Visões do tempo no medievo e a escrita da História/CLIO- Revista de Pesquisa Histórica/2022
No final do século XIX, ao criticar a linha de pensamento do positivismo, o filósofo Friedrich Nietzsche, em seu livro Aurora (1881), diz em seu aforismo de número 307: “Facta! Sim, facta ficta! [Fatos! Sim, fatos fictícios]. – Um historiador não se ocupa do que efetivamente ocorreu, mas dos supostos acontecimentos: pois apenas estes tiveram efeito. E, do mesmo modo, apenas dos supostos heróis. Seu tema, a assim chamada história universal (Weltgeschichte), são opiniões sobre supostas ações e os supostos motivos para elas, que novamente dão ensejo a opiniões e ações cuja realidade (Wirklichkeit) imediatamente se vaporiza e apenas como vapor tem efeito – uma contínua geração e fecundação de fantasmas, sobre as névoas profundas da realidade insondável. Os historiadores falam de coisas que jamais existiram, exceto na representação mental (Vorstellung)”1. Leia Mais
Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade | Carlile Lanziere Júnior
Adolf Hitler numa propaganda nazista vestido com uma armadura e empunhando um estandarte com a suástica, manifestantes conservadores armados com escudos e espadas nos Estados Unidos, um cavaleiro com trajes que remetem à Idade Média e falas em latim convocando para atos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil. Percorrendo décadas de usos (e abusos) da Idade Média por movimentos políticos dos séculos XX e XXI, Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade (2021) é expressão da atualidade e, quiçá, urgência dos estudos medievais no mundo contemporâneo, em especial no Brasil.
Em seu sétimo livro, o medievalista brasileiro Carlile Lanzieri Júnior, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), explora novos domínios da história e da medievalística internacional, indicando a guinada arrojada que caracteriza as suas investigações nos últimos anos. Ainda que enquadrado entre os jovens historiadores brasileiros, Lanzieri Júnior é nome reconhecido entre os medievalistas do país, com dezenas de artigos e capítulos voltados, sobretudo, ao tema da sociedade e educação na Idade Média Central, dos intelectuais medievais e do controverso Renascimento do século XII. No entanto, demonstrando a inquietude que marca os intelectuais, ao menos desde 2016 o autor vem debruçando-se sobre novas abordagens e referenciais teóricos, em especial a História Global e os estudos pós-coloniais.1 Soma-se a tais vias a preocupação recente com os usos do passado medieval nas mídias digitais e na política contemporânea, temática que orientou projeto de pesquisa realizado na UFMT2 e que tem sido explorada nos últimos artigos,3 lives e eventos nacionais. Destarte, pode-se afirmar que Cavaleiros de cola, papel e plástico foi forjado no intenso diálogo acadêmico, estando atento aos problemas do tempo presente. Leia Mais
Resistência cultural, identidades e interações: as religiões monoteístas entre o diálogo e o conflito (período tardo antigo-medieval) | Dimensões | 2021
O presente dossiê é resultado de um trabalho de interação internacional de mais de uma década. Tendo como líder e mentora a Profa. Dra. Adeline Rucquoi (CNRS – Paris/França), atingimos nosso quarto dossiê, além de outras interações em temáticas medievais, geralmente no âmbito da Península Ibérica medieval. À Dra. Rucquoi, nossa gratidão e amizade.
O primeiro artigo é de autoria dela. Seu título é muito explícito: El “otro” en la España medieval: ¿convertirlo o temerlo? Reflete sobre a percepção do outro, das interações do poder estabelecido com as minorias. Numa análise sutil e focada dirige-se ao tema da conversão das outras religiões, através de séculos de “convivência”. A historiografia dos quinhentos anos da expulsão, tentou ‘dourar’ a realidade, mas Rucquoi reflete sobre esta escrita da história. Leia Mais
Medieval Welsh Genealogy: An Introduction and Textual Study | Ben Guy (R)
This substantial book does two jobs. It undertakes the first full textual study of Welsh genealogical literature in the Middle Ages, and it provides a new critical edition of the most important texts. In the second of these roles it replaces Peter Bartrum’s Early Welsh Genealogical Tracts (1966), the workhorse on which everyone relied till now. In the first role, however, it has no predecessor. Bartrum offered only a modest commentary and apparatus. That cannot be said of Ben Guy’s book. The task of reviewing this imposing volume calls to mind a certain early Welsh poem in which an inferior warrior takes on the hero, like ‘a shrew that scrabbled against a cliffside.’
Readers may want to know what is so important about genealogy, and also why such basic source criticism is still needed in 2021. Genealogical thinking pervaded medieval Welsh views of the past and there was a dedicated literature of genealogy from a quite early date. There is plenty of material, therefore, and the general shortage of historical sources from early medieval Wales means that genealogies play an outsize role in the reconstruction of the country’s political history. As to why the texts were still in such a deplorable state of confusion, that is a consequence of an abundance of material combined with a shortage of investigators. Few historians have the time or inclination for this work. The astonishingly productive Peter Bartrum was an amateur scholar who worked in his professional life for the Meteorological Office. He has had few emulators, though the name of David Thornton deserves honourable mention, and other historians have dealt with individual problems. As a corpus, however, the earliest Welsh genealogical literature has never been reduced to textual order – until now. Leia Mais
História Medieval: experiências do passado, perspectivas contemporâneas | Vozes, Pretérito & Devir | 2021
Não diga jamais
Poderá parecer estranho para muitos, talvez mesmo abusivo, o fato de nossas Universidades dedicarem grande parte de seus cursos de História à Idade Média, sobretudo se atentarem para a circunstância de não termos no Brasil nem arquivos nem problemáticas pertinentes e, muito menos, o passado medieval. Assim sendo, de uma Universidade Brasileira jamais surgirá um medievalista, o que não importa em dizer que seja impossível fornecer cursos sérios e honestos sobre o passado medieval de importância primordial para a formação de professores de História e historiadores brasileiros.
[…]
Não deixa de ser com alegria que acolhemos a edição desses documentos, a primeira assim cremos, a ser feita no Brasil. […] os estudantes serão os maiores beneficiados com essa iniciativa e, com eles, aumentará, em substância, a possibilidade de termos melhores historiadores do Brasil (LINHARES, 1979, p. 11; 13-14).
Com essas palavras, Maria Yedda Leite Linhares apresentou a obra O Modo de Produção Feudal, de Jaime Pinsky. Ao invocar esse conteúdo para apresentar um dossiê dedicado exclusivamente às problemáticas acerca da Idade Média, não se pretende levantar uma bandeira de vitória sobre o monte da revanche, mas marcar um ponto de chegada do campo dos estudos medievais no Brasil, com potencial ainda latente e capacidades de inovação que não devem ser subestimadas.
A trajetória dos estudos históricos no Brasil se entrelaça à dos estudos medievais. Em 1942, Eurípedes Simões de Paula defendeu a primeira tese doutoral em História do Brasil (SILVA; ALMEIDA, 2016), justamente dedicada a uma problemática acerca da Idade Média. Intitulado O comércio varegue e o grão-principado de Kiev, o trabalho analisou a atuação dos escandinavos em regiões orientais no contexto medieval, propondo reflexões sobre as relações comerciais entre Oriente e Ocidente (de PAULA, 2009).
Depois de atuar junto à força brasileira na Segunda Guerra Mundial, entre 1942 e 1945, Eurípedes Simões de Paula assumiu a cadeira de História da Civilização Antiga e Medieval na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) (LOMÔNACO, 2019). Quinze anos depois, esteve à frente das discussões que deram origem à Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) (SILVA; ALMEIDA, 2016).
O protagonismo de um indivíduo não representava, contudo, a proeminência de um campo. No final de 1970, poucas universidades apresentavam uma separação entre História Antiga e História Medieval – reflexo da escassa especialização desses dois campos no Brasil (SILVA; ALMEIDA, 2016). Foi principalmente da década de 1990 em diante, que os estudos medievais ganharam fôlego e cresceram no Brasil. A partir de então, historiadores voltaram seus olhares à Idade Média, alguns desenvolveram parte de seus estudos em países europeus e muitos se tornaram professores universitários, a orientar, dessa forma, futuros medievalistas. Assim cresceu a medievalística brasileira, impulsionada pela maior presença de especialistas e pelo crescimento das pesquisas em História Medieval nos Programas de Pós-Graduação – formando novos mestres e doutores –, até chegar à fundação da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), em 1996 (BASTOS, 2016).
A abertura do século XXI trouxe também mudanças significativas para os estudos medievais no Brasil e no mundo. O avanço acelerado da internet foi acompanhado da abertura de arquivos digitais a partir de um esforço de digitalização e disponibilização de documentos em alta resolução, de modo a emular a presença física do pesquisador diante de seu suporte e proporcionar acesso crescente a bases de dados antes muito distantes. A entrada das grandes livrarias e a internacionalização das vendas on-line ampliou o acesso – embora muitas vezes custoso – às obras de referência e às novas publicações da medievalística. Tanto quanto ou mais significativo, foi a ampliação do acesso aos periódicos e aos artigos que passaram a circular cada vez mais nas universidades brasileiras, ao que se soma a iniciativa de docentes, discentes, Programas de Pós-graduação e grupos de pesquisa, em organizar revistas especializadas sobre problemáticas ligadas à Idade Média.
Nesse mesmo contexto, enquanto o mundo dava passos largos no desenvolvimento de novas tecnologias da informação, o Brasil deu saltos sociais e educacionais por meio de uma política de governo, a qual, entre os anos de 2004 e 2014, ampliou os investimentos na área educacional em cento e trinta por cento (MENDES, 2015). Essa iniciativa promoveu um avanço quantitativo e qualitativo das investigações sobre a Idade Média no país. A oferta de oportunidades de estudo e pesquisa no exterior durante a graduação e a pós-graduação, ampliou as possibilidades da formação de medievalistas brasileiros em universidades, arquivos e núcleos de pesquisa de diversos países do mundo, marcadamente da Europa. Os estudos medievais brasileiros se internacionalizaram ainda mais a partir de novos diálogos e parcerias com instituições de ensino e investigadores estrangeiros.
A nova geração de medievalistas favorecida por esse ambiente, aprofundou os estudos das problemáticas suscitadas pelos mestres das gerações anteriores, enveredando pela senda de perspectivas teóricas renovadas que também apontaram outros temas, outros objetos e outras preocupações diante do presente. Concomitantemente, a expansão das Instituições de Ensino Superior da oferta de cursos de graduação e pós-graduação, abriu as portas das universidades a essa geração de medievalistas por meio de concursos públicos. Assim, novos pesquisadores passaram a aprender os ofícios do historiador e do medievalista.
Os desdobramentos desse brevíssimo itinerário dos estudos medievais no Brasil podem ser vislumbrados neste dossiê, que reúne trabalhos de pesquisadores das diversas regiões do Brasil, a oferecer reflexões sobre os mais variados temas a respeito da Idade Média, tais como a atuação e relação dos poderes régio, senhorial e eclesiástico; produções literárias e narrativas; criação das universidades; representações e modelos femininos; e demais problemáticas, como se poderá constatar pela leitura das páginas que seguem.
Essas problemáticas foram analisadas a partir do uso das mais diversas tipologias documentais – registros régios e eclesiásticos, ordenações legais, tratados teológicos, crônicas, hagiografias, entre outras –, oriundos de arquivos físicos e digitais, e também do trabalho de transcrição, tradução e publicação de obras originais levado a cabo pela iniciativa editorial. Tudo isso em uma revista acadêmica inteiramente on-line e gratuita, mantida por uma instituição pública de excelência.
À parte do dossiê, mas relacionado ao tema da Idade Média, esse volume da Vozes, Pretérito & Devir traz também uma entrevista com o professor Dr. Carlile Lanzieri Júnior, que ofereceu suas reflexões sobre as mudanças experimentadas pela medievalística brasileira, bem como a importância do estudo da Idade Média no Brasil, as perspectivas teóricas para os estudos medievais e os usos políticos desse passado que, dizem alguns, não nos pertence, embora nos seja tão presente – basta saber olhar!
Como toda iniciativa nutre uma expectativa, a organização deste dossiê não é despretensiosa. A primeira dessas intenções diz respeito ao incentivo à ampliação dos estudos sobre a Idade Média, quer seja por estudantes da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), cujos docentes organizam essa revista, mas também pelos futuros historiadores nordestinos.
Enquanto as universidades e programas de pós-graduação do Sul e do Sudeste, e em menor medida do Centro-Oeste, têm seus quadros integrados por especialistas em História Medieval, o mesmo não ocorre no Norte e no Nordeste. Tratando-se dessa última região, a condição tardia do desenvolvimento de Programas de Pós-Graduação e a concentração das linhas de pesquisa em problemáticas locais ou regionais, são fatores que explicam a pouca presença de estudos ligados à Idade Média (ALVARO; MOTA, 2019).
A organização deste dossiê busca também oferecer um espaço de publicação – palavra entendida aqui em seu sentido lato, isto é, de tornar público – dos resultados obtidos pelo esforço investigativo de alguns dos pesquisadores brasileiros que se debruçam sobre a Idade Média para escrutiná-la com o devido rigor exigido pelo ofício do historiador.
Em um contexto de atritos políticos e curriculares, quando saltam vozes a desqualificar e desmerecer diversos temas e problemáticas, a reunião desses artigos visa ratificar a importância dos estudos medievais no Brasil e chamar atenção para o fato de que a História é uma área composta por campos, e a inabilitação ou eliminação de um deles, não representa a possibilidade de ampliação dos outros, mas antes o enfraquecimento e o encolhimento da própria área; por consequência, seu descrédito e desmerecimento já tão acelerados em tempos de negacionismo e certezas anticientíficas. A quem duvida desse perigo ou julga-o menor, sugiro: não diga jamais.
Uma excelente leitura a todos.
Referências
ALVARO, Bruno Gonçalves; MOTA, Bruna Oliveira. Grandes Sertões do Nordeste Brasileiro: o Horizonte dos Estudos Medievais nos Programas de Pós-Graduação em História. In: AMARAL, Clinio; LISBÔA, João. A Historiografia Medieval no Brasil: de 1990 a 2017. Curitiba: Editora Prismas, 2019, p. 93-127.
BASTOS, Mário Jorge da Motta. Quatro décadas de História Medieval no Brasil: contribuições à sua crítica. Diálogos, Maringá, v. 20, n. 3, p. 2-15, set. 2016. Disponível em: < http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/33600>. Acesso em: 02 mar. 2021.
DE PAULA, Eurípedes Simões. Concessão de título de doutor honoris causa ao professor Eurípedes Simões de Paula. Extraído do Boletim da Universidade de Toulouse, nº V, 1965. Trad. de SOUZA, Joceley Vieira; GOMES, Rodolfo de V. Revista de História, São Paulo, n. 160, p. 85-91, 2009. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/19103/21166. Acesso em: 02 mar. 2021.
LINHARES, Maria Yedda Leite. Apresentação. In: PINSKY, Jaime. O modo de produção feudal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.
LOMÔNACO, José Fernando Bitencourt. Vida e Obra de Eurípedes Simões de Paula. Boletim Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 39, n. 97, p. 294-295, jul./dez.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2019000200016 . Acesso em: 02 mar. 2021.
MENDES, Marcos. Boletim Legislativo nº 26, de 2015: a despesa federal em Educação: 2004-2014. Brasília: Senado Federal, 2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletinslegislativos/bol26. Acesso em: 02 mar. 2021.
SILVA, Marcelo Cândido da; ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 72, p. 13-16, mai./ago. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/TbLWnvgHd6fp8qSD5KnQvTN/?lang=pt. Acesso em: 02 mar. 2021.
Carlos Eduardo Zlatic.
ZLATIC, Carlos Eduardo. Apresentação. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.13, n.1, p. 5- 9, 2021. Acessar publicação original [DR]
Visões da Idade Média | Ricardo Costa
Ricardo da Costa é historiador e trabalha com diversos temas sobre o passado e o presente da humanidade. Especialista em História Medieval, publicou mais de cem trabalhos, originalmente em revistas especializadas no Brasil, assim como no exterior. Formou-se em História, na Universidade Estácio de Sá, e tem Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é Professor Titular do Departamento de Teoria da Arte e Música da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É conhecido, sobretudo, por seus estudos acerca de Ramon Llull, tendo traduzido para o português diversas obras do filósofo catalão, o que possibilitou conhecer um pouco mais a respeito desse mundo medieval.
Em Visões da Idade Média, o (a) leitor (a) encontrará bem mais do que artigos, mas entrará em contato com as temáticas do medievo existentes nas fontes históricas, sob a ótica de um historiador, que tem se dedicado há muitos anos ao fortalecimento dos estudos medievais no Brasil. Costa dá vida às fontes pesquisadas e interpretadas, em que enchendo o leitor de curiosidade e questionamento. Cada capítulo mostra uma parcela do mundo medieval, embora não haja ali um enaltecimento do período, almejase na obra desmistificar os conceitos e interpretações equivocadas em relação à Idade Média. Trata-se de um livro instigante, que em suas mais de duzentas páginas brinda o (a) leitor (a) com uma escrita agradável e estimulante.
O livro Visões da Idade Média aborda de maneira interdisciplinar a História, a Literatura, a Filosofia e a Artes. Cada seção contém três artigos, exceto a última secção que consta quatro textos, sobre essas áreas cuja a leitura (sem esgotá-las) conduz-nos a reflexões críticas. Entre eles, há um artigo inédito escrito em coautoria com o Dr. Milton Gustavo Vasconcelos, o qual versa sobre a Inquisição, isto é, tema que, embora já muito comentado e analisado, mostrou-se passivo de interpretações questionáveis, que o apresentavam como uma espécie de resumo da Idade Média.
Neste sentido, o autor traz sua interpretação sobre a Idade Média, indo na contramão de distorções não apenas naturalizadas acerca desse período, mas por vezes aprendidas erroneamente. Trata-se de um período de mil anos, com uma variada história política, cultural, social, econômica que está presente, seja na Europa, seja nas possíveis raízes medievais observadas na história do Brasil (FRANCO JÚNIOR, 2001). Como afirma Marc Bloch, a história não é uma relojoaria, mas “[…] um esforço para um melhor conhecer uma coisa em movimento” (BLOCH, 1965, p. 29).
O texto de abertura é provocativo, porque os autores desfazem alguns mitos a respeito da Inquisição bastante cristalizados no imaginário popular. Iniciam o prólogo, em tom de brincadeira, por meio de um diálogo fictício. Nessa “conversa”, Costa e Vasconcelos são questionados por um sobre veracidade da pesquisa, e os autores prometem dizer apenas a “verdade” sobre a Inquisição. Assim, despertam no (a) leitor (a) a curiosidade de imaginar cada cena descrita no texto, pois, são analisadas com precisão de detalhes, o que torna o texto agradável e imaginativo.
Na seção História, o autor lança uma provocação, ao intitular um de seus capítulos Para que serve a História? Para nada…, através de tal indagação, não somente prende a atenção do (a) leitor (a), mas já o (a) induz a uma possível resposta. Ainda neste capítulo, Costa narra suas experiências pessoais como docente, na tentativa de responder o porquê de estudar essa disciplina tão questionada.
No mesmo capítulo, Ricardo da Costa, diz que a História possui uma grande divergência no que tange às teorias e métodos, pois não haveria um consenso sobre “a razão de ser” dessa disciplina. Para isso, lança mão de sete perguntas, ou melhor, “sete perguntas, ou melhor, sete respostas para sete perguntas criam esse impasse” (p. 64) nas palavras do autor. Em seguida, apresenta seu ponto de vista acerca desse impasse e infere que o “passado não tem relação (nem culpa) com nossas propostas utópicas de futuro. Para termos uma proposta de futuro, não é preciso conhecer o passado. Basta sonhar” (p.72).
O autor cita o historiador Eric Hobsbawm, ao destacar que atualmente a História é “revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos” (p. 72). Para Costa, esse é um ponto muito interessante, pois é defensor de que há um equívoco no uso do passado para a justificativa de uma visão de mundo.
Conclui este capítulo, afirmando que, se o conhecimento histórico não tiver como finalidade tornar melhor os indivíduos e suas relações, sua serventia será apenas de “acirrar conflitos e aumentar conflitos e aumentar a violência de uns contra outros” (p. 72). Expõe então sua opinião sobre a questão central desse capítulo: “quem ama e sempre amou a História não está, nem nunca esteve em crise. Da minha parte, eu nunca estive em crise por causa dela, muito pelo contrário, ela sempre me causou um imenso prazer, o verdadeiro prazer de conhecer” (p. 83).
No capítulo seguinte, o autor afirma que a História é fundamental para as relações cotidianas e amplia as possibilidades de sua compreensão, apresentando questões relevantes para o (a) leitor (a) se questionar e pensar sobre a “crise” dessa disciplina. Costa vai além das explicações consolidadas que concerne à função da História dentro da academia, abrindo assim um leque referente ao papel da História e do historiador. Desta maneira, chama a atenção para a ressignificação da escrita.
No último capítulo dessa seção, o autor analisa crônicas hebraicas e cristãs, por meio de um tema muito debatido na atualidade, a saber, o antijudaísmo. Sabe-se que no decorrer dos períodos históricos há episódios marcados por acontecimentos nem sempre favoráveis a determinados grupos. Nesse trecho da obra, o autor menciona as primeiras perseguições dos judeus, mostra a resistência franca contra este povo e apresenta sucintamente a relação da comunidade judaica com a Igreja Católica e as Cruzadas. Por fim, Costa trata de vários massacres sofridos por esse povo, revelando os rastros dos ressentimentos e preconceitos com o outro ao longo da História.
Na seção Literatura, Costa se debruça sobre as Sete Artes Liberais (c. 1304- 1307), de Dante Alighieri, em que o poeta por meio da alegoria trabalha filosoficamente o tema das Artes Liberais nos complexos e “imaginários céus da Astrologia”. O autor discorre sobre a poesia, a filosofia e o amor de modo reflexivo e crítico, bem como tece comentários, acerca do uso da poesia pelos medievos em seu trato com a ciência e a filosofia.
Em seguida, o autor aborda a relação entre sonho e história, a partir da obra O sonho (1399), de Bernat Metge, trazendo uma reflexão filosófica a respeito de sua relevância para a sociedade medieval. Com base ainda na obra de Metge e na novela Curial e Guelfa (c. 1460), Costa apresenta a condição feminina sobre a perspectiva dos homens, com destaque para opressão sofrida por elas, para sua personalidade medieval e a para a voz das mulheres nesta obra. Diz o pesquisador: “[…] nela são as mulheres as verdadeiras protagonistas do enredo” (p. 176).
Na penúltima seção, intitulada Filosofia, o autor escreve sobre o Inferno, uma temática indispensável para o entendimento do imaginário do homem e da mulher medievais. Diante disso, deparamo-nos com dois espaços essenciais para a compreensão de como pensavam e viviam os habitantes deste período e de suas perspectivas em relação ao Paraíso e o Inferno. A preocupação com destino após a morte era uma indagação no medievo, já que a Igreja Católica, com a sua doutrina, levava os fiéis a crer que o principal objetivo dos homens era aproximar-se do Reino Celeste (ZIERER, 2013, p. 31).
Costa analisa a visão sobre o Inferno na ótica do filósofo Ramon Llull (1232- 1316), o qual dedicou algumas de suas obras ao Além medieval. Para Costa, sem “[…] esse incisivo pano de fundo imagético, perspectiva transcendental, não é possível compreender a mentalidade medieval (grifo do autor, p. 190). Se na Contemporaneidade, e portanto, com o crescimento da laicização a descrição do Inferno ainda desperta medo e tormenta, para uma parcela da sociedade medieval, por sua vez, esse espaço era uma arma utilizada para regular o comportamento humano.
No capítulo seguinte, o autor analisa a terceira parte do Tratado da Obra dos Dias, de Teodorico de Chartres (c.1155), texto em que predomina uma abordagem filosófica acerca do criador, sob a perspectiva cristã. Para analisar a concepção da divindade nesse tratado, Costa retoma a filosofia clássica e se debruça sobre Platão, Sêneca dentre outros, que influenciaram o pensamento de Teodorico, nas questões relativas à esfera divina. Em sua investigação a respeito de Deus, Teodorico conciliaria: “[…] a verdade da Revelação cristã com a verdade científica de seu tempo (isto é, a das sete artes liberais). Para ele, não havia incompatibilidade entre a fé e a razão” (p. 222).
No último capítulo da seção Filosofia, Costa escreve sobre a disputa entre Bernardo de Claraval e Pedro Abelardo, não somente importantíssima no contexto medieval, mas portadora de reflexões interessantes no que se refere ao debate entre homens de natureza tão oposta. Nesse sentido, o autor apresenta o imenso sofrimento de Bernardo frente aos escritos de Pedro Abelardo. De acordo com Visões da Idade Média, Bernardo pediu que os bispos lessem nos escritos, pois “[…] estavam escritas coisas insólitas aos ouvidos e mentes católicas sobre a Santíssima Trindade, a geração do Filho e a precedência do Espírito Santo” (p. 228). Costa apresenta as interpretações da história que envolve Bernardo e Pedro Abelardo, na perspectiva histórica, filosófica e teológica. No mais, finaliza seu texto com o seguinte questionamento: “Até quando distorceremos a Histórica?” (p. 248).
No capítulo que abre a seção Artes, Costa discorre sobre as representações da vida camponesa na arte de Benedetto Antelami (c. 1150-1230). Essa arte dava vida às estações, às colheitas, à labuta do jovem e robusto camponês medieval. Costa ressalta que nessa produção artística há a presença do estilo românico provençal, algo presente nas obras de Antelami. Costa destaca que “[…] a história do campo, do campesinato, é a história de um mundo social quase sem história” (p. 256).
No capítulo seguinte, Costa realiza um estudo das representações do corpo no Retábulo de São João Batista (1425-1430), de Bernat Martorell. Analisa as expressões faciais, os gestos, as mãos, os detalhes de uma verdadeira obra de arte, que parecem ganhar movimento e vida diante de quem a contempla, diante dos sentimentos de medo, admiração, tristeza, dor, alegria e assombro. O penúltimo capítulo da seção Artes, Costa faz uma análise histórica do episódio bíblico de Susana e os anciãos, um texto interessante que versa sobre a contemplação da beleza.
No capítulo que encerra essa seção, o autor chama a atenção dos (as) leitores (as) e historiadores (as) para algo que ele define como importante, pois, quem se dispõe a pesquisar dada temática torna-se imperativo ter “paixão”, afinco, seriedade e não omitir os fatos. Costa ressalta a relevância de se livrar das armadilhas da seleção viciada dos textos, e o cuidado ao querer “ressuscitar” o passado, já que “[…] para se fazer uma boa e apaixonada História, o historiador deve sair de si mesmo, deve se tornar acessível e ir ao encontro do outro” (p. 325). Além disso, quem escreve tem que ter maturidade, saber observar e analisar a cultura de cada época, pois “[…] a História é para maduros” (p. 330).
Costa mantém e dá sequência à estrutura do livro anterior, intitulado Impressões da Idade Média, outra coletânea de artigos, fruto do seu trabalho intenso como pesquisador. A organização do livro contou com o auxílio de alguns dos seus alunos, que o ajudaram na escolha dos artigos e e na seleção dos textos que viriam a compor as quatro divisões da obra: História, Literatura, Filosofia e Artes, que foram divididas em quatro temas: História, Literatura, Filosofia e Artes. O autor coloca em prática, como já havia afirmado em outro texto, que a História pode extrapolar os seus limites através de áreas diversas: “Não só a Política, não só a Economia, mas a História conceitual, a Arqueologia, a Literatura, a Artes, o Clima, o Corpo, enfim, o tempo, em todas as suas ricas contradições, diversidades e paradoxos” (COSTA, 2016, p. 304, grifos do autor).
O autor aborda o que considera os principais temas que fazem parte da sua trajetória acadêmica. Deste modo, apresenta a sua perspectiva sobre a História, a sociedade e a cultura medieval, dentre outras temáticas que nos ajudam a compreender como foi forjada a sociedade ocidental. Os textos reunidos nesta coletânea de artigos têm em comum a preocupação de mostrar as inúmeras formas de interpretar o passado, assim como de compartilhar o conhecimento histórico, fruto de um trabalho árduo e minucioso, levado a cabo por meio de diversas fontes.
Sem dúvida, as reflexões do professor Ricardo da Costa contribuem para novas visões sobre a Idade Média, já que muitos categorizaram esse período como “Idade das Trevas”, negando neste a produção de conhecimentos, e a existência da cultura, do amor etc. Tais interpretações conservadoras apontavam a Igreja como detentora do saber, acusando a de esconder e barrar a ciência, com o intuito de explorar e manter os homens e mulheres medievais na ignorância. Infelizmente, muitos ainda são influenciados por essa visão preconceituosa.
Ademais, ao discorrer sobre o começo de sua trajetória acadêmica, não economiza críticas em relação à academia. Costa via-se como “um bom rebelde „pósaborrescente‟” e fala das “centenas de „leitores de orelha‟ e de resenhas de livros e que nunca leram um livro até o fim” (p. 63). A nosso ver, a afirmação do autor é parcialmente justificável e Costa recai em generalizações. Sabe-se que no Brasil, marcado pelas diversas desigualdades, muitas pessoas carecem de incentivo e condições de levar os estudos adiante, porém isso não é uma condição de escolha, mas fruto da realidade de miséria e falta de recursos.
O autor também fala da importância de relacionar o texto e imagem, sempre, no entanto, com sensibilidade e rigor. Além das ponderações aqui feitas, esta resenha é um convite à leitura da obra completa, para que os leitores tirem suas próprias conclusões e construam as suas próprias intepretações. É nesse sentido que o livro Visões da Idade Média, torna-se uma leitura indispensável para todos aqueles que pesquisam o período medieval, assim como todos (as) que são amantes do conhecimento e admiradores dessa época multifacetada e rica de transformações, conhecida como Idade Média.
Referências
BLOCH, Marc. A Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
COSTA, Ricardo da. As múltiplas Idades Médias de Jacques Le Goff (1924- 2014). Brathair, São Luís, (UEMA), v. 16, n. 2, p. 303-314, 2016.
COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência cultural, 2017.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade média: nascimento do ocidente, São Paulo: Brasiliense, 2001.
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 2004.
ZIERER, Adriana. Da ilha dos bem-aventurados à busca do Santo Graal. São Luís: Ed. UEMA, 2013.
Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlânticas: culturas e poderes (PPGHIS), da UFMA, sob financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). Mestra em História, Ensino e Narrativas pelo programa de Pós-Graduação em História, Ensino e Narrativas (PPGHIST), UEMA; licenciada em História (UEMA); licenciada em Pedagogia e Bacharela em Teologia pela FATEH. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9634-665X E-mail: natasha_alhadef@hotmail.com
COSTA, Ricardo. Visões da Idade Média. 2ª ed. Santo André, SP: Armada, 2020. Resenha de: MATEUS, Natasha Nickolly Alhadef Sampaio. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.20, n.2, p. 275- 259, 2020. Acessar publicação original [DR]
Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval | Damien Boquet e Piroska Nagy
Quando Gaia Ciência foi publicada pela primeira vez em 1881, Friedrich Nietzsche afirmou:
Quem quiser estudar de agora em diante as questões morais terá diante de sí um imenso trabalho. Existe toda uma série de paixões que devem ser levadas em consideração, observadas separadamente e através das épocas e dos povos nos grandes ou pequenos indivíduos, temos que lançar luz em sua forma de raciocinar, valorizar e esclarecer as coisas. Até hoje nada do que da cor a existência tem todavia sua história, pois quando foi feita uma história do amor, da ganância, da consciência, da piedade, da crueldade? (NIETZSCHE, 1981, p.25)
A citação de Nietzsche é mais que uma simples análise do campo científico ocidental. É um chamado a pensadores, filósofos e cientistas das mais diversas áreas do conhecimento para formular histórias, perguntas e questionamentos acerca dos modos de sentir dentro das questões humanas.
De certo modo, as palavras do filósofo alemão ficaram adormecidas ao longo das décadas. Isso não significou, no entanto, que as emoções não tivessem sido problematizadas nas páginas de livros de historiadores, sociólogos e antropólogos. Podemos destacar dentro desse cenário, títulos como Outono da Idade Média de Johan Huizinga (1919), Sexo e repressão na sociedade selvagem, de Bronislaw Malinowski (1927) e O processo civilizador de Norbert Elias (1939). Estas obras, no entanto, não tinham por pretensão estabelecer um campo autônomo do conhecimento que tratasse as emoções como uma propriedade e que trouxesse à luz os fenômenos culturais mais profundos, que a linguagem e os múltiplos filtros dos códigos sociais não conseguiram conter. Diferentemente do livro aqui resenhado, as emoções ainda eram pouco destacadas ou ocupavam um lugar secundário frente a outras dimensões da vida social. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval é um exercício de pesquisa histórica que tem nas emoções e suas expressões, exatamente os protagonistas do processo, de tal forma que enxergamos e compreendemos a dinâmica dos processos sociais a luz das emoções retratadas.
É na década de 1990, com o advento da neurociência, por exemplo, que as emoções são “convidadas” a ocupar um lugar de destaque nas páginas da historiografia, ao lado de conceitos como luta de classes, mentalidades, cultura etc. No campo historiográfico é impossível deixar de citar a produção dos historiadores estadunidenses, Barbara Rosenwein e William Reddy que exploram a relação entre emoção e cognição, desenvolvendo uma teoria de expressões emocionais e buscando codificar as emoções e suas manifestações. Para Rosenwein (1998), por exemplo, que cunhou o termo comunidades emocionais para estabelecer a íntima relação entre a vida social e a dimensão emocional, o historiador das emoções não deve apenas atentar para a emoção em si, mas para o produto social (discurso). Isso implica na ideia de emoção como uma ancora entre signo e o mundo, encontrando as emoções nos gestos e palavras.
Desse modo, é a partir destes marcos fundacionais que é possível situar o livro Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l’occident medieval dos medievalistas Piroska Nagy, professora da Universidade de Quebec e pesquisadora vinculada ao Centro de Excelência para a História das Emoções entre 2014-1017 e que também escreveu Le don des larmes na Moyen Âge. Un instrument spirituel in aqueleuse d’institution, Ve-XIIIe siècle (2000) e Damien Boquet, mestre de conferência da Universidade de Aix-Marseille e ex- membro do Institut Universitaire de France e coordena juntamente com Nagy o programa “EMMA” (Emoções na Idade Média).
A obra lança um olhar que se ancora dentro do desafio de apresentar e explicar o papel, as representações e especialmente a evolução das emoções, que são entendidas como processos e manifestações dentro de um dispositivo cultural. As emoções não são consideradas como inerentemente irracionais, como se não seguissem padrões racionais. Elas são demonstrativos significativos que justificam e legitimam publicamente os atos praticados. Os historiadores não negam os aspectos biológicos da dimensão emocional, mas reforçam os sentidos sociais da emoção, reforçando as mesmas como zonas de interação e conflito entre o individuo e a sociedade. Mais especificamente na obra em questão, o que chama a atenção é que a emoção é compreendida por meio de aspectos culturais e é expressa em termos de sensibilidades e afetos no interior da sociedade medieval entre os V e XV século.
A obra esta dividida em nove capítulos, com cerca de quatro a cinco subtítulos e cobrem aproximadamente os 10 séculos tidos como tradicionais da História dita Medieval. O livro está organizado tanto cronologicamente – no qual acompanhamos século a século – quanto tematicamente – pelo qual as emoções são agrupadas em temas.
Nas palavras dos autores, “este livro propõe uma história cultural da afetividade do Ocidente medieval” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa)2. A emoção surge em imagens e textos da cultura medieval e “reside no coração da antropologia da Idade Média Ocidental” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [3]. Somos convidados, nas páginas do livro, a conhecer uma história que associa processos cognitivos (imaginação, memória, etc.) e se articula com aspectos psicológicos e de uma história social.
Interessar-se pela história das emoções não significa promover uma história do indivíduo, a microscópica, uma história segmentada; pelo contrário, é uma história antropológica, no auge do homem, de todo o ser humano e de singularidades compartilhadas (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [4].
Uma boa parte da concepção medieval das emoções e da vida afetiva no Ocidente foi elaborada entre o século III e VI como os autores demonstram no capítulo La christianisation des affects. Os afetos são cristianizados e adquirem novas e originais concepções. Existe com o cristianismo, uma integração da alma humana, entre passio e ratio. A emoção faz parte, agora, da dimensão racional. Para os antigos, a emoção diz respeito à irracionalidade da natureza humana. Platão e Aristóteles, por exemplo, afirmavam que a emoção é um valor ontológico da natureza humana e está ligada a alma irracional. Os Estoicos assim como Santo Agostinho, veem na emoção um movimento da alma que provoca mudança corporal.
A Bíblia é um exemplo. Ela está saturada de emoções. O Antigo Testamento mostra um Deus zangado e misericordioso com seu povo e que oferece (Novo Testamento) um filho dotado de emoções virtuosas: amor, paixão e sofrimento. Deus enviou seu Cristo que sofre por amor para salvar a humanidade. Deste modo, a Bíblia não é apenas um depósito de emoções humanas, mas também de emoções que são de Deus. Desde então, a humanidade é dominada pela vida emocional e busca direciona-las ou afasta-las de Deus, na medida em que participam do sistema de vícios e virtudes que fazem parte da base da educação monástica, que compõe uma elite da sociedade cristã ideal. Converter as emoções em direção a Deus significa orientar-se para a salvação, adotando um comportamento que une uma disposição interior que está em consonância ao movimento espiritual (La cité du désir: le laboratoire monastique, capítulo II). O principal laboratório e matriz gestacional das emoções no Ocidente é o mosteiro. Os monges seguem uma orientação vertical da afetividade, controlando seus afetos e o contato com Deus substitui a solidão e instaura a amizade como um valor que produz boas emoções.
Entre os séculos V e X os textos normativos e morais escritos por monges e clérigos mapearam um processo de conversão de emoções, que foi primeiro dirigido ao mundo dos claustros, voltado para o mundo dos ambientes monásticos e posteriormente passando a ser dirigido para a sociedade laica (Des émotions pour une société chrétienne: Francie, v-x siècle, capítulo III). Um novo projeto de sociedade toma forma na base do laço social cristão por excelência, o amor da caridade e da amizade genuína, formulada no tempo de Carlos Magno e novamente na época daquilo que a historiografia convencionou chamar de Reforma Gregoriana.
No capítulo IV, L`apogée de l´affecct monastique, os autores centram suas análises no contexto da renovatio cristã para analisar o conjunto de processos que influencia a cultura emocional das sociedades do século XI. A reforma do monaquismo alimenta a possibilidade de contato direto com Deus através da expressão sincera de certas emoções.
Em estreita relação, e às vezes em conflito com a valorização religiosa do desejo e a ofensiva clerical para espiritualizar o amor conjugal e enquadrar a vida interior, uma literatura da corte em língua vernácula torna visível uma cultura complexa e refinada dos afetos, expressão dos valores e tensões que atravessam círculos aristocráticos e burgueses, como atesta o capítulo V, Éthique et esthétique des émotions aristocratiques à l´âge féodal. A partir do final do século XI, nos círculos de mosteiros e escolas urbanas, a ascensão de um espírito naturalista leva à integração de emoções na natureza humana, (La nature émotive de l´homme, capítulo VI).
Esses diferentes discursos traduzem e difundem um fenômeno de valorização crescente das emoções no final da Idade Média, cujos usos religiosos e sociais parecem mais do que nunca ricos e diversificados (Politiques des émotions princières, capítulo VII). Nós vemos isso na teoria política e nas práticas do governo principesco, que dão orgulho às emoções. As emoções, contrariando a máxima de muitos cientistas sociais que as vincula como uma dimensão irracional e universal da natureza humana apoiam-se, como vemos nesse capítulo, as estratégias de governabilidade e integram as artes de governar. O jovem príncipe deve aprender muito cedo a dominar um código de emoções – que diz respeito à expressão de raiva e tristeza – que lhe é ensinado nos Espelhos de Príncipe.
Em outro nível, a extraordinária promoção da Encarnação e da Paixão de Cristo, na Idade Média, aumenta ainda mais a eficácia emocional religiosa, ligando-a indefinidamente à sua dimensão incorporada: esses são os fundamentos do misticismo afetivo dos séculos XIII XIV, que mantém relações ambíguas com a instituição eclesiástica (La conquête mystique de l´émotion, capítulo VIII). Como atestam os autores, Francisco de Assis “inaugura por meio de seus valores e de seus atos uma nova comunicação com o sagrado, um novo paradigma religioso” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269. Tradução nossa) [5]. O santo de Assis é no relato hagiográfico centro de uma emoção encarnada, permitindo uma nova forma de manifestar a presença divina na Terra. A emoção encarnada é constituída pela tensão entre o corpo e sua expressão emocional. Se antes a paixão era sinônimo de algo vicioso, a virada do ano 1000 a torna um auto sacrifício para seguir Deus, de forma a espiritualizar o carnal e material, tendo o afeto o veiculo de incorporação.
As emoções também têm seus ritos no campo religioso: rezar juntos, procissão, assistir a sermões, ir a peregrinações ou cruzadas, se esforçar para expiar suas faltas ou as de todos os cristãos, etc. Essas expressões, que nos parecem excessivas, não são histéricas e descontroladas. Pelo contrário, eles se expressam em rituais que visam canalizá-los. Os santos místicos foram, sem dúvida, os que impulsionaram as mais profundas explosões de emoções, ligadas a uma nova devoção à humanidade de Cristo. Eles têm visões e espasmos, choram, jejuam ou buscam se satisfazer com Deus de uma maneira bulímica, entram em êxtase, experimentam levitações, vivem uma fusão amorosa com Deus.
A característica mais marcante desse grupo místico, sem duvidas é o fato de existiram um numero considerável de mulheres, tais como freiras, leigas e membras das Terceiras Ordens Mendicantes que experimentaram fenômenos indistintamente espirituais, tanto afetivos quanto corpóreos; os efeitos textuais que fluem através das fontes, portanto, são responsáveis pela ampla circulação de modelos de várias origens. O caminho tomado por essas mulheres, às próprias modalidades de seu caminho permitem explicar não apenas o sucesso, mas também a eficácia religiosa e social da devoção emocional e incorporada. A imaginação, uma função cognitiva a meio caminho entre a inteligência racional e os sentidos corporais – em primeiro lugar, a visão – desempenha um papel muito importante na devoção emocional. Atuando diante de imagens tão onipresentes em igrejas do final da Idade Média, a imaginação atua como um trampolim poderoso na prática da piedade meditativa que recorre à afetividade, às metáforas corporais ou ao próprio uso do corpo. “As emoções engendram experiências corporais, de incorporação, de identificação ou de união dos corpos de Cristo e da Virgem ou de um santo” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275. Tradução nossa) [6].
E finalmente, as fontes mais numerosas e diversificadas dos últimos séculos da Idade Média possibilitam abrir uma janela para as emoções das populações anônimas, principalmente nas cidades, ressaltando não só a diversidade das culturas emocionais, em especial as apostas do uso da cultura emocional no relacionamento social (L´émotions commune, capítulo IX).
Qual é a imagem criada da Idade Média Ocidental paginas do livro? É um período histórico marcado por uma hipersensibilidade, como atestou Huizinga? Um momento de transição marcado pelo controle das pulsões emocionais como observou Elias? A resposta dos autores é mais simples: os homens e mulheres que viveram entre os séculos V e XV construíram um modelo cristão de afetividade, que penetrou nas mais diversas camadas sociais interagiu com diferentes grupos sociais, dando origem a uma sociedade que não se situa entre dois momentos históricos diferentes, mas que reforça a própria vitalidade e força de suas particularidades.
Em um balanço geral, a obra apresenta um ponto positivo que merece ser destacado: a articulação entre a expressão emocional e os contextos sociais evidenciam os vínculos existentes entre a dimensão cognitiva e o mundo que cerca os homens. No entanto, em minha opinião, o livro possui um ponto fraco: a organização cronológica confere a obra uma visão fragmentada do todo. Existe pouca relação entre os temas dos capítulos. O conteúdo de um não comunicasse com os demais, dando a impressão e que os mesmos funcionam de forma independente. Outro ponto negativo que merece ser destacado é o fato de que para cada século analisado, existe uma expressão emocional correspondente, de forma que elas parecem hegemônicas no cenário social. Essa abordagem dos autores permite tecer algumas indagações: a sensibilidade expressa num período é hegemônica? Existem emoções “eclipsadas” no tecido social? As emoções atuam como normalizadoras da vida social, impedindo a manifestação conflitante ou não de outras emoções?
“A história das emoções nos leva a nos conscientizar da infinita maleabilidade cultural dessa estranha questão afetiva da qual somos feitos” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347. Tradução nossa)[7]. O estudo atento das emoções medievais ajuda a compreender a constante fabricação social e a construção de identidades, fundindo o vinculo de suas expressões com Deus. As emoções agem na história em vários níveis: por sua dimensão cognitiva ou moral, por sua relação com o corpo que as impulsiona; as emoções criam linhas de força e de solidariedade. A emoção, a sensação, o pensamento e os atos manifestados criam vínculos entre os grupos e os indivíduos; a emoção modifica e participa tanto na formação quanto nas mudanças históricas.
A análise atenta das emoções como um modo de comunicação social descortina possibilidades até então pouco consideradas pelos historiadores e funciona como uma chave explicativa para as dinâmicas das relações sociais. Desse modo, o presente livro é um convite a todos aqueles – leigos ou especialistas – que se interessam sobre o tema e o resultado de um exercício criterioso e minucioso de erudição histórica.
Notas
1. Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
2. Tradução nossa: “Ce livre propose une histoire culturelle de l’ affectivité de l´Occident médiéval.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17)
3. Tradução nossa: au coeur de l´antropologique du Moyen Âge” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).
4. Tradução nossa: “S` intéresser à l´histoire des émotions ne veut donc pas dire promouvoir une histoire de l´individu, du microscopique, une hisire segmenté, au contraire, c´est une histoire anthropologique, à hauteur d´homme, de l´être humain entier et des singularités partagées.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).
5. Tradução nossa: “François inaugure par se valeurs et ses actions um nouveau modedu communication du sacré, um nouveau paradigme religieux”(BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269).
6. Tradução nossa: “Ces émotions engendrent à leur tour des expériences corporeççes, sinon des expériences d´incorporation, d´identification ou d´union au corps du Christ, de la Vierge ou d´um saint” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275).
7. Tradução nossa: “L´histoire des émotions nous conduit à prendre conscience de l´infinie malléabilité culturelle de cette étrange matière affective dont nous sommes faits.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347).
Referências
MALINOWSKI, Bronilaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981.
REDDY, William M. Sentimentalism and Its Erasure: The Role of Emotions in the Era of the French Revolution. In: The Journal of Modern History, 72, march 2000.
ROSENWEIN, B. H (Ed). Anger’s past: the social uses of an emotion in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University Press, 1998.
Douglas de Freitas Almeida Martins – Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval. Paris: Éd. Le Seuil, 2015. Resenha de: MARTINS, Douglas de Freitas Almeida. Por uma antropologia do afeto: emoções, afetos e Idade Média. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.400-407, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]
Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média | Vânia L. Fróes, Edmar C. Freitas, Sinval C. M. Gonçalves, Miriam C. Coser, Raquel A. Pereira, Ana Carla M. Castro
Sempre houve relatos do contínuo deslocamento da humanidade, sejam nos tempos pré-históricos, passando pelas narrativas Homéricas e relatos de Heródoto, chegando até o medievo, onde o homem desse período saía de seu lar com objetivos diversos, desde um monarca para ver suas terras, até o peregrino em expiação aos pecados.
Essa é a tônica do livro Viagens e espaços imaginários na Idade Média, lançado pela Anpuh Rio no anos de 2018, com textos dos membros do Scriptorium Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos, um dos mais antigos, atuantes e prestigiados grupos de pesquisa em estudos medievais do Brasil, com pesquisas que abrangem vários campos da cultura e do conhecimento do medievo, entre eles literatura, política, imaginário, iconografia e música, assuntos abordados nessa produção de 246 páginas, cuja organizadora principal é a Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, fundadora do Scriptorium, laboratório que em 2019 completou 32 anos de existência.
O livro reforça a ideia de que o homem medieval se movimentava bastante, quebrando estereótipos de que os medievos possuíam uma vida restrita ao seu lugar de nascimento, pois segundo Jacques Le Goff:
A imagem construída pela historiografia tradicional, de uma Idade Média imóvel em que o camponês está ligado à terra e a maioria dos homens e mulheres à sua pequena pátria, com exceção de alguns monges viajantes e de aventureiros das cruzadas, foi recentemente substituída pela imagem, certamente mais justa, de uma humanidade medieval móvel, frequentemente a caminho, in via, que encarna a definição cristã do homem como viajante, como peregrino, homo viator”.1
Desta forma, o livro organizado por Fróes reforça o pensamento de Le Goff sobre os indivíduos no medievo e a ideia de viagem. Estes possuíam não somente mobilidade física, mas mobilidade em imaginário e representações, onde estes homens projetavam sua caminhada na terra, numa peregrinação que se encerraria ao chegar ao Além.
O livro está dividido em seis partes, todas tratando de diversas concepções de viagem. Na primeira parte, Viagens e o poder régio, vemos a observação do poder real, com suas várias configurações de viagens, sendo essas imaginárias ou reais, como consolidadoras de imagens úteis em captação de aliados.
A publicação tem como início, após a apresentação da Coordenadora e Pesquisadora do Scriptorium Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, o relato da viagem feita pelo Infante D. Pedro no texto de Ana Maria S. A. Rodrigues (Centro de História/Universidade de Lisboa) e o percurso deste nobre da terra Santa até sua ascensão ao trono, numa peregrinação para legitimar e dar credibilidade a sua imagem de governante, na disputa pela memória e honra, contra a sua cunhada, D. Leonor de Aragão.
No texto seguinte, de Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA-Santarém/ Vivarium-Scriptorium) mostra um olhar sobre a diplomacia em Portugal do século XV, no reinado de D. Afonso V, além das próprias viagens do rei à Paris visando se encontrar com o rei Luís XI, em busca de apoio contra o reino de Aragão.
Fechando a primeira parte temos o capítulo de Priscila Aquino Silva (Faculdade de São Bento/Unilasalle, Niterói-Scriptorium), tratando da trajetória de D. João II, o Príncipe Perfeito e sua esposa D. Leonor, a construção de sua identidade régia baseada em sua devoção, onde o casal era unido nas peregrinações, mas oposto em suas posições políticas.
A segunda parte Viagens nas representações iconográficas traz uma série de textos com análises de iconografias e suas diversas significações: padrões estéticos, esculturas miraculosas, representações infernais e gravuras sobre martírio e triunfo. As imagens na Idade Média possuem uma função de formação moral e de atestar a presença e ação de Deus. Trabalham com a ligação entre o humano e o divino, pois passam uma mensagem transcendental. Como afirma Jean Claude Schimtt no seu livro O Corpo das Imagens: A imagem medieval se impõe como uma aparição, entra no visível, torna-se sensível. […] Mediadoras, as imagens estavam entre os homens e o divino.2
Abrindo essa sessão, há dois textos de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/ UFF). O primeiro analisa a coletânea cristã Legende Dorée, num percurso explicativo sobre as mudanças nos padrões estético e artístico do medievo, além de fazer uma pertinente observação sobre a luta entre bem e mal pela alma humana e tudo o que esse processo envolve, como os pactos diabólicos.
No segundo texto, a autora traz uma avaliação sobre o Volto Santo, uma escultura atribuída a Nicodemos, o qual, num percurso miraculoso, aparece na Legende Dorée, na sessão intitulada Festes Nouvelles, que traz vidas de santos e o Volto Santo, que atrai peregrinos e fiéis até os dias atuais.
No capítulo seguinte, de Patrícia Marques de Souza (CHA/UFRJ), temos uma análise da versão em latim da Ars Moriendi (Arte do Bem Morrer), e suas gravuras, que tratam da morte, mas também de anjos, santos e da Virgem Maria. A autora também mostra uma observação pormenorizada da representação da Boca do Leviatã como porta do inferno e suas diversas interpretações no medievo.
Ao fim dessa segunda parte, temos o texto de Vinícius de Freitas Morais (CHA/UFRJ/Scriptorium), tecendo uma análise sobre o beato Simão de Trento, nos diversos relatos escritos e imagéticos que tratavam das circunstancias do seu assassinato. As narrativas mencionam que os acontecimentos envolvolveram sequestro, tortura e morte, ocorridos durante a Semana Santa, além de gravuras que retratavam seu martírio e triunfo.
A parte três tem o título Viagens e Peregrinações, remetendo às falas de Jérôme Baschet: “Toda peregrinação é na Idade Média, uma aventura, um risco; se o destino é longínquo, as pessoas redigem o seu testamento antes da partida ou, ao menos, tomam o cuidado de pôr em ordem os seus negócios, como se a viagem fosse sem volta” 3 , mostrando um amplo panorama de deslocamentos expressos nas cantigas, em tradições familiares e as movimentações de uma rainha que foi consorte em duas coroas.
O primeiro texto desta sessão, escrito por Lenora Mendes (Conjunto de Música Antiga da UFF/Scriptorium), traz um a visão acerca das devoções e peregrinações expressas nas cantigas medievais e traça a rota dos principais lugares de peregrinação, especialmente em direção à Santiago de Compostela, significativamente citado nas cantigas de Santa Maria.
O escrito seguinte, de Tomás de Almeida Pessoa (Scriptorium/UFF), relata a tradição da família de Gregório de Tours em empreender peregrinações anuais a Brioude, local onde repousava o corpo decapitado de São Juliano. No texto vê-se que o itinerário da peregrinação era usado como uma jornada na terra para chegar a Deus.
O terceiro texto dessa parte é de autoria de Letícia Simmer (Unirio). Trata de Eleanor de Aquitânia, uma mulher de destaque na França e Inglaterra devido a casamentos com os monarcas dos dois territórios, que vivia em constante movimento desde a Segunda Cruzada, passando pelo território inglês, Jerusalém, Sicília, Navarra, Pisa, Roma, além de muitos territórios da França.
A sessão quatro tem como título Viagens e Escatologias, onde são expressas viagens ao Purgatório, além de como os vivos poderiam ajudar aos mortos nessa jornada, e o percurso de Maomé de Jerusalém ao céu, expresso em traduções Afonsinas.
Essas viagens eram ligadas à salvação e purgação dos pecados, que eram uma preocupação do homem medieval como explica a professora Adriana Zierer no resumo do artigo Paraíso versus Inferno: a Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (séc. XII):
A salvação na Idade Média estava ligada à idéia de viagem. O homem medieval se via como um viajante (homo viator), um caminhante entre dois mundos: a terra efêmera, lugar das tentações e o Paraíso, Reino de Deus e dos seres celestiais. Se o homem conseguisse manter o corpo puro conseguiria a salvação. Se falhasse, sua alma seria condenada, com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório. Era um paradoxo da Idade Média que a alma pudesse ser salva somente pelo corpo, devido à esse sentimento de culpa, proveniente do Pecado Original. Caso o maculasse, sua alma sofreria a danação com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório”. 4
O primeiro texto da parte 4 é de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/UFF),onde a autora faz uma exposição sobre o Purgatório de São Patrício na Legenda Áurea, através da jornada de um nobre chamado Nicolau e seu desejo de se penitenciar no Purgatório. Neste contexto, Rocha mostra a construção desse espaço no imaginário medieval ocidental do além, assim como seu destaque deste na Legenda Áurea, sua geografia , igualmente como a descrição do Leviatã e as bocas do Inferno.
Dando sequência, temos o texto de Viviane Azevedo de Jesuz (Cultura Inglesa/ Scriptorium), que traz uma análise sobre as visões da morte na vida cotidiana do homem medieval e qual a participação dos vivos no descanso eterno das almas dos seus. Essa participação era geralmente expressa nos testamentos, nos quais, além de obrigações aos herdeiros, faziam doações e atos de piedade com o intuito de manter a memória do morto para a família e o meio social.
No terceiro texto dessa quarta parte, Leonardo Fontes (Arquivo Nacional/Scriptorium) apresenta o percurso da viagem escatológica de Maomé por diversos lugares. Estes espaços iam de Jerusalém ao céu, expostos nos arquivos da Corte de Afonso X, através de sua Oficina Tradutória, importante scriptorium de confluência entre diferentes culturas, assim como de valorização dos ensinamentos do rei e de seus súditos, a obra, A -MI AJ, que possu a versões latina, castelhana e francesa. Tal obra difundiu o Islã pelo continente europeu e influenciou diversos escritos importantes, como a Divina Comédia.
A quinta parte do livro é intitulada Viagens e materialidade das narrativas: das bibliotecas régias às estalagens. Aqui, as viagens se iniciam na observação das estalagens e mostram que os livros são meios de expressão de viagens, caças e jogos, que suscitam deslocamentos de várias figuras importantes como D. Dinis e o contato com o Preste João.
Esta sessão traz um rico apanhado de informações sobre os livros de viagem. Conforme nos diz Paulo Lopes, professor do Instituto de Estudos Medievais de Portugal (IEM-FCSH-UNL) em seu artigo Os Livros de Viagens Medievais na revista Medievalista (p. 5): “Os livros de viagens oferecem uma visão bastante clara da concepção do mundo e da realidade na Idade Média, ao mesmo tempo que constituem uma fonte incontornável para compreender aspectos muito diversos da cultura medieval”.5
No primeiro artigo da quinta parte, de Beatris dos Santos Gonçalves (IBMEC /CÂNDIDO MENDES/ Scriptorium), há uma análise de como se dava a dinâmica da hospitalidade nas estalagens portuguesas nos séculos XV-XVI. A autora observa as tensões e cotidianos desses abrigos, além do que estas ofereciam e a quem pertenciam, assim como eram concedidos sua autorização de funcionamento, sua lógica de funcionamento e os benefícios advindos da coroa por estarem bem posicionadas.
O segundo artigo, escrito por Carolina Chaves Ferro (UniCarioca/Scriptorium), apresenta uma observação sobre o gênero de literatura de viagem e seus aspectos reais e imaginários. Dos relatos celebres religiosos e suas origens como a Viagem de São Brandão e a Legenda Aurea, assim como as narrativas presentes nas bibliotecas régias como o Livro da Cartuxa de D. Duarte, Marco Polo em latim e a Conquista d’ultramar, um outro ponto recorrente, segundo o texto, é a questão das índias e o Preste João.
O terceiro texto, de Jonathan Mendes Gomes (UEMG-Carangola|Scriptorium), destaca o papel da caça no contexto dos jogos de cavalaria, nos aspectos de espaço e movimento de folgança e também de deslocamento e itinerância régia. Os livros de caça eram aprovados pelos reis e eram usados como mecanismos de instruir ludicamente e promover o bom lazer, além de suscitar o domínio de espaços de privilégios e domesticação do meio natural, que fortaleceria a presença do monarca, no caso, D. João I.
A sexta e última sessão do livro, intitulada, Da magia à contemporaneidade: viagens no tempo e no espaço, que trabalha com a relação entre o medievo e os tempos atuais, fazendo a análise de Merlin e a magia, assim como se configura a visão do medievo, seus conceitos e estudiosos na contemporaneidade, mostrando que esse período tão rico traz ainda hoje aprendizado e relevância, como diz Hilário Franco Jr, no texto Somos Todos Idade Média, de 2008: “Assim, estudar História Medieval é tão legítimo quanto optar por qualquer outro período. (…). Neste sentido, pode ser estimulante mostrar que, mesmo no Brasil, a Idade Média, de certa forma, continua viva”6.
O artigo que inicia a sexta parte, de Átila Augusto Vilar de Almeida (ex-docente da UEPB/Devry João Pessoa e atualmente professor da UFAM/Scriptorium), propõe uma observação acerca de Merlin, suas representações contemporâneas e sua concepção no medievo especialmente nos textos de Robert de Boron, escritos entre os séculos XII e XIII, que tratavam do rei Artur e do Graal. Um Merlin, construído sob uma concepção cristã, embasando seu nascimento e origem de seus poderes mágicos sob a égide do cristianismo.
O artigo de João Batista da Silva Porto Junior (UNESA/UFF) encerra o livro, abordando o interesse do século XXI pelo medievo, e tal afirmativa se torna evidente quando se vê a produção cultural e acadêmica sobre essa temática, que o autor realiza, fazendo um apanhado de estudiosos medievalistas, assim como dos conceitos e suas ressignificações desta época.
Enfim, o livro é uma rica fonte de referências e um importante conjunto de informações sobre as diversas configurações de viagens, em suas varias formas, sendo físicas, ou simbólicas, concretas ou imaginárias, numa visita de nobres e mártires, homens e mulheres, que se aventuraram além das fronteiras, em busca de conhecimento, redenção ou legitimação.
Num contexto onde, cada vez mais, a ressignificação abre novos leques, e a reafirmação de períodos e temas relevantes são resistências contra os interditos do mundo atual, que tentam isolar, e reduzir os horizontes do conhecimento, num percurso que nem no medievo, apesar dos perigos, ameaças nas estradas e salteadores, enfrentou: o risco de cerceamento da liberdade de viajar através do saber e da ciência.
Notas
1. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2010.p.97
2. Schmitt, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2007, p.16.
3. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 351.
4. ZIE E, Adriana. “Para so versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII)”. In: FIDO A, Alexander e PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo Divino: Lenguage, Arte y Mística. Mirabilia. Revista de História Antiga e Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/J.W. Goethe-Universität Frankfurt/Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003, pp. 137-162. Disponível em: Mirabilia 2 (2002). www.revistamirabilia.com. Acesso em 28 de julho de 2019.
5. LOPES, Paulo. Os Livros de Viagens Medievais. In Medievalista. Lisboa: Ano 2. Nº 2, 2006. p 1-32.
6. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Somos todos da Idade Média. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Sabin, ano 3, n. 30, p. 58-60, mar. 2008. Disponível em: http://www.editoradobrasil.com.br/portal_educacional/fundamental2/projeto_apoema/pdf/textos_comple mentares/historia/7_ano/pah7_texto_complementar01.pdf; acesso em 20 de julho de 2019.
Elisângela Coelho Morais – Doutoranda PPGHIS-UFMA/Bolsista Capes. E-mail: elishst@hotmail.com
FRÓES, Vânia Leite; FREITAS, Edmar Checon de; GONÇALVES, Sinval Carlos Mello; COSER, Miriam Cabral; PEREIRA, Raquel Alvitos; CASTRO, Anna Carla Monteiro de. (Org.) Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2018. Resenha de: MORAIS, Elisângela Coelho. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.1, p. 275- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]
La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales | Lídia Raquel Miranda
Este livro é uma introdução geral à cultura medieval, particularmente à sua literatura, destinada aos que, estudantes ou leitores comuns, precisam conhecer os traços fundamentais dessa cultura. O livro está dividido em oito capítulos, cada um deles concluindo com exercícios de análise e interpretação prática: “Manos a obra” prevendo portanto o seu uso em sala de aula ou em grupos de estudo. A Professora Lídia Raquel Miranda, editora e inspiradora da obra, redigiu cinco capítulos, pelos quais começaremos a apresentação. O primeiro tem como título (tradução nossa):” O medievo em metáforas e apreciações: a cultura popular e a cultura acadêmica na encruzilhada”, e discute como formamos mentalmente nossas ideias acerca do passado. As recordações do passado pessoal e familiar são distintas das elaborações acadêmicas acerca da história das culturas e civilizações, mas existe certa contaminação das imagens comuns, por vezes perpassadas de ideologias, mesmo em sala de aula, por preconceitos e noções deturpadas. É o que explica que a palavra Idade Média seja rodeada de conotações estranhas, mesmo entre pessoas instruídas: teria sido uma sociedade violenta, pobre, sem lei, ou então exótica, vivendo na natureza… A historiadora desenvolve a seguir sua argumentação sobre qual seria o modo mais correto de abordar a Idade Média, já que ela se constitui como a matriz do presente. Aqui radica a questão que conclui o capítulo: porque estudar a Idade Média? Mais do que respostas prontas Lídia Raquel levanta reflexões, indica bibliografia variada, e propõe dois exercícios: um de análise de um texto de autoria de um medievalista da Universidade de Córdova (Argentina), e outro de interpretação de um texto de opereta medieval. A mesma historiadora aborda, no capítulo 5º, a tradição do amor cortês na cultura ocidental. A construção e consolidação da cristandade europeia deu-se através de sucessivas realizações e conflitos, e deu origem a uma cultura diferenciada regionalmente, mas que tinha na região central da Europa seu principal foco de criação de dispersão. Foi aí, na França, que se originou um dos complexos culturais mais significativos e quase onipresentes: o amor cortês. Dele a autora descreve e analisa as variantes e características. Destaque especial merece a obra de André Capelão – Os três livros do amor – extensamente descrito e comentado. No 6º capítulo Lídia Raquel trata da retórica medieval introduzindo o tema sob uma ampla teoria semiótica, e ao mesmo tempo atenta à importância prática e às variedades do discurso medieval; para ter em conta esses diversos aspectos a autora aborda questões da retórica clássica grega e romana, da exegese cristã e da pregação dos primeiros séculos, e da posterior arte de pregar, bem como os modelos do discurso escolástico. A retórica é característica da vida pública e na Grécia nasceu com as práticas jurídicas e políticas, passando depois às educacionais; pouco a pouco nela se distinguiram as partes da comunicação, suas operações e formas. Santo Agostinho recomendava que para o orador cristão é mais importante conhecer as Escrituras (exegese) do que usar os artifícios da oratória, princípio que orientou os sermões medievais; mas o capítulo lembra também os poetas laicos, particularmente os jograis, e sua influência na fala religiosa; menos poético, mais formal e estruturado, foi o discurso acadêmico, que conhecemos como escolástica. O capítulo conclui ressaltando a importância da retórica atual, e propondo vários exercícios baseados em texto literários medievais, e sobre o marketing político (coach). No capítulo 7º Lídia Raquel estuda o surgimento dos idiomas românicos, a partir do latim, sua vulgarização e evolução por influência de outros povos que circularam no continente e ilhas. Dois tipos de idiomas se formaram, em toda a Europa romanizada: os regionais, muito variados e mesclados, e o latim erudito, que permitia a comunicação literária entre as novas nações. A autora detém-se na descrição de como se formou a língua castelhana, estudando não só os processos filológicos, mas também os políticos, que conduziram ao predomínio do castelhano como idioma espanhol, tanto na Península como na América Hispânica. Algumas propostas de exercícios, e a bibliografia auxiliam o estudante a aprofundar as questões, nomeadamente a origem dos vocábulos e as ambiguidades fonéticas. O capítulo final (8º), ainda de autoria da organizadora da obra tem como título “Um estudante perdido no museu: à procura das cores e formas do Medioevo” (tradução nossa); propõe-se ser um guia para que o iniciante se oriente no meio dos significados estéticos medievais: as cores e as formas das imagens. Resume em poucos traços o tipo de arte das várias épocas e lugares – primeiros séculos, bizantina, arte das nações germânicas, arte nos mosteiros, românico, gótico. Feita esta apresentação o capítulo discute os valores humanos transmitidos pelas imagens, pelos espaços divididos e organizados. Assim, no que se refere ao simbolismo da cidade, encontra-se a sobreposição ou justaposição de quatro modelos: Jerusalém, Babilônia, Roma e Bizâncio; conforme as intenções e propósitos o mapa medieval, ou a ilustração, trazem um ou mais desses modelos, substituindo deste modo longas explicações. Outras metáforas e símbolos do espaço são explicadas: o castelo, o labirinto, o mar, a floresta, o jardim, a água… O imaginário medieval passa ainda pelas representações de Deus, de Jesus Cristo, e dos santos, e também do homem e do corpo humano em suas atividades. Lugar importante era dado aos animais (os bestiários) e também aos animais mitológicos. Nas propostas de atividades práticas do capítulo destaca-se a intenção de relacionar entre si as diversas artes medievais e a literatura.
Passamos aos três capítulos elaborados por autores convidados. Jorge Luís Ferrari faz um percurso histórico pela economia e pela sociedade medievais (cap. 2º) dos séculos XI ao XV. Em breves pinceladas Ferrari expõe a composição social do Império Romano, seus conflitos de classe, e as causas da decadência, onde o cristianismo se insere. Entretanto os germanos invadiram o mundo romano, e de toda essa mescla surge o sistema político, social e econômico do feudalismo. Este é descrito em sua estrutura e fundamentos ideológicos e em suas fases e modificações, inclusive pela introdução de técnicas agrícolas. Mecanismos e rotas de mercado explicam o apogeu dos séculos finais da Idade Média, mas a crise do século XIV –peste negra e Guerra dos Cem anos – decretaram o declínio da civilização europeia, enquanto o feudalismo estremecia, e o poder real se fortalecia com o apoio da burguesia. Helga Maria Lell, no capítulo (o 3º) sobre as instituições jurídicas e filosóficas da Idade Média, começa por expor o nascimento das instituições do direito romano para em seguida mostrar como elas se alteraram, ou completaram, com o advento do cristianismo. Essa evolução conduz ao estudo da filosofia, e ao seu uso a serviço da religião cristã. A autora dedica então algumas páginas a expor as doutrinas dos dois principais mestres da filosofia cristã – Agostinho e Tomás – feito o que volta à Hispânia Romana, para se deter na relação entre direito, filosofia e religião durante o domínio visigótico, e apenas lembrando a fase seguinte da Península: as peculiaridades da cultura árabe/muçulmana. É também de forma breve que a autora descreve os traços do direito canônico, da organização universitária, e da consolidação do direito hispânico, sobretudo em Castela. Uma linha de tempo, ou cronologia simplificada, permite abranger em síntese rápida os principais traços destacados no capítulo. O exercício final é bastante extenso e completo, baseado na Carta Puebla, ou ordenação de repovoamento, confrontando-a com um texto de Tomás de Aquino. O capítulo 4º é de autoria de David Rodríguez Chaves; nele se descreve e comenta a literatura irlandesa e inglesa medievais, destacando no título duas características: o sincretismo pagão/cristão, e o uso da alegoria e da metáfora. Da literatura irlandesa e sua continuidade bretã são expostos temas mais conhecidos: as viagens para Ocidente e o ciclo arturiano, mas também outro menos citado: o Sonho da Cruz. As viagens dos monges irlandeses, os imrama, eram um derivado da tradição celta da aventura espiritual incerta em direção ao desconhecido; elas são símbolos da busca da perfeição repassados de fantasias, de encontros com animais fabulosos, homens estranhos, gigantes, visões e miragens, fontes milagrosas, seres meio homens meio animais. O autor não diz, mas sugere, ou subentende, que as Viagens de Gulliver podem ser descendentes desta literatura, até porque seu autor, Jonathan Swift (1667-1745) era irlandês. A narrativa de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde utiliza outro topo de simbolismo para passar do relato pagão para o cristão: os símbolos referentes aos ciclos da natureza. Neles sobressai a passagem da natureza morta para o mundo dos vivos por ação do Sol (Gawain) e da Deusa Mãe. O caso do Sonho da Cruz é inverso: o evento cristão é visto pela cosmovisão pagã celto/germânica, em que a cruz é a árvore Yggdrasil, e Cristo é um chefe guerreiro. No conjunto da obra este capítulo é importante porque é o que mais clara e consistentemente relaciona o apogeu do cristianismo com seus antecedentes da Antiguidade Tardia e com as religiões proto-históricas. Essa interpretação, realizada em poucas páginas, foi possível não só pela habilidade e conhecimentos do autor mas também pelas características da cultura celta, que manteve até aos dias atuais uma capacidade de inserção no cristianismo que lhe deu durabilidade e pervivência. Os exercícios propostos em Mãos à obra dão sequência a essa ideia de interpenetração cultural, ao usar verbos como relacionar, mesclar, amalgamar, influir apontando não só para comparações de formas externas mas de temáticas, que evoluíram sem perder seu significado original.
O livro cumpre os seus objetivos de forma muito adequada e satisfatória: mostra a grande variedade de expressões da cultura medieval, contrapondo-se à ideia comum de uma Idade Média uniforme e monótona; destaca a vitalidade das realizações medievais, e sua criatividade; sugere e desperta curiosidade para futuros estudos de quem lê o livro. Talvez por necessidade pedagógica de se ater ao que é mais usualmente discutido, e ao que é mais diretamente influente na realidade sul-americana os autores optaram por não desenvolver algumas dessas variáveis, sobretudo as que dizem respeito à primeira fase da Idade Média – ou Alta Idade Média – e as que tratam da cultura medieval na Europa do Norte e do Leste. No entanto os diversos capítulos, e o conjunto da obra, oferecem suficientes indícios para que o estudante procure colmatar essas lacunas.
João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
MIRANDA, Lídia Raquel (Editora). La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales. Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, 2015. Resenha de: LUPI, João. “La Edad Media en capítulos” por João Lupi. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 136- 139, 2018. Acessar publicação original [DR]
Práticas Culturais e Identitárias: entre o Oriente e o Ocidente (Século V-XV) / Revista Mosaico / 2018
As vivências entre os mundos oriental / ocidental se constituem em um campo inesgotável e complexo de análise. Se por um lado as guerras aceleraram este distanciamento, por outro as aproximações foram várias; incentivadas pelas peregrinações e trocas culturais intensas, que garantiram a flexibilidade identitária e a elaboração de novos significados e parâmetros. O presente dossiê tem a pretensão de contribuir com esta discussão, englobando interpretações diversas, que contemplam a temática proposta. No primeiro artigo, de autoria de Janira Feliciano Pohlmann a autora reflete sobre a ambiguidade das noções de heresia e ortodoxia, no contexto do século IV, em que diferentes correntes cristãs da antiguidade romana pretendiam solidificar sua atuação em todo o Império. A autora procura responder à seguinte questão: Como os hinos compostos por Ambrósio de Milão, ajudaram a edificar a ortodoxia nicena? Na sequência Cynthia Maria Valente apresenta alguns momentos de disputas entre o Império Bizantino e o Reino Visigodo de Toledo, tendo por ponto de partida a expansão bélica bizantina no norte da África. Estas relações de antagonismo e disputas acirradas marcariam a história da região. O texto de Roseli Martins Tristão Maciel busca traçar um panorama acerca das diversas visões sobre a Lepra da antiguidade à Idade Média, com destaque para a construção teórica acerca da doença, presente em escritos de origem judaica e cristã.
Com destaque às aproximações identitárias entre oriente e ocidente, Elaine Cristina Senko Leme e Mariana Bonat Trevisan, discutem as concepções relativas à sexualidade entre estes espaços distintos. Para tanto, fazem um paralelo entre a obra do muçulmano Muhammad al-Nafzawi, Os Campos Perfumados, e o Leal Conselheiro, de autoria do rei português D. Duarte. Sobre a herança árabe na medicina e cozinha medieval aragonesa, Renato Toledo Amatuzzi discute as influências de alguns alimentos de origem árabe na dietética real, com destaque para o açúcar, frutas cítricas, as especiarias e o arroz, por meio das receitas culinárias e prescrições médicas. Ainda no âmbito da Baixa Idade Média Ibérica Hugo Rincon Azevedo, resgata as crônicas de Fernão Lopes e Gomes Zurara. Nelas apresenta evocações do poder régio por meio de cerimônias simbólicas de exaltação, consideradas fundamentais nas estratégias de legitimação da Casa de Avis no século XV. Usando método comparativo Célia Daniele Moreira de Souza, resgata obras consideradas como espelho de príncipes, que tiveram por função o aprimoramento da arte de governar. Escolhendo duas fontes de estilos diferentes, estas contribuem para aproximações discursivas possíveis, entre oriente e ocidente.
Fechando o dossiê o artigo de Juliana de Mello Moraes e Maria Cláudia de Faveri Luz discute o papel das denunciantes, motivações e conteúdo das acusações. Mapeando seu perfil sócio- ocupacional, bem como as relações de conflito que as envolviam, destacam também aquelas suscitadas / reforçadas pela presença do inquisidor.
Adriana Mocelim – Doutora e Mestre e em História pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em História pela UFPR. Professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: drikamocelim@yahoo.com.br
Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela UFPR. Docente efetiva na Universidade Federal de Goiás, Universidade Estadual de Goiás e na Pontifícia Universidade Católica (PUC- Goiás). E-mail: renatacristinanasc@gmail.com
MOCELIM, Adriana; NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.11, n.2, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Impressões da Idade Média | Ricardo da Costa
Ricardo da Costa é um medievalista de um espírito inquieto.[1] Tendo sido profissional da área da Música por vinte anos, cursou História no Rio de Janeiro, na Universidade Estácio de Sá [2], Mestrado e Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e depois realizou concurso para História Antiga e Medieval no Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde ingressou em 2000. Lá esteve nos departamentos de História, de Filosofia e atualmente é lotado no Departamento de Teoria da Arte e Música. Criou nos anos 90, quando a maioria de nós nem conhecia bem a Internet, uma homepage de estudos medievais que até hoje é uma referência nessas investigações e que contém documentos medievais traduzidos e textos publicados do autor em revistas especializadas no Brasil e no exterior [3]. Além disso, criou, com outros pesquisadores, em 2001, a revista Mirabilia, igualmente uma referência nas pesquisas sobre o Medievo e hoje pertencente ao Institut d’Estudis Medievals da Universitat Autònoma de Barcelona [4]. Costa fez três pósdoutorados internacionais [5] e também participa do corpo docente de doutorado internacional na área de Cultura Medieval [6].
Seu livro, Impressões na Idade Média, condensa artigos já foram publicados e contempla alguns textos inéditos. Ao ler a obra, lembrei das concepções de um importante historiador, discípulo do medievalista Jacques Le Goff (1924-2014), Jean Claude-Schmitt (1946-). De acordo com ele, no medievo o imaginário trata das relações dos homens entre si, com Deus e com o invisível. Em suas várias obras Schmitt explica que na Idade Média havia imagens visuais e mentais e que as imagens visuais muitas vezes ajudavam o espectador a se transportar para o mundo da imagem e se aproximar de Deus[7].
Podemos perceber este traço interessantíssimo no livro Impressões da Idade Média, de Ricardo da Costa. O autor possui o mérito de conseguir fazer com que seu leitor saia do “aqui e agora” e se transporte para o momento que os capítulos relatam. É, por exemplo, o caso do primeiro artigo do livro, que trata do luto na Antiguidade. Costa explica que as mulheres muitas vezes se machucavam e ele nos remete para a imagem 4 da obra (Mulheres aos prantos, eremitério de Santo André de Mahamud, Burgos, Espanha, séc. XIII). Ao ler a descrição do autor e observar a imagem, parece que nossa própria face sofre um calor e “sente” a ardência do ferimento do arranhão causado pelas viúvas sofredoras a si próprias.
O autor aproxima História e ficção e faz o leitor (cada um de nós), “viver” em outros momentos históricos, como se transportados numa verdadeira máquina do tempo, para outro momento histórico e para outros lugares. O leitor consegue viajar entusiasmado junto com o nosso autor para as paragens aonde ele nos conduz, de forma eficiente.
Ricardo da Costa escreve de forma agradável, o que nos recorda também a escrita de um importante medievalista brasileiro, que influenciou muitas gerações dos anos 80 até a atualidade: Hilário Franco Jr [8]. Este último, além de redigir de forma séria e ao mesmo tempo saborosa, também se volta para outros campos de interesse, como a História do Futebol. Costa é como ele, pois consegue abordar vários assuntos e temporalidades, sempre com o olhar central voltado para o seu objeto maior de interesse, a Idade Média.
Embora dialogue com a História, a Literatura, a Filosofia, a Arte e a Música – o livro é dividido nessas quatro áreas – Ricardo da Costa é, definitivamente, um historiador. Sua formação em História aparece na maneira de indagação dos documentos, bem como em seu olhar com relação ao momento histórico quando foi composto cada documento que analisa. O aspecto interdisciplinar do livro e da trajetória do autor seguem de perto os pressupostos da chamada Escola dos Annales, criada por Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) em 1929, e que propunha, desde a fundação da revista Annales, a necessidade de a História dialogar com outras Ciências Sociais [9], como Costa faz com muita propriedade.
Outro elemento relacionado a esse fazer historiográfico dos primeiros annalistes foi a ampliação do uso da documentação do historiador, que considera como documentos outras fontes, como as literárias e artísticas, e a preocupação com os “modos de sentir e pensar”, depois entendidos por Le Goff, da terceira geração deste grupo, como as mentalidades [10]. Na reformulação do conceito realizada por este autor, a mentalidade é substituída pelo “imaginário” que, segundo o medievalista francês, vai além do conceito de representação, com ligações com o ideológico e o simbólico [11]. Ricardo da Costa segue essa direção, adotada por Le Goff e Duby e também trilhada por Hilário Franco Jr., entre outros medievalistas, no Brasil.
Outro traço importante do livro, relacionado à herança dos Annales é a chamada longa duração [12]. Costa consegue perceber muitos elos entre a Antiguidade e o Medievo, ao contrário da noção de ruptura entre esses dois momentos históricos, além da noção de continuidade entre Idade Média e Moderna, concordando assim com pensamento de Le Goff, que nega uma ruptura no chamado “Renascimento” e defende que a Idade Média se estende até a Revolução Francesa [13].
Também importantíssimo para a Escola dos Annales e para Ricardo da Costa é a chamada História-problema, que responde a questionamentos com base nos documentos e na análise do pesquisador; e, muito relevante em todo livro é a preocupação em responder a questões do presente. Marc Bloch em sua obra magistral, a Apologia da História, já dizia que os seres humanos olham o passado buscando compreender o presente, sendo necessário desconfiar dos documentos, fazer questionamentos a eles, além do fato de que há documentos falsos e que mesmo estes precisam ser analisados, além do fato de que o historiador precisa “ouvir” os silêncios e lacunas das fontes. Ricardo da Costa, através da sensibilidade e do uso da Arte, procura se aproximar do passado para compreender a sociedade atual.
Outro mérito do autor é o fato de conseguir dialogar com diferentes momentos históricos. Com certeza um medievalista que consegue analisar e escrever sobre diferentes períodos da História e utilizando a Filosofia, a Arte e a Literatura em suas investigações, tem a possibilidade de oferecer uma visão mais ampla do momento central que analisa, a Idade Média já que ele mesmo possui um campo de visão mais vasto. Os artigos com os quais mais me identifiquei foram os que trataram da História e da Literatura, pela minha predileção natural às relações entre História e Literatura. Mas todo o conteúdo deste livro é interessante.
O livro é harmônico em sua organização. Quatro partes, com três capítulos cada, totalizando doze. Pensando no número três, lembramos que se refere à Trindade, a união das três pessoas divinas, de acordo com o Cristianismo. Coincidência ou uma alusão do autor à religiosidade cristã?
Na primeira parte do livro, intitulada História, Costa analisa o papel do luto, abordando os períodos Antigo e Medieval. A seguir discute a visão de Maomé tecida pelo filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) e a relação dos cristãos no medievo com este filósofo. Já no capítulo 3, relaciona História e Música, trabalhando ao mesmo tempo com As Bodas de Fígaro, de Mozart, a música medieval e a música clássica contemporânea. Sobre este capítulo, o autor afirma a importância da sensibilidade para “recriar o passado com as palavras do presente que se arrojam no futuro” (p. 60).
A segunda parte do livro, Literatura, inicia com uma análise da formação da língua portuguesa e sua relação com o castelhano e o catalão, discutindo as cantigas galego-portuguesas e outros documentos, além de mencionar autores como de diversos momentos históricos como o Conde D. Pedro (século XIII), o Padre Antônio Vieira (século XVII) e o poeta parnasiano Olavo Bilac (séculos XIX-XX). Costa salienta sobre como trabalhar esses diferentes momentos históricos, seguindo o pensamento do medievalista Georges Duby (1919-1996): “a primeira obrigação do historiador, sua principal atividade é a imaginação” (p. 70) (grifo nosso).
No capítulo seguinte, aborda as relações entre História e Literatura na novela de cavalaria Curial e Guelfa, produzida em catalão no século XV. De acordo com o autor, sua proposta foi analisar “os sentimentos dos personagens, suas expressões proverbiais e as citações mitológicas recorrentes ao longo da narrativa” (p. 119), pois o manuscrito incorpora elementos da cultura greco-romana. Além disso, segundo o autor o texto mostra sentimentos das relações feudo-vassálicas, como a amizade e a fraternidade entre os homens desenvolvida no contexto do ideal da cavalaria medieval (p. 121).
No capítulo que fecha a parte Literatura, Costa aborda o gênero epistolar, através das cartas de Bernardo de Claraval (1091-1153). Estas, de acordo com o autor, eram voltadas ao amor ao próximo e contribuíram para o desenvolvimento da história do “Eu”, da individualidade, iniciada na Idade Média Central. Essas cartas eram ditadas, voltadas para vários assuntos e públicos e, segundo Costa, S. Bernardo em seu tempo, mais de uma vez “lamentou […] a pouca recepção de suas palavras.” (p. 143). De acordo com Impressões da Idade Média, a conversão da consciência e o apelo a esta era realizada por Bernardo através do eu amoroso: “Sem o amor, o Eu nada é, nada consegue, pois suas palavras não frutificam, suas lágrimas são inutilmente vertidas.” (p. 145).
Na parte três, intitulada Filosofia, Costa inicia com as raízes clássicas da transcendência medieval, analisando a Filosofia Medieval como profundamente arraigada na da Idade Antiga, havendo uma continuidade entre ambas. Desta forma, aborda de que maneira filósofos gregos (Platão e Aristóteles) e romanos (Sêneca) refletiram sobre Deus. Segundo Costa, para Aristóteles (384-322 a. C.): “Deus existe como bem, e por isso é o Princípio do qual dependem o céu e a natureza” (p. 173-174), concepção depois retomada por Dante Alighieri (1265-1321) em sua obra prima, a Divina Comédia.
Seguindo as reflexões sobre a figura de Deus, o capítulo seguinte do livro trata da eternidade de Deus segundo Ramon Llull. Costa salienta que, em seu propósito de modificação da fé dos islâmicos, o pensador catalão criou uma filosofia de conversão ao catolicismo que possuía a herança das três religiões monoteístas (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo), além de absorver e recriar as meditações de Platão, Aristóteles, Agostinho, Anselmo entre outros, e de possuir analogias com as concepções de Bernardo de Claraval (p. 201).
O terceiro capítulo da parte Filosofia é dedicado ao pensamento do semiólogo Umberto Eco (1932-2016), com base em suas ideias tratadas em sua obra Arte e Beleza na Estética Medieval, que resgata o passado através da Arte e discute o simbolismo da luz (claritas) e a ideia estética do universo.
A última parte do livro, parte quatro, é dedicada à Arte. Primeiramente Costa analisa os camponeses, com base nos vitrais góticos das catedrais de Chartres e de Amiens no século XIII. Devido à invisibilidade desses grupos na maior parte das fontes escritas, é muito interessante encontrá-los em profusão nos documentos imagéticos analisados pelo autor. Costa destaca tanto a importância do trabalho do campesinato, estampado nas catedrais, como a importância destas construções e da arte gótica para os estudos de História Medieval.
Os dois últimos capítulos do livro tratam da figura do corpo medieval através da Arte [14]. O penúltimo discute as concepções defendidas por filósofos medievais em seus tratados como Hildegard de Bingen, João de Salisbury, Tomás de Aquino. Analisa o corpo em algumas imagens medievais e também as do corpo ser o cárcere da alma, o corpo como instrumento e também como desregramento.
O último texto do livro analisa o martírio de Thomas Beckett (c. 1118-1170) visto pela Arte, através de iluminuras, de vitrais do século XIII, da representação da morte daquele religioso estampada numa caixa do século XII e da análise do afresco da absidíola de Santa Maria de Terrasa, na Catalunha (1180), em comparação com relatos escritos. O capítulo aborda o corpo martirizado cujo assassinato foi encomendado pelo rei Henrique II (1133-1189), com quem o arcebispo se desentendeu, gerando a seguir essas representações que enfatizaram a lembrança do acontecimento, logo depois a canonização de Beckett e o arrependimento público do monarca.
Saliento sobre a publicação Impressões da Idade Média a qualidade do material de análise e da parte gráfica, com cada capítulo iniciando com uma letra diferente, espécie de letra gótica estilizada e uma faixa vertical com decoração floral, no canto esquerdo da página inicial de cada capítulo. Isso faz o livro lembrar um manuscrito medieval. Também é importante destacar a qualidade do Caderno de Imagens do livro, muito rico e com figuras em excelente resolução.
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Passo agora a mencionar algumas discordâncias com o autor de Impressões da Idade Média. Em primeiro lugar, o interessantíssimo artigo sobre Ramon Llull e a questão da conversão dos muçulmanos (cap. 2 na parte 1 do livro). Com certeza, concordo com Costa sobre o fato de que Llull realmente tinha por propósito central converter os islâmicos. No entanto, o fato de ter aprendido árabe para debater com eles e de ter estudado os escritos árabes e relacionados à religião islâmica mostram que Llull apresenta uma visão mais conciliadora que inclusive a adotada nos dias atuais nos conflitos entre religiões, de forma que eu suavizaria as críticas a este pensador no tocante à relação com o Islamismo e sigo a inclinação, defendida por alguns pesquisadores, de que Ramon Llull foi uma espécie de precursor do chamado diálogo inter-religioso [15]. Só o fato de ter ouvido o “outro”, ter debatido com ele e ter procurado compreender a sua cultura, para logicamente, converter o “infiel” ao Cristianismo, demonstram, a meu ver, um certo respeito do maiorquino com relação aos islâmicos.
Outro ponto a ser salientado é que Costa possui alguma tendência à hipérbole, em determinados momentos. É o caso, por exemplo, quando ele afirma tacitamente que “ninguém” estuda música no Brasil [16]. Claro que Costa tem razão, a Música deveria ser mais utilizada pelos historiadores. Mas o que dizer daqueles que trabalham com compositores nacionais em diversos momentos históricos: a Tropicália, Carmem Miranda, a chamada música de protesto no período da Ditadura Militar, o compositor Villa Lobos, entre outras manifestações? Mas já achando que Costa poderia questionar essas formas musicais e esses momentos históricos, aponto aqui o já mencionado e destacado historiador Jean-Claude Schmitt em favor dos meus argumentos. No seu recente livro, Les Rythmes au Moyen Âge (2016), premiado no ano de 2017 como melhor obra historiográfica na França [17], Schmitt cita nos agradecimentos um brasileiro (!), Eduardo Aubert, o que pode ser depreendido pelos estudos sobre a música medieval que o auxiliaram a compor uma parte de sua premiada obra, fornecendo alguns subsídios ao capítulo “Ritmo, Música, Imagens”. [18] De forma que, concordo com Ricardo da Costa que os estudos da Música são pouco realizados no Brasil mas, ao contrário da sua concepção, alguns historiadores brasileiros se dedicam com sucesso a esta área, como apontado pelo renomado historiador francês.
Um último elemento que me levou à inquietação com relação às afirmações do autor do livro são no tocante à educação brasileira na contemporaneidade (sobre isso, especialmente o capítulo 4, da parte Literatura). Para Costa, os alunos são, via de regra, desinteressados e aprendem pouco. Ora, se nós somos professores e os nossos alunos não têm interesse, nem aprendem, será que a culpa não é nossa? É importante destacar que Ricardo da Costa atua neste momento na Graduação em Artes Plásticas e em Artes Visuais (e também na Pós-Graduação), como já atuou na área de Filosofia e História, todos esses cursos da área de Licenciatura. Portanto, isso torna ainda mais “crítico” o nosso papel enquanto docentes, na medida em que cada aluno nosso será também professor e formador de uma quantidade enorme de outros alunos, todos esses que deveriam pensar criticamente sobre o nosso contexto histórico.
Diferentemente de Costa, tenho uma visão mais positiva com relação à educação e mesmo da educação no Brasil e do papel do professor da universidade e das escolas. Uso para fundamentar meus argumentos, o próprio texto de Ricardo da Costa (cap. 4) no qual mostra que desde a Antiguidade, os docentes e filósofos se queixam do desinteresse dos alunos, da decadência moral da sociedade, entre outros incômodos.
Seguem aqui as palavras de Petrônio na obra Satyricon (século I), citadas por Costa no capítulo 4 do seu livro: “Mergulhados em vinhos e prostitutas, não ousamos sequer conhecer as artes apropriadas [….] ensinamos e aprendemos apenas vícios. […] Onde está o caminho esmeradíssimo da Sabedoria?” (p. 69) (grifos nossos). Sinal de que o mundo sofre de problemas morais, corrupção, entre outros, há muito tempo, e que esses males já chamavam a atenção dos educadores desde a Antiguidade. E nem por isso as pessoas deixaram de aprender.
Neste sentido, cito, por exemplo, Ramon Llull e toda a sua preocupação em transmitir valores positivos a Domingos, seu filho, em obra traduzida do catalão ao português por Ricardo da Costa, a Doutrina para Crianças. Neste escrito, Llull pretende através da educação ensinar seu rebento a seguir as virtudes e evitar os vícios, de forma a viver bem em sociedade e atingir a salvação na outra vida [19]. Assim como Ramon Llull ensinava Domingos, os professores nas escolas e nas universidades também têm a função de ensinar e/ou auxiliar os seus alunos a aprenderem ou “despertarem” para o conhecimento e para valores morais positivos: a ética, a bondade, a honestidade, entre outros.
A crise de valores é um problema mundial da atualidade que também atinge a educação. Neste sentido e particularmente na realidade brasileira, a competição com os recursos eletrônicos – Internet, celular e particularmente o whatsapp, bem como outras formas de manifestação da mídia, fazem com que as nossas aulas sejam vistas muitas vezes como maçantes pelos nossos alunos universitários (e a mesma coisa se dá no ensino básico), motivo pelo qual o docente precisa tentar criar e “inventar” estratégias que levem os alunos a se interessarem pelos estudos e pela História, pela Arte, pela Literatura, pela Filosofia, entre outros campos do conhecimento.
O papel que Ricardo da Costa possui com a sua homepage “História Medieval” e com a revista Mirabilia representam uma contribuição importantíssima para a educação e difusão da História Medieval no Brasil e em outros países. É por isso que podemos dizer que Costa por vezes é um pouco exagerado (lembro da canção do músico brasileiro Cazuza) e que, por vezes, suas ações como docente e pesquisador contradizem a visão pessimista que tem sobre a educação no Brasil.
De minha parte, sou uma otimista. Recentemente, uma jovem do Maranhão, Aldina Melo, filha de quebradeira de coco e que enfrentou inúmeras dificuldades para chegar ao ensino superior, mas acabou conseguindo, obteve prêmio de melhor dissertação (referente à turma de 2015) no Mestrado em História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde leciono20, e foi também aprovada em primeiro lugar (2018) no ingresso ao Doutorado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Sinal de que, para muitos brasileiros, se tiverem oportunidades, irão estudar e conquistar um lugar melhor no mundo.
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Seja como for, o certo é que não há como ler o livro Impressões na Idade Média sem sentir um questionamento, uma inquietação, o que é positivo, já que a função da História e do historiador é colocar problemas, procurar responder aos questionamentos para compreender a sociedade do presente e buscar um mundo melhor para os nossos filhos, netos e para as futuras gerações.
Caso deixemos de lado pequenos detalhes quando consideramos que Costa exagera um pouco em algumas concepções, poderemos desfrutar de um livro saboroso, erudito, bem escrito e que contribui com os estudos medievais e sua relação com a contemporaneidade.
Notas
1. Graduada, Mestre e Doutora em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente de História do município do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 2001. É professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) desde 2003, atuando, no momento, como docente efetiva na PósGraduação em História na mesma instituição e também na Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Estágio Pós-Doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) junto ao GAHOM (Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médieval) no período de 2013-2014. É uma das coordenadoras dos laboratórios de pesquisa Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval, e atua como editora-chefe da revista Brathair: http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair e uma das diretoras da revista Mirabilia https://www.revistamirabilia.com/ .
Conheci Ricardo da Costa em 1996 junto ao laboratório Scriptorium, quando do meu ingresso no Mestrado em História, sob a supervisão de Vânia L. Fróes, com quem Costa também realizou o Mestrado, depois publicado em livro (1998). No Doutorado, realizou bolsa sanduíche na Alemanha (1999) e concluiu a tese sob a supervisão de Guilherme Pereira das Neves. Ricardo da Costa e eu produzimos até o momento três artigos acadêmicos juntos (em 2000, 2001 e 2008). Também criamos a revista Mirabilia em 2001, com Moisés Romanazzi Tôrres. O nome da revista, Mirabilia em latim ou “coisas maravilhosas” em português, foi escolhido por mim, em referência ao termo “maravilha”, muito recorrente na novela de cavalaria do século XIII A Demanda do Santo Graal, uma das fontes literárias de minha predileção. Costa e eu realizamos várias parcerias até o presente como, por exemplo, a edição 2018.1, v. 26, da revista Mirabilia, coordenada por nós dois, cuja temática é Sociedade e Cultura em Portugal, com artigos de docentes nacionais e internacionais.
2. Destaca-se o apoio da avó do autor, América da Silveira Sapha, para que ele realizasse este curso em paralelo à sua atividade de músico.
3. Trata-se da homepage “Idade Média”: http://www.ricardocosta.com /
4. A Mirabilia atualmente consiste em quatro revistas em uma: a Mirabilia, a Mirablia Medicinae, Mirabilia Ars e Mirabilia Trans. Todas as quatro se encontram disponíveis na mesma homepage: https://www.revistamirabilia.com /
5. Nas áreas de História Medieval, Filosofia Medieval e Literatura Medieval, na Universitat Internacional de Catalunya (UIC), Barcelona, 2003 e 2005 e Universitat d’Alacant, (UA), em 2017.
6. Programa de Doctorado “Transferencias Interculturales e Históricas en la Europa Medieval Mediterránea” da Facultade de Filosofia e Letras da Universitat d’Alacant (UA-Espanha).
7. Sobre o conceito de imagem para Schmitt, ver SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. São Paulo: EDUSC, 2007.
8. Dentre os numerosos livros de Hilário Franco Jr., cito alguns: A Idade Média, Nascimento do Ocidente. 2ª Ed., São Paulo: Brasiliense, 2001; As Utopias Medievais. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1992 (a ser relançado, em edição revista e ampliada em 2018); Cocanha, a História de um País Imaginário. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.
9. Sobre os pressupostos desses historiadores, ver FEBVRE, L. Combates pela História. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1989; BURKE, P. A História dos Annales. A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1991; REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e o Tempo Histórico. A contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Annablume, 2008.
10. LE GOFF, Jacques. LE GOFF, Jacques. “As Mentalidades: Uma História Ambígua”. In: História: Novos Objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 68-83.
11. Sobre o conceito de imagem para Le Goff, ver LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 11-12.
12. BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1989; BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Época de Felipe II. Extraído do Prefácio. In: Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 13-16.
13. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; LE GOFF, Jacques. A História pode ser dividida em pedaços? São Paulo: Ed. UNESP, 2015.
14. Lembremos que o tema do corpo também foi caro a Le Goff no seu livro Historia do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
15. O próprio Ricardo da Costa já defendeu essa concepção de diálogo inter-religioso no passado. Ver: COSTA, Ricardo; PARDO PASTOR, Jordi. Ramon Llull (1232-1316) e o diálogo inter-religioso. Cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval. O Livro dos Gentio e dos três sábios e a Vikuah de Nahmânides. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes e LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro, UERJ, 2004. Sobre o diálogo inter-religioso, cf, entre outros: FIDORA, Alexander. Raimundo Lúlio perante a crítica atual ao diálogo inter-religioso: A Arte luliana como proposta para uma “Filosofia das religiões” (2001). Publicação em espanhol em: Revista Española de Filosofia Medieval, 10, 2003, p. 227-243; MAYER, Annemarie C. Ramon Llull y el diálogo indispensable. Quaderns de la Mediterrània 14, 2010.
16. Segundo Costa (2017, p. 45, nt. 5): “Infelizmente, em nosso país, os historiadores ainda não ‘descobriram’ a Música como tema histórico”.
17. Uma síntese desta obra está na seguinte resenha: ZIERER, Adriana. Resenha de Les Rythmes au Moyen Âge, de Jean-Claude Schmitt. In: Mirabilia. Edição Sociedade e Cultura em Portugal. Org. por Adriana Zierer e Ricardo da Costa, v. 26, 2018, v. 1, p. 222-233.
18. Trata-se do estudo de Eduardo Aubert em co-autoria com Jean-Claude Bonne: BONNE, J.C; AUBERT, E.H. Quand voir fait chanter. Images et neumes dans le tonaire du ms. BnF, lat. 1118: entre performance et performativité. In: DIERKENS, A.; BARTHOLEYNS, G.; GOLSENNE, T. (Dir.). La Performance des Images. Bruxelles: Université Livre de Bruxelles, 2009, p. 225-240. (Obra citada por Schmitt, 2016, p. 117). Aubert consta nos agradecimentos do livro de Schmitt, 2016, p. 691.
19. COSTA, Ricardo. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull. In: COSTA, R. Ensaios de História Medieval. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. 154-175. Uma dissertação recente abordando esta obra de Llull e a sua importância na formação do ser humano ideal foi realizada por Natasha Mateus: MATEUS, N. Ensino de História Medieval: A obra Doutrina para Crianças, de Ramon Llull e a produção do paradidático “Ramon Llull e a Idade Média”. 246 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2018. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Natasha-Disserta%C3%A7%C3%A3o-com-as-assinaturas-da-Banca..pdf ; acesso em 05/07/2018.
20. A premiação ocorreu em abril de 2018. A dissertação se encontra disponível para consulta. MELO, Aldina. A África na Sala de Aula. A Reinvenção dos Zulus. 206 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2017. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Final-Aldina-Melo-PARA-DEPOSITO-1.pdf ; acesso em 05/07/2018.
Referências
BLOCH, Marc. A Apologia da História ou o Ofício do Históriador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BONNE, Jean-Claude; AUBERT, Eduardo H. Quand voir fait chanter. Images et neumes dans le tonaire du ms. BnF, lat. 1118: entre performance et performativité. In: DIERKENS, A.; BARTHOLEYNS, G.; GOLSENNE, T. (Dir.). La Performance des Images. Bruxelles: Université Livre de Bruxelles, 2009, p. 225- 240.
BURKE, P. A História dos Annales. A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.
COSTA, Ricardo; PARDO PASTOR, Jordi. Ramon Llull (1232-1316) e o diálogo interreligioso. Cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval. O Livro dos Gentio e dos três sábios e a Vikuah de Nahmânides. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes; LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro, UERJ, 2004. COSTA, Ricardo. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull. In: COSTA, R. Ensaios de História Medieval. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. 154-175. FRANCO JR., Hilário. A Idade Média, Nascimento do Ocidente. 2ª Ed., São Paulo: Brasiliense, 2001.
FRANCO JR. As Utopias Medievais. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1992 (a ser relançado, em edição revista e ampliada em 2018).
FRANCO JR., Hilário. Cocanha, a História de um País Imaginário. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1989.
FIDORA, Alexander. Raimundo Lúlio perante a crítica atual ao diálogo inter-religioso: A Arte luliana como proposta para uma “Filosofia das religiões” (2001). Disponível em: http://www.ramonllull.net/sw_comvirt/index.php?option=com_content&view=artic le&id=164%3Araimundo-lulio-perante-a-critica-atual-ao-dialogo-interreligioso&catid=50%3Adialogo-inter-religioso&Itemid=79&lang=germany; acesso em 04/04/2018; Publicação em espanhol em: Revista Española de Filosofia Medieval, 10, 2003, p. 227-243. Idade Média. Homepage de Ricardo da Costa: http://www.ricardocosta.com /; acesso em 05/07/2018. MAYER, Annemarie C. Ramon Llull y el diálogo indispensable. Quaderns de la Mediterrània 14, 2010.
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MELO, Aldina. A África na Sala de Aula. A Reinvenção dos Zulus. 206 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2017. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Final-Aldina-Melo-PARADEPOSITO-1.pdf ; acesso em 05/07/2018.
REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e o Tempo Histórico. A contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Annablume, 2008.
SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. São Paulo: EDUSC, 2008.
SCHMITT, Jean-Claude. Les Rythmes au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 2016.
ZIERER, Adriana. Resenha de Les Rythmes au Moyen Âge, de Jean-Claude Schmitt. In: Mirabilia. Edição Sociedade e Cultura em Portugal. Org. por Adriana Zierer e Ricardo da Costa, Barcelona, (UAB), v. 26, 2018, jan-jun, p. 222-233. Disponível em: https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/14.pdf ; acesso em 15/07/2018.
Adriana Zierer – Graduada, Mestre e Doutora em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente de História do município do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 2001. Docente UEMA-PPGHIST/UFMA-PPGHIS. E-mail: adrianazierer@gmail.com
COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural, 2017. Resenha de: ZIERER, Adriana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.1, p. 260 – 272, 2018. Acessar publicação original [DR]
Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff
Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.
Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo. Leia Mais
A Idade Média e o Dinheiro – ensaio de antropologia histórica | Jacques Le Goff
O último livro do historiador francês Jacques Le Goff foi publicado originalmente em 2010. Traduzido por Marcos de Castro, foi publicado no Brasil em 2014. “A Idade Média e o Dinheiro” não deve ser interpretado como uma obra que contém uma reviravolta na historiografia de Le Goff, mas como uma síntese das ideias que nortearam o autor em sua carreira acadêmica. Desta forma, os elementos que compuseram seus traços característicos se expressam na obra de forma bem clara: o interesse em problemas e questões de longa duração; a proeminência e o impacto das questões subjetivas ou mentais; a ênfase nas instituições e transformações urbanas; a relação entre a mentalidade e a religião; as ordens eclesiásticas; a relação com o dinheiro e o tempo (a partir da usura); uma Idade Média de longa duração e sua possível relação com o capitalismo.
Conforme o subtítulo anuncia, sua preocupação é estabelecer um ‘ensaio de antropologia histórica’. Desta forma, compreende-se que a obra priorize os elementos culturais (ou mentais) do significado do dinheiro para o medievo. Isso não significa, no entanto, que a materialidade seja totalmente descartada na obra. A forma como esta é trabalhada, contudo, ficará mais clara ao longo da exposição da obra. Leia Mais
O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica | Aline Dias da Silveira
“O objetivo desta obra – diz a Autora, p.18 – é identificar a estrutura simbólica das narrativas feéricas, comparando-a com a estrutura ritualística e simbólica dos pactos vassálico e matrimonial”. Nesta frase concisa encontramos o núcleo fundamental do trabalho: como é que as narrativas medievais sobre fadas (e feiticeiras) revelam a estrutura do feudalismo – ou, mais exatamente: do casamento na sociedade feudal, mostrado através dos seus ritos e imagens. O estudo de Aline Silveira é um trabalho de análise e interpretação do Livro de Linhagens, escrito na década de 1340, por Dom Pedro, Conde de Barcelos (c.1285-1354). Filho bastardo do rei Dom Diniz (1279-1325), e de Glória Anes, (natural de Torres Vedras), D. Pedro viveu num reino que pela primeira vez estava livre de guerras com os sarracenos, e governado por um monarca educado, culto, e bom administrador: a D. Diniz se devem, entre outras obras que permanecem até hoje, a plantação do pinhal de Leiria (que forneceu madeira para caravelas e naus), a fundação da Universidade de Lisboa/Coimbra, e a criação das Festas do Divino Espírito Santo, além de ter sido compositor de peças de poesia e música na Corte.
Educado nesse meio por sua madrasta, a Rainha Santa Isabel, irmã do reio de Aragão, D. Pedro desenvolveu importante atividade literária, reunindo e compondo poesias trovadorescas, e também se lhe atribui, além do Livro de Linhagens, uma Crônica de Espanha (1344) – Espanha não designava então o país ainda inexistente, mas a Hispania, lembrança dos períodos romano e visigótico, quando a Península Ibérica estava unificada. D. Pedro, que se desentendeu com o pai e algum tempo viveu em Castela, interessava-se especialmente por questões de legitimidade feudal e genealógica, razão pela qual se colocou ao lado da Rainha Santa, como intermediário nas disputas entre seu meio-irmão Afonso (primogênito e herdeiro do reino) e o rei seu pai. Temos assim o esboço do porquê de alguns traços da personalidade daquele que, no Livro de Linhagens, faz remontar os laços de fidelidade e ascendência feudal aos arquétipos e às fontes da mitologia, e da religiosidade popular. O que Aline Silveira faz no seu livro é trazer à tona e desvendar essas ligações de certo modo ocultas pelas metáforas e lendas, particularmente as que mostram o poder feminino, que o patriarcalismo feudal e guerreiro parece minimizar, mas que a literatura apresenta disfarçadas de fadas e feiticeiras, tipificadas na Dama Pé de Cabra. Esta mulher, filha de um ser meio humano (de quem herdara os pés ungulados), vivia na Biscaia (Euzkadi, País Basco, ou Vasco) e casou com Diego Lopes de Haro, da mais importante família basca. Com ele teve filhos, e iniciou uma dinastia, que deste modo legitimou sua origem não só numa lenda, mas numa sucessão de ligações míticas que fazem remontar a família Haro a antepassados préhistóricos e, na interpretação da Autora, a concepções fundamentais da visão histórica e mítica do mundo.
Ampliando seu comentário pela comparação com outras narrativas lendárias medievais – a Melusina de João de Arras, e o romance de Froiam da Galiza com Marinha – a interpretação busca raízes na cultura celta, e procura ainda contatos com outras mitologias, particularmente a grega. No Livro de Linhagens há outra idéia norteadora, complementar à anterior – que O Pacto das Fadas explica e comenta: o reforço dos laços feudais de vassalagem pelo parentesco e o casamento; neste caso as “fadas“ são as esposas, aquelas que fazem a ligação entre duas casas nobres, ou reais. A esse propósito a Autora discute a opinião de historiadores portugueses que consideram o feudalismo em Portugal diferente do “modelo francês”.
Ora, na realidade, se observarmos bem a Europa medieval, o feudalismo francês (restrito ao norte da França), só foi modelo porque era mais central, mais influente na época, e porque os historiadores franceses do século XIX foram mais competentes para analisá-lo e propô-lo como modelo; mas de fato cada reino, e cada época, teve suas peculiaridades. Mesmo que, ao tempo de D. Diniz, o feudalismo em Portugal já fosse distinto da estrutura política do reino quando D. Afonso Henrique (1109-1185) liderou a independência, é preciso também ter em conta que o feudalismo, com seus laços de vassalagem e relações de poder, não é só uma estrutura social, política, econômica e guerreira, mas, como a Autora muito bem salienta, é uma maneira de pensar. E é esse pensar que Aline procura descobrir no Conde D. Pedro de Barcelos, o qual entendia que a sociedade se mantinha coesa não só pelas relações de poder, mas também pelas de amor e amizade. Talvez D. Pedro apelasse para esta questão porque estava presenciando mudanças perceptíveis, embora ainda não definitivas: pelos casamentos reais Portugal estava recebendo influências diretas de Castela (de onde era sua avó Beatriz), de Aragão (então a maior potência marítima do Mediterrâneo ocidental) e da França: seu avô. D. Afonso III (1210-1279), fora casado (1238) com Dona Matilde condessa de Bolonha, até assumir o trono de Portugal após a deposição ( 1247) de seu irmão Sancho II, que se desentendera com o clero e a nobreza; no reinado de Afonso III Portugal completou a sua formação territorial, pela conquista definitiva do Algarve (1249), e, ao contrário de seu irmão, o rei conseguiu conter em parte o poder da nobreza nas Cortes de Leiria, e pelas inquirições contra os abusos da nobreza e do clero; se lembrarmos que o pai de D. Pedro, além das realizações que anotamos acima, afrontou o poder da Igreja em diversas ocasiões, mas principalmente ao criar a Ordem de Aviz, na qual recebeu os monges templários condenados e expulsos pelo Papa e pelo rei de França, veremos os indícios de uma concentração do poder real, que se tornará forte na dinastia fundada (1385) por D. João I, Mestre de Aviz.
Finalmente Aline Silveira relaciona a fada (a Dama) com o nobre (o Conde), e o arquétipo mítico com o imaginário social, através de um pano de fundo constituído pelo mito das origens. É o mito, resultado narrativo das idéias presentes no imaginário fundamental e permanente da humanidade, mas realizado em cada cultura regional, que dá sentido à relação entre a fada e o nobre, e portanto à solidez da estrutura social da nobreza. Neste ponto a historiadora amplia e aprofunda o que já estava fazendo desde o início, ao reconhecer a insuficiência da História, como ciência humana narrativa e factual, para se explicar a si mesma, e portanto recorre a outras ciências, como Antropologia, Ciências da Religião, Crítica literária e Psicologia, para descobrir o que há de mais íntimo na humanidade, que faz da história humana regional e local um reflexo da existência humana como um todo. Esta combinação de ideias diversas a Autora realiza com detalhe, perfeição e competência. E nesse pano de fundo ela mostra que o imaginário vassálico era comum não só a toda a Europa, mas se estendia além Europa – ou de lá provinha. Resta perguntar aos jovens historiadores: essas representações sociais, esses arquétipos tipificados e concretizados na Ibéria, que prolongações tiveram na América Latina?
João Lupi – Professor Voluntário do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
SILVEIRA, Aline Dias da. O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica. Apresentação de José Rivair Macedo. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.1, p. 146-149, 2014. Acessar publicação original [DR]
Churches in Early Medieval Ireland: Architecture, Ritual and Memory | Tomás Ó Carragáin
This book emanates from a doctoral thesis completed in 2002 by Tomás Ó Carragáin. He is currently a lecturer at the Department of Archaeology, University College Cork, Ireland. It is a very elegant edition, printed on large pages, it literally looks like a History of Art book due to the many beautiful photographs it contains of the early Irish churches and their surrounding landscapes. It would be a suitable adornment for any coffee table. The contents can equally interest archaeologists, historians, historians of art, and even well informed tour guides in Ireland who want to gather information about particular sites. Its Appendix provides a descriptive list of Irish PreRomanesque Churches and its bibliography is very useful for both historians and archaeologists of early Christian Ireland. The fact that the notes have been published as endnotes rather than footnotes, while enhancing the visual attractiveness of the text, renders them rather unhelpful to the reader; particularly because the full reference of the works are not given in the notes. Consequently, every time the reader wants to check a reference it is necessary to look up the notes at the end and the bibliography, turning a huge volume of large heavy pages in the process.
Ó Carragáin’s study is about the pre-Romanesque churches built in Ireland from the arrival of Christianity in the island in the fifth century to the early stages of the Romanesque style around 1100 [1]. Therefore, far from being simply an exhaustive descriptive work of churches and monasteries and their respective architectures, or of excavation reports, it provides some interesting and updated analysis of the usage of those religious sites, analysing its social and political associations. The chosen structure for the book is both chronological and thematic. Consequently, I found it easy to follow the arguments. In the process, the author has crafted a fruitful balance between the material culture and the textual historical evidence.
In the first part of his Introduction he locates his work within a historiographical framework in which he discusses previous writings and interpretations of these churches’ architectures. An interesting aspect of this work derives from how he positioned himself in the middle-ground when discussing whether Ireland was an odd place in the Middle Ages or whether it was completely in line with other European countries and its movements [2], in terms of its art and architecture style, aspects of Christianity and it’s politics. He concluded that Ireland is not completely different from the rest of Western Europe but as differences are realities ‘they are often more revealing than similarities’ (p. 8). I do not agree entirely with that sentence, as such a determination depends on the focus and aims of a given piece of research. In many cases the study of similarities could provide lots of interesting insights. Even though, in this particular book we are offered an equilibrated use of comparative observations between Ireland, England and the Continent identifying both disparities and similarities.
In his discussion on early Irish Church organization, he has tended to agree with recent studies which argue that the Church did not suffer cycles of corruption and reform but experienced continuity throughout the period. This perspective departs from an older orthodoxy that the Irish Church in Patrick’s time was based on an episcopal model which was superseded by a monastic model. He agrees that the highest rank of churches were multi-functional and that the Irish church settlements, especially the bigger ones, such as Clonmacnoise, Glendalough, Kildare, and Armagh, were in fact episcopal-monastic centres rather than purely monasteries [3], thus both bishops and abbots were important figures in these contexts (p. 9).
In chapter one, “Opus Scoticum: Churches of Timber, Turf and Wattle”, (p. 15‒47), he analyses the architectural structure of the churches made with these materials. Most of the churches built before c. 900 were probably not made of stone, and certainly after this period these materials were used as well as stone to build churches. Ó Carragáin has acknowledged that little is known archaeologically about them. His argument in that informs the entire book. It is that some of these churches were modelled according to a Romano-British style; while others were designed to allude to the tomb of Christ in Jerusalem. So, they were read by the Irish literati [4] as representations of the Jerusalem temple and were associated with their founding saints. Subsequently, its quadrangular form was monumentalized by the Irish who in later periods keep this style relinquishing any search for other complex types of buildings.
The very short chapter two, “Drystone Churches and Regional Identity in Corcu Duibne”, (p. 48‒55), as the title suggests, is about the drystone type of churches which are only found in the south-west area of Ireland, (facing the Atlantic), area of Co. Kerry, as shows on maps 1 and 4. They date from the eight century onwards and are not found elsewhere. It used to be believed that they were a step in an evolutionary typology of the double-vaulted roof, a theory disregarded by Ó Carragáin. He suggests that 86% of such churches are distributed on the Iveragh peninsula and western end of the Dingle peninsula, regions which formed the early medieval kingdom or Corcu Duibne. The other 14% is spread around the Corcu Duibne’s domains. He concludes that those churches positioned within the Corcu Duibne area should not be understood as a material strategy of differentiation representing their association with St. Brendan the Navigator’s cult, because the Corcu Duibne geographical area was dedicated to a number of other saints. Nevertheless, the other sparsely located churches may be evidence of St. Brendan’s cult expanding beyond the immediate Corcu Duibne area. Though his interpretation is based on some previous works but the claim is underdeveloped, while this may be because there are not enough archaeological or textual sources to support the claim, thus it remains rather speculative rather than warranted by available evidence.
Chapter Three, “Relics and Romanitas: Mortared Stone Churches to c. 900”, (p. 57‒85), is about the important sites where mortared stone churches were built during the eighth and ninth centuries while most of the other churches were still being built with other materials. They constitute symbolic architecture and therefore, symbolic places. For the sacrality of those sites he returns to some discussions developed by some scholars, especially by Charles Doherty and Nicholas Aitchison whose work avails of concepts from comparative religion. His argument is that the first large stone church built in the eight century in Armagh, was associated with the ideal of Romanitas [5], as an imitatio Romae. While the other early stone churches built at other important religious centres, Iona and Clonmacnoise, were inspired by biblical cities of refuge, such as, Jerusalem, and in particular with the Jerusalem temple, and with the Holy Sepulchre Complex, carrying the ideal of imitatio Hierusalem. In these sites a novelty was also built, little shrine-chapels, where the remains of the dead founder saints were deposited. They were usually built on top of the original tombs of the saints, but some saint’s remains may had been transferred to shrine-chapels. From a political perspective, it appears that the construction of these stone churches had been supported by local kings thus contributing to the rivalries among these churches and their prominence in Ireland. The positioning of these sites on the landscape and their architecture carried cosmological value, as centres of the world, or microcosms.
In the following chapter, “Pre-romanesque churches of mortared stone, circa 900‒1130: form, chronology, patronage”, (p. 87‒142), Ó Carragáin has described their form, their distribution in the country and the involvement of kings in commissioning the earlier ones. In Chapter 5 “Architecture and Memory”, (p. 143‒166), he discusses the concept of social memory and analysed it in the Irish context in order to comprehend the conservative form of these churches. Tension between continuity and change within a building tradition is analysed and associated with the disconnection between immutable form and mutating social context, revealing conscious manipulation of the past in order to suit the needs of the present. In the construction of this argument he accessed a study of a Chinese village in the second half of the twentieth century, as a mode of comparison. Within this logic he observes a preoccupation with the past as expressed through the medium of medieval art. He highlights that from c. 900 onwards Ireland was suffering political, economic, social and military changes which stimulated among the Irish literati a desire to preserve the past, and this was reflected in the conservatism of the churches and the style in which they were built by the early saints. He affirms that “like the historical writing of the tenth to twelfth centuries, the stone churches were intended to make the past continuous with the present”, (p. 149).
“Architecture and Ritual” is the theme of the chapter 6, (p. 167‒214) and here the author searches the material for evidence of the nexus between the architecture of these sites and the ritual enacted on them. As part of this process, he attempts to observe how Mass, consecration ceremonies, baptism, and processions were celebrated. In Chapter 7, “Sacred cities and pastoral centre after 900”, (p. 215‒234), he continues to explore the usage and function of these churches. He opens the chapter by returning to the discussion as to whether or not the big church groups such as Armagh and Clonmacnoise were simply monasteries or cities. In Latin hagiography, the Irish scholars have referred to these sites as civitates, locus and monasterium, (p. 216). Based on Doherty’s and Bradley’s arguments, Ó Carragáin seems to agree that these ecclesiastical sites experienced substantial nucleation. Here the author returns to Cólman Etchingham’s argument that these sites varied in function and affirms that the archaeological evidence supports it. The early Irish churches, although all built in the same quadrangular format, served different purposes. According to him, the term “monastery” is not the most useful one to describe these sites, and posits that “episcopal-monastic centres” or simply civitas may more accurately reflect their multiplicity of functions (p. 216‒217). Although he explains the particularity of what the term civitas meant for the Irish, I consider that since this term is often associated with the Roman concept and structure of civitas and the episcopal centres later developed in them, the term “episcopal-monastic centres” seems most appropriated for the Irish context.
The study of pastoral care in Ireland is a field which continues to require further study and this work is an exciting contribution to the subject. A very interesting argument developed in this seventh chapter is that church sizes cannot be directly associated with the number of people frequenting them, as many factors may have influenced the size of the churches built in the early middle ages. Therefore, little churches may have had a considerable amount of people sharing the space, while bigger churches may have not been filled with people. This means that it is hard to know with certainty the number of dependents of a given church.[6] Therefore, he argues, the amount of small churches built in Ireland may indicate that a larger number of lay people had access to pastoral care than had been thought previously. Because it was believed that only monasteries provided pastoral care, it used to be supposed that the majority of society did not have access to it. However, he argues differently that “because the power structures in Ireland were relatively diffused, a higher proportion of the lay population were entitled to found their own churches”, (p. 226). Consequently, he agrees with recent historians such as Richard Sharpe that, because of this, Ireland may have experienced in the early Middle Ages one of the best structures of pastoral provision in Northern Europe (Blair, J.; Sharpe, R. 1992: 109).
In chapter 8, “Architecture and Politics: Dublin and Glendalough around 1100” (p. 235‒253) he analyses the building of churches in these two sites with Romanesque influences. In this and the following chapter, “Relics and Recluses: Double-vaulted Churches around 1100” (p. 255‒291), he develops a model for the relationship between three phenomenon: architecture, politics and reform. These new style of churches were used to fulfil certain functions, but they were still associated with previous church models discussed throughout the book and also with the past, but with a particular view of this past, as emphasized in his epilogue “social memory is as much about forgetting as it is about remembering”, (p. 302). This interpretation of the Irish church architecture as modelled according to a social memory construct based on a reading of the past situates this work within the field of History of Memory, and therefore, very much in tune with a new trend within Cultural History which has been increasingly explored since the 1970s [7].
In general, Churches in Early Medieval Ireland is an impressive work with considerable potential to contribute to understanding the history of the churches built in Ireland during the Middle Ages, to the motivations behind their erection and to their social function. Many important satellite discussions and arguments around these issues were considered en route by the author and these intellectual detours have provided evidence that enabled him to support or disregard some of his central theses. Whether one agrees or disagrees with Ó Carragáin postulations, this book is definitely indispensable reading material for the researcher of early Christian Ireland engaged in the different fields, archaeology, history, history of art [8].
Notas
1. The author has explained that the term pre-Romanesque church is used for churches without Romanesque features, but it does not necessarily mean that all of these churches predate the arrival of the Romanesque in Ireland. After the construction of the first Romanesque church (c. 1080‒1094) preRomanesque churches were still been built for another half century, (p. 8), and the Romanesque buildings were expressions of the Gregorian reform movement, (p. 235).
2. To follow these discussions Ó Carragáin has suggested: Thomas, 1971; Hughes, 1973; Wormald, 1986; Brown, 1999.
3. For the discussions on the conflict of episcopal and monastic models see: Hughes, 1966; 1972; 2008. For the opposition to this view and updated studies on the subject: Sharpe, 1984; Blair e Sharpe, 1992, in particular Sharpe’s article in this work; Etchingham, 1991; 1993; 1994; 2002; Kehnel, 1997: 28‒46; Charles-Edwards, 2000: 241‒281; Blair, 2005: 43-49;73‒78; Foot, 2006: 265‒268.
4. Ó Carragáin did not define what he is undestanding by the term literati but it has been defined by Bart Jaski as: “a term used in a general sense to refer to those men of learning engaged in composing and writing literary matter, without implying that they formed a uniform body”, p. 329.
5. The concept of Romanitas is also not directly defined, but it is understood in the context. He puts it in terms of opposition such as “in the Roman manner” versus “wooden churches” or “in the Irish manner”, affirming that this dichotomy is evident in Bede’s Historia Ecclesiastica, it seems that in Bede’s opinion a Roman style of church was one built with stones, (p.60‒66).
6. He also supported this argumentation in an article published after the completion of his thesis but before its publication in the book format: Ó Carragáin, 2006: 114.
7. For discussions on this field see Innes, 2000: 6
8. I am thankful to Professor Ciaran Sugrue (UCD) for reading a draft of this review and providing me with some corrections and helpful observations. Therefore any inaccuracy is of my own responsibility
Referências
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Ó CARRAGÁIN, Tomás. Churches in Early Medieval Ireland: Architecture, Ritual and Memory. New Haven and London: Yale University Press, 2010. (Paul Mellon Centre for Studies in British Art Series). Resenha de: FARRELL, Elaine C. dos S. Pereira. Early Irish Churches: form and functions. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.2, p. 85-90, 2011. Acessar publicação original [DR]
Warum weint der König? Eine Kritik des mediävsitischen Panritualismu | Peter Dinzelbacher
Nos últimos anos, a área de Medievística na Alemanha tem assistido a um renascimento dos estudos de ritual. Pode-se apontar como grandes responsáveis por esta rápida expansão o medievista alemão Gerd Althoff, que publica constantemente artigos versando sobre a temática ritual dentro do contexto medieval, e o Sonderforschungsbereich [1] 619, intitulado Ritualdynamik,[2] fundado em 2002 na Universidade de Heidelberg, que tem como finalidade fomentar a discussão interdisciplinar sobre a questão da origem, propagação e ‘morte’ das práticas ritualísticas, bem como os motivos para as críticas acerca do conceito e do estudo do ritual. Relacionadas a esse projeto de pesquisa, foram lançadas inúmeras publicações, nas quais não apenas uma vertente antropólogica pode ser verificada, mas também diálogos nos vários campos do conhecimento.
Na contra-mão dessa tendência de focar o ritual como parte integrante da sociedade medieval, Peter Dinzelbacher apresenta o seu livro com o intuito de alertar medievistas de todas as áreas para a utilização inflacionária e não crítica das teorias de ritual na Medievística moderna, “onde aquelas simplesmente não são detectáveis nas fontes” (“wo sie in den Quellen schlichtweg nicht nachweisbar sind”, p. 7). Para tanto, Dinzelbacher assevera haver um “Panritualismo de origem histórica e germanística” (“‚Panritualismus’ historischer und germanistischer Provenienz”, p. 8). Embora o autor não defina explicitamente o que entende por Panritualismo, subentende-se que esse signifique a utilização exagerada das teorias de ritual aplicadas às fontes medievais. Para tanto, Dinzelbacher propõe a análise de dois campos de estudo, respectivamente o choro público de monarcas/governantes e heróis (Parte I) e os rituais de cura (Parte II).
Seria de se esperar que ao tratar da análise de rituais, o autor definisse o que compreende ou como utilizará os conceitos de rito, ritual e cerimônia, mas este afirma que os três são sinônimos e que na pesquisa internacional ainda não foi elaborada nenhuma definição diferencial (cf. p. 9).
Voltando-se contra os ‘modimos’ acadêmicos, Dinzelbacher mostra que muitas vezes é preciso relativizar os resultados encontrados e não partir para afirmações genéricas. Nesse sentido, a sua crítica refere-se diretamente à obra de Gerd Althoff, que interpreta o choro de monarcas de acordo com a teoria da encenação e remete ao valor dessa(s) cena(s) como um ritual. Para Dinzelbacher, contudo, é possível que em alguns casos haja demonstração de ‘sentimentos’ reais, que são expressos através das lágrimas, sendo assim possíveis expressões espontâneas. Desta forma, o autor demonstra através da análise de casos como morte, contrição religiosa, pedido de ajuda, demonstração de compaixão e clemência, cenas de despedida, no caso da perda da honra e em momentos de luto, que o choro é aceito socialmente. Todavia, em casos de choro masculino público por causa de dor, não há a mesma aceitação.
O que a princípio parece tratar-se de uma ‘pequena história das lágrimas/do choro’ transforma-se num ataque direto e pessoal à obra de Gerd Althoff, perdendo, assim, o caráter científico da crítica. Em dois momentos fica mais do que claro esse ataque pessoal desvelado a Gerd Althoff. Numa das passagens do texto, Dinzelbacher ironiza a teoria de Althoff das ‘lágrimas encenadas’ através da pergunta: “Em casos de necessidade, os reis mandaram, então, buscar uma cebola na cozinha da corte?” (“Haben sich die Könige im Bedarfsfall denn eine Zwiebel aus ihrer Hofküche holen lassen?”, p. 43). Em outro trecho, Dinzlebacher se questiona os porquês do modelo ‘althoffiano’ ter-se propagado tão rápido e de forma tão eficaz, questões essas, que o próprio autor se esmera em responder. A primeira relaciona-se ao fato do caráter inovativo da abordagem e ao fato de Althoff oferecer “uma explicação funcional para componentes, que para nós são estranhos, do agir medieval” (“das Angebot einer funktionalen Erklärung für uns fremde Komponenten mittelalterlichen Agierens”, p. 67). A segunda é apresentada em uma nota de rodapé com ares de teoria da conspiração. Dizelbacher alega que o grande responsável pela recepção bem-sucedida das teorias de Althoff é o ‘Münsterander Institut für Frühmittelalterforschung’ (Instituto de Münster para Pesquisa da Idade Média Primeva) (cf. p. 67).
Gerd Althoff, por sua vez, acredita, contudo, que tenha havido algum malentendido em toda a polêmica levantada por Peter Dinzelbacher, pois o primeiro nunca teria afirmado que não há choro espontâneo. Althoff afirma ainda que, embora no período medieval tenha havido sim expressões espontâneas de sentimentos, essas não foram e não são seu objeto de estudo, asseverando ainda que no caso dos rituais, não se reagia espontaneamente. E somente nessa prerrogativa se baseia seu estudo.[3]
Na segunda parte de seu estudo, Dinzelbacher foca os rituais de cura na Idade Média, mais uma vez para atentar para o fato de que os novos medievistas devem estar atentos ao perigo de superestimar as ‘descobertas’, uma vez que há curas e ou tentativas de cura que seriam ritualísticas e outras que, simplesmente, abordam os discursos médicos medievais, as quais não devem ser incluídas “sob o pretenso Panritualismo da Idade Média” (“unter dem angeblichen Panritualismus des Mittelalters”, p. 133). Sendo assim, a crítica de Peter Dinzelbacher aos chamados ‘modismos acadêmicos’ deve extender-se para todos os campos do saber e ser lida como um alerta geral aos futuros pesquisadores.
Notas
1. Sonderforschungsbereich (SFB) são projetos de pesquisa com prazos de duração de até doze anos, que unem pesquisadores de diferentes universidades e disciplinas, a fim de alcançarem novos conhecimentos para temas pré-determinados. Na Alemanha, tais grupos de pesquisa são fomentados pela Sociedade Alemã de Pesquisa (DFG) (Cf. http://www.dfg.de/foerderung/programme/koordinierte_programme/sfb/ , acessado em 23 de agosto de 2010).
2. Para mais informações sobre as linhas de pesquisas, os professores colaboradores, as publicações e os eventos ver http://www.ritualdynamik.de/ , acessado em 23 de agosto de 2010.
3. ALTHOFF, Gerd. Aufgeführte Gefühle. Die Rolle der Emotionen in den öffentlichen Ritualen des Mittelalters. In: Passions in Context I 2010/1.
Daniele Gallindo Gonçalves Silva – Doutoranda, Otto-Friedrich-Universität Bamberg Bolsista DAAD danigallindo@yahoo.de
DINZELBACHER, Peter. Warum weint der König? Eine Kritik des mediävsitischen Panritualismus. Badenweiler: Wissenschaftlicher Verlag Bachmann, 2009. Resenha de: SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. Panritualismo, a crítica desvelada aos Estudos de Ritual na Idade Média. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.10, n.2, p. 100-102, 2010. Acessar publicação original [DR]
Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd
O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.
As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).
Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.
Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.
O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.
O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.
Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).
O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]
Nota
1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.
Referências
ALDHOUSE-GREEEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman: shapeshifters, sorcerers and spirit-healers of Ancient Europe. London: Thames & Hudson, 2005.
CORRÁIN, Donnchadh Ó. Ireland, Wales, Man, and the Hebrides. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. London: Oxford Press, 1997, pp. 83-109.
ELLIS, Peter Berresford. Mujeres druidas. In: Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001, pp. 105-130.
GREEN, Miranda. The World of the Druids. London: Ed. Thames and Hudson, 1997.
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine 4, 2002, p. 07-09. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 20 de setembro de 2006.
_____ Mitos e verdades sobre um povo guerreiro. Universo fantástico da Idade Média 1 (1), 2003, pp. 31-33.
LANGER, Johnni & CAMPOS, Luciana de. Mini-curso: história da Irlanda Celta e Viking. Resumos, II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais. Assis: UNESP, 2006, pp. 58.
LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-7. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.
GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, médicine et divination chez les Celtes. Paris: Éditions Payot, 1997.
OLIVIERI, Filippo Lourenço. A literatura irlandesa e as fontes clássicas e arqueológicas. Brathair 5 (1), 2005, pp. 45-55. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.
RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. (org.). The Celtic world. London: Routledge, 1996, pp. 636-653.
Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
RUTHERFURD, Edward. Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin. São Paulo: Record, 2006. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. A História da Irlanda, dos Celtas ao Medievo1. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 122-124, 2006. Acessar publicação original [DR]
Nachklassische Romane und höfische “Novellen” | Helmut Birkhan
Como produto de suas aulas ministradas durante o semestre de inverno de 2003- 2004, Helmut Birkhan apresenta ao público leitor o quinto volume da série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos, um manual dividido em oito volumes que contém, de maneira sucinta, porém bem embasada lingüística, literária e historicamente as principais obras escritas e ou compiladas no espaço germanófono continental durante a Idade Média. Neste número, o autor preocupa-se em discutir sobre textos menos conhecidos dos germanistas, tanto de língua alemã quanto estrangeiros.
À guisa de introdução ao volume, Birkhan circunscreve a época de sua análise, isto é, mais ou menos entre 1200 e 1300. O erudito austríaco abarca neste volume as obras, cuja temática se prende à Antigüidade ou a Bizâncio. É interessante notarmos que normalmente nos curricula universitários dos cursos de língua e literaturas de língua alemã muito pouco espaço é dado à produção literária em alemão anterior ao século XVIII [1], menos ainda ao período de tempo abarcado pela pesquisa do autor de Romances pós-clássicos e “novelas” corteses.
A partir de uma discussão sobre o desenvolvimento dos conceitos metodológicos referentes às obras, primeiramente classificadas como “epigonais” e hoje em dia como pós-clássicas, Birkhan (2004, 10) discute e afirma a existência de “novos juízos valorativos em favor daquelas obras anteriormente difamadas”. Do mesmo modo são apresentados romances menos conhecidos com temática arturiana, mitológica [2], poemas com forma similar à das canções de gesta, alguns excertos de romances de amor e romances de aventura, trechos de quatro “novelas” em versos e, por fim, trechos de um drama medieval em médio-alto-alemão.
Como este volume, de número 5, integra a série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos e devido à temática ser circunscrita ao período cronológico visto no volume precedente, o autor prescinde de informações de cunho histórico-social, optando, pois, por uma análise das obras à luz das informações retiradas dos próprios textos, o que configura uma escolha metodológica, em nosso ver, pertinente, na medida em que sua análise literária traz consigo os elementos culturais da época em questão.
Aspecto importante para facilitar a apreensão dos dados acadêmicos sobre as obras e momento histórico estudados é a preocupação do autor em apensar ao fim do volume uma série de reproduções de iluminuras, fotos, capas de fac-símiles e páginas de manuscritos, quadros genealógicos, esboços arquitetônicos e até mesmo uma discutível partitura do Titurel de Wolfram. No trabalho com a Idade Média, para nós brasileiros distante e praticamente alheia ao nosso passado, é fundamental a disponibilização da maior quantidade possível de dados, a fim de tornar menos incompleto o painel do objeto que estudamos.
O cuidado de Helmut Birkhan não apenas com a apresentação do conteúdo, porém com sua efetiva e merecida valoração está expressa no comentário da última capa do volume, que traduzimos:
“O livro é dirigido àqueles que querem uma introdução na criação romanesca medieval (em especial no romance arturiano). Serão analisadas aquelas obras, que freqüentemente são desqualificadas como romances de aventuras, as quais, porém, são extremamente interessantes sob uma perspectiva psicológica, da ciência da cultura e sob várias outras.”
No tocante às obras em mittelhochdetusch com reminiscências da Antigüidade Clássica são arrolados autores como Herbort von Fritzlar, Albrecht von Halberstadt, Konrad von Würzburg, dentre outros. Um texto que nos chama a atenção pelo seu quase total desconhecimento pelos medievistas brasileiros é Eraclius, de Otte, de quem não há praticamente informação alguma. A obra, de datação provável entre 1190 e 1230, apresenta temática bizantina. Birkhan inicia sua análise com um resumo do texto, entremeado com comentários da mais variada ordem acerca da originalidade do fazer poético de Otte, composição da obra, intertextualidade e informações de cunho histórico contidos no conto.
Com relação aos temas arturianos encontram-se listados e discutidos pelo pesquisador de Viena os seguintes títulos: [3]
1 O Lanzelet de Ulrich von Zatzikhoven
2 O romance de Segremors em médio-alto-alemão
3 Os “fragmentos de Titurel” de Wolram von Eschenbach
4 Titurel mais recente de Albrecht – Merlin de Albrecht von Scharfenberg [4]
5 O Lancelote em prosa
6 Diu Crône [5] de Heinrich von dem Türlin
7 O casaco
8 O Wigalois de Wirnt von Grâvenberc [6]
A matéria mitológica, presente por exemplo em Gauriel e Muntabel, de Konrad von Stoffeln, traz o universo das fadas e elfos [7] ao leitor moderno, no que personagens humanos se envolvem sentimentalmente com seres pertencentes ao mundo místico. Nesse momento podem ser inferidos comentários intertextuais com relação ao Tannhäuser, romance em alemão do século XIII sobre um cavaleiro, que decide se dedicar exclusivamente ao amor venal, optando por viver com Vênus, depois de desventuras no mundo social perfeito da cavalaria cristã.
As canções de gesta, embora de tradição mais antiga no continente europeu e de influência predominantemente francesa, foram bem representadas entre os séculos XII a XIV no espaço germanófono. Uma outra vertente da produção de gesta liga-se às sagas com a personagem Guilherme – em francês Guillaume d´Orange – 8, cujos primeiros textos remontam à primeira metade do século XII! Em alemão, a obra Willehalm de Wolfram von Eschenbach tematiza essa personagem e dentre todas as outras é a mais conhecida.
Os romances de amor e de aventura, bem como as novelas corteses em verso e como também o drama medieval são analisados através de exemplos textuais, nos quais Birkhan atenta pra detalhes lingüísticos, exegéticos e filológicos das obras.
Na História da antiga literatura em alemão à luz de textos escolhidos – parte V: romances pós-clássicos e “novelas” corteses há a versão completa de todos os fragmentos textuais para o Neuhochdeutsch, moderno-alto-alemão, o que acreditamos ser de capital importância não apenas para o leitor germanofalante, porém principalmente para os discentes de língua portuguesa, interessados em acompanhar a evolução histórica do idioma alemão, investigar suas características e ter, com isso, facilitado seu acesso às fontes primárias.
Por fim, se lembrarmos que as aulas de Saussure serviram de base à Lingüística Moderna e guardando as devidas proporções, somos de opinião de que a obra de Helmut Birkhan ora resenhada se inscreve dentro daquelas que podem se constituir entre nós como marco para o início de uma tradição de pesquisa com textos quase que totalmente desconhecidos, conferindo à Medievística Germanística e à Filologia Germânica o velho motto latino Labor omnia vincit. O trabalho tudo vence!
Notas
1. Para um maior detalhamento sobre o assunto cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Deutschsprachige Literatur des Mittelalters – Beispiel einer methodischen Perspektive zur Behandlung von älteren Texten im Literaturunterricht. In: WIESINGER, Peter et alii. Akten des X. Internationalen Germanistenkongresses Wien 2000. Bern: Peter Lang, 2002. Jahrbuch für Internationale Germanistik, Reihe A, Volume 57, p. 203-209.
2. Trata-se neste caso de contos, cujos temas giram ao redor de problemas no casamento de seres humanos com seres femininos da “baixa mitologia”, como fadas e elfos. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 159.
3. Não nos esqueçamos de que no volume
4. são trabalhados textos arturianos vistos pelo cânone como modelares, acompanhados por uma concisa, mas eficiente listagem com dados sobre o surgimento do mito e sua comprovação histórica. Cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Literatura romanesca da época dos Staufer. In: SILVA, José Pereira da. (Org). Revista Philologus. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2005. Ano 11, nº 32, p.156-159.
4. A obra de Scharfenberg é vista por Birkhan como continuação da estruturação estrófica temática de Titurel. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 99-100.
5. Em português, “A coroa”.
6. Para a listagem completa remetemos o leitor interessado a Birkhan, 2003, p.5.
7. Convém lembrar que elfos pertencem à mitologia germânica, diferenciando-se de duendes, de fundo celta.
8. Orange, aqui, é uma cidade do provençano Departamento de Vaucluse, cuja etimologia provém do galoromano Arausio. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 195.
Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de Letras Anglo-Germânicas Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. E-mail: alvabrag@letras.ufrj.br
BIRKHAN, Helmut. Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2004. 296 Seiten. Band 12, Teil V: Nachklassische Romane und höfische “Novellen”. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Romances Pós-Clássicos e “Novelas” Corteses. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.2, p. 114-116, 2005. Acessar publicação original [DR]
Curso de literatura inglesa | Jorge Luís Borges
Originário de aulas ministradas na Universidade de Buenos Aires durante a década de 1960 [1], o livro ainda mantém um interesse vivo pelas valiosas conclusões que Borges sugere de seus conhecimentos em fontes manuscritas e impressas de línguas germânicas. Os sete primeiros capítulos – ou aulas – referem-se aos períodos da Antigüidade e Idade Média. Neles, o professor explicita sobre as técnicas poéticas, as características e os princípios da literatura dos antigos saxões e dos escandinavos. Também demonstra em suas aulas que o panorama político europeu, especialmente da Inglaterra, foi muito favorecido pelas invasões nórdicas. É justamente neste aspecto que Borges revela muito mais que uma simples admiração por estes povos, identificando as personagens com um passado glorioso e heróico: “Os Vikings talvez tenham sido a gente mais extraordinária entre os germanos da Idade Média. Foram os melhores navegantes da sua época (…) à maneira de muitos escandinavos cultos, não era apenas guerreiro mas, além disso, era poeta” (p. 22).
Simplificadores do moderno idioma inglês, os antigos escandinavos possibilitaram a consolidação do futuro império britânico, segundo as mesmas idéias de Borges (pp.100-102).[2] Essa visão heróica e gloriosa dos bárbaros pode ser percebida pelo espaço concedido à análise dos épicos anglo-saxões, como Beowulf e das sagas islandesas. Para o escritor, o período em que viveram estes aventureiros não era simplesmente uma época de desordem e caos, mas um momento extremamente propício para a formação de estruturas literárias complexas: “uma época bárbara mas que propendia à cultura, que gostava da cultura”(p.20). Assim, podemos incluir os estudos teóricos de Borges como a culminação de um processo de recuperação da imagem do bárbaro que teve início no século XVIII e que foi essencialmente centrada na literatura.
Ao contrário do Renascimento e sua revalorização da cultura clássica, o Setecentos foi marcado pelo ressurgimento dos estudos da literatura dos povos da Europa Setentrional, especialmente os de origem Celta e Germânica [3]. Manuscritos foram traduzidos e publicados nas línguas modernas, obras teóricas surgiram, novos poemas e narrativas foram criadas ao estilo das arcaicas. Esta adaptação e reinterpretação literária esteve atrelada à concepções de fundo nacionalista, tão em voga na época. Os intelectuais, na realidade, estavam preocupados em resgatar valores tais como identidade social e demarcar as origens do que eles então definiam como sendo suas nações. A literatura servia diretamente tanto como marco simbólico desta consciência nacional, como um instrumento de propaganda dos valores antigos que deveriam ser resgatados.
Um caso especialmente estudado por Borges diz respeito ao Ciclo Ossiânico [4]. Durante o século XVIII, a Escócia procurou criar uma identidade diferenciada da Inglaterra (de origem histórica anglo-saxônica), mas que o mesmo fosse alternativa ao passado Celta comum aos irlandeses. James Macpherson [5] foi incumbido de recolher lendas na Escócia, de origem irlandesa mas que foram alteradas e sintetizadas para que sua região tivesse uma identidade nacional própria. O resultado foi a obra Fingal: Ancient Epic Poem in Six Books (1762), que fez grande sucesso em toda a Europa pré romântica. [6] O Ciclo Ossiânico também conhecido como Ciclo de Finn apresenta narrativas supostamente ambientadas no século III d.C. O ciclo de narrativas traz longas composições muito populares entre as gentes simples da Irlanda durante a Idade Média. Essas narrativas de cunho popular em muito se assemelham as narrativas do Ciclo Arturiano ou Bretão [7] compostas a partir do século XII principalmente na França. Esses dois ciclos de narrativas mais se aproximam do que se distanciam pois, além do caráter popular e folclórico de suas narrativas têm em comum as aventuras de suas personagens. Os Fiannas são considerados uma espécie de guarda de elite do grande rei da Irlanda. Entre as suas tarefas estão o recolhimento de impostos e a proteção dos mais fracos. As incumbências dos Fiannas são praticamente as mesmas dos Cavaleiros do Távola Redonda, fiéis servidores do rei Artur. Muitas das aventuras narradas no Ciclo Ossiânico podem ser comparadas com as do Ciclo Arturiano. Acreditamos que a semelhança narrativa mais próxima seja uma aventura vivida pelo próprio Finn, na aventura amorosa intitulada Diarmaid e Grinné. Grinné é uma jovem que vai ser entregue como concubina para o rei Finn mas ela se apaixona por Diarmaid, jovem cavaleiro e fiel servidor de Finn. Sabendo da paixão dos jovens o rei Finn finge que desistiu de manter a jovem como concubina, mas durante uma caçada ele constrói uma armadilha para que Diarmaid morra. Ao perceber a trama de morte inevitável Grinné não consegue avisar seu amado e, ao vê-lo morto deixa-se morrer ao seu lado. Essa “aventura” é o arquétipo da mais conhecida narrativa do Ciclo Arturiano, Tristão e Isolda, onde os jovens incapazes de concretizarem seu amor em vida se deixam morrer para que o sentimento sobreviva após a morte e possa se consumar. O tema do amor que só é possível se concretizar após a morte sempre trágica ou violenta dos amantes é recorrente na literatura ocidental desde a Antigüidade e para os românticos foi um tema profícuo, não só pelo fascínio que ele exercia e que foi representado tanto na prosa como na poesia dos autores dessa escola literária, mas que inspirou também pintores e escultores que representaram com beleza as malezas arquitetadas por Eros e Tanatos.
A narrativa de Tristão e Isolda que tem a sua matriz em Diamaid e Grinné teve desde o século XII muitas versões. No século XII Béroul e Thomás de Inglaterra compuseram duas das mais conhecidas e estudadas versões, Gottfried de Estrasburgo no século XIII compôs uma versão mesclando elementos da cultura celta com a cultura germânica e que no século XIX serviu de inspiração para Richard Wagner compor a sua versão da tragédia dos amantes. E, por fim no século XIX, Joseph Bédier, filólogo francês estabeleceu uma versão onde mescla elementos das três narrativas medievais mas que se iguala em beleza e elementos fundamentais para se estudar a força do mito do amor eterno que sobrevive após a morte.
O amor dos jovens Diarmaid e Grinné e Tristão e Isolda é um sentimento puro, que se encontra em seu estado “natural”, ele ainda não foi corrompido por convenções sociais, podemos dizer que, grosso modo, esse sentimento é algo sentido apenas por bárbaros, pessoas que não receberam o refinamento social devido e é por essa mesma razão que os românticos – tanto escritores como pintores – tão avessos às convenções vão eleger o “amor bárbarico” como um dos principais temas de suas obras, representando assim toda a sua rebeldia e insatisfação com as leis, padrões e moldes sócio- culturais vigentes. [8]
Além deste caráter puramente estético, no século XIX a imagem do bárbaro foi reforçada como incentivo nacionalista, mas desta vez com cada região tendo os seus próprios mitos literários. Os países da Escandinávia utilizaram seu patrimônio cultural dentro de especificidades regionais, onde os sentimentos patrióticos incorporaram elementos da literatura, história e mitologia dos tempos pagãos. Especialmente o historiador e poeta Erik Geijer no livro Svenka folkets historia (História dos povos suecos, 1836) utilizou a sociedade dos antigos nórdicos como um modelo social perfeito, onde a harmonia do povo e de seus líderes foi quebrada pela chegado do cristianismo e do feudalismo.[9] O “espírito” dos tempos passados era refletido na arte decorativa, no interior das casas e dos edifícios, nos jornais, na vida cotidiana e nas idéias políticas, sempre em consonância com o progresso tecnológico e social dos tempos modernos.[10] A poesia e a literatura romântica da Escandinávia refletiam diretamente os mitos nórdicos com ideologias políticas do presente. Obras literárias como a famosa Frithiofs Saga (1825) de Esaias Tegner, apesar de conter heróis medievais, possuem comportamentos e valores condizentes com a realidade histórica vivida pela Suécia do Oitocentos.
Concedendo especificidade ao contexto inglês, Borges examinou em suas aulas um conjunto de artistas que resgataram a imagem bárbara durante o final do século XIX, a Irmandade Pré-Rafaelita. [11 ]Os temas preferidos do grupo eram a mitologia arturiana, temas medievais e escandinavos. Os principais escritores pré-rafaelitas que Borges analisou foram Dante Gabriel Rosseti [12] e William Morris [13]. Rosseti foi um dos fundadores do movimento e peça fundamental para entender a principal ideologia artística reinante na época vitoriana. Segundo Borges, a valorização de temas medievais visava essencialmente a busca da nobreza no passado. Em uma época onde a tecnologia, o urbanismo e a industrialização tomavam grande vulto na Inglaterra, os artistas voltam-se para a busca do belo – idealizada nas figuras femininas de Isolda, Guinevere e Morgana – e no herói, principalmente no rei Artur, Tristão e Lancelot. Tanto estas figuras femininas quanto masculinas pertencem ao ciclo arturiano, um conjunto de narrativas de origem Celta, que foram mescladas aos princípios cristãos do comportamento cavalheiresco da Idade Média, como já vimos. Com isto, temos duas formas básicas da imagem do bárbaro realizada pelos artistas pré-rafaelitas: de um lado, o bárbaro (herói pagão), que é resgatado em sua forma pura, de um ponto de vista estético e histórico.[14] De outro lado, o herói pagão que foi cristianizado e moldado pelo cavalheirismo medieval, principalmente na forma dos personagens arturianos.
Um dos principais idealizadores do herói pagão foi o poeta William Morris. Além de tradutor de várias Sagas e epopéias escandinavas, o artista escreveu poemas narrativos resgatando o que Borges denomina de “consciência do germânico” dentro da História e arte inglesa.[15] Em um deles, The Earthly Paradise (1870), a mitologia nórdica é apontada diretamente como elemento nostálgico e nobiliárquico da sociedade inglesa: “Oh Breton, and thou Northman, by this horn/Remember me, who am of Odin’s blood”.[16] Ou seja, aqui o narrador apresenta o rei inglês como descendente direto do deus Odin, o principal do panteão germânico. Um resgate literário dos valores simbólicos das antigas sociedades, em plena Inglaterra vitoriana. Em outra obra, Sigurd the Volsung (1876), a importância do herói pagão de origem escandinava foi ainda mais acentuada. Baseado em manuscrito islandês homônimo, este poema épico enfatizava a tragédia, a derradeira morte do principal personagem. Esta característica essencialmente romântica, também seria muito comum ao movimento pré-rafaelita com a predileção iconográfica dos artistas pelas narrativas trágicas de Tristão e Isolda [17] e da morte de Artur.[18] Mas não podemos nos esquecer que os próprios deuses germânicos também eram essencialmente trágicos, pois ao contrário da mitologia clássica (onde todas as divindades são imortais), eles teriam um final, durante a batalha de Ragnarök. Explicando a existência de telas como Odin (1870) e Freyr (1870), por Edward BurneJones,[19] onde as duas divindades apresentam um olhar melancólico, ambas olhando para baixo e numa atmosfera de extrema tristeza. Outro momento trágico resgatado por este movimento artístico é o funeral, que surge ao final do poema Sigurd, de Morris (com a morte do herói e o suicídio de Brunhilde na pira funerária) e na famosa tela de Francis Dicksee, Funeral of a Viking (1893).
A imagem literária do homem e também da mulher bárbara que foi construída durante os séculos seja na literatura como nas artes plásticas, em muitos momentos não foi uma imagem negativa, mas procurou exaltar determinadas virtudes que para os jovens idealistas românticos estavam um tanto esquecidas. Ao nos expor com maestria e bom humor aspectos tanto da literatura inglesa como da efervescência cultural que foram os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, Borges nos oferece também novas perspectivas de análises de fontes importantes não só para uma maior compreensão das letras, mas das representações de figuras que ainda hoje povoam nosso imaginário e nos encantam!
Ao apresentar suas aulas durante um período conturbado da história latino-americana, Borges não ensinou apenas nomes, autores e características literárias, ele concedeu aos seus alunos uma aproximação com a literatura germânica – e repete o feito com os seus leitores de hoje – de se encantarem com a beleza das letras compostas em um momento especial, onde resgatar a imagem e o espírito dos bárbaros não era somente uma fonte de inspiração e um modelo estético mas sim uma admiração pelo espírito de liberdade e de criatividade.
Notas
1 O livro foi organizado por Martín Arias e Martín Hadis, através de transcrições das aulas ministradas por Borges na Universidade de Buenos Aires.
2 Muito da imagem que o teórico transmite em suas aulas na década de 1960 provinha do cinema: “E eles, enquanto isso, vêem como os vikings vão desembarcando. Podemos imaginar os vikings com seus elmos ornamentados com chifres, ver chegar aquela gente toda” (p. 60). Essa representação dos guerreiros nórdicos portando chifres com ornamentos córneos surgiu durante o início do Oitocentos, produto de uma arte romântica e nacionalista, promovendo o resgate viril e poderoso dos Vikings. Posteriormente, essa fantasia popularizou-se nas histórias em quadrinhos, literatura e cinema. Conf. LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002. Borges deve ter estruturado este estereótipo em filmes como Príncipe Valente (1954) e romances populares, dos quais cita The Long Ships (do original Röde Orm, 1945, versão inglesa da década de 1950).
3 Designamos literatura de origem Celta toda produção literária originada do folclore ou tradição oral e transcrita após o século VIII em países como a Irlanda (Celtas irlandeses), Escócia (Pictos e Escotos), País de Gales, Bretanha inglesa e francesa (Bretões) e França (Gauleses). A de origem germânica refere-se aos países escandinavos e Islândia (Vikings), Alemanha (Germanos antigos) e Inglaterra (Anglosaxões). Borges realizou um estudo clássico sobre literatura germânica: BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.
4 “Le Cycle de Finn, ou Cycle Ossianique, est le cycle consacré à la province du Leinster. Mais il déborde de loin les frontières de ce petit état et se retrouve, très florissant, dans l’Écosse tout entière. C’est le Cycle de Finn, transmis par la tradition orale depuis de siècles, que Mac Pherson a connu et quíl a répandu dans toute l’Europe. Car Fingal n’est autre que le nom romantique de Finn et Ossian celui de Oisin (= le Faon). Finn est le roi. Mais à la différence de Conchobar, il n’exerce pas une autorité légale sur l’Irlande ou sur une troupe de véritables nomades, de guerriers errants, qui sont passés à la posterité sous le non de Fianna (Fenians). Ces Fianna ont vraisemblament eu une existence historique, au temps du roi suprême Cormac Mac Airt, c’est-à-dire à la fin du IIe. Siècle de notre ère. Ils constituaient une sorte d’État dans l’État, et ils furent souvent en froid, nom seulement avec le roi suprême mais aussi avec les différents rois de provinces ou de tribus sur le territoire desquels ils exerçaient leurs talents”. MARKALE, Jean. L’épopée celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993, p. 159.
5 “James Macpherson nasceu nas Highlands da Escócia, nas Terras Altas da Escócia, nas serras da Escócia, no ano de 1736, e morre em 1796. (…) Macpherson nasce e se cria num lugar agreste ao norte da Escócia, onde ainda se falava um idioma gaélico, isto é, um idioma celta, afim, naturalmente, ao galês, ao irlandês e à língua bretã levada à Bretanha – antes chamada Armórica – pelos bretões que se refugiaram das invasões saxãs do século V” (Borges, 2002: 157-8).
6 “Como Macpherson não queria que os personagens fossem irlandeses, fez de Fingal, pai de Ossian, rei de Morgen, que era a costa setentrional e ocidental da Escócia (…) Macpherson foi acusado de falsário (…) Atualmente, não nos interessa se o poema é ou não é apócrifo, mas o fato de que nele já está prefigurado o movimento romântico” (Borges, 2002: 166). Uma das pinturas mais famosas inspiradas na obra de Macpherson é Ossian na margem do Lora invocando os deuses ao som de uma harpa, de Grançois Gérard (sem data). Nesta composição, temos os elementos chaves do romantismo europeu: atmosfera de mistério e horror, elementos ruinísticos, atmosfera onírica, e é claro, os elementos advindos da mitologia Celta. Conforme: WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.
7 “O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Galvain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na História Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos Cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Mommouth, cuja fantástica História Regum Britanniae que foi escrita entre 1135 e1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalon, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cavaleiros místicos”. CARPEUAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2ª edição, p. 140.
8 LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004, p. 162-165. Na literatura francesa do século XIX, o Viking torna-se o herói romântico perfeito: aventureiro, sem nenhum temor, feroz, galante e essencialmente, livre. “Un personnage, dont le nom est déjà intervenu plusieurs fois, rassemble ce que le XIXe siècle a voulu mettre, en ce sens, sous le mot viking: c’est celui du roi de mer. L’expression seule suffisait déjà à déchaîner imaginations et passions: iéal aristocratique mêlé à tous les parfums de l’aventure, lois de l’héroïsme et de la brutalité (…) Le Viking, c’est l’homme libre”. BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986, p. 83-103.
9 LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999, p. 238.
10 Além disso, cada país escandinavo resgatou a memória dos tempos Vikings dentro de um referencial próprio, condizente com a realidade política então vigente (p.ex., a Suécia de 1814 a 1905 foi unida com a Noruega, ao mesmo tempo em que mantinha uma grande rivalidade com a Dinamarca).
11 Em inglês Pre-Raphaelite Brotherhood, grupo de artistas britânicos fundado em 1848 e dissolvido cerca do ano 1853. Movimento de reação ao convencionalismo da arte vitoriana, que buscava através da inspiração literária e simbólica, mitológica ou bíblica, restituir à pintura a pureza alcançada antes de Rafael, ou seja, no século XV. Seus representantes mais famosos foram Dante Gabriel Rosseti, W. H. Hunt, J. E. Millais, F. Brown, E. Burne-Jones e William Morris. O pintor brasileiro Eliseu Visconti chegou a ser influenciado pelo movimento. Conf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 19, p. 4772. A Irmandade Pré-Rafaelita fundou uma revista chamada The Germ (O Germe) para divulgar suas idéias, pinturas e poesias. BORGES, op. cit., p. 284. Para uma crítica estética deste movimento artístico ver: GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 404. Para o teórico Arnold Hauser, os pressupostos do pré-rafaelismo residiam em seu caráter poético/literário, espiritualista, histórico e simbólico: “(…) são idealistas, moralistas e eróticos envergonhados, como a grande maioria dos vitorianos (…) une um realismo que encontra expressão num deleite em ínfimos detalhes, na reprodução prazenteira de cada folha de grama e de cada prega de saia (…) exageram os sinais de perícia técnica, talento imitativo e perfeito acabamento”. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 840-842.
12 Dante Gabriel Rosseti: pintor, desenhista e poeta inglês (Londres, 1828 – Kent, 1882). Filho do escritor napolitano Gabriele Rossetti, exilado por suas opiniões políticas. Foi um dos fundadores da confraria prérafaelita. Seus quadros (Ecce ancilla Domini, 1850; O sonho de Dante, 1871) e poesias (A moça eleita, 1850) inspiram-se em lendas medievais e temas da poesia primitiva inglesa e italiana. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 21, p. 5137.
13 William Morris: poeta, artista e ativista político inglês (Essex, 1834 – Hammersmith, 1896). Inovador da estamparia e xilogravura. Escreveu poesias narrativas como The Life and Death of Jason (1867) e The Earthly Paradise (1868), poemas pós-românticos, medievalistas. Traduziu a Eneida (1876) e a Odisséia (1887) e interessou-se pelas literaturas escandinavas. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 17, p. 4090.
14 O herói pagão sobreviveu na literatura arturiana sob a forma do mago Merlin, um druida (sacerdote dos Celtas) que ainda mantinha seus poderes sob o surgimento do cristianismo. Este personagem arturiano também recebeu diversas representações pelos pré-rafaelitas durante o Oitocentos: O engodo de Merlin (1874), de Edward Burne-Jones; Merlin e Nimue (1870), de Gabriel Rossetti. Também as representações de feiticeiras, fadas e druidas fizeram sucesso na arte vitoriana: Morgan Le Fay (1864), de A. Sandys; Os druidas trazendo o azevinho (1890), de George Henry e A. Horned.
15 Segundo Borges, a literatura inglesa havia esquecido suas raízes germânicas. Foi com o romantismo que essa vertente foi redescoberta, algo impensável com Shakespeare e totalmente consciente no caso de William Morris e os pré-rafaelitas. BORGES, op. cit., p. 356-357.
16 “Ó bretão, e tu Normando, por este chifre/Lembre-se de mim, que sou do sangue de Odin”. Texto original retirado de BORGES, 2002: 359.
17 A personagem Isolda foi muito representada pelos pré-rafaelitas, especialmente Burne-Jones, Rosseti, Morris e Francis Dicksee. A imagem de Isolda resgata muitos dos valores da mulher pagã, em meio à sociedade cristã das primeiras versões literárias. O seu amor impossível com Tristão inspirou o romance de Shakespeare, Romeu e Julieta. Contemplação, redenção e tragédia tornaram-se as características essenciais do movimento pré-rafaelita. Sobre o tema ver: CAMPOS, Luciana de. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net); CAMPOS, Luciana de. Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.
18 Praticamente em todo o movimento pré-rafaelita, o rei Artur é quase sempre representado morrendo ou já morto na ilha de Avalon: L’morte d’Artur (1860) de James Archer – as rainhas choram ao lado de seu corpo próximo à praia; O rei Artur em Avalon (1894) de Edward Burne-Jones – o corpo do trágico rei repousa sobre uma ilha da costa da Bretanha, velado por nove rainhas. Para uma discussão historiográfica acerca de fontes literárias arturianas, consultar: ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61 (www.brathair.cjb.net).
19 Sir Edward Burne-Jones: pintor e desenhista inglês (Birmighan 1833 – Londres 1898). Aluno de Rosseti, uma das figuras marcantes do pré-rafaelismo; sua obra mistura mitologia antiga, lendas medievais e a religião cristã. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 5, p. 996.
Referências
BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.
BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986.
CAMPOS, Luciana. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net).
_____ Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2 ª edição.
DABEZIES, André. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002.
_____ Rêver son passé. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.
LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.
LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.
MARKALE, Jean. L’époppé celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993.
WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th-Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002.
WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.
ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61. (www.brathair.cjb.net)
Johnni Langer – Professor da UNICS, PR. E-mail: Johnnilanger@yahoo.com.br
Luciana de Campos – Professora Mestre. Doutoranda em Letras/UNESP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
BORGES, Jorge Luís. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 144-150, 2005. Acessar publicação original [DR]