o tema ao analisar as mudanças na Inglaterra entre os século XIV e XVIII, do termo “gossip” – equivalente à “fofoca” no português. A palavra, que na Idade Média remetia à amizade e solidariedade entre mulheres, lentamente adquire o significado pejorativo que conhecemos hoje, de conversa fútil, vazia e maledicente. Essa nova conotação é parte simbólica do processo de degradação, desvalorização e demonização das mulheres e dos saberes compartilhados entre elas, sendo a caça às bruxas o ponto alto dessa degradação.
A caça às bruxas é comumente considerada como “coisa do passado”, algo que entrou para o imaginário, sendo abordada em filmes, séries, romances, etc. muitas vezes de maneira folclorizada e estereotipada. No entanto, Federici argumenta que as novas formas de acumulação do capital – envolvendo desapropriação das terras, destruição de laços comunitários, intensificação da exploração e controle dos corpos das mulheres, etc. – vem resultando em uma nova onda de violências, principalmente nos países mais pobres, como da América Latina e África. Essa violência, na verdade, nunca teria cessado e, sim, se normalizado e adquirido outros formatos, como a violência doméstica, por exemplo, tão banalizada ainda hoje.
Entretanto, apesar do crescimento de organizações e lutas feministas no sentido de prevenir essa violência, o que assistimos nas últimas décadas, segundo a autora, ultrapassa a norma. Para ela, o aumento em todo o mundo de agressões, torturas, estupros e assassinatos de mulheres, atingem níveis de brutalidade que só vemos em tempos de guerra. É sobre essa escalada de violências que Federici fala na segunda parte de Mulheres e caça às Bruxas. Ela relaciona essa situação devastadora às novas formas de acumulação de capital e à “globalização”, que nada mais seria do que um “processo político de recolonização” (p. 94) que não pode ser alcançado sem o ataque sistemático às mulheres e seus direitos reprodutivos, especialmente mulheres negras, indígenas, racializadas e migrantes.
Uma das maiores expressões desse recrudescimento da violência contra as mulheres é a “nova” caça às bruxas que ganhou terreno a partir dos anos 80 em algumas regiões do mundo, como na Índia e em alguns países africanos. Federici finaliza seu livro discutindo esse fenômeno, principalmente na África, colocando-o no âmbito do enfraquecimento das economias locais africanas e à desvalorização da posição social das mulheres. Ela relaciona a caça às bruxas atuais com outros elementos de violência contra as mulheres na Índia, México, etc., analisando-os como efeitos da integração forçada das populações, notadamente das mulheres, na economia global, mas também da propensão dos homens de descarregarem nelas, especialmente em suas companheiras, as frustrações econômicas impostas pelo capitalismo, além da crescente presença de igrejas neopentecostais evangelizadoras em algumas regiões.
Por fim, Silvia Federici fala sobre o importante papel do ativismo feminista em relação à crescente violência contra as mulheres no mundo e, mais especificamente à caça às bruxas na África. Ela comenta o silêncio dos movimentos feministas sobre essa situação, que acredita representar um perigo para todas as mulheres, e propõe alternativas de luta. Essa luta, para ela, deve envolver críticas severas e ações contra as agências que criaram as condições para que tais fenômenos se tornassem possíveis, incluindo os governos africanos, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e até as Nações Unidas que, segundo ela “apoiam os direitos das mulheres da boca para fora” (p. 111). A defesa das mulheres, para Federici, são incompatíveis com o apoio e difusão de políticas neoliberais e os feminismos precisam cobrar das instituições que promovem tais políticas e silenciam diante de tamanha violência.
A caça às bruxas não é apenas uma realidade que ficou para trás. Em pleno século XXI, mulheres continuam sendo perseguidas, controladas, violentadas e mortas. Silvia Federici nos ajuda a compreender os processos históricos que geram essas violências ontem e hoje e, assim, barrar seus avanços. Para isso, é preciso manter viva a memória daquelas que perderam a vida e fortalecer as lutas das mulheres pelo fim dessas violências e do sistema que as concebe e reproduz.
Erika Bastos Arantes – Historiadora, mãe e feminista. Professora do departamento de história da UFF de Campos dos Goytacazes, onde coordena o grupo de estudos Gênero, Raça e Classe.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução Heci Regina Cadian. São Paulo: Boitempo, 2019. Resenha de: ARANTES, Erika Bastos. Caça às Bruxas ontem e hoje. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 06 jul. 2020. Acessar publicação original [IF].
Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer / Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araújo
A pandemia do COVID-19 trouxe impactos profundos em nossa relação com o tempo. Antigos hábitos foram postos em suspensão, alterando o ritmo “normal” de nossa existência cotidiana. Confinados em casa, muitos reclamam do tédio, do tempo que parece não passar. Traçar planos para o futuro próximo tornou-se uma quase impossibilidade. Muitos esperam ansiosamente pelo retorno à “normalidade” da vida, mas, ao mesmo tempo, é evidente que o mundo porvir, embora imprevisível quanto aos seus contornos, será certamente diferente do mundo que habitávamos antes do início da pandemia. Governos e organizações internacionais se vêem diante da necessidade de tomar decisões urgentes e rápidas, mesmo com a grave incerteza que paira no horizonte.
Essa desorganização do tempo é ainda agravada por uma situação que caracteriza o nosso presente, a saber: a produção massiva de informações fragmentadas e que circulam em fluxo contínuo, 24 horas por dia, no qual o valor de verdade de uma notícia tende a ser confundido com o seu valor de novidade ou de atualização. Essa organização atualista[1] da informação dificulta a construção de quadros mais amplos e reflexivos sobre a situação presente, reforçando a sensação de desorientação e insegurança quanto ao nosso presente-futuro. A asfixia causada pela pandemia encontra, assim, um paralelo com o sufocamento causado pela “infodemia”, um fenômeno que os autores interpretam a partir da chave do atualismo. Leia Mais
La história como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX / Enzo Traverso
Enzo Traverso / Foto: Estaeslalibreria /
A violência é um fio condutor viável para se compreender a historização do século XX? E ainda: o “campo de ruínas” em que consiste o século em questão oferece condições para a produção de conhecimento, enquanto fonte para reflexões no âmbito da Teoria da História?
As perguntas com que esta resenha se inicia podem ser respondidas por meio do livro La História como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX, de Enzo Traverso, publicado originalmente L’histoire comme champ de bataille: interpréter les violences du XXe siècle, em Paris, em 2011, sem ainda tradução para o português. Objeto de investigação de um variado número de historiadores, o século XX se recusa a uma definição final: “A era dos extremos” (HOBSBAWM, 1995), “o tempo das crises” (REIS FILHO; FERREIRA ZENHA, 2000), “o século esquecido” (JUDT, 2010), “o século sombrio” (TEIXEIRA DA SILVA, 2004) são algumas das definições cunhadas pela historiografia recente. Traverso não destoa dessas acepções, definindo-o, sobretudo, como a era da violência, das guerras totais, das revoluções que naufragaram e das utopias que desmoronaram (TRAVERSO, 2012, p. 325).
Enzo Traverso é um historiador italiano – professor de Ciência Política na Universidade Cornell em Nova Iorque – conhecido, principalmente, por trabalhos acerca da primeira metade do século XX e de seus regimes totalitários. O livro objeto desta resenha é uma compilação de artigos de origens distintas que se relacionam por abordarem um mesmo objeto: os debates historiográficos em torno das violências do mundo contemporâneo, tendo como pano de fundo as interpretações globais do século XX como a idade das guerras, dos totalitarismos e dos genocídios. Desse modo, o autor problematiza os fenômenos político-ideológicos que influenciaram o desenrolar do conjunto de experiências que definem o status calamitoso desse século, como as Revoluções de 1789 e 1917, o Holocausto judaico e os movimentos anticolianiais.
O ponto de partida do historiador é o ano 1989, que, em seu critério analítico, não se inscreve na continuidade de uma temporalidade linear; ao contrário, indica um limiar, finaliza uma época para dar início à outra. A queda do muro de Berlim constitui um momentum de uma época de transição que mudou radicalmente a paisagem intelectual e política do mundo, modificando vocabulários e substituindo antigos parâmetros. Assim, conclui que 1989 alterou não apenas a geopolítica europeia, mas a maneira de interpretar e escrever a história do século XX (TRAVERSO, 2012, p. 15).
Entre as alterações mais significativas na operação historiográfica, o autor destaca três: o auge da História Global, o retorno do acontecimento e o surgimento da memória. São esses três momentos que estruturam os oito capítulos do livro. A História Global, ele explica, não é uma história das relações internacionais que analisa a coexistência e os conflitos entre Estados soberanos, mas um campo historiográfico que observa o passado como um conjunto de interações, de intercâmbios materiais e transferências culturais que estruturam as diferentes partes do mundo em um conjunto de redes. O retorno do acontecimento como foco de atenção dos historiadores, por sua vez, é apontado como um epifenômeno do fim da Guerra Fria em contraponto à sua redução a uma “agitación da superficie” levada a efeito pela perspectiva de longa duração. Finalmente, no período pós-Guerra Fria, vê-se a eclosão de uma infinidade de memórias, fruto das experiências pessoais das vítimas dos diferentes conflitos ocorridos ao longo do século, que assumirão um espaço privilegiado nas novas abordagens, tanto como fonte quanto como objeto de investigação histórica.
Estruturalmente, o “campo de batalha”, a que Traverso se refere no título da obra, forma-se no âmbito teórico de, pelo menos, dois modos: por um lado, Traverso evidencia que a verdade histórica está em constante tensão com a realidade; por outro, atesta a emersão de perspectivas conflitantes com as teorias tradicionais de interpretação dos fenômenos do século XX. Por exemplo, o entendimento que define as potências europeias como “centro do mundo” é relativizado, sugerindo reconsiderar o papel dos outros continentes no desenrolar dos eventos que marcaram o século XX.
No entanto, para o autor, escrever, tendo como ponto de partida metodológico a História Global, não significa simplesmente conceder maior importância ao mundo extra europeu em relação com a historiografia tradicional, mas sim mudar de perspectiva, multiplicar e cruzar pontos de observação (TRAVERSO, 2012, p. 17). Embora essa seja a defesa do autor, ele mesmo encontra certa dificuldade de pô-la em prática, visto que a centralidade de sua investigação está circunscrita à Europa, com exceção de algumas poucas passagens em que aborda algum aspecto relativo aos Estados Unidos. Mesmo o cruzamento de pontos de observação, como sugeriu, continua seguindo uma lógica essencialmente europeia, o que se revela, de algum modo problemático, no tratamento de um tema tão global quanto a violência.
No que diz respeito ao que considera outra mudança significativa, defende que o fim da Guerra Fria permite um paralelo entre a mudança geopolítica e o que se esboça ao mesmo tempo na historiografia. Traverso refere-se, nesse momento, à reavaliação do acontecimento na escrita da história. No livro, questiona a perspectiva de continuidade, alertando para a importância de se recuperar as inflexões da história. Para ele, o século XX se revelou como a idade das rupturas repentinas, fulminantes e imprevisíveis. As tendências estruturais criam as premissas de bifurcações, crises, cataclismos históricos (guerras, revoluções, violência em massa), mas não predeterminam seu desenvolvimento ou fim. A turbulência da Europa em 1914, a Revolução Russa, a chegada de Hitler ao poder, o colapso da França em 1940, o colapso do “socialismo real” no outono de 1989 representam rupturas que mudaram o curso do mundo, mas cuja emergência não era inevitável (TRAVERSO, 2012, p. 17).
Esses questionamentos colocados pelo historiador são nítidos nos capítulos dedicados ao nazismo e à comparação dos genocídios, acontecimentos que, de acordo com suas proposições, condensam várias ordens de temporalidade. Se o caráter repentino da Shoah põe em questão os paradigmas da história estrutural; o extermínio nazista, como um ponto culminantemente paroxístico de um conjunto de tendências que remontam ao século XIX, exige uma abordagem fundamentada na análise de longa duração. Isso fez, consoante argumenta o autor, com que os investigadores fossem obrigados a renovar sua reflexão sobre a articulação das temporalidades históricas (TRAVERSO, 2012, p. 18).
Além do que já fora mencionado em relação às suas contribuições à Teoria da História, ou seja, a História Global e o retorno do acontecimento, a violência que atua como fio condutor das experiências históricas do século XX pode levar a historiografia a uma série de outros questionamentos. Entre eles, a implicação subjetiva do historiador, a localidade do discurso, o distanciamento entre o historiador e o objeto, e a intersecção entre história e memória.
No capítulo “Exilio e Violencia”, Traverso defende que uma história do pensamento crítico não pode ignorar a contribuição dos intelectuais exilados, pois eles são “sismógrafos sensibles” dos conflitos que atravessam o planeta (TRAVERSO, 2012, p. 237). Em 2004, já havia proposto algo semelhante sobre a contribuição dos exilados para a História do século XX. Na ocasião, salientou que um dia a história do século XX teria de ser relida por meio do prisma do exílio; do exílio social e político, mas também e, sobretudo, do intelectual (TRAVERSO, 2004, p. 05), tarefa à qual tem também se dedicado.
A posição de estrangeiros, de apátridas ou desarraigados resulta em um observatório privilegiado dos cataclismos que afetam o mundo. A distância, nesse entendimento, modifica as perspectivas, acentua ou neutraliza a empatia e o olhar crítico dos observadores. Em razão disso, o efeito do “estranhamento” pode revelar-se frutífero (TRAVERSO, 2012, p. 238), perspectiva explorada também por Carlo Ginzburg na obra “Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância”, em que propõe uma espécie de “hermenêutica da distância”.
A transformação de perspectiva gerada pela distância afeta a escrita da história, uma vez que modifica a própria concepção de história do autor. Ademais, faz com que ele reconheça a impossibilidade de desassociar a interpretação do passado de uma luta inscrita no presente, a partir da constatação de que “no hay historiador sin principio y sin visión del mundo” (TRAVERSO, 2012, p. 240).
Uma observação semelhante seria feita por Estevão Martins em um ensaio publicado em 2006 em que se dedicou a analisar o século XX. Martins aponta que tem-se no século XX três grandes veios de afirmação da elaboração teórica da história como ciência: 1) a primeira, até o início da década de 1930, que se dedica à legitimação da história diante do paradigma das ciências naturais experimentais; 2) a segunda, que vai da fundação dos Annales em 1929 aos anos 1960, que se imerge na pesquisa empírica, sem se embaraçar de considerações epistemológicas e 3) uma terceira, que nos interessa aqui, desde há cerca de meio século, que articula a fundamentação teórica com a realização prática, independente da filiação doutrinária eventual (MARTINS, 2006, p. 3). O itinerário da legitimação do conhecimento histórico em seu formato científico, defende Martins, é o desafio e a aventura da historiografia do século XX (MARTINS, 2006, p. 2).
Para Traverso, a concepção de história como um exercício puramente científico é questionável, já que a interpretação do passado acontece em relação com a condição social do historiador. Sobre esse tema, analisando a historiografia alemã, italiana e espanhola, o autor conclui que no exílio, por exemplo, “las fronteras entre el erudito y el militante se vuelven porosas” (TRAVERSO, 2012, p. 243). A consequência disso é que a condução da escrita da história como um “dever político” pode obstaculizar uma reconstrução mais profunda, bem como crítica do passado, embora seja capaz de revelar a maneira como as escolhas políticas e as experiências individuais dos historiadores interferem nas suas interpretações.
Por fim, Traverso propõe-se à recorrente e, ainda necessária, reflexão acerca dos pontos de convergência e divergência entre história e memória. A intersecção entre os dois conceitos se dá em razão de que tanto a memória como a escrita da história são modalidades de elaboração do passado. No entanto, não se tratam de conceitos iguais: a memória é um conjunto de recordações individuais e de representações coletivas do passado; enquanto que a história consiste em um discurso crítico do passado, uma reconstrução de acontecimentos passados tendente à exame contextual e à interpretação. As relações entre história e memória se tonaram mais complexas, às vezes difíceis, mas sua distinção nunca foi questionada, e seguem sendo uma conquista metodológica essencial nas ciências sociais (TRAVERSO, 2012, p. 282).
A dificuldade em separar história e memória caracteriza nossa época enquanto encruzilhada de diferentes temporalidades, lugar de olhos cruzados em direção a um “acontecido” vivo e arquivado ao mesmo tempo (TRAVERSO, 2012, p. 284). Além disso, caracteriza o historiador do tempo presente, que ora é testemunha, ora é investigador de um mesmo tempo. A escrita da história do século XX, reflete Traverso, é um exercício de “equilíbrio sobre uma corda suspendida entre estas duas temporalidades”. Por um lado, seus atores adquiriram, por sua qualidade de testemunhas, um status inquestionável de fonte para os investigadores; por outro, estes últimos trabalham sobre uma matéria que interroga constantemente suas vivências pessoais, questionando sua própria posição (TRAVERSO, 2012, p. 284).
Conclui o autor que, no cenário devastado que é o século XX em decorrência de guerras, totalitarismos e genocídios, a vítima passa a assumir a centralidade, dominando a nossa visão da história. Nessa reatualização de fontes, sujeitos e escritores, o passado e o futuro se cruzam, criando-se e reinventando-se se mutuamente. (TRAVERSO, 2012, p. 284).
Cabe-nos lembrar que é nesse mesmo século como defendeu Martins (2006, p. 2) “que se realiza a dupla afirmação do campo da história: 1) como capaz de produzir conhecimento confiável 2) porque dotou-se de um a sustentação teórica sólida”, em que pese o caráter mediado da experiência histórica. E ainda, é nele que vê-se crescer a “abordagem sistemática da historiográfica como objeto de pesquisa”. O século XX, na sua condição de campo de ruinas, provou-nos Traverso, é, sem dúvidas, produtor de conhecimento no âmbito da Teoria da História, e a violência um dos fios condutores possíveis (e recomendável) para compreensão dessa era devastada.
Referências
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste (orgs) O século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MARTINS, Estevão de Rezende. História e Teoria na Era dos Extremos. Revista de História e Estudos Culturais, vol III, ano III, n. 2, abril/maio/junho 2006.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org). O século sombrio. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
TONY, Judt. Reflexões sobre um século esquecido 1901-2000. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
TRAVERSO, Enzo. Cosmópolis figuras del exilio judeo-alemán. México: UNAM, 2004.
Thais Rosalina de Jesus Turial –Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS-UnB). Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5421508661749527>. E-mail: turial.thais@gmail.com.
TRAVERSO, Enzo. La história como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012. Resenha de: TURIAL, Thais Rosalina de Jesus. A História é um campo de batalha. Em Perspectiva, Fortaleza, v.6, n.2, p.237-242, 2020. Acessar publicação original [IF].
Atualismo 1.0 – Como a ideia de atualização mudou o século XXI | Mateus Pereira e Valdei Araujo
Entrevista do Plano Aberto (2019), com o historiador e professor da UFOP, Mateus Pereira, a respeito do cenário de manifestações no Brasil. youtube.com/
Com Atualismo 1.0. Valdei Lopes e Mateus Pereira, professores e pesquisadores da UFOP, propõem uma nova categoria para a Teoria da História. O debate concerne de imediato aos historiadores ocupados com a História do Tempo Presente, e há de interessar também a estudiosos do contemporâneo em quaisquer áreas das Ciências Humanas. Isso porque o que os autores buscam identificar, incialmente a partir da ressonância do termo uptdate e variações como updatism (que os autores traduzirão por atualizar ou atualização, respectivamente) no Google Ngram, posteriormente a partir de pesquisas quantitativas com dados da Hemeroteca da Biblioteca Nacional e do Jornal do Brasil, é um processo de aceleração da experiência do tempo que diz respeito a todas as dimensões da sociedade, e não apenas à maneira como lidamos com o passado. Diz respeito, inclusive, à forma como representamos para nós mesmos o presente e, logo, também à forma como organizamos nossas capacidades enquanto sociedade diante das demandas do aqui e agora da experiência histórica. Recuperando a boa lição de Marc Bloch, para quem não apenas o passado interessa ao historiador, mas de igual modo o presente e, principalmente, a articulação entre ambos, os autores falam “numa mudança sutil e subterrânea da experiência: um substantivo deslocamento nas formas modernas de significar o tempo histórico” (p. 31).
Esta mudança os autores especificam melhor ao ressaltar, ainda na introdução do livro, a forma como o conceito de atualização foi ganhando proeminência a partir dos anos 1960 e, principalmente, 1970, paralelamente a um crescente desgaste do conceito de progresso desde o pós-guerra. Leia Mais
Las elecciones 2019 en argentina en clave subnacional/PolHis/2020
El proceso electoral de 2019, que culminó la derrota de Juntos por el Cambio y el triunfo del Frente de Todos, llevando a Alberto Fernández a la presidencia y frustrando los objetivos reeleccionistas de Mauricio Macri, mostró como pocas veces la importancia que los procesos políticos provinciales tienen en la política nacional argentina. Ello en parte se debió a que durante este año se alcanzó uno de los mayores grados de desdoblamiento del calendario electoral[1]: sólo Buenos Aires, Ciudad de Buenos Aires, Catamarca, Santa Cruz y La Rioja celebraron elecciones simultáneas con las nacionales. Leia Mais
No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África | Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo
O livro No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África, organizado pelo antropólogo francês Jean-Loup Amselle e pelo historiador congolês Elikia M’Bokolo, foi publicado originalmente em 1985. Trata-se de uma referência para os interessados nos estudos sobre populações africanas e, especialmente, nos estudos relativos às identidades étnicas e às identidades nacionais em contextos africanos. Está entre os estudos desenvolvidos por historiadores da África, nos anos de 1980, sobre a “invenção da tradição na África colonial” (Ranger, 1997 [1983]) e sobre a “invenção da etnicidade” e a “criação do tribalismo” (Vail, 1989). Com relação aos autores, J.-L. Amselle não possui livros ou artigos publicados em português, talvez seu livro mais conhecido seja Mestizo Logics (Amselle, 1998); já E. M’Bokolo é conhecido pelos dois volumes do livro África negra: história e civilizações (M’Bokolo, 2009; 2011) que foram publicados no Brasil.
No primeiro capítulo, intitulado Etnias e espaços: por uma antropologia topológica (pp. 29-73), J.-L. Amselle busca desconstruir a própria noção de etnia presente em diversos estudos antropológicos. Segundo ele, o pensamento antropológico seria marcado por doutrinas essencialmente a-históricas; somente com a contribuição da corrente dinamista ligada aos nomes de G. Balandier (1976; 2014), M. Gluckman e P. Mercier, entre outros, é que a antropologia teria dado primazia à história, algo que possibilitou a reflexão sobre os contextos políticos e o início das críticas ou desconstruções das definições de etnia. Leia Mais
Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.4 n.8, 2020.
Editorial
Apresentação
- Dossiê: Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo
- Kátia Sausen da Motta |pdf
Entrevista
- As contribuições do Arquivo Público e dos documentos de arquivo para o acesso à informação na perspectiva das pesquisas de Ana Célia Rodrigues
- Alexandre Faben | pdf
Dossiê: Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo
- O “Império quer dizer Governo ou Nação”: o Espírito Santo emerge como província
- Adriana Pereira Campos | pdf
- Os votantes da Província do Espírito Santo: direito de voto e perfil socioeconômico (1824-1881)
- Kátia Sausen da Motta | pdf
- “Diz a senhora suplicante que o recrutado a sustenta”: mulheres, justiça e cidadania no Espírito Santo do Oitocentos
- Karolina Fernandes Rocha | pdf
- A sociedade propagadora da instrução pública capixaba em fins do Oitocentos
- Meryhelen Quiuqui | pdf
- Liberdades controladas: da Lei do Ventre Livre aos sexagenários. Espírito Santo (1871-1888)
- Rafaela Domingos Lago | pdf
- A Jagunçada de Barracão: vingança, racismo e morte na comarca de Santa Teresa/ES (1897)
- Francisco Roldi Guariz
- As mobilizações pela anistia brasileira no estado do Espírito Santo (1975-1979)
- Brenda Soares Bernardes, Pedro Ernesto Fagundes | pdf
- As solicitações de informação na Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo entre os anos de 2017 e 2019
- Camila Mattos da Costa, Maria Ivonete Rodrigues Pego | pdf
Artigos
- Paisagem urbana do Centro de Vitória (ES) no início do século XX: a fotografia no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
- Enzo Daltoé Nepomoceno, Maira Cristina Grigoleto | pdf
- O poder político-econômico da Companhia de Jesus na capitania do Espírito Santo: uma análise da Devassa de 1761
- Vinícius Silva dos Santos | pdf
- Experiências interdisciplinares nos acervos históricos de Fundão
- Gabriela de Oliveira Gobbi, Marcello França Furtado, Jessica Dalcolmo de Sá | pdf
Colaborações especiais
- Resenha do Ciclo de Comunicações: 112 anos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
- Kimberlly de Mattos | pdf
- Documentos
- Pelo direito de votar: justiça, cidadania e a Lei Saraiva na Província do Espírito Santo (1881)
- Larissa Ricas Cardinot | pdf
Resenhas
- Estatuto da Mulher Casada e a cidadania no Brasil: História, Gênero e Direito
- Bárbara Lempé Alonso Scardua | pdf
- Reportagens
- Fazenda do Centro: 175 anos de história
- Cilmar Franceschetto | pdf
History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century | Zoltán Boldizsár Simon
Não são poucos os intérpretes que tendem a enxergar a assim chamada filosofia da história a partir de uma divisão entre aqueles que seriam, por um lado, os interesses dedutivo-especulativos desse campo e por outro, as suas preocupações analíticas. Se a primeira dessas linhas de interesse se debruça sobre os sentidos e propostas da história vista como um processo, a segunda trata dos fundamentos da história entendida enquanto um saber (Tucker 2009, 3-4; Doran 2013, 6-7; Paul 2015, 3-5). É mais ou menos consensual, de igual modo, que essa divisão entre especulação e análise acentuou-se a partir da segunda metade do século XX, com o esgotamento dos grandes modelos filosóficos que visavam dotar de sentido o processo histórico, analisando-o sob a otimista ótica moderna do decurso do tempo. Incapaz de especular sobre “a história em si” (fragmentada pelos traumas da primeira metade do século passado), a filosofia da história passou a se preocupar cada vez mais com os contornos do próprio conhecimento histórico1. Nas últimas cinco décadas, essa divisão não apenas se intensificou como a filosofia da história viu o seu escopo ser reduzido drasticamente em duas linhas gerais de interesse: a análise das experiências temporais e o estudo das narrativas. Se no primeiro caso predominaram teses sobre as limitações das formas modernas de trato com o tempo (como a famosa discussão a respeito do “presentismo”), no segundo, prevaleceram estudos preocupados em desnudar o caráter incontornável da linguagem na produção de conhecimento e nas formas de relação com o passado. Por maiores que sejam os esforços em apartar essas duas tendências, elas apontam para uma característica comum tanto à experiência quanto ao conhecimento histórico nesse início de século XXI: para o imobilismo engendrado pelas consequências presentistas e narrativistas derivadas da filosofia da história contemporânea. Leia Mais
Capital et idéologie | Thomas Piketty
PIKETTY, Thomas. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A perspectiva histórica das ideologias das desigualdades no recente livro de Thomas Piketty. Revista de Teoria da História, v.23, n.2, p.349-357, 2020.
Flávio Dantas Martins – Universidade Federal do Oeste da Bahia. Barreiras, Bahia, Brasil. Email: flaviusdantas@gmail.com.
[IF]O que é empoderamento? / Joice Berth*
Parte da coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro e agora editada pela Pólen, O Que é Empoderamento foi escrito pela arquiteta e urbanista Joice Berth e lançado em 2018. No total, a coleção possui sete títulos que abordam conceitos ou temáticas relevantes para a discussão sobre racismo e feminismo no Brasil e no mundo. A proposta é apresentar essas discussões que já devem ter aparecido no mínimo nas nossas redes sociais aos leitores e leitoras brasileiras (mas não só, uma vez que Lugar de Fala de Djamila Ribeiro (2017) já foi traduzido para o francês e publicado).
Em O que é Empoderamento, Berth cumpre bem a função de apresentar a discussão sobre o conceito Empoderamento. São quatro capítulos: “O Que É Empoderamento?, Opressões Estruturais e Empoderamento: um ajuste necessário; Ressignificação pelo Feminismo Negro; Estética e Afetividade: noções de empoderamento; Considerações Finais.” Neles, Berth faz um apanhado sobre o uso do termo empoderamento, que remontaria aos trabalhos da assistente social estadunidense Barbara Solomon na década de 1970. O uso do termo, ou ao menos seu propósito, também é remetido às obras do nosso conhecido Paulo Freire, que propunha que não existe ação crítica que não seja oriunda do próprio sujeito e seu domínio sobre sua realidade.
Esse pode ser considerado o mote para a explicação que a autora faz no capítulo seguinte para esclarecer os usos que têm sido feitos do termo, especialmente em tempos de redes sociais, memes, viralizações e hashtags. Alertando para a apropriação desse termo por governos e corporações que na verdade não transpõe o limite do indivíduo, Berth insiste que empoderamento não pode ser pensando se não for para a emancipação dos indivíduos e indivíduas em coletividade. Para isso, ela usa exemplos de projetos de políticas públicas que tanto contribuem para isso quanto de projetos que usam o termo apenas como um chamariz. Não se trata apenas de afirmar nossa autoaceitação, mas de trabalhar para que as ferramentas de emancipação e autoaceitação estejam disponíveis para todos e todas.
E essa é uma das principais contribuições que o feminismo negro deu ao uso do termo. Lembrando que “se uma mulher negra se levanta, toda a estrutura se levanta com ela” [1], o feminismo negro veio para nos lembrar exatamente que não adianta apenas as mulheres se libertarem das imagens de controle que a sociedade patriarcal lhes impõe, o que muitas vezes implica em mulheres postando fotos de autoaceitação de seus corpos em redes sociais, por exemplo. Isso precisa vir acompanhado de políticas que efetivamente promovam a emancipação financeira e psicológica de todas as mulheres. Representatividade importa, mas ela precisa vir acompanhada de real inclusão de grupos. Não adianta apenas a Maju Coutinho na bancada do Jornal Hoje – isso não evitou as mortes de Ágata Félix, de João Pedro e João Vitor em ações de agentes de “segurança pública” em comunidades. E é disso que se trata empoderamento. De que comunidades, grupos de minorias sociais possam 1. Se amar; 2. Construir políticas que sejam genuinamente representativas de si; 3. Reivindicar que as oportunidades sejam para todos e todas, e não apenas para alguns poucos que consigam furar a bolha.
A edição que li foi a ainda publicada pela “Ed. Letramento” em 2018 e possui alguns erros de revisão. Não sei se nos relançamentos essas questões foram corrigidas. Todavia, isso de forma alguma diminui o mérito da obra, que serve como introdução ao debate, assim como realiza um importante levantamento bibliográfico para quem quiser continuar. Além de nos ajudar a nos organizarmos para ações efetivas nesse 2020 tão desgovernado.
Notas
1. Essa afirmação é recorrente na obra e entrevistas da filósofa Angela Davis e tornou-se premissa básica não só no feminismo negro, mas também naqueles movimentos que optam por reconhecer uma necessária interseccionalidade para combater opressões contemporâneas.
(*) Texto originalmente publicado na página Feminismos em Debate, projeto desenvolvido no Instagram pelas professoras Aryana Costa, Lívia Barbosa e Maiara Juliana Gonçalves da Silva.
Aryana Costa – Professora no DHI / UERN, campus Mossoró, trabalha com ensino de História e História da Historiografia.
BERTH, Joice. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018. O que é empoderamento? São Paulo: Pólen, 2019. Resenha de: COSTA, Aryana. O que é o empoderamento? Humanas – Pesquisadoras em Rede. 18 jun. 2020. Acessar publicação original [IF].
Dicionário de trabalho e tecnologia – CATTANI; HOLZMANN (TES)
CATTANI, David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre, Zouk, 2011, 494 p. Resenha de: LIMA, Raphael Jonathas da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.12, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2014.
Organizado por Antonio David Cattani e Lorena Holzmann, o Dicionário de trabalho e tecnologia, publicado em 2011, já em sua segunda edição, tem como propósito capturar e reunir inúmeros aspectos que vêm configurando o mundo do trabalho e orientando um conjunto de mudanças cuja maior profusão passou a ser verificada na fase que se estende das últimas décadas do século XX ao início de século XXI. Obra de caráter coletivo e multidisciplinar, o dicionário contou com a contribuição de 62 especialistas de diferentes áreas, os quais se desdobraram na composição de 107 verbetes dedicados a sumarizar aspectos referentes à implementação da tecnologia ao trabalho. Trata-se da evolução editorial de uma obra originalmente publicada em 1997 com apenas cinquenta verbetes e sob o título Trabalho e tecnologia: dicionário crítico, renomeada em 2002 para Dicionário crítico de trabalho e tecnologia e, finalmente, em 2006, quando ganhou o título atual, reunindo 96 verbetes e incorporando outros autores.
Conforme a caracterização feita na apresentação, os organizadores do dicionário têm como finalidade principal oferecer uma obra capaz de dimensionar as grandes transformações no mundo do trabalho (resultantes de inovações tecnológicas, gerenciais e institucionais), o aumento do não trabalho/desemprego e seus efeitos danosos, segundo eles preocupações já bastante disseminadas entre acadêmicos, trabalhadores e suas organizações. Nesse sentido é que procuram apresentar um panorama o mais completo possível acerca de conceitos específicos unificados sob a alça das macrocategorias trabalho e tecnologia. Outrossim, em sua quase totalidade, o dicionário oferece ao leitor um material com extrema coesão, podendo-se mesmo perceber uma enorme uniformidade nos argumentos e também nas avaliações feitas pelos autores acerca dos efeitos identificados nos processos tratados por cada verbete. Ponto que pesa a favor do dicionário. Em outros termos, prevalece o argumento segundo o qual da conjugação entre (novos) processos de trabalho e formas inovadoras de tecnologia decorre, o mais das vezes, a precarização que de alguma forma atinge os indivíduos em seu espaço profissional com reflexos sentidos nas demais esferas do seu cotidiano, notadamente na familiar.
A constatação acima apontada, afinal, condiz com a argumentação (trivial, é verdade, mas fundamental) segundo a qual a precarização foi o efeito negativo mais percebido e discutido pelas análises que margearam o panorama que envolveu as modificações no mundo do trabalho, sobretudo, no último quarto do século XX, potencializadas por avanços produtivos e organizacionais configurados, dentre outras formas, pela constituição de clusters e distritos industriais espalhados por Europa, Estados Unidos e, finalmente, Brasil. Isso porque, historicamente, a implantação (e manipulação) de práticas inovadoras de organização da produção industrial tem sido associada à intensificação do controle, da vigilância e da exploração do trabalho, sucedidos estes pelo enfraquecimento da ação sindical, fenômeno por sua vez acompanhado da sistemática ameaça aos direitos e às conquistas dos trabalhadores, preocupações frequentemente presentes nesse debate.
Inovações emblemáticas, como a introdução por Henry Ford da linha de montagem movida a volante magnético, em sua fábrica de Highland Park, Michigan, nos Estados Unidos, em 1913 – entendida como um avanço sem precedentes na indústria automobilística, a despeito de ter se apropriado de princípios mecânicos já conhecidos – tornaram-se emblemáticas pelo que passaram a significar em termos de ordenamento social, organização e controle das forças sociais do trabalho pelo empreendimento capitalista em expansão (Beynon, 1995). Nessa época, origina-se o conjunto de processos reunidos sob o nome de fordismo, praticamente consensuais nas práticas empresariais subsequentes, até a sua crise, nos anos 1970. O dicionário contempla o fordismo com uma caracterização extremamente fiel ao que de fato veio a representar para a indústria: uma inovação simultânea no chão de fábrica e nas dimensões macroeconômicas e institucionais. Em consonância com um conjunto de práticas (racionalização, separação entre concepção e execução do trabalho e a individualização na prescrição e execução de tarefas) reunidas sob a nomenclatura de taylorismo (concebidas por Frederick Taylor), o fordismo avançou em sua finalidade de estabelecer um novo princípio de disciplinamento fabril e um novo mecanismo de extração de maisvalor via intensificação do trabalho.
O aparato de procedimentos técnicogerenciais aglutinados a partir da combinação fordismotaylorismo aparece de forma bem sistematizada no dicionário, assim como processos como o toyotismo, o just in time eo kanban, os quais constituem a fase posterior de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo. Essa etapa está mais relacionada à segunda metade do século XX, quando se instaura um regime de acumulação (flexível) caracterizado pelo fim do compromisso fordista e composto pelo amplo quadro de reestruturação produtiva que incluiu, além de alterações tecnológicas e na organização do trabalho, a reorganização de firmas, o estabelecimento do fluxo financeiro em rede e o deslocamento regional incessante de empresas, confirmando assim o princípio básico do capitalismo de buscar novos espaços para reinvestir seu capital excedente e reequilibrar sua taxa de lucros (Harvey, 2005).
O dicionário também caracteriza aqueles instrumentos concebidos como estratégias de resistência frente ao avanço avassalador das mudanças tecnológicas dentro das empresas. O verbete ‘ação sindical em face da automação’ mostra como o aperfeiçoamento técnico da produção visa fragilizar os trabalhadores, seja pelo seu ajuste ao princípio da polivalência, seja pela prática da redução de postos de trabalho. Em contrapartida, a ‘ação sindical em face da automação’ e a ‘greve’ se colocam como os dispositivos capazes de promover modificações nas relações de produção e, sobretudo, na estrutura de poder, usando a rigor os sindicatos como a forma institucional mais expressiva de ação coletiva com essa finalidade. E a processos particularmente problemáticos e polêmicos, como ‘degradação do trabalho’ e ‘divisão sexual do trabalho’, somam-se outros fenômenos, como ‘informalidade’, ‘tecnociência’, ‘teletrabalho’, ‘autogestão’ e ‘economia solidária’, que ajudariam a reduzir o fosso de poder que historicamente vem separando empresários e trabalhadores no seio da economia capitalista. Essas novas formulações conferem um caráter mais diversificado ao dicionário ao passo que são fortes provas de que os estudos sobre trabalho sempre se renovam pela incorporação dessas inovações gerenciais, organizacionais e tecnológicas inauguradas ano após ano.
Vale ressaltar que, logo na apresentação, os organizadores da obra destacam a centralidade da inovação tecnológica ao recordarem ser ela uma componente inquestionável do trabalho, uma vez que “produz artefatos e processos que, cada vez mais, passam a mediar o liame entre o homem e a natureza” (p. 12), não se entendendo essa relação exatamente como saudável, pois implica um progressivo sufocamento das forças sociais do trabalho. De fato, é inquestionável que, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, o capitalismo vem procurando beneficiar o processo de trabalho (e não o trabalhador), almejando alcançar um maior grau de eficiência e de produtividade, sobretudo em detrimento do poder das organizações trabalhistas.
Portanto, cabe aqui superar a perspectiva histórica de enxergar unicamente a ruptura entre o par ciência/tecnologia e o conjunto de forças sociais e econômicas do qual faz parte. Esse entendimento de renovação na relação entre tecnologia e sociedade se manifesta no tratamento conferido pelos autores às sociologias da ciência, da tecnologia e, naturalmente, do trabalho, convergindo com a afirmação de Braverman (1987) de não se instituir um cenário de hostilidade à ciência e, por consequência, à tecnologia. Deve-se apenas questionar os seus empregos como instrumentos de criação, perpetuação e aprofundamento do fosso que separa classes sociais. Implica afirmar que a tecnologia não pode ser acusada de produzir relações sociais, em geral conflituosas e de subordinação, porque em sua essência ela é o resultado e não a causa dessas relações representadas pelo capital e que favorecem o processo de acumulação no seio da engrenagem capitalista. Pois bem, como ciência e tecnologia estão intimamente ligadas, o dicionário não poderia desconsiderar este fato e, como resultado, confere certa relevância a processos tais como ‘inovação’, ‘biopoder’ e ‘nanotecnologia’, enfatizando ainda a relação entre ‘tecnociência e trabalho’, ‘tecnologia e desenvolvimento’, de forma a evitar o determinismo tecnológico que caracteriza, em especial, a sociologia (do trabalho). Não obstante, ao lançar luz sobre a tecnologia e sua relação com processos científicos e inovadores, o dicionário não abdica de assinalar os fenômenos que, quase obrigatoriamente, surgem imbricados a essa dinâmica, a exemplo daqueles relacionados à saúde do trabalhador (‘ergonomia’, ‘ergologia’, ‘lesões por esforços repetitivos’ e ‘qualidade de vida no trabalho’).
Cabe aqui suscitar que, possivelmente, o único porém desse dicionário com cerca de 470 páginas é o fato de, em hipótese alguma, se tratar de uma obra orientada a iniciantes no assunto. Por outro lado, revela-se uma preciosíssima fonte de consulta para pesquisadores com relativa experiência e algum aprofundamento nos diversos debates colocados, o que justifica a aparente falta de didatismo que o material deixa transparecer em diversos momentos. Essa dificuldade é ligeiramente amenizada através da inclusão, ao final do manuscrito, de um índice por assuntos e verbetes, ferramenta extremamente útil à medida que permite fazer correlações entre os tópicos elencados e, comparativamente, atestar a maior ou menor ocorrência de cada um no seio do debate.
Não obstante tal constatação, esse dicionário temático, indiscutivelmente, é uma obra de grande utilidade para os estudiosos e interessados no tema e, desde já, ocupa a condição de item de consulta obrigatória em língua portuguesa. Ele permite não só compreender de forma sistematizada o percurso da degradação do trabalho no século XX como identificar os mais significativos instrumentos elaborados para mitigar seus efeitos. Igualmente, conforme salientam Cattani e Holzmann na apresentação a esta edição, almeja-se aqui oferecer uma obra capaz de transpor o caráter tradicionalista dos dicionários, satisfeitos apenas em disponibilizar ao leitor a gênese e o desenvolvimento histórico de conceitos. Conforme entendem, o que orientou a publicação foi a possibilidade de subsidiar o seu público alvo com os instrumentos capazes de qualificar as investigações que porventura estejam em curso. Nesse sentido, não se trata de um glossário repleto de definições desassociadas, mas de um preciso mapeamento a respeito das questões abordadas pelas mais renomadas publicações e evidenciadas durante os principais eventos científicos nacionais e internacionais.
Referências
BEYNON, Huw. Trabalhando para a Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. 2. ed. Paz e Terra: São Paulo, 1995. [ Links ]
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. LTC Editora: Rio de Janeiro, 1987. [ Links ]
HARVEY. David. A produção capitalista do espaço. 2. ed. Editora Annablume: São Paulo, 2005. [ Links ]
Raphael Jonathas da Costa Lima – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. E-mail: raphaeljonathas@gmail.com
[MLPDB]A cruel pedagogia do vírus | Boaventura de Sousa Santos
Diante das incertezas, avanços e recuos no enfrentamento ao novo coronavírus no mundo, Boaventura de Sousa Santos elabora o livro publicado em 2020, intitulado “A cruel pedagogia do vírus”. Trata-se de um livro com poucas páginas para ler, com uma escrita simples e de fácil compreensão, onde o autor, em 32 páginas, apresenta suas opiniões sobre os ensinamentos que decorrem da pandemia do coronavírus, assim como da adaptação da sociedade diante da doença e de quem está em melhores condições para seguir as medidas de prevenção e recomendações da OMS perante a pandemia. No final da obra, o autor se permite, igualmente, a pensar o “futuro” que se apresenta vestido de uma utopia que ele chama “normalidade”.
No trabalho em questão, Boaventura de Sousa Santos não se esgota, uma vez que apresenta as entrelinhas, faz questionamentos e permite ao leitor a desenhar possíveis cenários diante da realidade que se vive atualmente. Partindo dessa premissa e da experiência vivida desde a declaração da pandemia e das distintas experiências da quarentena, “A cruel pedagogia do vírus” é uma proposta realista e hostil, uma vez que o vírus diante de vicissitudes cruéis e até fatais vai permitindo aos sobreviventes a compreender o mundo em que vivem e a pensar no tipo de sociedade que pretendem. Leia Mais
O discurso de ódio nas redes sociais – SANTOS (REi)
Marco Aurélio Moura dos Santos. www.usp.br/gepim/pesquisadores.
SANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016. Resenha de: BRANDÃO, Clyton. Revista Entreideias, Salvador, v. 9, n. 2, p. 6-68, maio/ago 2020.
A datar de sua popularização no Brasil, no meado dos anos 2000, a internet vem contribuindo, substancialmente, nos comportamentos dos sujeitos que compõem a alcunhada sociedade da informação. Esta, têm desencadeado significativas alterações na produção da economia, da cultura e nos modos de interação social. Esse indicativo reflete na vida contemporânea, na qual as mudanças, desde a modernidade até a contemporaneidade, anunciam transformações no comportamento.
O advento das Redes Sociais Digitais possibilitou a transposição de inúmeras formas de interações interpessoais decorrentes da vida offline para vida on-line. Indivíduos reelaboraram constantemente suas formas de se relacionar com o tempo e o espaço, criando novas maneiras de socialização em rede. A interação permitida pelo uso de dispositivos e as potencialidades das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem contribuído para repensar as dinâmicas sociais, de modo que, “[…] pensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, significa implicá-la nas táticas e estratégias do poder.” (SANTAELLA, 2016, p. 11)
Assim, a criminalidade não é um fenômeno alheio a essas transformações. Como a rede é um espaço de socialização como qualquer outro, mediado por ações de indivíduos que fazem parte dela, a violação dos direitos humanos também ocorre neste espaço, agora com características sofisticadas por meio das tecnologias.
Por oferecer a ilusão do suposto anonimato e por tornar-se um ambiente de rápida veiculação de mensagens com um grande alcance de público, crimes que já eram executados na vida off-line foram transferidos para a vida on-line. Discursos de ódio e discriminatórios relacionados ao gênero, sexualidade, classe social, posicionamento político e religioso, cor e etnia são uma realidade na rede; estes, são caracterizados por “[…] qualquer expressão que desvalorize, menospreze, desqualifique e inferiorize os indivíduos. Trata-se de uma situação de desrespeito social, uma vez que reduz o ser humano à condição de objeto”. (SILVEIRA, 2008, p. 80)
Nessa contextura, temos o livro O discurso de ódio em redes sociais (2016), fruto de uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU/SP). Trata-se de uma obra importante para entender o presente cenário da disseminação do ódio na rede online, assim como suas raízes, conceitos e questões jurídicas.
O livro é composto por cinco capítulos, incluindo introdução e conclusão, no qual o autor retrata os conceitos e elementos acerca do tema, os núcleos do discurso de ódio, o direito a diferença e a identidade e o discurso de ódio, e conclui fazendo uma análise no que concerne a legislação brasileira para crimes de ódio on-line.
Na introdução, Santos faz uma análise entre o ciberespaço e o discurso de ódio. Ele prossegue afirmando que as TICs, apesar de não ter utilizado esta denominação, possibilitou inúmeras maneiras de disseminação de informações entre sujeitos de lugares e culturas diferentes, formando, assim, uma “cultura participativa”. (JENKINS, 2009, p. 30) Contudo, mesmo a rede online sendo fomentadora no que tange a projeção de conhecimento dos indivíduos, também é um ambiente
“[…] fértil para a ampliação de aspectos conflituosos de realidade palpável e do relacionamento social, como o ódio e todas suas manifestações”. (SANTOS, 2016, p. 8)
No capítulo um, Santos discute os conceitos e elementos do discurso de ódio nas redes sociais na sociedade da informação. Ele faz um levantamento histórico e do pensamento filosófico para mostrar que “o ódio não é uma questão nova na sociedade”. (SANTOS, 2016, p. 23)
Continua a afirmar que para o entendimento desses discursos presentemente, é fundamental trazer àtona a discussão a respeito da natureza do mal. Para tal, apresenta definições de Freud (século XX), Arendt (1999), Glucksmann (2007) e Brugger (2007), no que tange o ódio e o mal desde a idade média até os dias atuais.
Para fundamentar o ódio, o autor traz André Gluscksmann citado por Santos (2016, p. 20) que declara:
[…] o ódio existe, todos nós já nos deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias da palavra. As razões atribuídas ao ódio nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, de liberar a vontade de simplesmente destruir.
Através da definição de Gluscksmann, Santos relata que caracterizar o discurso de ódio é uma tarefa difícil, pois este pode aparecer de forma implícita ou explícita; isto é, a intenção do agressor pode aparecer de maneira clara e objetiva ou subliminar.
Ao refletir sobre o mal, mas precisamente sobre a “banalidade do mal” (ARENDT apud SANTOS, 2016); o autor chega a conclusão de que o mal na atualidade se tornaria algo cotidiano, como um ato qualquer, ou seja, algo banal e disponível a todos, “[…] uma vez que o processo tecnológico atual denominado ‘sociedade da informação’, não parece a priori, ser capaz de romper com a in¬tolerância enraizada nas relações humanas, muito pelo contrário, parece apontar para a ‘banalidade do mal’”. (SANTOS, 2016, p. 26)
Ainda no capítulo um, Santos apresenta outros três conceitos: identidade e diferença – através dos estudos de Lévi-Strauss (2010) e Hall (2011); análise do discurso, trazendo as contribuições de Foucault; e redes sociais a partir das definições de Castells (2005) e Recuero (2012).
O conceito de redes sociais aparece sob a ótica de Recuero (apud SANTOS, ano, p. 114) que define como: “[…] agrupamentos humanos, constituídas pelas interações, que constroem os grupos sociais. Nessas ferramentas, essas redes são modificadas, transformadas pela mediação das tecnologias e, principalmente, pela apropriação delas para a comunicação”.
Nesse sentido, entende-se que as redes sociais são interações interpessoais que já existiam antes do surgimento e popularização da internet e, após o advento das TICs, foram reformuladas e modificadas, transformando-se em redes sociais digitais.
No capítulo dois, o autor traz os conceitos de intolerância, preconceito e violência, além de trazer uma abordagem jurídica acerca do discurso de ódio, perpassando pelos estudos em relação a dignidade da pessoa humana.
O conceito de intolerância vem frequentemente associado ao preconceito, tornando-os, assim, “conceitos vizinhos”, que podem ser definidos como atitudes de hostilidade nas relações pessoais, destinada contra um grupo inteiro ou contra indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade. Apresenta-se também a concepção de “intolerância selvagem”, de Umberto Eco (apud SANTOS, 2016, p. 131), que é caracterizada com raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva, ficando nivelada a irracionalidade.
Tratando-se da definição de violência, ele traz o texto da Lei nº 11.340/2006, em seu Art. 7, que define as formas de violência:
A violência física, ou seja, a que ofenda a integridade ou saúde corporal; a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto estima ou que causa prejuízo e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; a violência sexual; a violência patrimonial, e ao final a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL apud SANTOS, 2016, p. 243).
Desse modo, compreende-se que a violência pode ser expressada e sofrida em diversas esferas internas e externas aos sujeitos, podendo ser um produto da natureza, no sentido de que é intrínseca à humanidade; e, para outros, um produto da história, que não é, portanto, natural ao homem.
No capítulo três, Santos aborda a diversidade cultural humana. Para ele, o debate acerca da diferença cultural entre as sociedades que compõem o mundo, a partir das concepções de (STRAUSS apud SANTOS, 2016), demonstra a impossibilidade de avaliar e julgar sociedades com base em instrumentos utilizados em outras sociedades, de forma que somente a própria sociedade poderia refletir sobre si mesma, julgando-se e avaliando-se. Ainda segundo o autor nenhuma cultura possuiria critérios absolutos que permitissem a realização de distinções entre os conhecimentos, crenças, artes, moral, direito, costumes, aptidões ou hábitos dos seres humanos de outras culturas, podendo e devendo fazer tais distinções, contudo, quando se tratasse de suas próprias manifestações culturais.
Nas conclusões, Santos ratifica que os crimes relacionados ao ódio, na esfera off-line e on-line, se transformaram numa questão estatal e sua repreensão reflete a preocupação quanto a influência deste fenômeno na vida social das coletividades.
Assim, não há como considerar os indivíduos como totalmente iguais e situados num espaço tempo fixo, uma vez que o respeito à condição humana aponta para a diversidade da própria condição humana. Ademais, o discurso do ódio se volta contra a diversidade humana, fere a atual Constituição Federal e, sobretudo, esgarçam a segurança na internet.
Referências
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2016. v. 1.
SANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu; PRETTO, Nelson de Luca. (org.). Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder. Salvador: Edufba, 2008.
Clyton Brandão – Universidade Federal da Bahia. E-mail: cleytonya26@gmail.com
Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)
Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)
Grada Kilomba. Foto: Divulgação.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: ARAUJO, Débora Oyayomi. Artefilosofia, Ouro Preto, v.15, n.28, abr., 2020.
Ao ler Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, a primeira sensação é de um lago calmo, de águas paradas que, quando tocado, provoca ondulações que reverberam em camadas. Quando as fraturas e os traumas produzidos ao longo de séculos são ratificados no contexto político atual por meio de uma política genocida de corpos e identidades diaspóricas, ler Grada Kilomba é uma convocação a revisarmos nossa existência. Por isso, ainda que muito depois de sua publicação original, esse livro chega ao Brasil no tempo certo.
A versão em português de sua tese de doutorado, tese esta laureada, em 2008, com a “mais alta (e rara) distinção acadêmica” (p. 12), nos diz muito mais do que havia sido registrado em sua versão original, escrita em inglês, pois reitera o quanto nosso idioma oficial é colonial e colonizado. Na “Carta da autora à edição brasileira”, coube à Grada Kilomba criar um glossário de termos coloniais, racistas e patriarcais para ressaltar terminologias produtora s do trauma racial, nos lembrando de que “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (p. 14). Assim, enquanto algumas palavras são registradas em itálico devido à problemática “das relações de poder e de violência” (p. 15), outras são simplesmente abreviadas e grafadas em letra minúscula para que, no processo almejado por seu estudo, que envolve a “desmontagem da língua colonial” (p. 18), não rememoremos termos que expressam traumas. Essa primeira característica é imprescindível para o exercício proposto pela autora de produzir oposição absoluta ao “que o projeto colonial predeterminou” (p. 28). Por isso, neste texto, eu também utilizarei os mesmos formatos e, tal qual ela, produzirei o texto em primeira pessoa. Escrever em primeira pessoa e demarcar sua subjetividade é, sem dúvida, uma convocação de Grada Kilomba a todas as pessoas negras que lêem seu livro. Mas vai além, pois propõe o despojamento das armaduras coloniais e acadêmicas que nos aprisionam em modelos rijos de produção científica. Isso se evidencia não somente pela introdução (denominada “Tornando-se sujeito”), mas por todo o sumário, cuja proposta é de identificar, tratar e curar o trauma vivenciado pelo contato da pessoa negra com a branca, no processo de colonização de corpos e mentes da segunda sobre a primeira. Por isso, nada mais propício do que Memórias da plantação como título da obra, dada a capacidade de captura e dissecação do trauma colonial produzido por meio da Plantation. O seu subtítulo compromete-se com a contemporaneidade e a atemporalidade do trauma: o racismo cotidiano que “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘ Outra/o ’ subordinado e exótico” (p. 30).
Seu estudo tem como objetivo exprimir a realidade psicológica do racismo cotidiano manifestado, na forma de episódios, por relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas, de duas mulheres negras, sendo uma afro-alemã e outra afro-estadunidense que vive na Ale manha. Nesse processo, uma segunda marcante característica é o comprometimento da obra com uma abordagem interpretativa fenomenológica, envolvendo duas importantes dimensões: a escrita em primeira pessoa, entendendo que “[e]u sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato político. […] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade da minha própria história.” (p. 28); o investimento na mais descrição do fenômeno em si e menos na abstração dos relatos subjetivos de mulheres negras, sob pena de esse processo “facilmente silenciar suas vozes no intuito de objetivá-las sob terminologias universais” (p. 89). Assim, seu estudo responde a um “desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (p. 28).
Dividido em quatorze capítulos, Grada Kilomba perfaz as estratégias raciais operadas pela Plantation e atualizadas nas ações cotidianas contemporâneas. O silêncio é metaforizado, no primeiro capítulo, pela máscara, representante do colonialismo. De outro lado, as metáforas do mito da objetividade e da neutralidade acadêmica são exploradas no segundo capítulo (intitulado “Quem pode falar? Falando do Centro, Descolonizando o Conhecimento”), atuando, ao lado do primeiro, como um exercício de dissecação do racismo como discurso, e explorando e denunciando os processos de descrédito intelectual e acadêmico produzido sobre os corpos e identidades postas à margem. Com isso, a primeira cura ao trauma proposta pela autora envolve a necessidade de descolonização do conhecimento, reconhecendo a potência da posição à margem: “Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. […] No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência […]” (p. 69). Isso envolve, pelo próprio exercício realizado pela autora, o reconhecimento de outras metodologias investigativas e de outros olhares interpretativos. O modo de produzir a pesquisa é impactado diretamente, pois realça as maneiras com o nos apresentamos ao mundo e como somos afetados pelo mundo à nossa volta. Assim, no texto de Grada Kilomba, somos, com nossa subjetividade e experiência individual com o racismo, convocadas/os a nos apresentar ao estudo, como interlocutoras/es ativas/os, críticas/os e conscientes do nosso papel social. É nessa perspectiva que sou impelida a assumir minha posição neste texto resenhístico a partir da minha trajetória pessoal como mulher negra e vivenciadora de experiências cotidianas com o racismo. Não seria possível de outro modo produzir qualquer síntese crítica da obra em questão.
O capítulo 3, “Dizendo o indizível – Definindo o racismo”, produz uma revisão teórica condizente com a proposta de descolonização do conhecimento: ao invés de recuperar a etimologia do termo e sua trajetória ao longo dos séculos, o racismo é apresentado por meio de autoras/es que o interpretam no plano cotidiano das relações sociais. Philomena Essed e Paul Mecheril são os nomes de destaque responsáveis por expor as próprias teor ias raciais e o protagonismo branco em suas definições: “Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os critérios políticos do sujeito branco […]” (p. 73). Assim, a autora acena uma problemática pouco explorada quando se discute o mito da neutralidade: a de que as formulações, teorizações e epistemologias sobre o racismo podem estar sendo confortavelmente produzidas por intelectuais brancas/os que não necessariamente revisam sua própria condição de branquitude. Por isso o capítulo ressalta a necessidade de a pessoa negra tornar-se sujeito falante, ou, nas palavras de Mecheril (p. 74), a “perspectiva do sujeito”, em nível político, social e individual. Ao fazer isso, a autora encaminha-se para a definição do racismo por meio de três características simultâneas por ele assumidas: a construção de/da diferença; a ligação com valores hierárquicos intrínsecos; e o poder de base histórica, política, social e econômica. E, ao expor tais características, a autora ressalta uma afirmação amplamente difundida por nós, estudiosas/os negras/as das relações raciais, em especial no contexto brasileiro: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a suprema cia branca. Outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem o poder” (p. 76). É imprescindível, para nós, que intelectuais negras/os e intelectuais brancas/os engajadas/os assumam tal perspectiva pois, ainda que seja um aspecto simples e óbvio na interpretação das relações raciais, a compreensão de que poder e racismo são intrinsecamente ligados é uma operação complexa para muitos que resistem em manter sua perspectiva colonial e colonizadora de enxergar o mundo.
Contudo, um aspecto pouco explorado pela autora são as facetas desse racismo: ao passo que ela se dedica a explorar com relativo detalhamento alguns aspectos do cotidiano dos discursos racistas, ao procurar definir racismo estrutural e institucional, Grada Kilomba restringe-se a apresentá-los de modo sintético e sinonímicos, em certa medida. Já a descrição e conceituação do “racismo cotidiano”, uma categoria proposta pela autora – e que, como já destacado desde o início deste texto, representa sua base analítica –, há um maior detalhamento, com destaque para as formas em que o sujeito negro é percebido e que o relegam à condição de “outro”: infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização. Nesse sentido, a autora conclui que é nos contextos cotidianos que a pessoa negra se depara com tais formas e, por isso, não se trata de experiências pontuais e sim corriqueiras que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” (p. 80).
Nesse capítulo são apresentados os pressupostos metodológicos da pesquisa a partir da perspectiva da “pesquisa centrada em sujeitos ”, tomando como referencial analítico a teoria psicanalítica e pós-colonial a partir de Frantz Fanon. Nessa dimensão, a pesquisa emerge no exame das “experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito ” (p. 81) e do study up, proposta metodológica em que pesquisadoras/es investigam membros do seu próprio grupo social. Tal proposta é mediada por uma “subjetividade consciente”: a compreensão de que ainda que a/o pesquisadora/a – e membro do grupo – não aceite sem críticas todas as declarações da pessoa entrevistada, ela respeita seus relatos acerca do racismo e demonstra “interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (p. 83). Assim, as relações hierárquicas frequentemente produzidas entre pesquisadoras/es e informantes é diminuída, considerando o compartilhamento de experiências semelhantes com o racismo. Co m o desenho da pesquisa delimitado, o capítulo adentra na descrição dos procedimentos das entrevistas “ não diretivas baseadas em narrativas biográficas ” (p. 85), que envolveram eixos como: percepções de identidade racial e racismo na infância; experiências pessoais e vicárias de racismo na vida cotidiana; percepções de branquitude no imaginário negro ; percepções de beleza feminina negra e questões relacionadas ao cabelo; percepções de feminilidade negra, entre outras. Foram, ao todo, seis mulheres negras participantes: “três afro-alemãs e três mulheres de ascendência africana que vivem na Alemanha: uma ganense, uma afro-brasileira e uma afro-estadunidense” (p. 84), mas ao final apenas duas – Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-estadunidense) – tiveram suas entrevistas analisadas, devido ao fato, segundo a autora, de que as demais narrativas “não eram tão ricas e diversas quanto as de Alicia e Kathleen” (p. 84). As entrevistas, respondidas em inglês, alemão e português, captaram as mais diversas percepções acerca das memórias e contato com o racismo cotidiano, tema dos capítulos seguintes do livro.
Mas antes das análises, a autora mais uma vez assume a subjetividade como marca da descolonização acadêmica e mental para conectar raça e gênero a partir de uma experiência pessoal vivida: no capítulo 4 “Racismo genderizado – ‘(…) Você gostaria de limpar nossa casa?’ – Conectando ‘raça’ e gênero”, Grada Kilomba explora a necessidade de interpretações entrecruzadas sobre o racismo cotidiano que marca as experiências de mulheres negras, que são racializadas e generificadas. Para tanto, recupera perspectivas de Essed, Fanon, bell hooks, Heidi Safia Mirza e outras para interpretar, analisar e argumentar como operam as correlações entre mulheres negras e homens negros, mulheres brancas e homens brancos na interface de temas como patriarcado, feminismo, sexismo e violência. São expostas contradições do discurso feminista branco, da ideia de sororidade universal, e são evidenciados os limites do homem negro que não é “beneficiado” com o patriarcado. Por outro lado, sua perspectiva também ressalta a condição em que o termo “homem” é utilizado por Fanon tanto para designar “homem negro ” quanto “ser humano”, que acaba por realçar o masculino como condição única de representação da humanidade. Por isso, ressalta a autora, que a “reivindicação de feministas negras não é classificar as estruturas de opressão de tal forma que mulheres negras tenham que escolher entre solidariedade com homens negros ou com mulheres brancas, entre ‘raça’ ou gênero, mas ao contrário, é tornar nossa realidade e experiência visíveis tanto na teoria quanto na história” (p. 108).
Por meio de categorias, trechos das narrativas das entrevistadas foram divididos em capítulos, por temas. No capítulo 5, “Políticas espaciais”, os relatos dimensionam as experiências relacionadas à “Outridade”, ao estrangeirismo e ao estranhamento daquelas mulheres na Alemanha, país onde vivem. Perguntas como “De onde você vem?”, “Como ela fala alemão tão bem?” ou afirmações do tipo “Mas você não pode ser alemã!” são marcadores latentes nos relatos das entrevistadas, refletindo uma espécie de fantasia que domina a realidade acerca da história alemã, ignorando que existem várias histórias sobre uma mesma localidade. Assim, analisa a autora: “racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ – como acredita o senso comum –, mas sim a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o’. Alicia pode explicar eternamente que ela é afro-alemã, contudo, não é sua explicação que importa, mas a adição deliberada de fantasias brancas acerca do que ela deveria ser […]” (p. 117).
O capítulo seguinte, “Políticas do cabelo”, analisa as experiências de violência e opressão que incidem sobre a imagem, autoestima e identidade das mulheres entrevistadas, ressaltando que existe “uma relação entre a consciência racial e a descolonização do corpo negro, bem como entre as ofensas racistas e o controle do corpo negro ” (p. 128). Na tentativa de aliviar as violências sofridas, a adoção de procedimentos de desracialização do “sinal mais significativo de racialização” (entendido, pela autora, como sendo o cabelo) é uma ação latente nas narrativas das entrevistadas. Mas oscilam, em seus discursos, a percepção da invasão de seus corpos por meio do toque, dos olhares de nojo e desprezo e experiências de resistência e consciência política.
“As políticas sexuais” são abordadas no sétimo capítulo da obra e apresentam o cerne da discussão em torno da objetificação e expropriação da humanidade do corpo negro. As histórias, cantigas, mitos e narrativas difundidas desde a infância constroem, para negras/os e brancas/os, uma barreira racial repleta de violência, sadismo e ódio. A autora explora, por meio da noção de “constelação triangular” (forjada a partir do complexo de Édipo em Freud e das ampliações analíticas de Fanon), as situações cotidianas em que o racismo é produzido sem nenhum cerceamento e, pelo contrário, muitas vezes apoiado por outrem: “Por conta de sua função repressiva, a constelação triangular, na qual pessoas negras estão sozinhas e pessoas brancas como um coletivo, permite que o racismo cotidiano seja cometido” (p. 137). Esse processo de triangulação também opera em contextos em que o homem negro é alvo do ódio do homem branco: “Dentro do triângulo do racismo, o sujeito branco ataca ou mata o sujeito negro para abrir espaço para si, pois não pode atacar ou matar o progenitor” (p. 140).
No capítulo 8, intitulado “Políticas da pele”, os relatos das entrevistadas são analisados sob a perspectiva d a deturpação versus identificação racial, que envolvem processos de negação da negritude feita pela pessoa negra ou branca, a depender das relações afetivas estabelecidas entre ambas. É o caso relatado por Alicia, ao ouvir de sua amiga branca que ela não era negra, ou de sua família adotiva, que se referia a ela como mestiça (Mischling), ao passo que as demais pessoas negras eram referidas pejorativamente como N. (Neger). Grada Kilomba interpreta tal processo como um misto entre fobia racial e recompensa: “Isso permite que sentimentos positivos direcionados a Alicia permaneçam intactos, enquanto sentimentos repugnantes e agressivos contra sua negritude são projetados para fora” (p. 147).
Numa categoria maior, intitulada anteriormente em seu texto como “cicatrizes psicológicas impostas pelo racismo cotidiano” (p. 92), a autora engloba os capítulos de 9 a 12. O primeiro deles, “A palavra N. e o trauma”, a dor, aspecto central de sua tese, é retomada a partir de narrativas que envolvem o contato com a violência exotizadora por meio da utilização discursiva de termos racistas. Para tanto, o capítulo inicia com a narrativa de Kathleen que ouviu de uma criança branca: “Que Negerin [Feminino de Neger ] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin !”. Ao afirmar que quer ser uma Negerin também, a menina produz um efeito duplo: de reafirmação de sua posição d e sujeito branco – pois Negerin “nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N. ” (p. 157) – e recolocação da vítima na cena colonial original: “Essa cena revive, assim, um trauma colonial. A mulher negra continua a ser o sujeito vulnerável e exposto, e a menina branca, embora muito jovem, permanece a autoridade satisfeita” (pp. 157-158). O trauma causa dor, demonstrando os efeitos psicossomáticos do racismo por meio da necessidade de transferir a experiência psicológica para o corpo, buscando “uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização)” (p. 161).
“Segregação e contágio racial” é o título do capítulo 10, no qual o medo branco é acionado pela metáfora da luva branca utilizada por pessoas negras forçadamente quando tinham que tocar o mundo branco. Como descreve a autora, as luvas atuavam como uma “membrana, uma fronteira separando fisicamente a mão negra do mundo branco, protegendo pessoas brancas de serem, eventualmente, infectadas pela pele negra ” (p. 168). O efeito nefasto vai, contudo, além, pois as luvas que aliviavam o medo branco da contaminação “ao mesmo tempo, evitavam que negras e negros tocassem os privilégios brancos ” (p. 168). Outra metáfora acionada no capítulo é: “uma pessoa negra tudo bem, é até interessante, duas é uma multidão” (p. 170), expondo a faceta da solidão de pessoas negras em espaços segregados e o quanto suas ações são constantemente vigiadas e avaliadas. Esse tema liga-se diretamente ao capítulo seguinte, “Performando negritude”, em que o sujeito que representa a exceção é exposto e cobrado pois, ao mesmo tempo em que é alvo do medo e do ódio, deve “representar aquelas/es que não estão lá” (p. 173). Por isso, o questionamento e a comprovação da capacidade intelectual é uma marcante nas narrativas das entrevistadas. Ser “três vezes melhor do que qualquer pessoa branca para se tornar igual” (p. 174), faz dela uma pessoa “tríplice” e, assim, a compensação é acionada: “Você é negra, mas…” inteligente. A inteligência existe “desde que seja comparada à branquitude” (p. 177). Outros aspectos explorados no capítulo relacionam-se à recolocação geográfica do estrangeira/o ou da pessoa negra para fora, para a margem, e o racismo explícito, endossado por um processo discurso alienante, pois a pessoa é insultada sem ser alvo direto do insulto, retomando, novamente, as constelações triangulares. Tais contextos são ressaltados mais uma vez pela autora como mostras do racismo cotidiano.
O último capítulo da categoria “cicatrizes psicológicas…” é intitulado “Suicídio”. Sem dúvida é o máximo e último estágio do trauma e o mais eficaz do racismo. É quando o “ sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (p. 188). Tal capítulo é fruto da recorrência de narrativas das mulheres entrevistadas sobre experiências diretas com o suicídio (seja da mãe, da amiga…) e da necessidade de tratar o trauma. Assim, nos lembra Grada Kilomba que, no contexto da escravização, toda a comunidade negra era punida quando um de seus membros tentava ou cometia suicídio. Isso não explicita apenas o óbvio (o interesse das/os escravizadoras/es em não perder sua propriedade), mas, principalmente, “revela um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos ”. Por isso o suicídio “é, última instância, uma performance de autonomia” (p. 189). Mas não somente esse aspecto é explorado: a autora também analisa como a figura da mulher negra forte e, portanto, sem necessidade de apoio psicológico, é recorrente na trajetória de vítimas de suicídio. Essa imagem é uma resposta à outra figura estereotipada da mulher negra como preguiçosa e negligente em relação às suas filhas e filhos. Portanto, num duplo processo de estereotipia, as “mulheres negras só se encontram na terceira pessoa, quando falam de si mesmas através de descrições de mulheres brancas ” (p. 195).
Por fim, os últimos capítulos são dedicados ao tratamento: correspondem à categoria “estratégias de resistência” (p. 92). “Cura e transformação” intitula o 13º capítulo, e analisa situações vivenciadas por Kathleen (ao enfrentar um contexto de racismo) e Alicia (ao se reconectar consigo mesma). Dois marcadores desse capítulo são, portanto, a desalienação e o reencontro com seu coletivo. O contato com leituras, com suas histórias e com seus iguais emergiram nos discursos das duas mulheres entrevistadas atuando de modo a reparar uma conexão interrompida. É latente, nesse sentido, a narrativa de Alicia sobre o fato de inicialmente não entender e aceitar que pessoas negras desconhecidas a cumprimentassem e depois reconhecer o laço histórico que as une. Ao ser chamada de irmã (sistah) por um jovem negro, sua percepção foi de que “‘Sim, sistah, eu sei o que você passou. Eu também. Mas eu estou aqui… Você não está sozinha.’” (p. 210).
A “reparação traumática” é acionada por Alicia, assim como foi por Kathleen, quando enfrentou sua vizinha que insistia em manter um boneco negro como “enfeite” na varanda de sua casa. Esse processo liga-se diretamente à conclusão do livro, no capítulo “Descolonizando o eu”. Entre outros elementos explorados e retomados pela autora, está a proposição mais significativa para a cura do trauma: ao invés de perguntar à vítima o que ela fez diante do racismo cotidiano (e sempre inesperado), sua proposição é que a pergunta seja: “O que o racismo fez com você?”. “A pergunta é direcionada para o interior […] e não para o exterior”, produzindo um efeito de empoderamento “no qual alguém se torna o sujeito falante, falando de sua própria realidade” (p. 227). Mas, principalmente, a proposição de novas fronteiras é o elemento central da cura: é quando, para a autora, o triângulo é modificado e não mais são respondidas as perguntas produzidas pela branquitude que, verdadeiramente, não está interessada em respostas, mas sim na experiência de ocupar a posição de falantes sobre o sujeito negro. A cura também ocorre com a superação do perfeccionismo e a assunção da desalienação. A autora demonstra como todo esse processo opera por meio de cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação (do racismo e reprodução da linguagem da/o opressora/opressor); frustração (percepção de sua condição de exclusão no mundo conceitual branco); ambivalência (coexistência de amor e ódio, nojo e esperança, confiança e desconfiança para com pessoas brancas); identificação (a busca por sua história e a produção da identificação positiva com sua própria negritude); descolonização: “não se existe m ais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu” (p. 238).
Ao pensar no contexto contemporâneo em que o racismo à brasileira vem assumindo novas configurações, a obra de Grada Kilomba não somente oferece respostas à cura do trauma, mas reafirma a necessidade de assumirmos a nossa história. Retomando a metáfora inicial do lago antes calmo e agora agitado pela reverberação das ondas, um convite inicial e retomado ao final do livro também é feito neste texto: “Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade […] tornamo-nos sujeito ” (p. 238).
Débora Oyayomi Araujo-Doutora Educação (UFPR) e Licenciada em Letras (Unespar). Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LitERÊtura-Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias. E-mail: debora.c.araujo@ufes.br
Polegarzinha – Uma nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber | Michel Serres
A leitura da obra Polegarzinha – Uma nova forma de viver em harmonia, pensar as instituições, de ser e de saber, de autoria de Michel Serres, pensador francês, trouxe-nos como possibilidades o exercício de pensar o papel da tecnologia na construção de novas sociabilidades e na atualização de interrogações que constituem a condição humana. A principal problemática abordada pelo autor trata de como os adolescentes enviam as mensagens SMS com os polegares e habitam o mundo virtual. Associado a dinâmica das mídias digitais no processo de formação dos adolescentes e jovens, Serres (2015, p.12) abre o livro com uma interrogação filosófica: “Antes de ensinar o que quer que seja a alguém, é preciso, no mínimo, conhecer esse alguém. Nos dias de hoje, quem se candidata à escola, ao ensino básico, à universidade?”
Essa pergunta implica alguns questionamentos, quem é esse novo aluno, que cria outros mundos por meio do virtual? Que literatura e que história eles estão construindo na imediaticidade do tempo, que corre veloz, esquecendo das tradições dos antigos? Serres propõe três horizontes temáticos para pensar o fenômeno que ele mesmo denominou de Polegarzinha: I – Polegarzinha; II – Escola; III – Sociedade. Esses horizontes propõem um modo de pensar a Educação, como um fenômeno complexo que abarca as aulas, a sala de aula, o digital, os professores, a avaliação desses pelos alunos, etc. Assim, a Educação é pensada pelo prisma da Polegarzinha como um desafio, sim um desafio que não se pode resolver a penas sendo otimista como o autor Michel Serres. Leia Mais
Abatirá | UNEB | 2020
Abaritá (Eunápolis, 2020) é uma publicação eletrônica do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias do Campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e tem como escopo fomentar a produção científica para a construção do conhecimento no campo da Educação.
A revista ABATIRÁ é organizada através textos originais de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, que contribuam para o debate acadêmico sobre as várias dimensões da educação: políticas públicas educacionais; trabalho docente e as práticas pedagógicas; produção e difusão do conhecimento nas diversas áreas dos currículos, nos diferentes níveis e modalidades de educação; processo de ensino e aprendizagem; contribuição de outras áreas do conhecimento no constructo de epistemologias, metodologias, currículos e inovações didáticas no campo da educação.
Busca a publicação de estudos científicos inéditos, de caráter teórico ou aplicado e de reconhecida qualidade acadêmica, produzidos por pesquisadoras(es) de universidades e instituições de pesquisa do Brasil e do exterior.
Periodicidade semestral.
Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento.
ISSN 2675-6781
História da Arte e da Cultura | Unicamp | 2020
A Revista de História da Arte e da Cultura (Campinas, 2020-) é uma publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e uma iniciativa do Centro de História da Arte e Arqueologia (CHAA), desta universidade. Seu principal objetivo é promover um contínuo desenvolvimento da História da Arte e da Cultura no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área.
A Revista de História da Arte e da Cultura é a continuação natural da Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), que em seus 24 números, entre 1994 e 2015, tornou-se referência das revistas científicas brasileiras na área, além de ser a primeira a tratar as duas disciplinas de modo correlato. O objetivo da nova RHAC é continuar com excelência o trabalho, adequando-se às novas necessidades e determinações dos padrões internacionais das revistas acadêmicas.
Primeiro a Revista de História da Arte e Arqueologia e agora a Revista de História da Arte e da Cultura são partícipes do crescente interesse na disciplina, que no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas cristaliza-se com a área de concentração em História da Arte e suas linhas de pesquisas. Este periódico afirma o compromisso com a área e sua divulgação em um cenário internacional. Sua publicação online garante uma irrestrita visualização a todos os interessados na disciplina.
A RHAC tem por objetivo a publicação e divulgação da produção acadêmica na área de História da Arte e da Cultura. Abrange textos voltados particularmente à reflexão sobre a visualidade, em suas conexões com o campo cultural. A publicação de trabalhos em português, inglês, francês, italiano e espanhol facilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Publica inéditos de especialistas nacionais e estrangeiros nas seguintes modalidades: artigos, resenhas, entrevistas e transcrições de documentos. Propostas para dossiês podem ser encaminhadas para aprovação no conselho.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2675-9829
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Planos de Saúde e Dominância Financeira – SESTELO (TES)
SESTELO, José A. F.. Planos de Saúde e Dominância Financeira. Salvador: EDUFBA, 2018. 397p. Resenha de: ANDRIETTA, Lucas Salvador. Planos de saúde: protagonistas da acumulação de capital na saúde brasileira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.18, n.1, Rio de Janeiro, 2020.
As lacunas que se pode apontar no livro de Sestelo são consequência de seus próprios méritos: a ambição de seus objetivos e o rigor de sua execução. Trata-se de um trabalho inconcluso, em muitos sentidos, embora não menos interessante.
Fruto de uma abordagem exploratória, o livro acrescenta peças importantes a discussões em andamento. Não hesita em enfrentar debates teóricos controversos e não ignora que trata de uma matéria em movimento. Ao fazê-lo, contribui enormemente para colocar algumas questões em outro patamar. Nesse sentido, as perguntas que deixa em aberto são mais valiosas que suas conclusões.
Como resultado, o autor nos oferece um extenso mosaico, tanto teórico quanto empírico, embora sua obra deixe suspensa no leitor a expectativa por uma síntese.
Sestelo nos apresenta uma tese bastante atual. Dedica-se a compreender como os traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo se expressam na atuação das empresas de planos de saúde no Brasil. Suas conclusões são inequívocas: os aspectos fundamentais daquilo que se convencionou chamar de financeirização se manifestam cada vez mais intensamente na saúde brasileira.
O livro vem somar-se à tradição de trabalhos que buscaram problematizar e compreender a convivência incômoda entre a lógica sanitária e a lógica empresarial. Esta herança está evidenciada ao longo de todo o texto, seja no diálogo crítico que faz com essa literatura, seja de forma implícita nas inquietações que perpassam o trabalho.
Contudo, não se restringe ao tributo monótono às referências do passado. Embora mostre como o empresariamento da saúde é um processo com décadas de continuidade, Sestelo enfatiza a todo momento a importância de compreendermos suas novidades históricas. Nesse sentido, contribui para um esforço atual – e coletivo – de abordar o papel de grandes grupos econômicos dentro do sistema de saúde brasileiro.
Para isso, explora a trajetória de seu objeto, os planos de saúde, revelando seus contrastes e transformações. Recupera o passado de arranjos comerciais incipientes, empresas familiares de pequeno alcance e esquemas que, mesmo quando atingiam maior escala, permaneciam geridos de forma simplória.
Mas não o faz senão para evidenciar as características das empresas que hoje dominam o setor. Entes que atuam em escalas muito mais elevadas, em mercados de concorrência mais acirrada; que profissionalizam sua gestão; que despertam o interesse do capital nacional e estrangeiro, promovendo operações financeiras de grande magnitude; e que transitam por diversas atividades econômicas, – não apenas na saúde.
Algumas escolhas teóricas e metodológicas feitas pelo autor merecem a atenção especial da comunidade acadêmica que se situa na fronteira entre a Saúde Coletiva e as Humanidades. O livro aponta para algumas questões comuns a todos nós. Ainda que sem resolvê-las todas, tem o mérito de limpar o terreno de pistas falsas e concepções equivocadas que tanto influenciam o senso comum e, também, o trabalho de especialistas. Destacamos algumas dessas escolhas.
Em primeiro lugar, o autor rejeita a visão do mercado de planos de saúde no Brasil como algo ‘natural’, ou seja, uma necessidade inexorável induzida pela demanda espontânea da população. Nesse sentido, resgata a tradição da Economia Política ao buscar compreender o real papel das operadoras dentro do sistema, sobretudo o esforço permanente que realizam para criar, recriar e ampliar seus espaços de atuação e suas condições de acumulação de capital.
Em segundo lugar, o autor se afasta de interpretações binárias e estanques sobre as noções de ‘público’ e ‘privado’ que permeiam o sistema de saúde (cap. 1). Nesse sentido, enfrenta um problema crucial: como apreender corretamente as inúmeras articulações, sobreposições, contradições e fluxos entre os distintos componentes do sistema de saúde? Como fazê-lo sem perder uma perspectiva sistêmica? Sem restringir-se à mera apreciação de mixes público-privados, como um enólogo que comenta uma carta de vinhos?
Em terceiro lugar, o autor demonstra cuidado no tratamento do conceito de financeirização, que tantas acepções distintas recebe na literatura (cap. 2). Sem entrar aqui nos pormenores relacionados ao termo ‘dominância financeira’, o trabalho acerta ao enquadrar sua análise empírica das empresas como entidades integrantes do padrão de acumulação que caracteriza o capitalismo contemporâneo.
Para isso, apoia-se numa definição de ‘capital financeiro’ que nos parece a mais apropriada. O autor se distancia daqueles que insistem em separar o que é inseparável. Que insistem em tratar como diferentes e antagônicos os interesses do ‘capital produtivo’ e do ‘capital rentista’. Pelo contrário, encara o capital financeiro precisamente como a fusão das formas parciais do capital. Como nos lembra Eleutério Prado: “ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social constituída pelo próprio capital” (Prado, 2014, p. 21).
Dessa forma, Sestelo consegue escapar de armadilhas recorrentes e enquadrar melhor seu objeto. O leitor não encontrará em seu trabalho uma ‘esfera das finanças’ descolada e independente da ‘economia real’. Não encontrará também empresas não financeiras passivas diante de um processo que lhes subverte as ‘virtudes’.
O que o leitor encontrará é um esforço de compreender como as empresas de planos de saúde expressam a lógica geral do sistema e a ela se integram. Em outras palavras, como esta lógica se difunde de forma cada vez mais intensa sobre domínios como a intermediação assistencial.
No caso específico da saúde, não se trata de dizer que os esquemas de comércio de planos e seguros são uma novidade recente. Mas sim de mostrar como o processo vivido pelo setor, sobretudo nas últimas duas décadas, aprofunda tendências que antes eram incipientes. Especialmente, como algumas empresas relativamente irrelevantes se transformaram em grandes grupos econômicos multissetoriais, multifuncionais e transnacionais, capazes de impor sua agenda sobre inúmeros assuntos de interesse público no campo da saúde.
Além do esforço de articular diferentes temas num referencial teórico consistente, o livro recorre a uma extensa pesquisa documental (cap. 3). O resultado é um quadro rico de informações sobre a trajetória das maiores empresas de planos de saúde brasileiras.
Mais que o mero interesse nas transformações e pormenores do mundo corporativo, Sestelo sugere, durante todo o texto, possíveis desdobramentos de seus achados e reflexões, deixando em aberto uma agenda de pesquisa ampla.
Sobressai a conclusão de que as empresas de plano de saúde ocupam, cada vez mais, um papel central dentro do ‘complexo econômico-industrial da saúde’:
Não há dúvida de que o esquema de intermediação assistencial ocupa um lugar estratégico nessa constelação. O lugar da intermediação permite múltiplas interfaces de relacionamento comercial e fundamentalmente detém o poder discricionário de gestão financeira sobre os valores pagos a título de contraprestação pecuniária pelos trabalhadores/clientes, seja na forma de pré-pagamento ou pós-pagamento (p. 360).
Esta constatação se desdobra em muitas questões atuais, algumas delas enunciadas pelo próprio autor.
Contribui, por exemplo, para elucidar a grande capacidade dos planos de saúde de manterem seu desempenho durante as oscilações econômicas que afetaram a economia brasileira nos últimos anos. Não apenas pelo seu poder de mercado diante de clientes, fornecedores e prestadores, mas também pela facilidade com que obtêm benesses do setor público, seja do ponto de vista tributário, seja da regulação de suas práticas. Este tema excede a problemática específica das empresas, sobretudo num país com grandes desigualdades em saúde, que essas tendências parecem estar aprofundando.
Outros campos de pesquisas recentes podem se beneficiar do trabalho de Sestelo, embora não façam parte do escopo da obra. Vale a pena mencionar dois deles.
Primeiro, o papel que os planos e seguros ocupam hoje no sistema de saúde faz com que sejam protagonistas nas transformações observadas no mundo do trabalho dos profissionais de saúde. As novas formas de contratação, as mudanças nas condições de trabalho, as relações de trabalho que fogem à legislação ou que foram remodeladas pela recente reforma trabalhista.
Igualmente, é preciso sempre lembrar que o mercado de planos de saúde brasileiro é constituído por uma grande maioria de planos coletivos empresariais vinculados a contratos formais de trabalho. Tem, portanto, uma relação íntima com a dinâmica do mercado de trabalho em geral. E os planos de saúde, embora de forma ainda indefinida, terão de reagir às tendências futuras do mundo do trabalho brasileiro.
Segundo, o livro corretamente menciona o Sistema Único de Saúde (SUS) no sentido de explicar como as acepções sobre a articulação público/privada abriram espaço para a conformação de um mercado hipertrofiado de saúde suplementar no Brasil. Contudo, o trabalho não aprofunda a discussão sobre o espaço que o SUS e o orçamento da saúde ocupam nas estratégias atuais dos planos de saúde. Este passo adicional contribuiria muito, empiricamente, para as pesquisas dedicadas a entender os processos de mercantilização e privatização que afetam as políticas públicas, não apenas na saúde.
Esses caminhos abertos por Sestelo ajudam a alargar uma agenda de investigações sobre as empresas que atuam na saúde brasileira. Seus apontamentos deixam claro que essas pesquisas não ficam limitadas aos fenômenos que interessam aos clientes de planos privados – cerca de 1/4 da população brasileira –, mas interferem nas questões relativas a todo o sistema de saúde.
Pelas razões expostas acima, o livro Planos de saúde e dominância financeira é muito bem-vindo ao acervo da Saúde Coletiva, assim como despertará o interesse daquelas pessoas situadas nas suas fronteiras com outras áreas do conhecimento.
Referências
PRADO , Eleutério . Exame Crítico da Financeirização . Crítica Marxista , n. 39 , p. 13 – 34 , 2014 . [ Links ]
Lucas Salvador Andrietta – Universidade de São Paulo , Faculdade de Medicina e Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde . Campinas , SP , Brasil . E-mail: lucasandrietta@gmail.com
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Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)
FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144p. Resenha de: HANDFAS, Anita. Por uma escola pública, democrática, reflexiva e plena de conhecimentos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18 n.2, 2020.
Resistência ao autoritarismo; gênese e significado; educação; redes políticas; criminalização do trabalho pedagógico; avanço do irracionalismo; democracia; reestruturação curricular – esses são apenas alguns dos aspectos do proclamado movimento Escola sem Partido, tematizado ao longo da coletânea organizada por Gaudêncio Frigotto. Fruto de investigações minuciosas realizadas por dezenove pesquisadores, seu objetivo é mapear os principais aspectos do Escola sem Partido, cujas primeiras manifestações surgiram em 2004, ganhando fôlego desde então e deixando rastros cada vez mais marcantes no contexto atual de avanço do obscurantismo no Brasil.
O livro é uma obra de compreensão sociológica acerca das conexões entre educação e autoritarismo. A coletânea é composta por nove capítulos. O eixo condutor que atravessa o livro é traçado pelos princípios da escola pública, democrática e laica, em diálogo crítico com os preceitos do Escola sem Partido, como já aponta o subtítulo. Ou seja, nesse livro há um terreno comum por onde percorrem os autores, em defesa de uma escola que promova o conhecimento científico, a reflexão e o debate, princípios a partir dos quais, os capítulos buscam oferecer ao leitor um diagnóstico rigoroso do referido movimento.
Nessa direção, o livro demonstra com clareza de dados e informações que, a despeito da propalada liberdade, o Escola sem Partido constrange o professor, sufoca o trabalho pedagógico e encoraja práticas de denuncismo entre os sujeitos que convivem no espaço escolar.
Para dar conta da diversidade de olhares contemplados na coletânea, o organizador mobilizou um conjunto de temas tratados nos capítulos que lograram, por um lado, focar em características específicas do movimento e, por outro, constituir um todo do fenômeno investigado, elucidando as questões centrais sobre o que vem a ser esse movimento, assim como os impactos sobre a educação, a escola e o trabalho docente.
O livro inicia com uma apresentação de Maria Ciavatta que nos convida à reflexão, mostrando que, ao buscar a gênese do Escola sem Partido, os autores da coletânea chamam à organização e à ação todos aqueles que lutam por uma sociedade democrática e por uma educação emancipadora.
No primeiro capítulo, Gaudêncio Frigotto nos chama a atenção para a ameaça que representa o Escola sem Partido. Ao evocar a metáfora da “esfinge” e do “ovo da serpente”, adverte para os perigos da propagação da ideologia desse movimento, cujo alvo é o esvaziamento da função social da escola pública. Abrindo caminho para os capítulos seguintes, Frigotto traça um amplo panorama sobre a gênese do movimento, mostrando que a ideologia tão propalada por ele funciona, em última instância, como um mecanismo para encobrir seus interesses políticos e econômicos, tendo em vista a posição atual ocupada pelo Brasil no interior das contradições do capitalismo.
No capítulo seguinte, é a vez de Fernando Penna analisar o discurso do Escola sem Partido. O autor mostra que por detrás daquilo que muitos professores entendiam por absurdo, deboche e mesmo improvável, o movimento alcançou êxito em suas posições na escola e na sociedade, ao partir de uma estratégia discursiva simples e próxima ao senso comum que desqualifica o professor e coloca pais e responsáveis pelos alunos numa posição inquisidora. O autor destaca e analisa quatro aspectos do discurso do movimento: (1) a concepção de escolarização; (2) a desqualificação do professor; (3) a acusação da escola como espaço de ideologização, e dos docentes como militantes travestidos de professores.
O terceiro capítulo foi escrito por Betty Solano Espinosa e Felipe Campanuci Queiroz. Nele, os autores adotam a perspectiva analítica das redes sociais, para quantificar e qualificar os agentes e as ideias que formam o Escola sem Partido, buscando identificar suas interações com atores de variados espectros sociais. Ao mapear a teia de articulação existente, Bety e Felipe concluem que os membros que compõe o movimento estão vinculados a partidos políticos, instituições religiosas e grupos empresariais poderosos.
No quarto capítulo, Eveline Algebaile traça um quadro geral “do que é”, “como age” e “para que serve” o Escola sem Partido. Ao esquadrinhar a plataforma principal do movimento, um sítio virtual da internet, a autora mostra que, ao contrário do que pode parecer, o Escola sem Partido não se constitui enquanto um movimento, no sentido de agir e organizar seus adeptos orgânica e fisicamente, mas tem todas as suas ações veiculadas por meio de uma plataforma virtual, espaço onde são difundidas suas ideias e divulgadas as orientações para denúncias contra supostas práticas de doutrinação ideológica por parte dos professores.
O capítulo seguinte foi escrito por Marise Ramos e se dedica a analisar os impactos das ideias difundidas pelo Escola sem Partido sobre o trabalho pedagógico dos professores. Para tal, a autora desmonta a suposta neutralidade do ato educativo aventada pelo movimento, asseverando que as contradições e disputas por concepções de mundo presentes no espaço escolar nada mais são do que manifestações salutares inerentes ao ato de educar. Para a autora, sem isso, a escola se torna amorfa e cativa da ideologia das classes dominantes.
O sexto capítulo, escrito por Mattos et al, lembra que o debate em torno do caráter secular e democrático da educação pública vem de longa data e a atuação de grupos religiosos contra a laicidade é uma marca na história da educação brasileira. Na atualidade, segundo os autores, essas posições se revestem em ataques aos conteúdos veiculados na escola e nos livros didáticos, sob o pretexto do Escola sem Partido, de que somente aos responsáveis dos alunos caberia velar pelos valores morais, religiosos e sexuais de seus filhos.
Em seguida, o capítulo de Isabel Santa Barbara, Fabiana Lopes da Cunha e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho parte do entendimento de que historicamente a escola tem sido uma instituição normalizadora e disciplinadora da classe trabalhadora. No entanto, os autores argumentam que quando a escola passa a representar uma oportunidade real de ascensão social das camadas populares, setores conservadores interessados em preservar a hierarquia social e os valores das classes dominantes passam a atacar a escola e os professores. É neste cenário que o Escola sem Partido ganha terreno para operar por meio de mecanismos de “governamento”, no sentido de impor novas condutas e subjetividades no espaço escolar.
O oitavo capítulo, escrito por Rafael de Freitas e Souza e Tiago de Oliveira propõe uma reflexão filosófica sobre o Escola sem Partido. Partindo dos conceitos de doxa (opinião ou crença comum) e logos (razão), os autores mostram como o obscurantismo que atravessa o discurso do movimento fere os princípios da razão e do conhecimento científico na escola, garantidos inclusive pela legislação nacional, para dar lugar à opinião, ao senso comum, fortalecendo assim as crenças e convicções religiosas, como mais uma forma de atacar o conhecimento e o trabalho pedagógico realizado de forma competente pelo professor.
Fechando a coletânea, o capítulo de Paulino José Orso é propositivo de uma alternativa pedagógica e curricular que possa fazer frente ao desmonte da escola, do conhecimento e do trabalho pedagógico do professor. Nessa direção, o autor defende um currículo que contemple uma sólida formação teórica, possibilitando ao aluno uma visão crítica sobre o passado histórico e a compreensão da sociedade atual.
Com a apresentação sintética dos capítulos que compõe a coletânea Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira, fica claro que se trata de um livro da maior importância, sobretudo no contexto atual de avanço do obscurantismo do governo Bolsonaro que ataca a ciência e o conhecimento científico porque quer supor que tudo não passa de construções. A ideologia do Escola sem Partido quer fazer crer que a opinião é tão importante quanto o conhecimento, visão que nos empurra para o relativismo, tão contrário ao esforço investigativo e ao conhecimento, tão necessários para a construção de uma escola libertária. Em tempos sombrios como os que estamos enfrentando atualmente, parece ser mais uma vez oportuna a advertência feita por Saviani (2018) de que a luta pela escola democrática passa por sua articulação com a luta pela democratização da sociedade.
Nesse sentido, a coletânea em pauta é a um só tempo, um livro de denúncia e combate e por isso deve ser lido por todos aqueles que defendem uma educação pública, gratuita, laica e que contemple todas as dimensões da vida humana.
Referências
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, 43. ed. Campinas: Autores Associados, (2018). [ Links ]
Anita Handfas – Universidade Federal do Rio de Janeiro , Faculdade de Educação , Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. E-mail: anitahandfas@gmail.com
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Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro | Leopoldo Guilherme Pio
1. Do Patrimônio cultural ao Porto Maravilha
O livro de Leopoldo Guilherme Pio se constituiu em uma contribuição importante para se pensar o patrimônio cultural, atualização e sua utilização no contexto das transformações urbanas ocorridas ao longo da última década na região central do munícipio do Rio de Janeiro.
Cabe o apontamento da situação específica desta cidade, sendo fortemente caracterizada como uma metrópole que se desenvolveu a partir de um incremento de suas potencialidades como polo de turismo e de demais eventos, neste caso, esportivos. Desta forma, buscou-se reforçar as estratégias para tornar o Rio de Janeiro como um centro atrator de negócios e atividades correlatas.
Nesta direção, o autor destacou a preocupação central de sua proposta que consistiu em compreender como a memória, contida nos patrimônios históricos, foi utilizada como recurso no contexto da estratégia de revitalização e modernização da região, a partir da proposta de desenvolvimento do Rio de Janeiro.
Tal processo ocorreu a partir da atribuição a cultura e ao patrimônio novas competências para revitalizar áreas degradadas, promovendo uma melhor qualidade de vida. Posteriormente, decidiu-se pelo foco na utilização da categoria patrimônio cultural como um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico no interior da proposta do Porto Maravilha.
Para obter este intento, Pio (2017) se utilizou da categoria Patrimônio Cultural como elemento constituinte do patrimônio, presente na cidade do Rio de Janeiro desde os anos 1990, seja, por meio do o projeto do Corredor Cultural, seja com a proposta de 1 instalação do Museu Guggenheim, já sinalizando para o atual 2 momento, mesmo que timidamente. Neste ponto, Pio (2017) considera em seu livro, os termos “usos e sentidos” funcionando como ferramentas que classificam “os principais significados do patrimônio: o patrimônio como oportunidade econômica; como capital de inovação; como instrumento de gestão do espaço público e como símbolo de harmonia social e qualidade de vida”. (PIO, 2017, p.6)
O emprego do patrimônio como ferramenta para se pensar a imagem da cidade como elemento a ser comercializado, inseriu em uma dinâmica de mercado ao destacar pontos positivos e omitindo os negativos. No caso em questão, serão desenvolvidos os pontos positivos que passaram a ser valorizados nesta nova lógica de utilização do espaço urbano.
Tal processo é compreendido pelo autor como “patrimonialização, ou seja, a produção de processos que criam patrimônios, neste caso, na região em que se localiza o Porto Maravilha, em que se destaca o Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Cultura Africana, como representante deste processo.
O próprio autor salienta que a “organização do patrimônio como ramo fundamental da indústria de lugares e do turismo é um indicador desta mudança de paradigma … que se constituiu em mais um legado do que de recuperação de uma herança”. (PIO, 2017, p.59).
Este posicionamento ressaltou a presentificação do patrimônio e da patrimonialização acabando por conectar patrimônio e “marketing das cidades”.
Tal conexão permitiu perceber a aplicação do patrimônio como instrumento que pode funcionar como um “atrativo locacional” (CICCOLELLA, 1996), ou seja, um potencial a ser explorado, neste caso, o patrimônio histórico como uma oportunidade de negócios, como defende Pio (2017).
A partir das linhas gerais do autor, é possível salientar dois pontos relevantes como a implementação de uma proposta de city marketing, termo defendido por Vainer (1999) e Sanchez (2001) e a ênfase em um patrimônio, associado as classes populares, que adquire uma nova funcionalidade.
A primeira delas explica-se pelo fato destes projetos serem elaborados a partir de premissas do city marketing, ou seja, baseado na proposta que adotou o desenvolvimento econômico a partir da valorização de atrativos locacionais que uma cidade possua. No caso carioca, a área a ser “revitalizada”, ou utilizando os próprios termos de Pio (2017), a receber novos “usos” como parte da região portuária do Rio que convencionou-se denominar como Porto Maravilha.
Como pontos a serem desenvolvidos a partir da reflexão de Pio (2017), podemos desenvolver uma intensificação do city marketing e uma “revitalização” que explora uma área “marginal” que compõe uma região mais ampla que possui um projeto com uma perspectiva mais global.
A primeira delas consiste em uma adaptação do “city marketing” para uma área periférica da região central, discutida por Pio (2017) de forma inovadora no seu foco na dinâmica cultural como indutor de desenvolvimento na região do Porto Maravilha.
Esta linha pode ser um caminho valioso, mesmo ao ser aplicado em uma área que possui forte tradição associada a cultura negra como a Pequena Àfrica que passaram a se revalorizados, 3 evidenciando a possibilidade de estimular outras culturas e/ou grupos sociais que não possuem voz, a destoarem dos projetos de city marketing que predominantemente valorizam cultura erudita ou o setor de negócios.
Nesta direção, a discussão de Pio (2017) sinaliza para o reforço na valorização da cultura, neste caso, popular como caminho para se pensar estratégias alternativas para discutir formas de estímulo ao desenvolvimento econômico.
Já o segundo ponto, pensado de forma complementar ao primeiro, trata da revitalização de uma área periférica do centro carioca, suscitando duas questões: o termo “revitalização”, colocado como se não existe vida anteriormente e que daquele momento em diante, tivesse “recuperado” a vida, ou como destacou ABREU (1998), pretendeu-se valorizar uma memória urbana, por meio da “valorização atual do passado” como observado na reflexão de Pio (2017).
Assim, a busca por valorizar o passado, representado na memória urbana, defendida por Abreu(1998), como forma de reforçar uma identidade, neste caso, aquela relacionada a cultura negra, que hoje, por exemplo, instalou-se nos bairros em questão, Saúde, Gamboa e Santo Cristo, como locais símbolos de uma cultura negra que foi recuperado, mas não se criou uma vida nova, mas reforçar a memória urbana relacionado a cultura negra que hoje se tornou um 4 local de valorização e de resistência deste grupo.
Desta forma, a reflexão de Pio (2017) contribui consideravelmente tanto por se referir a oferta de questões quanto na proposição de novos caminhos para discutir o patrimônio, sua re-elaboração e em sua inserção de uma lógica de “comércio” das cidades e de seus espaços diversos.
Notas
1 Consistiu em um conjunto de iniciativas, criadas na região central carioca no decorrer dos anos 1980 até o início dos anos 1990, em que foi incentivada a revitalização desta por meio da utilização de seu patrimônio artísticos, arquitetônico e cultural.
2 Foi uma proposta de revitalização da região portuária da cidade, criada no final dos anos 1990, por meio da implementação de equipamentos culturais como museus, centros culturais e congêneres que sejam indutores de desenvolvimento no entorno da região em que são instalados.
3Esta área foi uma área que possui uma tradicional ocupação de população negra a partir do século XVIII e que continuou no bairro, mas sem valorizar esta tradição, sendo está recuperada nas duas últimas décadas, pela ação do movimento negro.
4 Representado por um passado, que vai desde um local de chegada de escravos negros até locais de interação e de resistência de negros e de sua cultura.
Referências
ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades in Revista da Faculdade de Letras – Geografia, 1 ª série, volume XIV, Porto, p.77-97, 1998.
CICOLLELA, Pablo. Las metrópoles latino-americanas en el contexto de la globalizacion: las mutaciones de las áreas centrais in Para Onde – UFRGS, Porto Alegre, 9 (1), p.01-09, janeiro – julho de 2015.
SANCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política in Revista Sociologia e Política, Curitiba, 16, p.31-49, junho de 2001.
VAINER, Carlos. Pátria, mercado e mercadorias – notas sobre a estratégia discursivas do planejamento estratégico urbano in Anais dos VIII Encontro Nacional da ANPUR, Natal, 1999.
Fábio Peixoto – Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. E-mail: fabiocope@gmail.com
PIO, Leopoldo Guilherme. Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. Resenha de: PEIXOTO, Fábio. O patrimônio cultural no âmbito do porto maravilha: novos usos de “antigos” lugares. Urbana. Campinas, v.12, 2020. Acessar publicação original [DR]
Reinventar la clase en la universidad – MAGGIO (RHYG)
MAGGIO, Mariana. Reinventar la clase en la universidad. Buenos Aires: Paidós, 2018. 183p. Resenha de: MERCADO, Jorge Caldera. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.42, p.207-212, 2020.
Para nadie puede ser un misterio que la situación mundial y nacional que vivimos ha colocado en cuestionamiento los modos culturales de vivir y de relacionarnos. Nos ha obligado a repensar nuestros modos de interacción y, en especial, en lo que nos convoca en este espacio académico, en aquellos aspectos que permiten avanzar en una educación social y democrática, propia de las exigencias del siglo XXI. Así entendido, es en este contexto descrito que el libro Reinventar la clase en la universidad , de la doctora Mariana Maggio, resulta un aporte necesario para el debate acerca de qué esperamos de la educación y, particularmente, de la educación universitaria. En este sentido, esta publicación aborda el cuestionamiento descrito como una propuesta y desafío para lo que significa la formación educativa universitaria, aportando una perspectiva de análisis crítico respecto de las prácticas docentes presentes en la realidad educativa, realidad en la que el acceso a la información para nuestros estudiantes no solo es fácil, sino que también cada vez más relevante en los requerimientos de comprensión profunda, aspecto que, según la autora, la educación universitaria aún no asimila ni profundiza de manera institucional como parte de sus prácticas docentes, postura que es producto de las didácticas tradicionales que, hoy por hoy, están presentes en las aula universitarias, como modos aún no debatidos abiertamente por la academia. En esencia, esta publicación plantea la pregunta respecto de las prácticas educativas que actualmente son implementadas en las universidades y que representan, en sí mismas, un problema para la educación superior, que dificulta a los estudiantes poder acceder y, sobre todo, desarrollar nuevos conocimientos. Leia Mais
Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade / Caroline S. Bauer
Uma linha do tempo em sentido crescente percorre a quarta capa em direção à capa, com início no ano do golpe, 1964, e fim no ano da publicação, 2017. Acima, a questão: Como será o passado? A pergunta incomoda pelo óbvio: como empregar um verbo no futuro para refletir sobre o que já foi? Interessa à autora, Caroline Silveira Bauer, investigar como um órgão de Estado, no caso a Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançou uma narrativa capaz (ou não) de pacificar interpretações a respeito do complexo passado da ditadura, alvo de concepções opostas. Trata-se de um passado vivido, mas também relatado – o que, no futuro, entender-se-á sobre este passado? É dessa maneira que o debate proposto pela professora de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chega a um considerável número de acadêmicos dedicados a estudar o momento pós-ditadura no Brasil. A publicação é fruto do projeto “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil 2008-2014)”, que esteve em atividade entre 2014 – ano da publicação do relatório da CNV – e 2017.
A obra localiza-se em um contexto de notório interesse da academia sobre a recente experiência brasileira de uma comissão da verdade e, assim como em outras obras, questiona as potencialidades e os limites desse recurso como política de Estado que visava a superação de um passado de exceção. Trata-se, nesse caso, de uma incursão profunda nas teorias que se dedicam a pensar o lugar da memória, da verdade e da narrativa em relação a eventos traumáticos, ao mesmo tempo em que localiza o caso brasileiro – suas disputas, imprecisões e críticas à CNV – em diálogo com a literatura nacional e estrangeira. Acima de tudo, o livro é um olhar a partir da historiografia, que mira para uma narrativa que mobiliza temporalidades e noções de história, mesmo sem se inscrever no campo da disciplina em questão. Desde essa perspepctiva, Bauer oferece uma análise sobre a CNV, que demonstra como o órgão se comprometeu a alicerçar em solo movediço, uma interpretação de caráter incontestável sobre o passado. Movediço, pois despreza a possibilidade de reinterpretação de fenômenos históricos, compreendendo tempo como categoria fixa (o que passou, passou e há uma verdade sobre o que ocorreu, da mesma maneira como o futuro parece ser controlável – nele seria possível imprimir uma narrativa socialmente aceita, pacificada, sobre o passado). No decorrer da obra, a autora adiciona elementos que complexificam as posições aparentemente ingênuas da Comissão em relação à maneira como percebe a história: volta-se às disputas de projetos, ao negacionismo, à continuidade do Estado violento e à múltipla dimensão temporal de um passado que não se sabe se passou e como se inscreverá no futuro.
Para defesa dessa tese, o livro divide-se em uma introdução e três capítulos e se inicia com a discussão sobre como a historiografia brasileira sobre a `ditadura civilmilitar` tem perdido sua “inocência epistêmica”, e, assim, promovido trabalhos com criticidade no que compete à dimensão ética e política da análise historiográfica.
Prepara-se, com isso, solo para pousar as questões principais do livro, centradas em indagar como será o passado, nas omissões e silêncios prováveis de serem encontrados na ideia da CNV sobre a ditadura, bem como nas percepções sobre história que emergem do relatório produzido pela Comissão. Ao tratar questões presentes, a historiadora visita acontecimentos fundantes da ótica política sobre o tema, com destaque à lei de anistia (1979) e à ideia de cordialidade e esquecimento que tangenciam o marco legal. Essas características são tratadas pela autora como fenômenos que não se encerraram, que se dirigem para o futuro e demarcam fundamentalmente o contexto em que a CNV se originou.
Analisar a atuação da CNV como marco inicial de um processo desde o olhar de uma historiadora significou, neste livro, pensar também sobre o envolvimento de profissionais da área no interior desta Comissão, com atenção ao aprofundamento de reflexões oriundas das tensões história versus justiça, apredizado versus pena, historiadores versus juízes e tempo da história versus tempo do direito. Em uma imersão no debate teórico, o primeiro capítulo, “História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade”, percorre os últimos anos do Cone Sul, marcados pelas crescentes iniciativas no campo das políticas públicas de memória ensejadas em governos progressistas. O texto adentra também à esfera teórica e metodológica, passa pelo papel da história em relação a passados traumáticos – considerando as variadas concepções sobre o que se entende por história -, e questiona o papel da história dentro da lógica da necessidade de reparação da experiência-limite. Dessa forma, o capítulo inicial da obra é composto por uma carga de reflexão assentada na teoria da história, marcado pela mobilização de referências que vão desde clássicos dedicados a temas fundantes nas Humanidades, como Paul Ricoeur e Theodor Adorno, até expoentes da nova geração na literatura sobre memória, a exemplo de Berber Bevernage.
Na segunda parte do livro, são abordadas as noções de tempo, passado-presentefuturo, e de suas durabilidades para tratar o caráter plural das experiências brasileiras em relação ao seu passado traumático. “As múltiplas temporalidades nos debates sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade” trabalha com a diferenciação entre o tempo do violador e o tempo da vítima (Bevernage), tensão na qual residiria, de um lado, um passado que passou e que deve ficar inerte e fechado e, de outro, um passado que não passa e que prescinde de ruptura. Sob a polaridade, coloca-se a “ideologia da reconciliação” e os obstáculos do silêncio e do esquecimento, presentes no caso brasileiro, frente a uma transição pactuada e limitante em relação às expectativas para o futuro.
Assim, quando o Estado assume a posição de mediar a reconciliação visa-se o futuro por meio de ações institucionais do presente. O caso da CNV é tratado a partir da ideia de “políticas de memória”, de onde nasce a reflexão sobre a vítima, seu sofrimento e seu direito, e sobre a instrumentalização do sofrimento e os eventuais abusos de memória.
É apenas no final do capítulo que se inicia, de fato, a análise de fontes relacionadas à Comissão, a partir dos discursos parlamentares durante as discussões para adoção de sua lei. Os debates são exibidos ancorados na ideia de disputa pela memória e suas nuances temporais: algumas olham para o futuro, enquanto outras, para o passado. Ao encarar o tom de oficialidade da CNV e sua expectativa em consagrar um relato e deslegitimar outros, aborda-se, ainda, “O que (não) pode ser dito”, momento em que se evidencia valores pacificados no âmbito do discurso – como a defesa da democracia – e valores em disputa – como a denúncia sobre práticas violentas no tempo presente.
O livro é finalizado com análise sobre “O relatório da CNV e o futuro da memória”, indagando o teor da narrativa oficial e sua expectativa de se fixar na memória futura sobre o tema. Para isso, Bauer voltou-se primeiramente para as grandes questões que atribuem identidade ao relatório: a narrativa que estabelceria a verdade ao tom ‘história como mestra da vida’, exemplar, mas sem confrontos, apaziguadora com base em critérios jurídicos, sobretudo, na lei de anistia. A expectativa é quebrada, no entanto, quando se mostra que o projeto de apaziguar não foi bem sucedido, já que tanto as Forças Armadas criticaram o relatório por seu perfil `revanchista` quanto familiares de desaparecidos o consideraram insuficiente. Com uso do artifício de réquiem, a autora finaliza o livro sem conclusão, com espaço para evidenciar que toda trajetória da CNV se comprometia principalmente com o futuro e com a pós-memória em seu potencial de transmissão geracional.
Como será o passado?, tal qual expresso inicialmente, volta-se justamente para intersecção passado-futuro e sobre as expectativas frustradas de um órgão que partia da premissa de irreversibilidade histórica. O livro possibilita, assim, que se questione em que medida essa expectativa restringiu-se ao Estado (ou, ao menos a um órgão estatal) ou foi compartilhada por um setor da academia dedicado à pesquisa sobre esse tema. A opção por não oferecer uma conclusão fechada a respeito do fenômeno e sim evidenciar fragilidades e características do processo, abre espaço para a necessidade de complementações e revisões das teses apresentadas no livro e, assim, pacifica-se com a crítica dirigida à CNV: nenhuma interpretação sobre nenhum fenômeno é irreversível, principalmente considerando as tensões políticas que o permeia. Eis a grande contribuição da historiografia nesta análise.
Notas
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
Paula Franco – Doutoranda em História na UnB. E-mail: paulafranco.historia@gmail.com.
BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: FRANCO, Paula. A contribuição da História para o passado ou para o futuro. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.586-588, jan./jun., 2020. Acessar publicação original. [IF].
COWLLING Camillia (Aut), Concebendo a liberdade: mulheres de cor/ gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro (T), GEREMIAS Patrícia Ramos (Trad), PENNA Clemente Penna (Trad), Editora da Unicamp (E), REIS Laura Junqueira de Mello (Res), Gênero, Agência escrava, Negociação Abolição da escravidão, Cidade de Havana, Cidade do Rio de Janeiro, Brasil, Cuba, Século 19, Em Tempo de História (ETH), Século 19, América
Camillia Cowlling é uma historiadora inglesa formada na Universidade de Oxford, realizou seu doutorado no Instituto de Estudos Sobre Escravidão, na Universidade de Nottingham. Atualmente é professora de história latino-americana na Universidade de Warwick. O foco de sua pesquisa é a escravidão e abolição na América latina, especialmente em Cuba e no Brasil. Fruto de suas investigações, lançou em 2013 o livro Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro, sua obra foi traduzida para o português e publicado pela editora da Unicamp, em 2018.
A primazia do livro Concebendo a liberdade está, além de conferir um agenciamento social às mulheres escravizadas em Havana e no Rio de Janeiro, em realizar uma pesquisa partindo de uma perspectiva transnacional – ou podemos chamar também de transatlântica – entre duas das grandes cidades que, por meio da escravidão, cresceram e se desenvolveram ao longo do século XIX. Diante disso, apesar da autora utilizar fontes que já haviam sido investigadas, propõe uma obra pautada em um novo sentido. Dessa forma, o livro foi baseado a partir desses diversos aspectos referenciais que são explorados em sua narrativa.
O trabalho nos remete à perspectiva adotada por Sidney Chalhoub na obra Visões da Liberdade. Ambos os autores tomaram como aporte teórico a histórica social e buscaram resgatar a agência dos sujeitos e entendê-la a partir de suas experiências. A historiadora fez uso das mesmas fontes que Chalhoub, trabalhou em sentido próximo a este, no entanto, pensando a condição feminina. (CHALHOUB, 1990). Nesse sentido, a obra de Cowlling trabalha com diversos aspectos referentes à escravidão e a condição das mulheres negras nesse período, como: agência escrava, ação dos sujeitos, maternidade, feminilidade, gênero, entre outros.
O conceito de transnacionalidade, atualmente em pauta na historiografia é explorado pela historiadora inglesa, uma vez que ela pensa a emancipação gradual repensando o conceito de maternidade no Brasil e em Cuba. Ao analisar os dois países de forma comparativa, [1] investiga como a mesma situação ocasionou respostas parecidas em lugares diferentes.
Destacamos que a escolha por esses dois países não foi arbitrária. Cuba e Brasil foram os dois últimos países a abolir a escravidão e agiram de modo semelhante nos processos que resultaram na abolição, [2] a exemplo da Lei Moret, em Cuba, sancionada em 1870, e a chamada Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, no Brasil, em 1871. Ambas as leis determinavam a liberdade do ventre, ou seja, a partir dessas leis os filhos das escravas nasceriam livres; mas as mães permaneceriam escravas.
Nessas condições, Camillia Cowlling indica que tanto as escravas brasileiras como as cubanas se utilizavam de estratégias previstas no sistema legislativo para conseguirem a liberdade de seus filhos, portanto, sabiam usar as leis a seu favor. Além disso, a autora percebeu que as mães escravas passavam a agenciar sua própria liberdade utilizando-se da retórica da maternidade [3], a fim de que tivessem suas vozes escutadas, contando dessa forma com a piedade e a caridade dos que as ouviam. Tal retórica era uma estratégia de discurso. Assim, a partir da promulgação de tais leis, as mulheres negras passaram ao centro da discussão a respeito da abolição. A gestação tornou-se então um campo de disputas, e as mulheres souberam utilizar dos argumentos expostos em tais processos com o intuito de conseguirem a almejada liberdade.
Logo, podemos compreender que o processo de abolição não pode ser encarado como um projeto desenvolvido a partir de uma concessão dos Senhores, mas sim como uma consequência de diversas reivindicações elaboradas por mulheres escravizadas que, buscando argumentos e meios legais, fizeram uso de algumas alternativas cabíveis, estabelecendo assim, novas formas de alcançar a liberdade. No mais, a autora evidencia ainda que as disputas legais enfrentadas pelas mulheres negras eram travadas na dimensão cotidiana da vida e que não eram ações apenas individuais, ou seja, tais movimentos de luta pela liberdade eram fruto de redes de apoio e comunicação entre essas mulheres.
Para chegar a essa conclusão, Cowlling empreendeu uma série de buscas em muitos arquivos, principalmente, brasileiros e cubanos a fim de identificar a ação, experiência e agência dessas mulheres. Com o domínio do idioma espanhol e da língua portuguesa, a autora analisou várias fontes, como: jornais, inventários, relatórios consulares, poemas, novelas, registros de sociedades abolicionistas, relatos de viajantes, censos populacionais e ações criminais.
Na análise da documentação oficial relacionados a processos judiciais, as então chamadas “ações de liberdade”, Cowlling percebeu que a maioria das requerentes que buscavam justiça no processo de emancipação gradual eram as mulheres. Constatou também que estas sabiam utilizar de preceitos estabelecidos em lei e, além de usarem estrategicamente dos mesmos, negociavam suas liberdades com seus Senhores.
Portanto, segundo a autora, o movimento de algumas mulheres escravizadas em Cuba e no Brasil foi fundamental para o processo final da abolição, que ocorreu em 1886 e 1888, respectivamente.
Outra característica do livro é o uso das narrativas dos próprios atores históricos. Por exemplo, elaborando um texto mais fluído, já no início da obra, Cowlling traz a história de duas mulheres: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. As trajetórias delas se assemelham no que se refere a tipos de iniciativas, objetivos e circunstâncias experimentadas por ambas, apesar de viverem em lugares diferentes – uma em Havana e a outra no Rio de Janeiro. Ao longo do livro, a autora vai descrevendo o caminho percorrido por essas mulheres e, ao final, apresenta a conclusão dos processos judiciais: as duas mulheres não conseguiram vitória na justiça, mas representam a dinâmica e ação das mulheres negras no Brasil e em Cuba, ao final do século XIX, e a relação das mesmas com o processo de abolição.
A diferença entre a feminilidade branca e a feminilidade negra também é um ponto fundamental destacado na obra. Às mulheres oitocentistas caberia o papel de mãe, mas até que ponto esse papel também se encaixava na condição das mulheres negras? Josepha de Moraes, por exemplo, ao solicitar a liberdade para sua filha, nascida após a Lei do Ventre Livre – mas ainda servindo ao antigo dono de sua mãe, conforme explicitado na lei, – teve seu pedido negado em prol do fazendeiro. Nesse caso, a justiça alegou que o Senhor teria mais condições de sustentar e dar educação à filha de Josepha do que a mãe, considerando a pouca instrução que as escravas normalmente recebiam. Assim, para as mulheres negras, nem sempre a função concernente à maternidade era permitida. Portanto, como destaca a autora, as mulheres negras pertenciam a um lugar de não-mulher construído pela sociedade paternalista vigente no Oitocentos.
Na última parte da obra, a historiadora explorou o tema da cidadania e escravidão. Cowlling levantou o questionamento: os escravos, uma vez livres, poderiam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política? Sabemos que, enquanto livres, a condição de vida desses sujeitos foi modificada, no entanto, mesmo após o processo de abolição, os “ex-escravos” não adquiriram cidadania plena no Brasil, uma incorporação foi mais formal do que real.” (CARVALHO, 2001, 13). Ou seja, mesmo usufruindo de uma liberdade formal, não lhes era garantido uma participação efetiva em situações cujo o direito à cidadania era capital.
Ainda sobre o último capítulo, apresentando pontos referentes ao pós abolição, a autora deixa evidente que as ações elaboradas por essas mulheres eram fundamentais para que elas se sentissem cidadãs: “apesar das mulheres estarem excluídas de outros atributos da cidadania, como o direito ao voto ou ao serviço militar, o direito de peticionar ganharia uma importância política relevante em suas mãos.” (COWLLING, 2018, n.p). Tal discussão concernente a cidadania e escravidão, presente no último trecho do livro, da margem para que novas pesquisas sejam elaboradas tomando como base essa perspectiva de análise.
O que Cowlling conclui com esse livro, para além da agência escrava feminina no século XIX, é que a escravidão como conceito foi, assim como diversos acontecimentos, atravessado pelas relações de gênero: “a escravidão ajudou a moldar ativamente as relações de poder e gênero tanto na sociedade escravista como na sociedade livre.” (COWLLING, 2018, n.p).
Isto foi evidenciado nas teorias tomadas a partir dessa temática, assim como na prática, na vida cotidiana analisada por meio da documentação. Logo, a obra nos permite perceber que é possível (e é preciso) levar o gênero e as mulheres em consideração ao fazer análise das mais diversas fontes históricas, uma vez que a escravidão também foi atravessada por relações de poder determinadas pelo gênero.
Notas
- Apesar de analisá-los de forma comparativa, a autora firma que não faz uso de uma metodologia comparativa.
- Os dois países, juntamente com o Sul dos Estados Unidos, integraram aquilo que foi chamado de Segunda Escravidão, teoria que afirma que após uma série de abolições, a escravidão foi tomando um novo formato e poucos países ainda eram escravistas, apenas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. (TOMICH, 2011).
- O texto de José Murilo de Carvalho sobre retórica nos auxilia a compreender esse termo. Se encaramos a retórica a partir do exposto no artigo de Carvalho, conseguimos compreender uma certa autoridade que esse conceito buscava transmitir, logo, as mulheres se utilizavam de tais noções para se mostrarem aptas a criarem seus filhos. No entanto, na sociedade patriarcal Oitocentista, por vezes, apenas a retórica da maternidade e as brechas nas leis, não eram suficientes. (CARVALHO, 2000).
Referências
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Revista Topoi. Rio de Janeiro, nº01, p.123-152, jan-dez. 2000.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas de escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.
COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.
TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial.
Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2011.
Laura Junqueira de Mello Reis – Doutoranda em História na UERJ. E-mail: laurajunqueiramreis@gmail.com.
COWLLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. Resenha de: REIS, Laura Junqueira de Mello. Gênero, agência escrava e estratégias de negociação: processos de abolição em Havana e Rio de Janeiro, século XIX. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.582-585, 2020. Acessar publicação original. [IF].
NOGUEIRA Natania Aparecida da Silva (Aut), As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras (T), ASPAS (E), MENEZES NETO, Geraldo Magella de (Res), Em Tempo de História (ETH), História em Quadrinhos, Escola, França, Japão, Estados Unidos, Canadá, Brasil, Ensino de História
Século 20, Século 21, América, Ásia, Europa
As histórias em quadrinhos (HQs), surgidas no final do século XIX com a publicação de The Yellow Kid nos jornais norte-americanos, teve inicialmente grande rejeição por parte de pais e educadores ao longo do século XX. Um marco importante dessa rejeição foi a publicação, em 1954, de A sedução dos inocentes, do psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham, que denunciava os quadrinhos como uma grande ameaça à juventude norte-americana tentando provar “como as crianças que recebiam influências dos quadrinhos apresentavam as mais variadas anomalias de comportamento, tornando-se cidadãos desajustados na sociedade. Essa rejeição felizmente foi diminuindo com tempo. Os quadrinhos passaram a ser vistos com grande potencial pedagógico nas escolas, contribuindo, por exemplo, na formação de novos leitores. No Brasil, várias obras foram publicadas a partir da virada do século XXI, discutindo formas de utilização dos quadrinhos na escola e também no ensino de História.2 “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, de Natania Aparecida da Silva Nogueira, é mais uma obra que vem somar nessa discussão sobre as potencialidades das HQ’s no ensino. A autora possui Mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira (2015), sendo atualmente doutoranda em História pela mesma instituição. É professora do Ensino Fundamental no município de Leopoldina, Minas Gerais; sócia fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), onde atualmente ocupa o cargo de Coordenadora; e membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes (ALLA).3 O livro possui cinco capítulos. Segundo Nogueira, a obra é voltada para o professor e “prioriza a prática da educação, a partir da experiência docente”, refletindo sobre a capacidade criativa dos professores que podem “transformar uma HQ num instrumento de ensino capaz de mudar alguns antigos paradigmas da educação.” (NOGUEIRA, 2017, 15). A autora dialoga com vários pesquisadores dos quadrinhos como Valéria Bari, Waldomiro Vergueiro, Flávio Calazans, Gonçalo Júnior, Edgar Franco, Nobu Chinen, etc.
Os dois primeiros capítulos são uma revisão do panorama das pesquisas e dos usos dos quadrinhos no contexto internacional e brasileiro. No contexto internacional, a autora dialoga com os casos da França, Japão, Estados Unidos e Canadá. No caso brasileiro, a autora aponta que, apesar de haver publicações que remontam ao início do século XX, como Tico-Tico, e da coleção produzida pela Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945, que foi pioneira na produção e edição das HQs dedicadas a temas educacionais, só foram “nos últimos dez anos que as HQs conquistaram um espaço expressivo nos debates acadêmicos e na prática escolar.” (NOGUEIRA, 2017, 50). As HQs foram introduzidas na lista de obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação (MEC) a partir de 2006.
No terceiro capítulo, “Usando quadrinhos na sala de aula”, a autora observa que é equivocada a visão que considera a leitura das HQs como uma “leitura fácil”. Ao contrário, segundo Nogueira, “é um leitura que envolve uma série de processos mentais e exige domínio de códigos complexos”, sendo “aconselhável que o leitor de quadrinhos comece a ser formado ainda bem jovem.” (NOGUEIRA, 2017, 63-64). Outro equívoco mencionado é o estereótipo que taxa os quadrinhos como “coisa de criança”. Nogueira indica que “existem quadrinhos para todas as idades, sobre todos os assuntos, de gêneros tão variados quanto qualquer outra forma de leitura”, sendo possível, assim, trabalhar com HQs desde “uma classe de educação infantil quanto uma turma de estudantes universitários.” (NOGUEIRA, 2017, 69).
Ainda neste terceiro capítulo, a autora faz cinco sugestões para utilizar os quadrinhos em sala de aula. A primeira sugestão que a autora faz é trabalhar a linguagem dos quadrinhos, conhecendo alguns elementos básicos das HQs, tais como: requadro ou vinheta4; calha ou sarjeta5; recordatório6; balões de fala7; metáforas visuais8; linhas cinéticas ou de movimento9; e onomatopeias10. A segunda sugestão é usar quadrinhos para introduzir temas que serão trabalhados em sala de aula. A autora dá o seguinte exemplo: assim, numa aula de ciências, sobre doenças, por exemplo, o professor pode desejar enfatizar a dengue, por estar presente no cotidiano dos alunos ou por ser um problema grave local. Ele tem em mente selecionar determinada HQ que trata do tema. Se o professor possui quadrinhos suficientes para toda a turma, ele pode promover uma leitura coletiva ou individual. Se ele tem apenas um exemplar, pode selecionar algumas partes, montar uma apostila ou um texto simplificado e trabalhar com os alunos (NOGUEIRA, 2017, 76).
A terceira sugestão é utilizar quadrinhos em atividades (exercícios). Nesta proposta, a autora aconselha o uso de fragmentos de HQs devidamente contextualizados com o enunciado da questão, além do uso de tirinhas. O interessante nesta parte é que a autora comenta casos em que, segundo ela, há mal-uso dos quadrinhos na elaboração de questões, a exemplo de uma questão sobre totalitarismo e Segunda Guerra Mundial na prova de História do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2012, que utilizava a capa da revista do Capitão América de março de 1941. Nogueira questiona o uso da imagem, pois a questão não explora a leitura visual da capa da revista, ignorando seus elementos semânticos. (NOGUEIRA, 2017: 80).
A quarta sugestão é propor a criação de HQs pelos estudantes. Essa atividade é o “coroamento de todo um processo de preparação que começa com a introdução do gênero, o incentivo da leitura e o domínio dos códigos dos quadrinhos pelos alunos” (NOGUEIRA, 2017, 87). A autora chama a atenção que o trabalho deve ser essencialmente realizado sob a supervisão do professor, que deve participar por meio de sugestões e demonstrando interesse pela produção. Por fim, a quinta sugestão de atividade é trabalhar com os alunos o gênero jornalismo em quadrinhos, mais recomendada para alunos do ensino médio e superior. Os professores podem desafiar os alunos a produzirem blogs onde eles desenvolvam matérias no formato de jornal em quadrinhos com temas como política, economia, meio ambiente, violência, etc. Outra proposta dentro do jornal em quadrinhos é a criação de fanzines, um tipo de publicação de caráter amador, sem intenção de lucro, feito pelo simples desejo de fazer circular uma determinada produção literária e/ou artística (NOGUEIRA, 2017, 95).
Nos dois últimos capítulos, “As gibitecas no Brasil” e “Relato de experiência: projeto Gibiteca Escolar”, a autora aborda a iniciativa de criação de gibitecas pelo Brasil, dando ênfase a sua própria experiência como uma das responsáveis pela gibiteca escolar da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina, Minas Gerais. O projeto ganhou do MEC o 3º Prêmio Professores do Brasil no ano de 2008.
Nogueira faz um relato das dificuldades iniciais da formação da gibiteca, mas que com o tempo foi ganhando apoio dos alunos e professores, além da secretaria de educação. A gibiteca também é levada para eventos de rua no sentido de envolver a comunidade, além de realizar eventos acadêmicos com pesquisadores e professores, contribuindo para uma formação continuada. A autora cita depoimentos de professores da escola que veem o projeto da gibiteca escolar como sendo uma experiência positiva no processo de ensino-aprendizagem e envolvimento dos alunos.
Como ressalva em “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, podemos apontar a falta de propostas especificando HQs que podem ser trabalhadas em sala de aula. Durante os capítulos do livro, a autora aborda as HQs de forma geral, não citando exemplos. Uma comparação que podemos fazer é com o livro, bastante conhecido, “Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula”, organizado por Angela Rama e Waldomiro Vergueiro. Neste livro, os autores dos capítulos trazem vários quadrinhos e dizem como o professor pode utilizá-los. Por exemplo, no capítulo “Os quadrinhos nas aulas de História”, Túlio Vilela cita, dentre outras, as HQs de Asterix e Obelix, que podem ser lidas “como um registro da época em que foram criadas, porque, para efeito de humor, são atribuídos aos povos e lugares do passado as características que eles têm nos dias de hoje” (VILELA, 2012, 111). Já Nogueira, embora faça referência à vários estudos e experiências com HQs, não direciona aos professores os quadrinhos que podem servir para determinados conteúdos.
Na sugestão de trabalhar as linguagens dos quadrinhos, ficaria mais claro ao leitor se o livro trouxesse ilustrações de HQs indicando o que é um requadro, um recordatório, os balões de fala, etc. O livro apenas traz as definições de cada um, criando dificuldades de entendimento e visualização de cada um desses elementos básicos dos quadrinhos que, afinal, são essencialmente visuais.
Outra ressalva diz respeito às referências bibliográficas. A maioria dos sites consultados pela autora não estão disponíveis, quando digitamos da forma como o livro indica somos direcionados ao site zipmail. Entendemos que houve um equívoco na forma de referenciar os sites, pois na maioria aparecem como zip.net, não com a sua referência original.
Entretanto, nada disso desabona a obra, que é mais uma contribuição importante para o campo que estuda as relações entre quadrinhos e educação. O grande mérito da obra é o fato da autora trazer a experiência concreta de formação de uma gibiteca em escola pública, demonstrando o papel social de um espaço que estimula a formação de novos leitores. A maioria dos trabalhos publicados sobre quadrinhos na educação, por paradoxal que seja, abordam a questão de forma teórica e não prática, haja vista que em sua maioria são produzidas por professores universitários que não tem a vivência na educação básica. Dessa forma, o leitor, seja professor, aluno, pesquisador ou simplesmente um admirador das histórias em quadrinhos será recompensado com a leitura de uma obra importante que representa o engajamento da autora pelo seu objeto de estudo.
Notas
- Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. geraldoneto53@hotmail.com
- Ver por exemplo: CALAZANS, Flávio Márcio de Alcântara. História em quadrinhos na escola. São Paulo: Paulus, 2004; RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume I: o trabalho com universos ficcionais e fanzines. São Paulo: Criativo, 2013; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. (Orgs.) Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume II: os gibis estão na escola, e agora? São Paulo: Criativo, 2015.
- Informações sobre a trajetória acadêmica e profissional de Natania Aparecida da Silva Nogueira consultadas na Plataforma Lattes. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4509802D6 Acesso em: 31 out. 2018.
- É a moldura que envolve a cena retratada em cada quadrinho. (NOGUEIRA, 2017: 72).
- É o espaço que existe entre dois quadrinhos e que muitas vezes precisa ser preenchido pelo leitor por meio do raciocínio. (NOGUEIRA, 2017: 73).
- É o pequeno painel, algumas vezes de tamanho retangular que aparece no canto do requadro e que faz uma breve narrativa como forma de introduzir ou complementar a cena. (NOGUEIRA, 2017: 73).
- Simbolizam o ato da fala dos personagens. (NOGUEIRA, 2017: 73).
- São uma espécie de figuras de linguagem que funcionam como palavras, sintetizando conceitos epnas por meio de uma simples imagem. (NOGUEIRA, 2017: 74).
- São aqueles riscos que indicam movimento. (NOGUEIRA, 2017: 74).
- São palavras que representam sons. (NOGUEIRA, 2017: 74).
Referências
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.
VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.
Geraldo Magella de Menezes Neto –Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. geraldoneto53@hotmail.com.
NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras. Leopoldina: ASPAS, 2017. 148p. Resenha de: Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.34, p.122-127, jan./jul., 2019. Acessar publicação original. [IF].
SILVA Pedro Ferreira da (Aut), Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (T), Editora Entremares (E), FELIPE Cláudia Tolentino Gonçalves (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Cooperativa, Anarquismo, Sociedade capitalista, Pedro Ferreira da Silva, Portugal, França, Brasil, Século 20 Século 20, América, Europa
O título do livro de Pedro Ferreira da Silva pode parecer equivocado: como conceber a existência de uma cooperativa sem finalidades lucrativas? O subtítulo, no entanto, desfaz o equívoco ao precisar o conteúdo da obra: uma experiência anarquista no interior da sociedade capitalista. É no mínimo intrigante a possibilidade de coexistência entre capitalismo e anarquismo, especialmente para quem encara a experiência libertária de forma banal e preconceituosa. Resenhar Cooperativa sem lucros, portanto, mostra-se uma tarefa necessária por duas razões: poderia apontar os nexos entre cooperativismo e anarquia e ajudar-nos a entender o que motivou a republicação de um livro anarquista de 1958 quase sessenta anos depois.
Perseguido pelo governo salazarista, o anarco-sindicalista português Pedro Ferreira da Silva refugiou-se na França em 1926 e, logo em seguida, mudou-se para o Brasil. Em Portugal, ele foi um dos responsáveis pela publicação do semanário A Comuna, editado na cidade do Porto. Convém mencionar que é o mesmo periódico do qual participava o militante anarquista português Roberto das Neves, antes de sua vinda para o Brasil no início dos anos 1940. No Brasil, Pedro Ferreira associou-se aos anarquistas cariocas e paulistas e, ao final da ditadura varguista, começou a participar efetivamente do periódico Ação Direta (1946-1959), publicado no Rio de Janeiro. Aproveitou o espaço que lhe foi destinado para escrever textos críticos sobre o salazarismo, o sindicalismo e o cooperativismo.
Apesar de desempenhar a função de contador, Pedro Ferreira dedicou-se ao jornalismo e escreveu poemas e livros nas áreas de literatura, crítica social e economia. Dentre suas principais obras, destacam-se: Eu creio na Humanidade (1949); Três enganos sociais: férias, previdência e lucro (1953); Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (1958). Interessa-nos, particularmente, a última obra mencionada, que edifica um projeto revolucionário cujo veículo seria a cooperativa, entendida como uma arma de luta contra a exploração capitalista e como um caminho para a construção de uma sociedade libertária. Para tanto, o autor reuniu uma série de discussões realizadas no Ação Direta entre os anos de 1947 a 1958.
A linguagem adotada no livro é acessível, abrindo mão das figuras de linguagem desfiladas em outros textos de sua autoria, como em Eu creio na humanidade. A disposição de seus artigos assume claramente ares de “projeto”, uma vez que instrui sobre o funcionamento do que seria uma sociedade libertária estruturada por cooperativas sem lucros. Convém mencionar que o autor acredita que a anarquia não se desenvolveria de imediato, carecendo de estratégias intermediárias que pudessem educar os homens, tornando os princípios libertários atrativos e cativantes. A questão a se perguntar é: de que maneira a cooperativa atenderia esse propósito?
Não nos parece conveniente retomar minuciosamente as particularidades de cada um dos 32 artigos do livro escritos pelo autor, mas esboçar a ideia geral que confere ares de unidade ao conjunto. O cooperativismo pensado por Pedro Ferreira remete a uma experiência anárquica dentro da sociedade capitalista e dependeria da iniciativa do indivíduo e de seu esforço associativo. No entanto, o sistema cooperativo corrente deveria passar por mudanças significativas, para se ver livre dos vícios capitalistas. A princípio, o autor declara que não acredita na violência e retoma o conceito de ação direta, definido como ato de perseguir uma finalidade trilhando “caminhos iluminados, pelos meios limpos, isentos de colaboração suspeita” (p. 17). As cooperativas seriam uma alternativa intermediária, contanto que se livrasse do lucro e se baseasse em preços justos e acessíveis.
Pedro Ferreira insiste na necessidade de uma cooperação ampliada, multiplicada, que eliminaria a especulação, os salários e concentrar-se-ia no benefício dos consumidores. Note-se que, sem se confundir com a anarquia, o cooperativismo reproduz alguns de seus postulados, já que efetua “a melhoria econômica da classe proletária, a assimilação social e o enfraquecimento dos preconceitos de classe” (p. 27). O autor ressalta a necessidade de a sociedade se livrar dos “intermediários”, dos comerciantes que lucram às custas do consumidor: são eles que, “na indústria como no comércio, o cooperativismo combate, dispensa e destrói” (p. 31). Parece-nos que uma das lutas mais recorrentes nos escritos de Pedro Ferreira é direcionada contra a ideia de o salário ser a finalidade última do trabalhador, e não a produção. Afinal, ele “é um elemento econômico decorrente do trabalho e não um objetivo a conquistar por meio do trabalho” (p. 35). Por outras palavras, se a intenção do trabalho industrializado é o lucro, no caso do trabalho cooperativista, o intuito é a produção. O problema, portanto, é associado à sociedade, pensada como “edifício formado de material ruim”. Uma vez que “matéria ruim não pode fazer edifício bom”, é preciso transformá-la, mas de forma não abrupta, já que a retirada do homem de um edifício ruim e sua introdução num edifício bom não mudaria, de imediato, o próprio homem.
O autor pensa o cooperativismo como estágio necessário para a reformulação do “processo mental” capaz de “fazer com que o homem crie, em volta de si, o ambiente anarquista” (p. 46). Através dele, seria possível desenvolver um “espírito associativo”, a solidariedade e a ajuda mútua. Trata-se de uma “arma revolucionária”, imunizada contra “o contágio da cobiça”, mas que, inicialmente, estaria associada ao capital: só com o tempo o cordão umbilical seria rompido. Para sua administração, seria necessário um “fundo social”, que reuniria um montante indispensável para garantir as instalações, móveis, imóveis etc. Quanto maior fosse a participação, mais eficaz se tornaria a cooperativa. Além do fundo social, haveria um fundo de manutenção e desenvolvimento, para ampliação das operações sociais através de materiais que permitissem sua administração. Não há lugar para os juros. O autor afirma que “o sonho pode estar dentro de nós, mas em torno de nós há a realidade e nela se movem nossas vidas, nela se animam os nossos gestos e se realizam as nossas obras” (p. 73). É por essa razão que seria preciso reter um excedente quando da definição dos preços dos produtos e de sua distribuição, para “cobrir possíveis erros de cálculo, desgastes ou perecimentos imprevistos de mercadorias” (p. 74). Pedro Ferreira afirma que a cooperativa não pretende conferir lucro a seus associados, pois não alimenta finalidades mercantilistas. Isso não exclui, no entanto, “a margem necessária ao funcionamento da organização e convenientes reservas” (p. 75).
De um lado, o autor pensa as cooperativas de produção, que tentam conferir aos operários a possibilidade de “trabalhar por sua conta”, sem submeter-se à exploração patronal. As cooperativas de consumo, por sua vez, tendem à universalidade, já que buscam contemplar os consumidores de forma geral. Sendo assim, elas têm o mérito não apenas de eliminar o “intermediário no comércio improdutivo” (p. 100), mas também de aproximar os consumidores de diversas classes, “num movimento comum de defesa econômica, que por sua vez lhes há de inspirar outras formas de cooperação social” (p. 100). Há, portanto, um efeito pedagógico a subsidiar as cooperativas, como o autor admite na passagem abaixo:
O cooperativismo é, pois, um sistema econômico-social de função altamente educativa, e como tal merece maior atenção dos anarquistas, que não o sejam apenas de modo passivamente platônico ou furiosamente arrasador. A ação das cooperativas sem lucros, no terreno industrial ou nas redes distribuidoras dos produtos, leva à emancipação do trabalhador e ao fim do parasitismo comercial; faz converter maior número de braços às tarefas produtivas e semeia o espírito de ajuda, a união e o entendimento comum. Na sua prática, isenta de egoísmo, pode alimentar-se largamente o ideal anarquista e exercitar-se com progressivo êxito mais de um preceito da sociedade livre (pp. 100-101).
Interessa-nos, por agora, retomar a noção de intercooperativismo, que ajuda a compreender a diferença entre liberdade e arbítrio. A liberdade das cooperativas não implica ausência de obrigações que elas devem manter entre si. O homem é livre, mas seu arbítrio “tem de obedecer ao interesse comum” (p. 107). Para Pedro Ferreira, o homem apresenta tendências e impulsos naturais que o levam à sociabilidade, ou seja, há uma “necessidade de cooperação”:
Firmada a mentalidade cooperativista, cada sociedade incorporará esse espírito e passará a representa-lo em relação às sociedades congêneres. Então se estabelecerá o ponto de partida para o intercooperativismo, ou seja, a cooperação entre as sociedades, segundo sua natureza, espécie de atividade ou região onde se desenvolve a influência de seu funcionamento (p. 108).
Criar-se-á, portanto, “federações de cooperativas”, não para circunscrever a liberdade de cada uma delas, mas para atribuir-lhes a mesma liberdade conferida aos indivíduos. Eis porque a cooperativa pode ser encarada como um instrumento de preparo psicológico e prático e como uma etapa que conduziria à sociedade libertária. No terreno econômico, ela possibilitaria preços mais baixos; no âmbito educacional, ensinaria normas de respeito ao interesse coletivo e combateria a guerra dos preços e a concorrência capitalista; no domínio da moral, incitaria o respeito pelo semelhante; em termos sociais, incentivaria troca de ideias e projetos de aperfeiçoamento comuns, alimentando as relações humanas; já no que se refere ao âmbito profissional, estimularia a técnica e o aperfeiçoamento pessoal, e não a intensificação do volume de trabalho.
Não poderia faltar o incentivo à arte: uma vez vencido o sistema do patronato, a arte poderia ser valorizada não a partir de seus rendimentos financeiros, mas como veículo de estudo e de promoção da cultura. Poder-se-ia estruturar uma cooperativa artística, com programas independentes dos quais participariam artistas e o público.
Por fim, Pedro Ferreira trata da família, uma “comuna dentro da sociedade que condena o comunismo” (p. 123). Ele a encara como um “núcleo social”, como “ponto de partida da associação humana” (p. 127). A família, portanto, seria uma “cooperativa isolada”, que poderia deixar de sê-lo caso se unisse a outras famílias em associações cooperativas. É o que, posteriormente, daria ensejo à “policooperativa”:
A policooperativa é o organismo social completo. É o indivíduo na constituição da sociedade. Dentro dela estão as peças todas indispensáveis à satisfação das necessidades sociais. Se a cooperativa geral compreender seções de todas as atividades humanas, ou pelo menos de todas as atividades necessárias aos indivíduos que a compõem, é naturalmente muito mais fácil a federação das cooperativas e o intercâmbio de suas ações, conforme as conveniências não nacionais, mas regionais (p. 134).
Como se pode ver, o livro de Pedro Ferreira apresenta um encadeamento lógico ao sugerir a cooperativa como uma ferramenta eficaz no combate ao lucro e ao comércio, como estágio necessário à consecução da anarquia. No entanto, é preciso problematizar o lugar que essa obra poderia ocupar no atual cenário histórico a ponto de ter sido reeditada em julho de 2017. Seria uma indicação da fragilidade das cooperativas do século XXI? Uma forma de sugerir a necessidade de cooperação e apoio mútuo na atualidade? Uma tentativa de inspirar o leitor, convencendo-o da necessidade de se pensar alternativas que contrariem a modernidade líquida? A tomar pelo critério da verossimilhança, essas hipóteses parecem válidas, o que torna louvável a iniciativa da editora Entremares e imperativa a leitura o livro, que combate o individualismo pós-moderno com palavras libertárias de um autor que, há mais de 50 anos, fez da escrita um instrumento contra o egoísmo. Será possível que continua eficaz? Há somente um meio de descobrir: boa leitura!
Cláudia Tolentino Gonçalves Felipe – Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: claudiatolentino.ufu@gmail.com.
SILVA, Pedro Ferreira da. Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista. São Paulo: Editora Entremares, 2017. Resenha de: FELIPE, Cláudia Tolentino Gonçalves. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.33, p.295-300, ago./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].
NAVARRO-SWAIN Tania (Aut), O que é lesbianismo (T), Brasiliense (E), LESSA Patrícia (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Lesbianidade, Estudos feministas, História das Mulheres Século 19, Século 20 O livro, O que é lesbianismo, editado pela Brasiliense em 2000, é uma edição de bolso da coleção ‘primeiros passos’, por isso, demonstra uma visão muito particular da autora com um posicionamento intelectual específico ao tema em pauta.
A autora inicia seu livro fazendo uma pequena advertência aos possíveis leitores: “quem estiver vestido no cimento de suas certezas não mergulhe nestas águas” (p. 9), pois a “arrogância dos paradigmas” e o “totalitarismo do senso comum” já tentaram petrificar o tema aqui em debate. O Discurso da autora transita pelas teorizações feministas e foucaultianas fazendo uma divisão do livro em três capítulos. O primeiro capítulo discute os indícios e interpretações da historiografia recuperando as discussões da epistemologia feminista para demonstrar a ‘desordem’ que o sujeito lesbiano causa ao conhecimento comum e científico, por isso, sua ocultação na historiografia tradicional. Com o título: ‘Nosso nome é legião: o espaço vivido’ o segundo capítulo demonstra a presença do sujeito lesbiano na literatura, nas teorizações e nas representações diversas. O último capítulo trata dos ‘Perfis Identitários’, ou seja, trata das atuais discussões sobre identidade empreendidas pelas teorias feministas e foucaultianas, discussões que não aceitam a identidade presa ao sexo e sexualidade e, propositivamente, a autora sugere o nomadismo identitário como contrapartida.
O que a história não diz não existiu é o título que inicia a discussão dos indícios e interpretações em história no primeiro capítulo, onde é problematizado o estatuto histórico, que apegado em modelos fixos, anulou a aparição das lesbianas por representarem uma contradição à “ordem natural da heterossexualidade dominada pelo masculino” (p.13). Cabe ao atual fazer histórico questionar, problematizar, na tentativa de buscar os significados e os valores das condutas humanas esquecidas pelas certezas da história-ciência do século XIX: “a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas” (p.14). Daí decorre que os indícios da história podem apontar outras culturas e civilizações onde as mulheres amavam-se umas às outras, pois masculino e feminino nem sempre tiveram a mesma conotação (p.16), embora o imaginário ocidental esteja marcado por Adão e Eva, representantes de dois pólos: a imagem de deus e a submissão, a sexualidade naturalizada, binária, formada por relações assimétricas, é também histórica (p.17).
Trabalha com uma concepção de História não-linear onde o papel de historiador é importante, pois seus olhos estão impregnados de valores e crenças atuais, seu papel não é desvendar algo que estava oculto, mas, interpretar os indícios, nos quais os fragmentos do passado atestam o real, segundo interpretações possíveis e as representações que constroem o mundo. A História é, então, mais um discurso, dentre tantos outros, onde os historiadores são mediadores entre o passado e a construção do conhecimento histórico atual. O papel da História é o de questionar, tentar apreender os significados e valores que orientam atos e gestos (p.14).
A heterossexualidade compulsória como regra universal determina os papéis sexuais do verdadeiro masculino e feminino, assim a tolerância quanto às práticas sexuais diversas depende do grau de hegemonia da heterossexualidade (p.17). Os filósofos da Antiguidade Grega são citados como marco entre razão e mito, mas, as práticas sexuais dos mesmos nem sempre são incorporadas aos seus discursos, ocultando-se os sentimentos elevados entre homens. E quanto às mulheres na antiguidade? O silêncio paira sobre a vida das mulheres atenienses, embora o confinamento delas em casa não signifique sua inexistência. A vida das mulheres em Atenas diferencia-se de Esparta, lugar onde elas viviam separadas dos homens.
Em Esparta, Tebas e Siracusa, sabe-se indiretamente, pelos atenienses, que as mulheres tinham maior liberdade, porém, no ocidente cristão a homossexualidade feminina “desaparece da ordem do discurso”, “não se fala, logo não existe” (p.19), pois ao nomeá-las cria-se uma imagem, cria-se uma personagem no imaginário social. Durante o período da Inquisição criase o termo “Sodomitas” para definir as mulheres que viviam ou estabeleciam algum tipo de relação afetiva ou sexual com o mesmo sexo, não possuem um nome nem mesmo direito à existência.
Serão os indícios da História capazes de recuperar essas vidas ocultadas? A oposição entre a representação normativa do feminino e as guerreiras, vistas como mito, por alguns dos grandes nomes da Historiografia, são tomadas como exemplo do apagamento daquilo que é tido como incomum (p. 21-22). O discurso transforma a mulher guerreira em ilusão, embora descreva eventos, datas e em alguns casos até nomes. Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda descrevem as amazonas como paródias do homem e o homem como referente da força, do combate, do ataque, da independência. A historiografia como memória social pode naturalizar comportamentos? E quanto à homossexualidade feminina? Porque a história oculta povos matriarcais e comunidades de mulheres guerreiras relegando-as a paródias do masculino? A história colabora na construção de um modelo de feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, como o discurso ideológico dos museus que colabora no ideário da evolução histórica na passagem do primitivo para o civilizado, do matriarcado para o patriarcado. A poeta Safo de Lesbos serve como exemplo das regras da heteronormatividade, ou seja, é necessário enquadrá-la nos parâmetros do binário homem/mulher para caracterizá-la, mesmo sabendo da beleza de sua poesia, é necessário discursar sobre sua sexualidade: Horácio dirá que Safo era máscula, Ovídio relata seu suicídio após ter sido abandonada por um homem (p.30-32).
Na discussão da identidade atrelada ao sexo Foucault mostra como a taxionomia imprime-se às coisas e modela os seres conforme a divisão binária e hierárquica da sociedade.
Mas a autora pergunta: a reprodução sempre ordenou o mundo? Sempre ordenou as relações? (p.35). Para lembrar que os discursos são construídos em suas “condições de saber”, Navarro- Swain cita Hadcliff Hall, que escreveu sobre o amor trágico entre mulheres (p.40) e Nathalie Clifford Barney, escritora norte-americana, que viveu na França, amou exclusivamente inúmeras mulheres e morreu aos 95 anos, publicou muitos livros, organizou a Academi dês Femmes.
Para Navarro-Swain a história das mulheres está por ser desvendada: “o que a realidade social não retêm perde a espessura da realidade” (p.50). Simone De Beauvoir mostra-se indecisa quanto ao lesbianismo, mas por fim toma-o como escolha existencial. Para a autora ela é arauto do feminismo, fundadora das teorizações e ainda assim cai em contradição quanto ao tema do lesbianismo. Algumas falas de Beauvoir demonstram o poder da representação social no discurso e no imaginário quando a autora reafirma a natureza feminina em oposição à virilidade lésbica e recai no modelo binário.
Mas enfim, se na idade média a sexualidade está associada ao silêncio, a repressão e a procriação na modernidade a homossexualidade será tratada como doença ou crime. A ciência e a jurisdição irão separar a boa da má sexualidade. E para tal a psicanálise torna-se um dos mecanismos para elucidar a evolução sexual e demonstrar que o sexo natural é a heterossexualidade.
Mathieu, Monique Wittig, Nicholson, Gayle Rubin são algumas das teóricas feministas citadas que discutem o lesbianismo na tentativa de ancorá-lo para além do binário. As representações do mundo são duplas: vida/morte, bela/feia, assim “a verdadeira mulher é diferente da prostituta e da lésbica”, a segunda é preservada na ordem do sistema e a última apagada dos discursos. Para a autora: “a inversão da ordem não representa revolução dos costumes” (p.66), hoje as revistas, o cinema, os direitos demonstram uma maior proximidade entre os homossexuais, mas, o homem ainda quer manter o lugar dominante. Por isso o livro O que é Lesbianismo vem abrir um caminho para pensarmos o tão temido tema da homossexualidade feminina, quem sabe sacudindo as evidências e modificando as representações, sem emitir uma resposta uniformizante ao que seja uma lesbiana.
Patrícia Lessa – * Patrícia Lessa – Mestrado em Filosofia da Educação (UNICAMP/SP), doutoranda em Estudos Feministas (UnB/DF). Professora na Universidade Estadual de Maringá/UEM – PR.
NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 101p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.9, p.150-153, 2005. Acessar publicação original. [IF].
SAFFIOTI Heleieth I B (Aut), Gênero/ patriarcado/ violência (T), Fundação Perseu Abramo (E), PIMENTA Fabrícia F (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Gênero, Patriarcado, Violência, Mulheres Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.
A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.
Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.
As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.
Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.
A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.
Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.
Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.
Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.
Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.
Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.
Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).
No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.
As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.
Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.
Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.
Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações
Fabrícia F. Pimenta – Graduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: fabricia.pimenta@yahoo.com.br / fabricia.piment@ig.com.b.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190193, 2006. Acessar publicação original. [IF].
DOLHNIKOFF Miriam (Aut), O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX (T), Globo (E), IAMSHITA Léa Maria Carrer (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Império, Brasil, Federalismo Século 19, América, Professora de História e Relações Internacionais da USP e pesquisadora do CEBRAP, Miriam Dolnikoff publica livro que contraria interpretações consagradas sobre a história política do Brasil imperial.
Inserida na questão maior da organização política do Brasil Imperial, a obra busca entender a longevidade da influência das elites no Brasil, investigando a maneira pela qual estas estiveram presentes no processo de construção do Estado brasileiro, de modo a contribuir na determinação de seu perfil.
Podemos melhor avaliar a pesquisa da autora e sua posição de embate frontal à historiografia estabelecida, por breve análise da idéia cristalizada da “história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do XIX como a história da tensão entre unidade e autonomia”.
Sabemos que a interpretação do Período Regencial como a fase do jogo político entre centralização e descentralização de poder surgiu ainda no século XIX. A pesquisa de Augustin Wernet rastreou o início desta interpretação e o localiza na obra de H. G.
Handelmann, de 1860.1 Nesta visão assiste-se ao revezamento de homens no cenário político nacional, sem as profundas mudanças (revolução) das estruturas herdadas do período colonial, tendo a primeira metade das Regências sido caracterizada pelo avanço liberal (descentralização), e a segunda pelo regresso conservador (centralização). A historiografia a seguir vai articulando a descentralização às forças provinciais e à desordem, e o Regresso, ao retorno da ordem.
Por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda considerou as forças provinciais, defensoras de um projeto federalista, expressão das forças localistas arcaicas, apegadas aos privilégios coloniais, enquanto a centralização seria o projeto que trazia no seu bojo a possibilidade de modernização, já que ela seria a condição de construir o Estado e a unidade nacional. A defesa dos interesses regionais se limitaria, deste ponto de vista, à tentativa de preservar a herança colonial. Para Buarque, o federalismo não passava de um lema para sustentar o estado das coisas vindas da vida colonial.
Outros autores como Maria Odila Dias e Ilmar de Mattos, também atribuem a vitória sobre as forças centrífugas herdadas do período colonial à capacidade da elite articulada em torno do aparato estatal do Rio de Janeiro de se impor a todo o território nacional. Para eles, o acordo pela unidade, pela centralização política e direção administrativa nas mãos do Rio de Janeiro, teria sido resultado do movimento conservador de 1840, conhecido como “Regresso”, indicando o abandono da experiência de descentralização da Regência.
Entre as interpretações mais consagradas está a de Jose Murilo de Carvalho, segundo a qual, a unidade sob um único governo, teria sido obra de uma elite da Corte, cuja perspectiva ideológica a diferenciava das elites provinciais, comprometidas com seus interesses materiais e locais. A vitória da primeira teria significado a submissão dos grupos provinciais, que ficavam desta forma, isolados em suas províncias. Essa vitória se materializou na imposição de um regime centralizado que neutralizava as demandas localistas das elites provinciais.
Discordando desses autores, e particularmente, de José Murilo, para Míriam Dolhnikoff, a unidade sob hegemonia do Rio de Janeiro foi possível não pela neutralização das elites provinciais e centralização, mas sim à implementação de um arranjo institucional por meio do qual as elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central por meio dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Através do parlamento, as elites nele representadas participavam não só do orçamento, mas também das questões relevantes para a definição dos rumos do país como a escravidão, a propriedade de terras e para organização do Estado, como a legislação eleitoral. (p.14) A autora discorda da idéia de que foi o retorno à centralização – “projeto vencedor” do Regresso- o responsável pela unidade do Império e pela definição do modelo de estabilidade deste; ou seja, para ela, o projeto federalista não morreu em 1824, nem em 1840, ele foi o vencedor, embora tenha feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.
Dolnikoff entende que o “Regresso” foi uma revisão centralizadora que se restringiu ao aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal, que tinham caráter descentralizador. (p.130) Ao invés de destacar a atuação da elite da Corte, a autora conclui que foi a participação das elites provinciais a propiciadora das condições para inserção de toda a América Lusitana no novo Estado, atuação decisiva, que inclusive marcou a dinâmica do Estado brasileiro.
Para a defesa desta posição, a autora recorta para pesquisa três unidades da federação: as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Examina o exercício da autonomia dos governos provinciais inclusive em fase posterior ao Regresso. Justifica sua seleção por serem essas províncias diversas entre si, nos aspectos regionais, nos distintos passados, e nas diferentes demandas e interesses. Busca demonstrar que os diferentes conflitos encontravam espaço de negociação dentro da organização institucional organizada.
Desse modo, as elites provinciais tiveram papel decisivo na construção do novo Estado e na definição da sua natureza. Participaram ativamente das decisões políticas, fosse na sua província, fosse no governo central. E, ao fazê-lo, constituíram-se como elites políticas.
O que a autora quer mostrar mais especificamente é que as elites provinciais (com raízes no período colonial, que defendiam a ordem escravista, a exclusão social e as franquias provinciais) estavam também atreladas ao projeto de construção do Estado nacional e não excluídas. Justamente porque conseguiram articular-se a um arranjo institucional consagrado nas reformas de 1830 e na revisão de 1840 é que a fragmentação da nação foi evitada.
O “preço pago” por esta unidade conseguida teria sido o fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o conseqüente estabelecimento das poderosas forças oligárquicas, que ao final do século XIX, reivindicaram mais autonomia.
A autora conclui que foi a participação destas elites no interior do Estado, com fortes vínculos com os interesses de sua região de origem e ao mesmo tempo comprometidas com uma determinada política nacional, pautada pela negociação destes interesses e pela manutenção da exclusão social, que marcou o século XIX e também o XX. (p. 285) Mesmo considerando o levantamento feito pela autora entre o número de medidas centralizadoras e descentralizadoras, concluindo pelo predomínio das segundas, ainda pensamos que o fundamental foi a direção e a finalidade da acomodação centro/províncias no momento considerado: – que foi justamente o sentido da centralização, da negociação em torno de “um sentido”, que garantisse a permanência da sociedade escravocrata e excludente.
Notas 1 Historiador alemão, H G Handelmann, Geschicht von Brasilien. Berlim: Springer, 1860, p. 935, conforme Augustin Wernet, Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978, p 15.
Léa Maria Carrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Resenha de: IAMSHITA, Léa Maria Carrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.177-180, 2007. Acessar publicação original. [IF].
BRITO Eleonora Zicari Costa de (Aut), Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) (T), Editora da UnB, Finatec (E), PACHECO Mateus de Andrade (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Justiça, Gênero, Menor de idade, Distrito Federal (Brasília), Século 20 Século 20, América
Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.
O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.
Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.
Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.
Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.
Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.
Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.
O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.
O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.
Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.
Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.
Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.
Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.
Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.
É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.
Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.
Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.
Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.
Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.
São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).
Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.
Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.
BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].
MARTINS Estevão C de Rezende (Aut), Cultura e poder (T), Saraiva (E), SALES Eric de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Conceito de Cultura, Conceito de Ideia, Conceito de Poder, Conceito de Ideologia, Identidades, Organizações sociais, Estado Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).
O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.
O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.
Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.
O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.
O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).
As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.
O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.
A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.
O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.
Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.
A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.
Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.
Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: malkerik@yahoo.com.br.
MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].
MORAES Letícia Nunes de (Aut), Leituras da revista Realidade (1966-1968) (T), Alameda Editora (E), OLVEIRA Emerson Dionisio Gomes de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Revista Realidade, New journalism, História do jornalismo, Brasil Século 20, América Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a revista Realidade nasceu para causar polêmica. No seu primeiro número (abril de 1966), a revista abordava o tema da sexualidade entre os jovens; dois meses depois, a principal matéria questionava o divórcio (dez anos antes de sua legalização). Nos números seguintes, temas como o celibato entre sacerdotes católicos ou a controvertida capa de dezembro de 1966 “Deus está morrendo?” causaram discussões em todo o País. Apesar de todas as controvérsias geradas nos primeiros meses da revista, a história desse veículo guardou para janeiro de 1967, com “A mulher brasileira, hoje”, o momento em que segmentos censores da sociedade passaram a agir contra a sua publicação de modo agressivo. Contudo, uma leitura atenta da seção de cartas da revista desmistifica qualquer possível surpresa em relação aos eventos daquele janeiro.
Na análise de Letícia Nunes Moraes, a revista pertencente ao grupo empresarial Abril de São Paulo resistiu em seus dois primeiros anos porque matinha uma relação amistosa com os governos militares, que, desde 1964, controlavam o País. Isso graças a matérias “simpáticas” e perfis de ministros e presidentes publicados com freqüência, embora tal relacionamento tenha lenta e gradativamente se deteriorado a partir de 1968, algo que pode ser verificado com o número de leitores que passaram a “atacar” a publicação.
Realidade foi um marco na história do jornalismo brasileiro ao abordar temas pouco costumeiros nos periódicos voltados à classe média urbana e por incentivar uma linguagem jornalística próxima aos efeitos estilísticos da literatura, naquilo que se denominou genericamente como “new journalism”. A revista foi publicada entre 1966 e 1976, e Moraes debruça-se sobre os três primeiros anos (1966-1968), cerca de 36 números, em especial sobre as cartas enviadas aos editores, numa forma consciente de compreender como o periódico decodificava as opiniões de seus leitores. Nesse aspecto a revista também inovou ao produzir as primeiras pesquisas para definir seu público leitor.
Ao definir seu objetivo, Moraes produz o primeiro ruído quando identifica, no confronto entre os missivistas e as matérias publicadas, uma possibilidade de entender “como a revista queria ser lida e como de fato era lida”, sem lembrar-se , contudo, de que sua fonte única é a própria revista e que mesmo aquelas cartas eram passíveis de seleção e edição.
Enfim, o que a autora nos oferece é um detalhado estudo de duas “esferas” editorias de uma publicação: aquela preocupada com os “fatos” e outra, dedicada a selecionar as interpretações dos “fatos” pelos leitores. É nesse ponto que a sagacidade da autora traz elementos novos, desvios que necessitaram de elementos comparativos para expor certas nuances expressas nas cartas que podem não ter chamado a atenção dos editores naqueles anos, mas que, aos olhos dos estudiosos, hoje não apenas denotam as estratégias dos meios de comunicação da época – imersos num regime hostil à liberdade de expressão – como também nos dão pistas sobre os assuntos debatidos.
Em outro aspecto, a autora adverte que a seção de cartas naquele universo midiático controlado é muitas vezes utilizada para expressar aquilo que não se permite mais nos editoriais, utilizando as opiniões de “leitores” como forma de “desviar” o sentido de autoria.
Infelizmente o trabalho não levou adiante a desconfiança de que cartas podem ter sido criadas pelos editores, como ela mesma conjectura, apresentando-nos como contra-argumento o fato de que não havia tal necessidade mediante a quantidade de cartas recebidas pela revista.
Argumento que em si não está necessariamente ligado ao problema.
Num outro hemisfério, uma prática chamou sua atenção: o fato de que algumas cartas eram respondidas, e as respostas publicadas, quando os editores (Paulo Patarra e Woile Guimarães) percebiam que as questões apresentadas poderiam interessar a outros leitores.
Essas respostas foram bem exploradas pela autora e nelas podemos ver um certo “diálogo” na seção de cartas com “alguns” leitores selecionados. O exemplo que nos parece atual é o número recorrente de leitores que reclamavam da elevada quantidade de anúncios publicados e de uma das respostas ofertadas: “Sem publicidade, imprensa não vive. O importante não é quantos anúncios uma revista contém, mas sim qual a qualidade e a quantidade das matérias que oferece ao leitor” (p.86).
Muitas respostas da revista continham a idéia de que a sugestão para uma nova matéria já havia sido considerada dentro da própria redação. Havia uma preocupação dos jornalistas em explicitar que estavam à frente dos leitores, que suas sugestões apenas reforçavam pautas. Essa tática discursiva era importante na construção da identidade de Realidade, que deveria ser lida como um veículo de comunicação que antecipava discussões e tendências críticas. Apesar desse expediente, a autora mostra que, com o passar dos anos, as respostas tornaram-se cada vez mais raras e eram destinadas a cartas contrárias às opiniões da revista.
Por meio de um banco de dados construído a partir da análise de 686 cartas publicadas, Moraes tenta configurar o perfil dos leitores que escreviam para Realidade. Mas o esforço é decepcionante; a maioria era formada por homens (73%) e oriundos da região sudeste (70%); as únicas informações possíveis, pois raramente aqueles que escreviam identificavam-se de modo preciso. As conjecturas quanto à idade, à profissão, à escolaridade ou a quaisquer índices, mesmo ofertados pela autora, parecem estatisticamente irrelevantes.
Em depoimentos à autora, os editores explicitaram que, nos primeiros números de Realidade, os leitores enviavam cartas cujo teor era mais genérico e as referências às reportagens da revista eram secundárias. Raramente essas cartas eram publicadas; optava-se por relatos diretos ligados à publicação anterior. Com o tempo, as cartas já seguiam essa receita, ou seja, ensinava-se ao leitor que desejava ter sua carta publicada como ela deveria ser escrita. Essa pedagogia da acessibilidade era conscientemente seguida e coloca em suspense qualquer ilusão de uma interatividade irrestrita, tão advogada na época.
Outro aspecto era o incansável desejo de uniformizar as leituras de matérias da revista propostas pelas cartas, numa clara manipulação daquilo que era entendido – publicado – como opinião pública. Nesse tocante, Moraes explora o que Patarra chamou de “jogar um leitor contra o outro” (p.112), uma forma de legitimar a opinião da revista diante de cartas desfavoráveis por meio da publicação cartas de leitores oportunos, conferindo à publicação uma falsa imparcialidade. Um procedimento ainda muito em voga nas publicações atuais.
As cartas mostram que a revista também foi considerada perigosa quando um número considerável de missivistas acusou a revista de defender uma nova organização familiar representativa de uma “revolução moral”. Alguns leitores escreveram à Realidade afirmando que seus filhos estavam proibidos de ler a publicação. Na contrapartida, a revista utiliza cartas de pais que se manifestaram de modo oposto: elogiavam a publicação por criar um ambiente mais confortável entre eles e seus filhos em relação a questões sobre sexualidade e drogas.
Os temas mais comentados eram os de comportamento. Três publicações de 1967 merecem destaque: “A mulher brasileira hoje”, de janeiro; “A juventude brasileira hoje”, de setembro; e “Existe preconceito de cor no Brasil”, de outubro. Temas explosivos que fizeram com que todas essas abordagens sofressem com proibições, ataques e debates acalorados dentro e fora da seção de cartas da revista. Mas nenhum tema foi mais combatido pelos leitores que o “Homossexualismo”, matéria publicada em maio de 1968 (uma data nada neutra), cuja repercussão negativa a revista ratificou, “talvez por ter o mesmo ponto de vista desses leitores” (p.116). Mas há reveses.
Estudiosos acostumados com os vieses da história da recepção sabem que leitores são freqüentemente praticantes de táticas que enviesam sentidos “programados”. Um exemplo ressaltado pela autora diz respeito à surpresa dos editores ao descobrirem que “prováveis” jovens estavam menos preocupados com a “revolução sexual” e as novas posturas comportamentais que com questões mais práticas como o acesso à educação de qualidade e desemprego. Essa conclusão nasceu dos resultados de questionários enviados aos leitores em julho de 1967 com perguntas sobre o divórcio, virgindade da mulher, cabelo comprido dos rapazes, mini-saia das moças etc. O resultado, publicado na edição de setembro (“A juventude brasileira hoje”), mesmo que longo, merece ser reproduzido: “Os jovens acreditam ao mesmo tempo em Deus e no socialismo, não pensam em revolução, acham que há alguma coisa errada no Brasil, mas a maioria prefere não protestar contra os abusos e erros. Julgam que seu papel é estudar, trabalhar e preparar-se para o futuro. Estão mais a favor do que contra o governo, embora muitos nem se preocupem com isso. Pregam a fidelidade para marido e mulher, os rapazes exigem a virgindade feminina, e muitas moças a masculina. Muitos defendem o controle da natalidade e se inclinam pela separação quando o casamento fracassa” (p.187, grifo da autora). Num mundo às vésperas de 1968, cada trecho desse pequeno resumo rendeu diferentes conclusões, exploradas no livro.
O debate político não está ausente do trabalho de Moraes; o número de cartas dedicadas ao assunto é menor que aquele direcionado aos costumes. Mas lidas de modo mais cuidadoso pela autora, mostram que temas como sexo ou matrimônio eram álibis para acusar a revista de ser “francamente antiamericana”, de “usar disfarces esquerdistas” ou para culpá-la de traição à pátria ou de ser “a favor de uma nação estrangeira” (p.140). O que, por efeito, alerta aos historiadores para o fato de que certas categorias estanques, tão arduamente elaboradas para nossas pesquisas, raramente resistem à complexidade dos “problemas” analisados.
Leituras da revista Realidade tem o mérito inegável de apresentar uma visão criativa daquela que foi a revista com maior credibilidade dentro da classe média brasileira no final dos anos 60, superando ícones do jornalismo como O Cruzeiro e Manchete. A autora ensina- nos a perquirir os detalhes de um “documento” que parece, a principio, demasiado óbvio ou já muito explorado. Seu trabalho confirma a suspeita, há anos difundida, de que novas fontes não são apenas encontradas, também podem ser construídas onde muitos já passaram.
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira – * Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, sob orientação da Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito, com apoio do CNPq.
MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda Editora, 2007, 253p. Resenha de: OLVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.12, p.115-119, 2008. Acessar publicação original. [IF].