Piedade mariana e hibridismo cultural na catacumba de Santa Priscila e no sarcófago de Adelfia (séc. III-IV) | Ludimila Campos
Piedade mariana e hibridismo cultural na catacumba de Santa Priscila e no sarcófago de Adelfia (séc. III-IV) | Ludimila Campos | Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v. 14, n.40, 2021.
A História de Homero a Santo Agostinho | François Hartog
Portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou.
Esta orientação téorico-metodológica, esta introdução aos estudos históricos, embora tenha semelhança com o postulado estabelecido por Ranke no século XIX, aquele que instruía o historiador a “mostrar como algo realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen 2), não pertence, no entanto, ao grande historiador alemão. Nem a W. Humboldt, ou a G. Monod, e muito menos a Langlois e Seignobos 3. Esta passagem é uma criação antiga, cuja data remonta ao ano 165 de nossa era, e foi escrita por Luciano de Samósata (119-175 d.C.), autor de numerosos tratados (diálogos, panfletos e sátiras), e da “única obra sobre a história que nos chegou da Antiguidade!”, explica François Hartog, na introdução que faz à coletânea, da qual também é o organizador e comentador, A história de Homero a Santo Agostinho 4. Leia Mais
The Barbarians Speak: How the conquered peoples shaped Roman Europe | Peter S. Wells
A maioria das pessoas tem a mesma impressão do mundo romano: que a expansão de Roma pelo centro da Europa aculturou os povos dominados, substituindo a cultura nativa existente pelo modo de vida romano. Esta impressão é reforçada pelo fato de que há muito pouca informação ou documentos preservados referentes às populações que habitavam, nos tempos romanos, a área em que hoje ficam a França, Alemanha, os Países Baixos, a Escandinávia, as ilhas britânicas e a Europa oriental. O livro do Prof. Peter S. Wells, quebrando esta impressão hegemônica, se propõe a buscar entender, através da arqueologia, na perspectiva da teoria pós-colonial, o processo de interação entre as populações conquistadas e o império romano.
O relacionamento entre o exército expansionista romano e os povos desta área da Europa teve um evento divisor de águas: a batalha da floresta de Teutoburg. Nesta batalha, cerca de 20 mil soldados romanos foram atacados e completamente derrotados por bandos de guerreiros daqueles povos que os Romanos chamavam de germânicos. Tal derrota chocou o mundo romano e determinou que a fronteira do império se estabelecesse a oeste do Reno e ao sul do Danúbio. Porém, mais importante que isso, os despojos deixados por esta batalha e outros vestígios da ocupação romana, encontrados em escavações arqueológicas de hoje, podem dizer muito sobre a interação dos nativos com os romanos.
A primeira informação importante que pode ser fornecida pelas escavações é a de que espadas romanas, juntamente com outros tipos de material romano, podem ser encontradas em sítios arqueológicos que ficam centenas de quilômetros além da fronteira do império. Estes achados mostram significativa atividade romana em áreas não conquistadas. Wells comenta que o império romano é uma das maiores forças de unificação de que se tem notícia, ligando povos política, econômica, cultural e militarmente, desde o norte da Bretanha e do Estreito de Gibraltar até o Eufrates e o sul do Egito. Comercialmente, a influência romana foi ainda mais longe, de tal forma que Wells traça paralelos do mundo romano com o mundo globalizado de hoje. Neste livro, o exército romano é de grande importância, porque foi responsável pelas conquistas de território e também o principal mediador entre Roma e os povos locais.
A segunda informação importante revelada pelas escavações é a de que o relacionamento dos povos do norte da Europa com os povos mediterrâneos precede a chegada dos romanos na região e, apesar de não compreender-se totalmente a natureza deste relacionamento, atualmente pensa-se que girava em torno do comércio. O relacionamento das elites da região com a cultura mediterrânea era, no entanto, mais complexo que apenas comercial. Professor Wells declara que o aspecto mais significante de toda esta evidência de interação é o de que algumas pessoas na região norte da Europa, num período de até quinhentos anos antes da ocupação romana, começaram a se familiarizar com aspectos do estilo de vida mediterrâneo e claramente os achavam atraentes.
Numerosos autores clássicos falam de mercenários celtas – ou Keltoi, nome dado pelos gregos (Celtae para os romanos) aos povos da Europa central – servindo em exércitos de povos mediterrâneos durante os IV e III séculos a.C. Esta experiência dos mercenários serviu para familiarizar muitos homens da Europa central com o mundo mediterrâneo. A maioria destes homens provavelmente retornou para casa depois de seu serviço, e quando o fizeram, levaram com eles riqueza, conhecimento e ideologias provenientes dos povos mediterrâneos; em pelo menos alguns destes casos deve ter havido o desejo de “imitar” aspectos deste estilo de vida.
O livro descreve os povos que César encontrou na Gália e no norte da Europa como pertencentes a sociedades dinâmicas que estavam passando por processos complexos de mudança em sua economia, organização política e estrutura social. É especialmente importante a evidência cada vez maior de interação entre os habitantes de diferentes regiões da Europa no último século a.C. Havia uma quantidade crescente de bens romanos chegando a comunidades ao norte dos Alpes; o crescente desejo de adquirir estes bens, junto à sua cada vez maior disponibilidade, levou ao desenvolvimento de redes de comércio, por onde estes bens eram levados da Itália romana até a Europa central e ocidental, e mesmo a comunidades mais ao norte.
Por serem as sociedades heterogêneas e complexas quando os romanos marcharam pela Gália Central, não podemos compreender as interações que se iniciaram como simplesmente o exército romano conquistando as “massas” locais. Estes eventos ocorriam em uma época de feroz rivalidade entre as diferentes tribos da Gália. Desde o início dos conflitos, César e outros generais fizeram uso de tropas e métodos de luta locais para alcançar as metas imperiais romanas. César teve sucesso baseado na construção e no cultivo de alianças com muitos grupos de povos da Gália, que se uniram a ele para derrotar os outros.
Segundo Wells, hoje se entende que muito do que Roma construiu na Europa central se deve a alianças com os grupos nativos e a associações com a elite local. Precisamos portanto considerar as populações locais como agentes decisivos no processo. Eles não eram apenas hostis. Em muitas situações, as elites se utilizaram de oportunidades criadas pela aliança com a administração romana, porquanto traziam o aumento de status, poder, prestígio e riqueza.
Como parte das campanhas, os romanos estabeleceram uma série de instalações na região, que não eram apenas fortes militares, mas também bases de suprimentos. Algumas comunidades locais já estabelecidas podem ter assumido esse papel de fornecedor ao exército romano. A presença de grandes forças militares deve ter tido um efeito profundo nos sistemas econômico, social e político locais, mesmo que o confronto militar direto não tenha ocorrido com estas comunidades.
Uma evidência disto é que, em meados do I século d.C., o território em torno do Reno estava se tornando economicamente ativo e rico, em parte por causa da presença de tropas estabelecidas na área. Vilarejos conhecidos como vici se formaram próximos às comunidades militares. Estes lugarejos muitas vezes se desenvolveram e transformaram em centros comerciais e manufatureiros de bom tamanho, e serviam a clientes militares e civis.
Portanto, a mudança que ocorreu na época da conquista romana não foi o estabelecimento de contato e o início da interação entre Roma e os povos que habitavam as terras ao norte dos Alpes. O que ocorreu foi uma mudança de interações causadas por motivos econômicos para uma situação onde Roma exercia alguma medida de controle militar e político sobre estas terras européias. Em todas as situações, evidência textual e arqueológica mostra que existia um padrão complexo de combinação das tradições locais e elementos introduzidos pelo aparato militar e administrativo de Roma.
De uma forma geral, o que se tinha era diversidade. Além disso, a reação às mudanças variava de região para região, de indivíduo para indivíduo. Após a conquista, os grupos locais continuaram a fazer muitas coisas da forma que faziam durante o período pré-histórico. A evidência mais clara da continuidade de práticas tradicionais pode ser encontrada nas cerâmicas. Os arqueólogos que trabalham em escavações do período romano há muito reconheceram a presença de cerâmica do estilo tardio da Idade do Ferro nestes locais.
Wells pede que consideremos dois processos opostos que operavam ao mesmo tempo. Em contraste com as forças de homogeneização representadas pelos centros urbanos romanos, as bases militares e o seu pessoal, e as elites locais que em muitos aspectos se transformaram em membros da aristocracia imperial, a evidência arqueológica mostra que muitas populações nativas reagiram contra a tendência para a uniformidade através da criação de padrões regionais distintos de enterros, práticas rituais e estilos de cerâmica, usando estas formas de expressão para criar um necessário senso de identidade pessoal e coletiva, mesmo que de modo geral continuassem sob dominação de uma autoridade estrangeira.
Existe evidência arqueológica e textual de interação através das fronteiras. Esta interação teve dois resultados para a Europa central: o primeiro foi a gradual homogeneização das sociedades dos dois lados da fronteira; outro foi a formação, durante o século III, de grandes confederações tribais entre os povos além da fronteira. A dinâmica criada por estes dois processos criou as condições necessárias para que se iniciasse a luta na região pela independência de Roma. Por mais de duzentos anos as fronteiras do império sobreviveram intactas. Então, por volta de meados do século III d.C., Roma se rendeu aos freqüentes ataques na fronteira e tirou suas defesas da parte superior do Danúbio e do Reno.
O resultado da interação entre estes povos e o império romano foi a formação de novas e dinâmicas sociedades, que incorporavam de maneira diversa tanto elementos da tradição local quanto os do mundo mediterrâneo. Este livro sugere que o modelo de interação estudado pode ser aplicado a outros impérios em outros períodos históricos; que em todas as instâncias de interação entre uma sociedade maior e mais complexa e uma menor e menos complexa, não podemos presumir que a maior irá predominar através de força política, militar ou econômica. Sociedades menores têm recursos diversos e pouco estudados que possibilitam que elas tenham um papel determinante no resultado desta interação.
Assunção Medeiros – Professora (Cândido Mendes). E-mail: suemedeirosbr@yahoo.com.br
WELLS, Peter S. The Barbarians Speak: How the conquered peoples shaped Roman Europe. Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 1999. Resenha de: MEDEIROS, Assunção. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.2, p.68-70, 2001. Acessar publicação original [DR]