Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit | Katharina Stegbauer
Angela Kaiser, Daniela Rutica e Katharina Stegbauer | Foto: fhm
Contextualização
A obra aqui analisada foi composta, originalmente, como uma tese doutoral na Fakultät für Geschichte, Kunst und Orientwissenschaften – Universität Leipzig. Após a publicação da tese, em 2010, o texto passou por incontáveis revisões bibliográficas e atualizações conceituais até a publicação do livro em seu formato final. Uma vez procedida a atualização da obra, ela veio inaugurar uma nova série acadêmica: “Ägyptologische Studien Leipzig”, que se dedica à publicação de estudos monográficos sob as regras do regime “Open Access”, via Propylaeum-ebooks1.
Graças à sua estruturação acadêmica original, a obra fornece ao leitor uma importante contextualização temática e conceitual sob a forma de um estado da arte sintetizando um século de desenvolvimento dos debates sobre a magia egípcia. Desse modo, a autora apresenta uma discussão historiográfica sobre como a antropologia cultural exerceu e exerce influência sobre o debate egiptológico. Leia Mais
A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens | Gerda Lerner
Gerda Lerner in her office in Madison (2002) | Foto: Andy Manis/The New York Times
A Criação do Patriarcado foi publicado pela editora Cultrix em 2019. A obra da historiadora e pesquisadora americana Gerda Lerner – uma das grandes desenvolvedoras do currículo da disciplina de História das Mulheres na Universidade de Wisconsin (EUA) – enfatiza o paradoxo entre o papel decisivo das mulheres na criação da sociedade e seu caráter marginal no processo histórico. Dessa forma, esses dilemas levaram-na a explorar cerca de 2600 anos de história da cultura do antigo oriente próximo, dando maior ênfase às sociedades mesopotâmica e hebraica.
Tendo como objeto de estudos as mulheres e o início das sociedades patriarcais, busca através dessa análise mostrar como esses sujeitos são peças centrais, e não marginais, para a criação da sociedade e a construção da civilização. Assim, como as mulheres foram impedidas de contribuir com o fazer História, Lerner se faz a seguinte pergunta norteadora de sua obra: quais são as definições e os conceitos necessários para que possamos explicar a relação única e segregada das mulheres em relação ao processo histórico, ao fazer história e a interpretação do próprio passado? Logo, a autora traça como objetivo principal mostrar que quando a mulher busca por uma compressão das relações de gênero e do seu passado, ela possui a força do fazer história. Leia Mais
Việt Nam – A History from Earliest Times to the Present | Bem Kiernan
Os estudos asiáticos no Brasil vêm desenvolvendo nos últimos anos, com algum fôlego, boas produções acadêmicas. Alguns departamentos, com maior frequência aqueles de língua, cultura e civilização estrangeiras, têm se esforçado para criar e manter centros de estudo sobre a Ásia. Os departamentos de História, por sua vez, com esforços igualmente louváveis, vêm já há algumas décadas envidando esforços no sentido de contribuir para uma abordagem mais matizada e vertical dos temas asiáticos, retirando-os assim de um destino quase sempre panorâmico da visada internacionalista interessada, mais imediatamente, nas conjunturas político-econômicas da ordem do dia.
Nesse contexto de abertura e consolidação de uma área de especialização, os estudos asiáticos quase sempre são sinônimo, no volume da produção acadêmica brasileira, de estudos sobre China, Japão e, com menos incidência, Coreia do Sul. As relações históricas mais próximas do Brasil com esses três países acabam, de alguma forma, condicionando e dirigindo o interesse do pesquisador brasileiro por temas ligados àqueles momentos em que estabelecemos relação mais direta com esses três representantes do extremo leste. Leia Mais
O desafio biográfico: escrever uma vida | François Dosse
François Dosse (1950- ) a partir de 1989 questiona radicalmente suas próprias concepções de história. Após a queda do muro de Berlim (e, com ele, o “socialismo real” e parte dos horizontes de expectativa do Ocidente), mais a descoberta da obra de Ricoeur, passa a perceber, nas ciências humanas, o social e o político segundo uma perspectiva hermenêutica e pragmática. Elemento mais ou menos ativo da geração de 1968, afirma que esta parece ter encontrado as ferramentas para exprimir aquilo que considera o ponto comum entre os que trabalham pela renovação nas ciências humanas: a vontade de fazer “sentido” (sem teleologia), o resgate da historicidade (sem historicismo) e o gosto pelo agir (sem ativismo). O novo paradigma próprio das ciências humanas permite, assim, repensar um novo horizonte de expectativas (DOSSE, 2004: 11-61).
Atualmente, portanto, a disciplina histórica parece se ressentir da necessidade da recomposição do sentido. François Dosse, após o estudo do vazio deixado pela crise dos grandes paradigmas (marxismo e estruturalismo) e a crítica dos Annales em A História em Migalhas (1987), fala em uma “virada historiográfica”: refere-se a um voltar-se dos historiadores a pensar, em diálogo com a filosofia, os conceitos de que se utiliza em sua operação profissional. A guinada hermenêutica e pragmática defende “a emergência de um espaço teórico próprio aos historiadores, reconciliados com seu nome próprio e a definição da operação histórica pela centralidade do humano, do ator, da ação” (DOSSE, 2004: 48).
Entre 1994 e 1997, Dosse trabalhou na elaboração da biografia intelectual de Paul Ricoeur. Paul Ricoeur: les sens d’une vie (ainda não traduzida para o português) é uma biografia intelectual situada na contramão das biografias tradicionais. Não busca uma história total, nem pretende solucionar mistérios psicológicos que ajudariam a compreender melhor a obra do filósofo. Dosse procede, ao contrário, a uma pesquisa plural dos diversos modos de apropriação do sujeito biografado. Deixa de lado a tradicional oposição entre verdadeiro e falso por uma busca constante de contextualização e recuperação das redes de sociabilidade intelectual. Abstém-se de qualquer pretensão de esgotar o significado de seu relato de vida para narrá-lo no plural, atento à recepção do biografado e de sua obra, sempre diversa, de acordo com o momento considerado. A biografia de Ricoeur está afeita, portanto, à maneira pela qual o próprio filósofo entende a construção de uma identidade pessoal, que se deixa observar através da pluralidade (DOSSE, 2009).
Em 2009, surge no cenário acadêmico brasileiro a tradução de Le Pari biographique: Écrire une vie, lançado na França em 2005. Publicado no Brasil pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), com apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, por ocasião do ano da França no Brasil, O desafio biográfico é uma história do gênero biográfico, desde Plutarco até a inflexão do gênero a partir dos anos 1980, de acordo com a guinada hermenêutica e pragmática referida anteriormente.
Neste estudo da evolução das biografia, Dosse diferencia três modalidades de abordagem biográfica: a idade heroica, a idade modal e, por fim, a idade hermenêutica: “se conseguirmos detectar uma evolução cronológica entre essas três idades, veremos claramente que os três tipos de tratamento da biografia podem combinar-se e aparecer no curso de um mesmo período” (DOSSE, 2009: 13).
De início, destaca o caráter híbrido do gênero biográfico, tensionado entre o viés científico e a aspiração à verdade e o elemento ficcional e uso da imaginação histórica no suprimento de carências documentais:
A dificuldade de classificá-lo numa disciplina organizada, a pulverização entre tentações contraditórias – como a vocação romanesca, a ânsia de erudição, a insistência num discurso moral exemplar – fizeram dele um subgênero há muito sujeito ao opróbrio e a um déficit de reflexão (DOSSE, 2009: 13).
Outro problema recorrente envolvendo a biografia é que “a ânsia de dar sentido, de refletir a heterogeneidade e a contingência de uma vida para criar uma unidade significativa e coerente traz em si boa dose de engodo e ilusão” (DOSSE, 2009: 14). Trata-se da “ilusão biográfica”, sobre a qual alertava o sociólogo Pierre Bourdieu, para quem a narrativa biográfica pressupõe que a vida constitui um conjunto coerente e orientado que pode e deve ser apreendido como expressão unitária (BOURDIEU, 1996). A crítica radical de Bourdieu à ilusão biográfica, através da qual inclusive afiança o sujeito como entidade não-pertinente, certamente despertou inúmeras interrogações. Dosse, em resposta, vai além ao asseverar, com Roger Dadoun, a necessidade dessa ilusão e a questão da opacidade entre biógrafo e biografado (DOSSE, 2009). Em consequência da empatia com o tema, o biógrafo acaba possuído e modificado pela relação que estabelece com seu biografado. Ancorado em Ricoeur, Dosse afirma que “a escrita biográfica está bem próxima do movimento em direção ao outro e da alteração do eu rumo à construção de um Si transformado em outro” (DOSSE, 2009: 14). Para se evitar os riscos do descrédito, o biografado deve expor com frequência os elementos componentes do “contrato de leitura” com seus leitores. O pacto biográfico distingue o trabalho de pesquisa da ficção pela verificação dos métodos e critérios de cientificidade. De todo modo, enfatiza a tensão do gênero como desafio ao defini-lo como “gênero impuro”: “O domínio da escrita biográfica tornou-se hoje um terreno propício à experimentação para o historiador apto a avaliar o caráter ambivalente da epistemologia de sua disciplina, apanhada na tensão entre seu polo científico e seu polo ficcional” (DOSSE, 2009: 18).
Na Idade heroica da biografia (da Antiguidade à época moderna, de acordo com as divisões perpetradas por Dosse), ela prestou-se ao discurso das virtudes e, como tal, erigiu modelos moralizantes: “inscreve-se, nesse longo período, no respeito absoluto a uma tradição” (DOSSE, 2009: 123). Na Antiguidade, a tradição dos valores heroicos; após a cristianização, os valores religiosos. Ambos têm por modelo as vidas exemplares.
Plutarco foi um dos maiores nomes do gênero biográfico da antiguidade clássica. Pelo modelo de seu trabalho foi que o gênero biográfico iniciou a sedimentação de sua especificidade. “O objetivo capital do projeto de Plutarco é revelar os traços de destaque de um caráter psicológico em sua ambivalência e complexidade, inaugurando assim o gênero da vida exemplar com tons moralizantes” (DOSSE, 2009: 127). No medievo, a hagiografia – gênero literário que privilegia as encarnações humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade – toma o lugar na direção das “vidas exemplares”. “A reforma gregoriana acompanhou uma mudança radical na natureza dessas hagiografias, que se transformaram para os clérigos em exemplos de vida, em modelos a imitar” (DOSSE, 2009: 144).
No século XIX, a biografia é vista como subgênero, um modo de escrita da história relegado ao plano auxiliar: “Se o século XIX aparece às vezes como a idade de ouro da biografia, isso acontece porque nos esquecemos de que ele é, acima de tudo, o século da história” (DOSSE, 2009: 171-2). Entre os séculos XIX e XX, a biografia sofre então um “demorado eclipse, porque o mergulho da história nas águas das ciências sociais, graças à escola dos Annales, […] contribuiu para a radicalização de seu desaparecimento em proveito das lógicas massificantes e quantificáveis” (DOSSE, 2009: 181).
Esse longo eclipse Dosse define como o tempo da Biografia modal. Neste segundo tempo da escrita biográfica (a que corresponde um momento histórico e uma forma de abordagem), pretende-se deslocar o foco de interesse da singularidade do indivíduo biografado para enxergá-lo como ilustração da coletividade. O contexto prevalece e o indivíduo é seu mero reflexo. Ou seja, “a biografia modal visa, por meio de uma figura específica, ao tipo idealizado que ela encarna” (DOSSE, 2009: 195). Um bom exemplo são as obras de Lucien Febvre sobre Rabelais e Lutero. “Quando Lucien Febvre escreve sobre Rabelais, não é tanto a singularidade deste último que o interessa, mas, sim, o aparelhamento mental de sua época” (DOSSE, 2009: 215).
Na Idade hermenêutica, dos tempos mais recentes e terceiro tempo da história do gênero biográfico, François Dosse ainda opera uma divisão: a unidade dominada pelo singular e a pluralidade das identidades. Na idade hermenêutica, de reflexividade, há uma verdadeira retomada do gênero biográfico e até mesmo uma febre editorial no mercado de biografias. Diversos estudiosos, de historiadores a antropólogos, após a queda dos paradigmas estruturantes, rompem com os interditos que cercavam a biografia, ao se lançarem às questões do sujeito e da subjetividade. Nas palavras de Dosse, “A intrusão do biográfico nas ciências sociais sacode alguns postulados “científicos” […], pois os relatos se situam num espaço entre a escrita e a leitura literárias ou entre escrita e leituras científicas” (DOSSE, 2009: 242). Insatisfeitos diante das realizações biográficas próximas dos tipos ideais ou animadas pela vontade de demonstrar alguma coisa a priori, os historiadores e demais cientistas sociais sentiramse atraídos, nos anos 1970/80, pelas teses da microstoria, que preconizou uma abordagem bem diversa. É o que Dosse chama de ideia do “excepcional normal”: “Em vez de partir do indivíduo médio ou típico de uma categoria socioprofissional, a microstoria […] ocupa-se de estudos de caso, de microcosmos, valorizando as situações-limite de crise” (DOSSE, 2009: 254).
Atualmente, na era da reflexividade hermenêutica, o campo de estudos biográficos tornou-se privilegiado como campo de experimentação para o historiador: “Os estudos atuais se caracterizam pela variação do enfoque analítico […]. O quadro unitário da biografia foi desfeito, o espelho se quebrou para deixar aflorar mais facilmente […] a pluralidade das identidades, o plural dos sentidos da vida” (DOSSE, 2009: 344). A heterocronia complexa sugerida pelas relações entre história e psicanálise questiona a todo momento as noções lineares tradicionais de sucessividade e sequencialidade e, assim, ajuda a evitar as ilusões biográficas. A linearidade da biografia tradicional é questionada, portanto, e até mesmo suas balisas temporais clássicas, a vida biológica e o ciclo de nascimento e morte. Há condicionamentos que se impõem ao indivíduo antes de nascer, bem como há metamorfoses do sentido de sua vida após seu desaparecimento.
A “biografia intelectual” visa ao estudo dos escritores, filósofos e homens de letras em geral: “por definição, o homem de ideias se deixa ler por suas publicações, não por seu cotidiano” (DOSSE, 2009: 361). Dosse salienta a importância da vida e obra serem retomadas em conjunto, porém, em seus respectivos recortes. Uma via original de abordagem do sujeito biografado não se reduz à via clássica da contextualização, mas é a busca da coerência de seu gesto singular. Defende o que o vínculo entre o existir e o pensar deve ser retomado a esta nova luz. A biografia intelectual se caracteriza pelo aspecto de abertura a interpretações distintas e inesgotáveis: considerando que o significado de uma vida nunca é unívoco, ela aponta a importância da recepção do sujeito biografado no tempo e pelos seus pares e leitores. François Dosse assevera ser impossível saturar o sentido de uma vida, que pode – e mesmo deve – ser constantemente reescrita.
A história, como a biografia, é constantemente reescrita, reinterpretada; não admite um conhecimento imediato, total, definitivo sobre o passado. Isso pela especificidade própria de seu objeto de conhecimento: as sociedades humanas e os homens em um processo temporal. O próprio conhecimento histórico constantemente se transforma, acompanhando as mudanças da história e da disciplina histórica. Não há, portanto, um passado fixo a ser extenuado pela história. As experiências e expectativas futuras alteram a compreensão do passado. Para Reinhardt Koselleck, conhecer um determinado contexto histórico é saber como, nele, se relacionaram as dimensões temporais do passado e do futuro (KOSELLECK, 2006). Na expressão de Dosse, “um diálogo sobre o passado aberto para o futuro, a ponto de se falar cada vez mais de futuro do passado” (DOSSE, 2009: 410).
Aberto ao devir, o regime de historicidade não se pretende mais fechado sobre si mesmo. O caso das pesquisas biográficas e as questões levantadas por Dosse no seu Desafio biográfico colocam em xeque as pretensões totalizantes de escrita da história, mesmo sobre a escrita da vida de um único indivíduo. A abordagem hermenêutica, reflexiva/interpretativa, opõe obstáculos aos determinismos e causalidades rigorosas. Humanizando-se, as ciências humanas despem-se de resquícios do modelo das ciências naturais. Destarte, o trabalho de François Dosse sobre o gênero biográfico é, também, uma verdadeira exposição e problematização dos aspectos mais recentes e complexos em que se confrontam as ciências humanas e a teoria da história. Em diálogo aberto com a filosofia, a história volta-se para o humano, ao sujeito e à ação. No seu centro, a noção de sentido (existencial).
Referências
AVELAR, A. S. A biografia como escrita da história: possibilidades, limites e tensões. Dimensões, Vitória, v.24, p. 157-72, 2010.
BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Orgs.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.
DOSSE, F. Ensaio de Ego-História: percurso de uma pesquisa. In: DOSSE, F. História e Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 11-61.
KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC/Contraponto, 2006.
Raphael Guilherme de Carvalho – Mestrando em História Universidade Federal do Paraná. E-mail: raphaelguilherme09@hotmail.com
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Contraponto. Teresina, v.1, n.1, p.129-134, jan./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
História da África: uma introdução – LOPES; ARNAUT (RHR)
LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. Resenha de: SILVA, José Alexandre da. Revista de História Regional, v.16, n.1, p. 304-310, Verão, 2011.
Desde 2003, quando o Presidente Lula sancionou a lei nº 10.639, vários títulos dedicados à história afro-brasileira e africana têm surgido no mercado editorial brasileiro. O conteúdo da referida lei torna obrigatório o ensino de História Africana e Afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de nosso país. Nesse sentido, ela cria uma demanda de materiais que sirvam de subsídio para professores da Educação Básica, alunos de graduação e a quem mais interessar. Uma das formas em que o mercado editorial vem respondendo a essa necessidade é trazendo a público livros de caráter introdutório.1 Uma dessas obras é História da África: uma introdução.
De autoria de Ana Mónica Lopes, africana nascida em Lubango, doutora em História das Culturas, e Luís Arnaut, professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Este livro de dimensões modestas visa introduzir o leitor ao conhecimento acerca da história da África. Não obstante, cumpre seu papel construindo um panorama do continente amparado em pesquisadores brasileiros e africanos e, seu principal mérito, traz as principais concepções historiográficas acerca do continente africano.
A conquista dos movimentos negros que representa essa lei, a nosso ver, passa por alguns dilemas. Embora algumas unidades da federação organizadas com suas Secretarias de Educação, oficialmente possuam um discurso no sentido de efetivar a lei, é outra história afirmar que ela seja de fato levada até seu objetivo final, a sala de aula. Quando se fala de história africana, logo nossas lembranças escolares nos remetem à história da escravidão, com as imagens de negros em ambiente de trabalho ou sendo açoitados. Pensando na história da África, o conteúdo escolar mais recorrente é o das navegações do século XVI, quando portugueses e holandeses contornam o continente. Essa visão repousa na representação do dominador, civilizado e possuidor de um aparato tecnológico mais sofisticado, o europeu. Em contrapartida, temos a representação do africano submisso, colonizado e destituído de objetos que remetam à ideia de tecnologia. Assim, a visão mais difundida da África continente torna-se um obstáculo.
Ao longo do tempo, esses elementos presentes nos materiais escolares e nas salas de aulas, se cristalizaram em nosso imaginário. Romper com a narrativa do negro vitimizado vindo de um lugar desconhecido pode ser um passo essencial para que os afrodescendentes se assumam como tal. Entretanto, também é importante lembrar que construir uma narrativa na qual os africanos e os afro-brasileiros figurem de forma digna não significa fomentar ódio racial ou um país cindido entre brancos e negros.2 Nosso país é composto por várias etnias, e que cada uma tenha sua história não implica em animosidade entre as mesmas.
Já na introdução da obra, os autores justificam a necessidade de seu livro apresentando a questão de como os professores ensinarão a seus alunos algo que não aprenderam nos bancos da universidade, considerando que nos cursos de licenciatura o continente aparece como secundário e marginal em relação a alguns processos históricos. No primeiro capítulo, são abordadas as várias construções acerca da ideia de África, em fontes como os textos de Heródoto, Plínio e a cartografia medieval, desde o período da Antiguidade, passando pela Idade Média e Moderna. No geral, prevalece a noção de “território de monstros”, continente associado ao “Bestiário” e região de “clima inóspito”.
O segundo capítulo questiona o termo África que, utilizado de forma genérica, como identidade estabelecida pelo europeu, para todos os habitantes do continente não permite uma matização de suas diferenças físicas, culturais e sociais, tendo sido utilizado como sinônimo de atraso. Os autores pontuam que os habitantes da África devem ser pensados como membros de civilizações e culturas que realizaram migrações, trocas culturais com outras civilizações e com padrões de sociabilidade que tornam inadequadas sua caracterização pela ótica ocidental. Há que se destacar a importância da reflexão empreendida pelos autores sobre os conceitos de raça, etnia e formação humana.
No capítulo 3, intitulado “Religiões”, Lopes e Arnaut traçam um perfil do continente africano no que tange a essa questão. A introdução das religiões monoteístas, como o cristianismo e o islamismo, é analisada de forma atenta pelos autores, os quais destacam que esta última se encontra na melhor posição para se tornar a religião do continente, devido ao seu ritmo de crescimento. No que se refere às religiões nativas, consideramos importante citar:
“[…] tentam responder às mesmas indagações que as demais religiões. Apresentam um deus superior que criou o universo e, em algumas, verificamos a presença de entidades menores […] Outro elemento importante é a ligação com os ancestrais […].” 3
O quarto capítulo trabalha a questão de como as diferentes tradições intelectuais se posicionaram diante do continente africano. A concepção hegeliana de negação de história para a África prevaleceu favorecida pela noção, superada, de se considerar o que é histórico vinculado ao surgimento da escrita. Nos dias de hoje, acredita-se que a humanidade está vinculada ao princípio da ereção corporal que possibilitou pensar outros registros, iconográficos e artísticos, como fontes de pesquisa. Os autores também mencionam a importância de alguns centros de pesquisa, que mesmo estando atrelados ao colonialismo europeu, deram uma contribuição importante para aspectos da história e geografia africana, assim como a realização do projeto História Geral da África coordenado pela na década de 1960.
O quinto capítulo versa sobre as organizações políticas. Nele, os autores trabalham com categorias de império e reinos e classificam a organização política dos povos africanos em três fases distintas até o período da colonização.
Uma se estende até o século VI da era cristã, marcada pela constituição de grandes culturas na faixa mediterrânea e na extensão do Nilo. Uma segunda até o século XV, marcada pela presença islâmica. A terceira fase vai até 1880 e é caracterizada pela presença europeia no continente.
O capítulo 6 é referente ao fenômeno que chamamos também de neocolonialismo. Até o final do século XIX, o contato dos europeus com o continente africano estava mais restrito ao litoral. Com as independências das nações latino- -americanas, voltaram sua atenção para continente que até então funcionava principalmente como repositório de escravos, partilhando-o entre si. As explicações mais comuns para esse fenômeno são realizadas a partir da perspectiva europeia, com a concentração de capital e formação de monopólios nos países colonizadores.
O livro aqui analisado traz uma perspectiva diferente, amparada na teoria da dimensão africana. Segundo essa, uma expansão do capital privado desencadeou uma ocupação militar no continente africano frente à ação de resistência dos habitantes nativos à colonização. Os europeus de fato tiveram motivos de ordem econômica para essa expansão, mas os povos do continente africano também estavam passando por transformações antes da presença europeia, de modo que a resistência dessas populações ao domínio comercial desencadeou o domínio militar. Essa resistência é categorizada pelos autores em: primária, primária retardada e intermediária. Em suas palavras: A resistência primária foi uma reação direta à ameaça representada pelos invasores europeus. Os reis buscavam através dos diversos meios disponíveis, tanto militares quanto diplomáticos, conter a invasão, ou pelo menos impedir que resultasse na extinção dos reinos. Após os europeus já terem estabelecido sua presença e sua autoridade no território africano, desenvolveu-se a resistência primária retardada.
Apesar da diferença da presença ou não do europeu, as duas resistências são chamadas de primária, na medida em que traduzem um confronto entre povos distintos […] A resistência intermediária revela uma acomodação entre as antigas estruturas africanas e as novas estruturas coloniais. A partir da década de 1920, assistimos a uma acomodação e a um ajustamento à nova situação na qual os africanos e os europeus participam, de forma assimétrica, é verdade, da mesma configuração social.4 O domínio colonial é tema do capítulo 7. Lopes e Arnaut explicam o êxito do domínio militar dos europeus com cinco razões: superioridade militar e logística; maior estabilidade; maiores recursos materiais e financeiros; maior conhecimento do continente; e o avanço da medicina tropical. As primeiras e principais preocupações dos europeus foram no sentido de coagir mão de obra para abastecer os portos com produtos nativos e expropriação da propriedade da terra em favor dos colonos.
A violência, o extermínio biológico e cultural são apenas algumas das facetas da colonização europeia na África. Lopes e Arnaut destacam outros elementos que necessitam ser considerados ao se analisar esse processo histórico. A colonização europeia trouxe transformações significativas para os africanos tais como: a urbanização, propagação da educação formal e formação de uma nova identidade. Esse último elemento foi fundamental no processo de luta pela independência dos países africanos. Essas independências são tema do capítulo 8, no qual os autores problematizam a forma como a temática é apontada nos livros didáticos. O termo independência é apresentado como forma de pensar o processo de fim de domínio de nações europeias sobre o continente africano, em contraposição ao termo descolonização.
Essa última designação, também utilizada por professores de História em sala de aula, elimina vestígios da luta africana nesse processo e fortalece uma visão etnocêntrica do processo histórico em questão.
Também destacamos a importância de um item ao final livro que apresenta uma lista de filmes cuja temática é África. Os comentários que acompanham cada filme podem bem auxiliar professores numa eventual escolha para trabalhar com seus alunos. Nesse mesmo item, também pode ser encontrada uma cronologia detalhada das independências africanas, trazendo dados como ano, data, chefe de governo, principais partidos e fatos ligados ao evento. Na sequência, encontra-se uma considerável lista de sugestões bibliográficas agrupadas em torno de grandes temas que podem servir como roteiro de um estudo mais aprofundado. Também observamos a presença de alguns erros gráficos que esperamos sejam corrigidos em edições posteriores.
A obra ora resenhada cumpre bem seu papel de introduzir ao conhecimento de história da África. Pode ser bastante útil tanto a professores do Ensino Fundamental e Médio, bem como a acadêmicos das Ciências Humanas e ao público em geral. Trata-se de um trabalho introdutório que oferece ao leitor um panorama historiográfico, e não meramente informativo, do tema abordado, a África, o que pode ser destacado como ponto forte da obra. Outro elemento que merece atenção diz respeito à forma como os autores abordam o impacto da colonização europeia no continente não de forma maniqueísta, colonizador versus colonizado, mas como elementos que integram um processo histórico que cotidianamente desafia os africanos na busca de novos rumos para o seu continente.
Notas
1 Sobre algumas dessas obras traçamos algumas reflexões: SILVA, José Alexandre. África e Brasil Africano para a sala de aula. Históriae-História. In: http://www. historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=21; _____ Ancestrais: uma introdução à História da África Atlântica. Revista África e Africanidades. Ano I – n. 4 – Fev. 2009. In: http://www.africaeafricanidades.com/documentos/ Ancestrais_uma_introducao_a_historia_da_Africa.pdf
2 Este argumento é defendido por alguns autores, entre os quais destacamos: MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue. São Paulo: Contexto, 2009. Ver: SILVA, José Alexandre. Históriae-História. In: http://www.historiaehistoria. com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=60
3 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 30-31.
4 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 64.
José Alexandre da Silva – Professor de História da Secretaria de Estado de Educação do Paraná, e mestrando em educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: sjosealexandre@ymail.com.
Pequena história dos historiadores | Philippe Tétart
Toda sociedade tem História, mas nem toda sociedade deixa testemunhos e/ou escreve sua história. Na verdade, embora a expressão ‘história vivida’, a existência das sociedades e dos homens no tempo, seja comum a todas as civilizações conhecidas (ou não), a ‘história conhecimento’, ou mais precisamente, a interpretação daquele agir humano, refere-se apenas àquelas que tiveram a preocupação (política ou cultural) de deixar a posteridade o registro escrito de suas ações, sob a forma fragmentária de documentos (oficiais ou não), ou ainda de interpretações. Evidentemente, desde “tempos imemoriais, a questão da história dos homens e de sua sociedade se coloca” (TÉTART, 2000, p. 7). Mais ainda, para aquelas onde a cultura escrita preponderou sobre a tradição oral. No entanto, a importância de quem deixa o testemunho, sob a forma documental, ou mais caracteristicamente, por meio de uma interpretação (na figura subjetiva do historiador), segundo François Hartog em seu livro O espelho de Heródoto, só teria, de fato, se iniciado na Grécia, no século V antes de Cristo, principalmente com as Histórias de Heródoto, que buscaria “construir um saber fundado nos depoimentos escritos e orais, a fim de reconstituir a cadeia dos acontecimentos históricos e de designar suas causas naturais próximas ou distantes. Inaugura assim a tradição da história factual detalhada – particularmente das guerras” (TÉTART, 2000, p 13), conforme constatará Philippe Tétart. A própria palavra ‘história’, segundo Jacque Le Goff em seu livro História e memória, tal como aparece em todas as línguas românicas ou em inglês, viria do grego antigo historie, em dialeto jônico, que derivaria da raiz indo-européia wid-, weid-, que quer dizer ‘ver’. Daí, segundo ele, o sânscrito vettas, testemunha, e o grego histor, ‘aquele que vê’, seria também ‘aquele que sabe’. E esse é, para ele, o significado que a palavra ‘história’ tinha na obra de Heródoto, de procurar, de informar, de investigar (e, por extensão, de deixar testemunhado aquilo que ‘viu’ ou ‘ouviu’). Leia Mais
Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI | Cornelius Castoriadis
CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p.327-331, jan./dez. 2003.
Korea’s Place in the Sun: A Modern History
Bruce Cumings, autor de Korea’s Place in the Sun: A Modern History (New York: W.W. Norton, 1997) é um dos mais respeitados, e provavelmente o mais polêmico, dentre a meia-dúzia de acadêmicos americanos fluentes em coreano e dedicados a estudar a Coréia. A Coréia na sua milenar história e integridade peninsular. Cumings privilegia, no entanto, o século XX, sendo autoridade no evento-mor do período para os coreanos. Sua obra em dois volumes, Origins of the Korean War, permanecerá por muito tempo como o estudo de referência desse conflito.
O livro mais recente de Cumings, ao qual dedicarei este ensaio, tem como público-alvo estudantes universitários da civilização asiática. Aborda, assim, a Coréia não na sua geografia e estatísticas, mas através da longa vivência de um povo unido por ferrenho orgulho nacional. Cumings evidencia grande empatia por esse povo, que é o da sua família política. Sua mulher, Meredith Woo-Cumings, é uma distinta historiadora coreana: Jung-en Woo. Cumings rejeita, contudo, qualquer idéia de uma homogeneidade étnica dos coreanos. Os habitantes da península acentua ele são mistura complexa de povos que por ali cruzaram: chineses, japoneses, mongóis e manchus, e talvez até caucasianos. A situação de península e o limite natural com a China, fornecido desde sempre pelos rios Yalu e Tumen, definiram o cadinho em que todos esses grupos se amalgamaram. Leia Mais
Korea’s Place in the Sun: A Modern History | Bruce Cumings
Bruce Cumings, autor de Korea’s Place in the Sun: A Modern History (New York: W.W. Norton, 1997) é um dos mais respeitados, e provavelmente o mais polêmico, dentre a meia-dúzia de acadêmicos americanos fluentes em coreano e dedicados a estudar a Coréia. A Coréia na sua milenar história e integridade peninsular. Cumings privilegia, no entanto, o século XX, sendo autoridade no evento-mor do período para os coreanos. Sua obra em dois volumes, Origins of the Korean War, permanecerá por muito tempo como o estudo de referência desse conflito.
O livro mais recente de Cumings, ao qual dedicarei este ensaio, tem como público-alvo estudantes universitários da civilização asiática. Aborda, assim, a Coréia não na sua geografia e estatísticas, mas através da longa vivência de um povo unido por ferrenho orgulho nacional. Cumings evidencia grande empatia por esse povo, que é o da sua família política. Sua mulher, Meredith Woo-Cumings, é uma distinta historiadora coreana: Jung-en Woo. Cumings rejeita, contudo, qualquer idéia de uma homogeneidade étnica dos coreanos. Os habitantes da península acentua ele são mistura complexa de povos que por ali cruzaram: chineses, japoneses, mongóis e manchus, e talvez até caucasianos. A situação de península e o limite natural com a China, fornecido desde sempre pelos rios Yalu e Tumen, definiram o cadinho em que todos esses grupos se amalgamaram. Leia Mais