Os antigos habitantes do Brasil | Pedro Paulo Abreu Funari

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Os antigos habitantes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Resenha de: SILVA, Filipe Noe da. Arqueologia para uma outra história do Brasil. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v. 2, n. 4, p. 243-247, jan./jun. 2020.

Mesmo se considerarmos o abismo provocado pela desigualdade social, ainda nos parece possível afirmar que o vastíssimo (e diverso) universo escolar brasileiro, nos dias atuais, funciona a partir de metodologias e ferramentas de ensino bastante variadas. Apesar da paulatina informatização do ensino, com o uso cada vez mais frequente de videoaulas, canais e redes sociais, as apostilas e livros didáticos de todas as disciplinas ainda constituem suportes informativos de ampla difusão no quotidiano das escolas brasileiras1. Em muitos casos, pode-se mesmo conjecturar que o material didático é o primeiro livro da vida de muitos de nossos estudantes, e permanece como “[…] o principal instrumento do qual se podem valer os professores” 2.

No ensino de História, em particular, os livros didáticos e paradidáticos coexistem com documentos que, a priori, não foram elaborados com finalidades pedagógicas, mas que são empregados na sala de aula para tal fim: filmes, músicas, imagens, fotografias, documentários, obras de arte, poemas e artefatos arqueológicos, com frequência, são convertidos em documentos de grande valia para o estudo da História3. Do mesmo modo, narrativas pessoais e memórias orais, igualmente convertidas em fontes históricas, têm revelado aos(às) jovens estudantes as percepções daqueles e daquelas que, em muitos casos, testemunharam as inúmeras transformações, invenções e rupturas que atingiram suas sociedades no último século4.

São muitas as investigações sobre os discursos históricos apresentados pelos livros didáticos do presente e do passado: além das tradicionais memórias nacionais, temas referentes às questões étnico-raciais, às relações de gênero e ao silenciamento das populações subalternas, em geral, têm colocado em evidência os propósitos políticos e identitários das publicações didáticas mundo afora5.

Como no caso do estudo da Antiguidade, cujos livros didáticos apresentam “[…] anacronismos, erros, simplificações, juízos de valor e, principalmente, falta de atualização dos assuntos tratados” 6, não é raro encontrarmos, em muitos materiais voltados ao ensino da História, narrativas eurocêntricas, elitistas e baseadas em uma perspectiva “civilizadora” dos colonizadores. Dentro dessa perspectiva histórica, como constatou Francisco Silva Noelli7, a experiência dos povos indígenas do Brasil, por vezes, figura de maneira apenas preambular nos livros escolares: “[…] se compararmos o status desses temas com os demais conteúdos do currículo básico de História do Brasil e das Histórias Regionais, facilmente constataremos que eles são irrisórios em termos quantitativos”8.

Apesar de não ser um livro didático stricto sensu9, a segunda edição d’Os antigos habitantes do Brasil, de Pedro Paulo Funari, docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), oferece uma alternativa valiosa para o atual ensino da História das populações indígenas do território brasileiro. Em consonância com as teorias sociais pós-colonialistas, sua narrativa constitui uma ferramenta pedagógica fundamental para a superação do senso comum e dos muitos estereótipos racistas e etnocêntricos associados a esses povos. Ao demonstrar, por exemplo, que a ocupação humana no Brasil extrapola os 10 mil anos, a referida publicação coloca em xeque a hipótese, ainda vigente em âmbito escolar, de que não existe História onde inexiste a escrita. Frente à escassez de documentos escritos, por sua vez, o autor recorre à Arqueologia, ao estudo da cultura material produzida de maneira espontânea e quotidiana pelos próprios indígenas.

Reconhecida no Brasil e em âmbito internacional, a trajetória acadêmica do professor Funari promove uma profícua (e original) amalgamação de estudos sobre História Antiga (com ênfase nas camadas populares sob uma perspectiva da História Cultural), Antropologia e Arqueologia: reflexo de uma formação híbrida e da abertura, por parte do autor, ao diálogo e à interdisciplinaridade. Ao converter tal erudição em uma linguagem acessível e agradável aos estudantes de nível Fundamental e Médio, Funari, em seu livro sobre Os antigos habitantes do Brasil, aproxima seus leitores e leitoras de temas particularmente complexos à História e à Arqueologia contemporâneas, tais como a origem das populações ameríndias e as transformações (territoriais, sociais e faunísticas) decorrentes das mudanças climáticas.

A relação entre os seres humanos e o meio-ambiente, fonte fundamental de sobrevivência às populações indígenas, não é apresentada de maneira determinista, como se as populações nativas fossem apenas submissas e passivas frente às imposições da natureza hostil. Ao contrário, com o intuito de evidenciar o protagonismo e a originalidade desses povos, o autor demonstra, de maneira sutil e didática, que atividades como a caça, a coleta e a pesca teriam coexistido com a agricultura no território brasileiro desde antes da chegada dos portugueses.

Devido às escolhas curriculares, é bastante usual nas escolas brasileiras que a agricultura seja apresentada enquanto um apanágio restrito às civilizações localizadas no Crescente Fértil mesopotâmico, e que dali teria se difundido a outros povos e lugares. Nas escolas do estado de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento da agricultura, outrora denominado por Vere Gordon Childe como “Revolução Neolítica”, ou simplesmente a “[…] progressiva utilização de técnicas para a produção de alimento (agricultura e criação de gado) em substituição das técnicas da simples exploração (caça e coleta) de tudo quanto já estava presente na natureza”10 tem integrado, ainda que de maneira subordinada ao tema do “Oriente Próximo”, o grupo de habilidades e competências previstas para o 4º e 6º anos do Ensino Fundamental e à 1ª série do Ensino Médio. Em nenhum dos currículos11 (2010 ou 2019), no entanto, há qualquer referência aos processos de desenvolvimento agrícola ocorridos de maneira independente no continente americano em períodos pré-coloniais, ou noutras localidades do planeta12.

Sobre a chegada dos primeiros seres humanos à América, em particular, o autor apresenta duas hipóteses principais: por um lado, os ameríndios seriam descendentes de asiáticos que teriam atravessado os noventa quilômetros do chamado Estreito de Bering em uma época em que o nível das águas teria sido mais baixo. Por outro lado, devido à presença de restos mortais de indivíduos oriundos da Oceania, outras possibilidades de povoamento, seus limites e incertezas, também são apresentadas de maneira didática e elucidativa. O uso de mapas e ilustrações na explicação das duas hipóteses também constitui uma boa opção pedagógica acerca do tema.

Por meio da cultura material produzida pelos indígenas, Funari demonstra toda a diversidade, autonomia e criatividade das etnias espalhadas pelo Brasil. Entre tupis e marajoaras, a cerâmica, as habitações, os sambaquis, os artefatos líticos e as pinturas, todos ilustrados pelos belíssimos traços de Isabel Voegeli Stever, aproximam alunos e alunas de civilizações complexas e cuja produção material, segundo o próprio autor, nada deixaria a desejar se comparada àquela dos gregos e egípcios da Antiguidade, por exemplo. Sem prescindir do rigor necessário às investigações sobre o passado, os inúmeros artefatos arqueológicos são apresentados em fotografias de alta resolução e suas descrições convidam os(as) estudantes a tecerem suas próprias interpretações sobre esses objetos.

Para além do eventual diálogo com as teorias pós-processualistas da Arqueologia13 e sua respectiva ênfase na subjetividade do conhecimento arqueológico, também julgamos pertinente uma aproximação às considerações do educador Paulo Freire sobre o respeito às formas de conhecimento trazidas pelos(as) discentes como forma de respeito e estímulo à autonomia intelectual:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária (…). Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm dos indivíduos?14

Temas contemporâneos, como a divisão social do trabalho e o protagonismo das mulheres nas sociedades indígenas, ajudam a compor um livro que, embora verse preponderantemente sobre o passado, fá-lo a partir das demandas e reivindicações sociais do tempo presente. Conforme consta na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a compreensão sobre “Os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais”15 constitui um objeto de estudo a ser explorado nas aulas de História do 6º Ano do Ensino Fundamental. Se for este, de fato, o documento fundamental que norteará os rumos da educação básica no Brasil durante os próximos anos, o livro Os antigos habitantes do Brasil, uma vez inserido nos currículos estaduais e municipais, parece-nos profundamente necessário e atual, principalmente porque apresenta uma perspectiva democrática e inclusiva sobre a História dos indígenas a todos os estudantes brasileiros.

Notas

1. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a12v30n3.pdf  Acesso em: 12 abr. 2020; BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História. Fundamentos e Métodos. São Paulo: Editora Cortez, 2005.

2. SILVA, Glaydson José. Os avanços da História Antiga no Brasil. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos […]. São Paulo: ANPUH, 2011.

3. BITTENCOURT, op. cit.

4. Sobre este tema, em particular, vide: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1979.

5. CHOPPIN, op. cit., p. 554.

6. SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil: algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, São Paulo, v. 1, p. 145-155, jan./jul. 2010. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/Aletheia/article/view/73/62. Acesso em: 12 abr. 2020.

7. NOELLI, Francisco Silva. Resenha: Os antigos habitantes do Brasil. Educ. Soc, Campinas, v. 24, n. 82, p. 341-342, abr. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302003000100027.  Acesso em: 12 abr. 2020.

8. Ibidem, p. 341.

9. De acordo com Circe Bittencourt, os livros didáticos convencionais estariam sujeitos a interesses editoriais e de mercado: “[…] Como produto cultural fabricado por técnicos que determinam seus aspectos materiais, o livro didático caracteriza-se, nessa dimensão material, por ser uma mercadoria ligada ao mundo editorial e à lógica da indústria cultural do sistema capitalista”. Ver: BITTENCOURT, op. cit., p. 301.

10. LIVERANI, Mario. Antigo Oriente. História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016. p. 71.

11. No antigo currículo (2010), o tema do “Oriente Próximo” integrava os estudos de História do 6º Ano do Ensino Fundamental e 1ª Série do Ensino Médio. Conferir: SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo. Ciências Humanas e suas tecnologias. São Paulo: Secretaria da Educação, 2010. Já o novo Currículo Paulista aborda o tema da Agricultura de maneira genérica por meio do objeto de conhecimento: “A ação das pessoas, grupos sociais e comunidades no tempo e no espaço: nomadismo, agricultura, escrita, navegações, indústrias, entre outras”. Cf.: SÃO PAULO. Currículo Paulista. São Paulo, 2019. p. 466.

12. Para uma síntese desses processos, vide: MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 66-67.

13. HODDER, Ian. Interpretación en Arqueología. Barcelona: Crítica, 1994. p. 195; TRIGGER, Bruce Graham. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Editora Odysseus, 2004. p. 373.

14. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2011. p. 21-22.

15. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2018.

Filipe Noe da Silva –  Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Professor das Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI) Mogi Guaçu, SP, Brasil. E-mail: filipe.hadrian@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5075-0131

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Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire / David Mattingly

MATTINGLY David 1 Roman Empire
David Mattingly / Foto: Archaeological Institute of America /

MATTINGLY D Imperalism Roman EmpireProfessor de Arqueologia Romana na Escola de Arqueologia e História Antiga (School of Archaeology and Ancient History) da Universidade inglesa de Leicester, desde 1991, David Mattingly é, atualmente, diretor de pesquisa do College of Arts, Humanities and Law e membro da Academia Britânica. Arqueólogo consagrado na academia britânica, o referido autor possui inúmeras publicações a respeito da arqueologia do Império Romano, as quais abrangem o resultado de suas pesquisas realizadas na Grã-Bretanha, Itália, Tunísia, Líbia e Jordânia. No momento, a África Romana tem sido a grande preocupação de Mattingly. Uma de suas prioridades tem sido analisar as situações de colonização romana no norte da África e tentar perceber, por meio da cultura material, as condições locais das populações que viviam sob o Império. Dentro desta perspectiva, Mattingly também atua como coordenador geral do projeto “Trans-Sahara: Formação do Estado, Migração e Comércio no Sahara Central (1000 a.C. -1500 d.C.)”.

Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire é formado, em sua maior parte, por ensaios resultantes de conferências realizadas por Mattingly na Tufts University, Massachusetts (EUA), em abril de 2006. A temática geral trata de um assunto muito debatido ultimamente na academia, que diz respeito, sobretudo, à aplicabilidade (ou não) do conceito de Romanização para os estudos do Império Romano. Mattingly opta pelo viés do Imperialismo, do poder e da identidade para formular sua proposta atual de pesquisa para o Império Romano, focalizando nas experiências locais como uma nova forma de interpretação dos vestígios arqueológicos. Segundo Mattingly, o termo Romanização não mais serve aos nossos propósitos atuais. O “seu” Império Romano, como realça, é o resultado de trinta anos de estudo. Após inúmeros trabalhos de campo e pesquisas científicas, o autor chegou à conclusão que as condições do Império Romano eram situacionais, pois a percepção do que era o Império variava de região para região. Os estudos pós-coloniais foram, neste sentido, essenciais para o desdobramento de sua tese atual.

Os capítulos do livro são formados por ensaios direcionados a temáticas variadas, mas sempre partindo de um eixo central – a questão do poder. São quatro as partes que compõem a estrutura interna do livro, a saber: 1) Imperialismos e Colonialismos; 2) Poder; 3) Recursos e 4) Identidade. A primeira parte é constituída por dois capítulos. No primeiro deles, intitulado “Do Imperium ao Imperialismo: escrevendo sobre o Império Romano”, Mattingly discorre a respeito de vários termos utilizados pela historiografia que trata de Roma Antiga. Conceitos como Império, Imperialismo, Colonialismo, Globalização e Romanização são colocados em pauta e debatidos. Partindo de uma revisão historiográfica sobre o Império Romano, o autor descortina as influências que o Imperialismo do século XIX, sobretudo o britânico, exerceu na interpretação do que foi Roma na Antiguidade.

A historiografia tradicional considerava que o Império Romano teria expandido a civilização para os povos bárbaros, assim como os europeus ocidentais estavam procedendo quanto às suas colônias na África e na Ásia. De uma maneira geral, os classicistas foram os grandes responsáveis por nos imputar a ideia de que somos herdeiros e beneficiários das ações civilizatórias romanas. Tal atitude é severamente criticada por Mattingly, que interpreta as atitudes romanas em relação às províncias como atos imperialistas, em muitos aspectos semelhantes àqueles perpetrados pelo Imperialismo contemporâneo. Segundo ele, o conceito de “Imperialismo” pode ser aplicado a Roma Antiga, pois Roma era um Estado excepcional na Antiguidade. A natureza das relações desiguais entre Roma e os estados conquistados, o exercício do poder e as diferentes respostas a ele indicam ao autor que o termo Imperialismo cabe bem à sua proposta de estudo. O desejo de poder é o ponto central que une todas as épocas e lugares que vivem sob um Império. Justifica-se também o uso do conceito de Imperialismo pelo fato de os administradores do Império Britânico considerarem a Roma Antiga como exemplo e modelo a ser seguido.

A maior parte das fontes que dispomos sobre Roma Antiga diz respeito aos grupos que compunham a elite. Faltam estudos que mostrem as reações e atitudes dos povos conquistados pelos romanos. As abordagens pós-coloniais estão sendo consideradas apropriadas para quem se dedica a estudar os efeitos do colonialismo e da colonização exatamente pela possibilidade de darem voz aos oprimidos. Muitos arqueólogos têm, ultimamente, utilizado esta perspectiva de análise para verificar questões relativas à identidade local. Este é o caso de Mattingly, cuja preocupação é saber como as pessoas sujeitas ao Império viviam e como esta situação afetava o seu comportamento e a sua cultura material. A partir do conceito de experiência discrepante (discrepant experience), desenvolvido por Edward Said [1], Mattingly estabeleceu o seu próprio, diferindo em certos aspectos quanto à ideia original proposta por seu criador. Said havia pensado neste conceito como definidor de uma dicotomia entre governantes e governados, onde cada um tinha a sua própria história. No entanto, Mattingly prefere usar o termo “experiência discrepante” no sentido de incorporar todos os impactos e reações ao colonialismo rejeitando a ideia de bipolaridade, no seu caso específico entre romanos e nativos (p. 29).

Ao tratar da “Romanização” Mattingly é bem claro em recusar o uso do conceito. Atualmente, muitos arqueólogos e historiadores continuam a usar o termo “Romanização” pensando, sobretudo, nas negociações entre os membros da elite local romana e o agente nativo. Entretanto, embora tenha usado este conceito no passado, Mattingly agora se mostra enfático em suas objeções a ele: seria um paradigma falho, pois possui múltiplos significados; é um termo inútil, pois implica que a mudança cultural foi unilateral e unilinear; faz parte do discurso moderno colonial; dá grande ênfase aos vestígios da elite como grandes monumentos; leva os estudiosos a adotarem posturas pró-romanas; não destaca os elementos que sugerem uma continuidade das tradições culturais da sociedade indígena; reforça uma interpretação da cultura material que é simplista e estreita (como aculturação e emulação); enfim, focaliza a atenção no grau de semelhança entre as províncias e não na diferenciação e na divergência entre elas.

No segundo capítulo, intitulado “De um colonialismo a outro: o Imperialismo e o Magreb”, Mattingly discorre a respeito de um estudo de caso da África Romana, região também marcada pela estrutura colonialista contemporânea. As pesquisas arqueológicas no Magreb (Argélia, Tunísia, Marrocos e Líbia) foram influenciadas, segundo Mattingly, pela ação colonialista de franceses e italianos, que se consideravam herdeiros dos romanos na região. A população local, de origem berbere, foi classificada como selvagem, bárbara e não civilizada. Buscando paralelos entre os imperialismos, antigo e moderno, Mattingly estabelece a existência de uma ação direta entre o exército de ocupação francês e os assentamentos romanos na região. A arqueologia foi, inicialmente, dominada por ex-militares, que procuravam vestígios de fortificações romanas. Na verdade, o que aconteceu foi que muitos sítios arqueológicos que eram áreas agrícolas na Antiguidade foram interpretados como sendo assentamentos militares romanos. Houve uma manipulação dos dados em benefício dos colonizadores.

Com o desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, baseados em atitudes de nacionalismo e de resistência, passou-se a considerar que a africanidade estava presente nos nomes púnicos das inscrições de época romana, na religião e em outros aspectos da sociedade dominada, fato que é demonstrativo da atuação dos agentes locais que viviam sob o Império Romano. Mattingly aponta as novas perspectivas necessárias, segundo ele, para que haja o desenvolvimento da arqueologia do norte da África: os estudiosos europeus devem abandonar o discurso colonial; a fase de ocupação romana precisa ser restabelecida no Magreb como uma parte importante de sua herança cultural; é importante a criação de uma nova agenda para a arqueologia clássica na região, uma que servirá às necessidades do turismo, mas que também se preocupará com a história do Magreb e, em última instância, uma mudança na atitude da Academia criará as circunstâncias certas para a utilização da teoria pós-colonial.

A segunda parte do livro de Mattingly é dedicada ao “Poder”. No terceiro capítulo, nomeado “Mudança de regime, resistência e reconstrução: Imperialismo antigo e moderno”, o autor discorre a respeito da atuação romana frente aos seus reinos clientes. Mais uma vez procura-se associar o Imperialismo antigo e o moderno. Apesar das diferenças entre eles, Mattingly defende a ideia de que todos os impérios têm uma base comum na dominação de terras, mares e povos, cujo elemento principal é o “poder”. No final da República e início do Principado foi comum a existência de governantes clientes. Tratava-se de reis locais, que mantinham o seu poder graças ao apoio romano. Estes reinos amigos eram uma forma econômica de se conseguir recursos e extrair tributos. Entre o final do século I a.C. e início do seguinte muitos reinos clientes foram anexados por Roma. O momento de anexação coincidia com a morte do rei e a não aceitação de seu sucessor. Um exemplo famoso é o de Cleópatra Selene, filha de Cleópatra VII e Marco Antônio, casada com o rei Juba II e colocada junto com ele no trono da Mauritânia, reino que originalmente não era de seus pais. Era comum que os governantes romanos apresentassem uma imagem negativa dos reis clientes que foram por eles depostos. No caso da Britânia, Mattingly ressalta que os historiadores colocaram a culpa pela invasão romana nos governantes dos reinos clientes, sendo que os romanos tiveram a intenção de dominar a região e, por isso, incentivavam atritos entre os habitantes locais.

No capítulo seguinte, “Poder, sexo e Império” a temática principal gira em torno da relação entre corpo e poder. Para tanto, Mattingly se apropria dos estudos pós-coloniais e compara aspectos do sexo no mundo romano com as atitudes observadas nas sociedades coloniais modernas. Um assunto específico chamou a atenção do autor – a questão do poder sexual e seus efeitos na formação das atitudes sexuais romanas. Mattingly está preocupado em verificar a influência negativa do poder na sociedade romana, que causou alterações na conduta dos romanos à medida que o Império se expandiu e conquistou vastos territórios. É comum os estudiosos considerarem que as relações culturais entre Roma e suas províncias eram, em certo sentido, igualitárias. No entanto, embora Roma não fosse racista e exclusivista como as metrópoles modernas, o impacto da conquista romana sobre os povos conquistados não pode ser negligenciado. O Imperialismo Romano estava baseado em poder assimétrico, coerção, exploração e violência. Enquanto as antigas abordagens a respeito do Imperialismo Romano tendiam a considerar que os povos dominados não possuíam nenhum papel ativo no seu destino, Mattingly enfatiza que todos os atos de colaboração, participação seletiva e resistência tomava lugar na estrutura dinâmica das relações de poder.

As teorias pós-coloniais servem para observarmos a relação entre ambas sociedades – a que domina e a subjugada – também no que diz respeito ao comportamento sexual. Segundo Mattingly, o comportamento considerado bizarro de certos imperadores é, geralmente, descrito pelos historiadores, mas não analisado. E este deveria ser compreendido em um contexto amplo de sexualidades alternativas proporcionadas pela existência de sociedades coloniais. Orgias romanas míticas podem, então, ser relocadas neste discurso. As fontes romanas e o vocabulário sexual latino revelam um padrão de dominação e práticas que atravessam os limites normativos da moral, do gênero, da classe e da etnicidade. Existem paralelos, neste sentido, entre os imperialismos romano, britânico e norte-americano. Os efeitos desta prática de domínio sexual podem ser observados na população dominada. Mas outra característica importante é a corrupção psicológica da humilhação e degradação sexual – que tem sido um poderoso instrumento de sustentação das diferenças sociais entre governantes e governados nas sociedades coloniais.

A sexualidade romana, no decorrer do tempo, sofreu alterações. De uma tradição comportamental austera adquiriu aspectos eróticos jamais vistos anteriormente. Mattingly se questiona sobre o que aconteceu. A resposta é algo interno à sociedade romana ou foi resultado de seu domínio colonial? Nos primórdios da civilização romana se falava de castidade, respeitabilidade e virtude e o comportamento adequado para as mulheres da aristocracia eram o de fidelidade sexual e de modéstia. Já os homens tinham suas licenças para ter sexo fora do casamento. Com a expansão da riqueza advinda das terras conquistadas e o aumento na quantidade de escravos, a sociedade romana teria sofrido transformações também em relação ao seu comportamento sexual. O exército estabelecido fora da Itália poderia experimentar novas formas de luxúria, colocada por Mattingly em termos de bens materiais, artísticos e acesso a uma culinária diferenciada.

Mattingly propõe deslocar o fenômeno da permissividade romana para o discurso colonial, onde temos a violência e a exploração em relação à sexualidade. O poder colonial inclui exercer o poder sobre os dominados inclusive no âmbito da sexualidade. Nas sociedades coloniais a distância do colonizador da sua terra de origem e sua permanência em um lugar desconhecido favorecia a transgressão às regras. A humilhação sexual dos colonizados, homens e mulheres, era comum. No vocabulário latino e nos relatos das práticas sexuais romanas fica evidente que o falo era um símbolo de poder, além de possuir seu significado propriamente religioso de proteção e de fertilidade. Termos linguísticos para o intercurso sexual estão sempre relacionados aos soldados. É o caso de verbos como penetrar, cortar, cavar e atacar, normalmente associados ao ato sexual masculino. Tanto a vagina (cunnus) quanto o reto (culus) estavam associados metaforicamente a animais, campos, grutas e objetos domésticos. As mulheres e aqueles que se sujeitavam ao papel passivo em uma relação sexual eram considerados de status social inferior. A palavra stuprum significa, em latim, vergonha. Era, por exemplo, chamado de stuprum o ato de um homem exercer a função passiva em uma relação sexual com outro homem, o que o equiparava a um escravo.

Ao tratar das relações de poder Mattingly nos remete às ideias de Michel Foucault (p. 102-103). A sexualidade não é considerada como uma condição natural e sim como produto das relações de poder e resultado do efeito de operações historicamente específicas de diferentes regimes de poder sobre o corpo. Embora Mattingly concorde com Foucault no sentido de considerar a existência de múltiplas formas de relações de poder, discorda deste pela não observação dos fatores que se opunham ao poder. Esta crítica a Foucault foi apresentada primeiramente por Said, preocupado com questões relativas à resistência ao poder dominante. Geralmente, quando se estuda sexo e desejo no mundo antigo não se faz pelo viés das relações de poder e sob a ótica do Colonialismo e do Imperialismo, tarefa a que Mattingly se propõe neste capítulo.

A terceira parte do livro aborda a temática “Recursos”. A questão relativa à economia e à exploração dos recursos das áreas conquistadas é central nos três capítulos que consideraremos a seguir. No capítulo V, denominado “Regiões governadas, recursos explorados”, Mattingly retoma um antigo debate a respeito da economia antiga. Durante muito tempo a historiografia foi dominada pelas ideias de Moses Finley, para quem a economia antiga não poderia ser considerada de mercado ou capitalista como queria alguns autores marxistas, entre eles Michael Rostovtzeff (p. 125). Finley seguia, neste sentido, as ideias desenvolvidas por Karl Polanyi, que postulou o conceito de uma economia “embededd”, imbuída em todas as esferas da sociedade. Estas opiniões divergentes polarizaram o discurso em dois matizes: os formalistas e os substantivistas. Os primeiros considerando a existência de uma economia de mercado, de cunho racionalista e, os últimos, sendo partidários de uma economia primitiva. Mattingly defende que a economia romana possuía ambos os aspectos, primitivo e progressivo, sendo uma economia híbrida. O objetivo de Mattingly é focalizar sua pesquisa no papel do Estado como motor da atividade econômica através de seu status de poder imperial. Sua análise parte das questões atuais a respeito do discurso colonial e não se define pela teoria econômica.

No capítulo VI, “Paisagens do Imperialismo. África: uma paisagem de oportunidade?”, Mattingly aborda uma temática recorrente nas pesquisas arqueológicas atuais, que diz respeito aos estudos da paisagem. A África seria, neste sentido, uma paisagem da oportunidade para os romanos. Pelo trabalho arqueológico foi possível, segundo o autor, identificar o crescimento econômico intensivo nas províncias da África Proconsular e a Numídia, entre os séculos II e IV d.C. Enquanto esta província cresceu, outras, como a da Acaia, diminuiu após a conquista romana. As paisagens provinciais foram o produto de processos complexos de coerção, negociação, acomodação e resistência, sendo exploradas tanto pelos colonizadores como também pela população nativa.

Em “Metais e Metalla: paisagem de uma mina de cobre romana em Wadi Faynan, Jordânia”, capítulo VII, o enfoque está colocado sobre a paisagem desta importante mina de cobre romana, cuja exploração intensiva tinha por objetivo manter o exército romano e o próprio império. Em comparação com as atividades industriais atuais, Mattingly salienta que a poluição causada ao meio-ambiente derivada desta ação humana passada permanece na localidade até os dias de hoje, sendo muito comum a contaminação do solo com chumbo, o que afeta a produção de alimentos e causa doenças em pessoas e animais. Estudos de caso como este de Mattingly são importantes, pois revelam a existência de vários tipos de relações de trabalho nas minas exploradas pelos romanos. Era comum que em uma mesma mina trabalhassem escravos e homens livres. Enquanto na mina de Wadi Faynan prevaleciam indivíduos condenados a trabalhos forçados, geralmente oriundos de populações que tinham se rebelado contra Roma, outras minas como as de granito e pórfiro do Egito (Monte Porfirius e Monte Claudianus) possuíam trabalhadores contratados, que recebiam salário.

“Identidade” é a temática da quarta parte, dividida em dois capítulos. No capítulo oitavo, intitulado “Identidade e Discrepância”, Mattingly apresenta uma nova abordagem para explicar a mudança cultural, que oferece uma alternativa àquela da Romanização. A história tradicional considerava as áreas conquistadas como tendo um papel passivo frente à civilização romana. Uma postura corrente nos estudos atuais, adotada, por exemplo, por autores como Martin Millet e Greg Woolf (p. 206), é considerar o papel ativo das elites locais que estavam sob o domínio imperial romano. Enquanto os membros pertencentes à elite adotavam a língua latina e os novos tipos de vestimenta, adornos e um comportamento romano, aqueles das camadas mais humildes teriam uma experiência mais diluída da Romanização. No entanto, para Mattingly, este modelo falha por considerar que a maioria da população nativa era passiva frente ao Império Romano. Mattingly conclui que, como a identidade está relacionada ao poder, a criação das identidades provinciais não pode ser tomada isoladamente da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados. E o que falta no modelo de Romanização é saber como as dinâmicas do poder operam tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Outra abordagem que busca se diferenciar dos estudos tradicionais foi proposta por Jane Webster com o uso do termo “crioulização” (p. 203-204), com a finalidade de visualizar na cultura material vestígios da cultura escrava crioulizada. Mattingly acredita que o uso deste termo é perigoso, pois acabamos por substituir um conceito elitizado, o de Romanização pelo seu oposto, que prioriza os indivíduos de baixo status social. Segundo ele, uma abordagem que combine ambos os lados se faz necessária.

Como observar esta diversidade em uma pesquisa arqueológica? Mattingly retoma as ideias de Sian Jones [2], que defende ser a etnicidade uma forma de identidade que a sociedade constrói (p. 209-210). A solução de Jones para este problema é focar a pesquisa nas culturas locais e comparar grupos de sítios como assentamentos rurais e fortes romanos, por exemplo. Ao trabalhar com estudo de caso de sítios rurais ela demonstra que havia considerável diversidade, que era obscurecida pelo modelo de Romanização com sua tendência em enfatizar a homogeneidade. Mattingly tem dúvidas em dar à etnicidade muita importância nos estudos sobre identidades passadas, mas sabe que tanto no mundo grego quanto no romano os discursos de etnicidade tinham um importante papel. Se a etnicidade era um dos pontos de significância para marcar a identidade, a evidência arqueológica sugere que ela não era uma constante no tempo e no espaço.

Para Mattingly, a identidade deve ser estudada em termos de poder e de cultura. E embora considere a importância do agente ativo nativo na mudança cultural sabe que há limites sobre a habilidade de escolher nossa identidade aos olhos dos outros. Enquanto o processo de conquista e assimilação ao Império Romano promoveu uma delineação profunda de identidades étnicas, vários fatores militaram contra a manutenção disto na longa duração. A identidade étnica dificultava e criava uma barreira para estas sociedades negociarem com Roma. As distinções étnicas, que tornaram-se grandes e significantes durante o processo de expansão imperial, foram, mais tarde, diminuídas como estratégias múltiplas para lidar com a identidade individual e comunal. A construção romana de identidade étnica servia ao propósito de facilitar a violência colonial, ao passo que a nativa servia como forma de resistência durante a fase de conquista.

A heterogeneidade de respostas a Roma não era uniforme e variava conforme o local. Alguns estudos recentes de identidade têm empregado o termo hibridização para definir o resultado do contato cultural entre romanos e nativos. Mattingly, ao priorizar a diferença ao invés da semelhança, defende a utilização do termo “discrepante”, que indica “discordância” e “desarmonia”. O ponto é que as sociedades provinciais romanas poderiam algumas vezes exibir discordância cultural assim como similaridades, que são geralmente celebradas por meio da teoria da Romanização. A principal preocupação do autor é mostrar que os indivíduos e os grupos no período romano foram multifacetados e dinâmicos. O que foi previamente descrito como Romanização representa as interações de múltiplas tentativas de definir e redefinir a identidade.

“Identidade discrepante” possui similaridades com os trabalhos que usam o conceito de agência e teoria da estruturação.[3]Estas teorias enfatizam as escolhas do sujeito na estrutura social (p. 216-217). Mas, no caso de sistemas imperiais, há uma limitação nesta escolha. Então, é preciso balancear o conceito de agência com um exame profundo das influências estruturais. Um ponto a considerar é que as estruturas imperiais afetam os atores locais de diferentes maneiras. Os impactos imperiais sobre as áreas dominadas podem ser observados, geralmente, por meio de atos intencionais perpetrados pelo Império Romano e o consequente comportamento dos sujeitos afetados. Alguns fatores importantes a se considerar pelo pesquisador são elencados por Mattingly (p. 217): 1) o status social (escravos, livres, libertos, bárbaros, cidadãos romanos, não cidadãos etc.); 2) riqueza – as formas de produção econômica (economia de subsistência, de mercado etc.); 3) localização (espaço urbano, rural, zonas civil, militar etc.); 4) trabalho (artesãos, membros de guildas, soldados do exército etc.); 5) religião – sobretudo as seitas exclusivistas como o Mitraísmo, os Cultos de Mistério, Judaísmo e Cristianismo); 6) origem (geográfica ou étnica, tribal etc.); 7) associação por serviço ou profissão ao governo imperial (ou não); 8) aqueles que viviam sob lei civil ou marcial; 9) linguagem e literatura; 10) gênero e 11) idade.

Mattingly exemplifica sua proposta de encaminhamento de pesquisa arqueológica com os dados provenientes da Britânia e do norte da África. Sua abordagem inicial para o estudo da Britânia foi isolar as evidências da comunidade militar, da população urbana e das sociedades rurais. Um dos vestígios mais prementes para observar a identidade discrepante diz respeito à religião, pois é uma esfera recorrente para a marcação de diferenciação social. A religião romano-britânica tem sido frequentemente apresentada como um amálgama de práticas romanas importadas e práticas nativas britânicas temperadas com influências galo-germânicas. Segundo Mattingly, a distribuição dos vestígios de certas práticas em santuários como a presença de altares e de inscrições com maldições são indicadores de que a religião estava associada à identidade social. O exército, por exemplo, tinha cultos muito diferentes daqueles dos civis. Enquanto nas áreas militares predominavam santuários romanos em outras comunidades os templos possuíam características celtas. Inscrições funerárias também servem para demonstrar as diferentes identidades do indivíduo no decorrer do tempo. Por exemplo, o relevo funerário de Regina, esposa de um mercador ou soldado de Palmira que vivia na Britânia, a retrata como uma respeitável matrona romana. Na representação iconográfica ela aparece usando vestimentas e adornos símbolos deste status social. No entanto, pela inscrição da lápide, em texto bilíngue, ficamos sabendo que antes do casamento Regina havia sido escrava de seu futuro marido (p. 218, fig. 8.3).

Em comparação com a Britânia a África era mais rica e próspera, possuindo maior quantidade de inscrições latinas. Léptis Magna, por exemplo, era uma grande cidade da Tripolitânia, habitada por líbios-fenícios, oriundos de casamentos mistos entre fenícios (púnicos, originários de Cartago) e líbios. A identidade púnica era muito parecida com a dos egípcios que viviam sob o domínio romano: servia à elite provincial que circulava pelas estruturas do poder romano, assim como era um marco da identidade local. A cultura material de cunho funerário como estelas, tipos de enterramento e inscrições bilíngues é demonstrativa deste tipo de comportamento.

O último capítulo, o nono, denominado “Valores familiares: Arte e Poder em Ghirza no pré-deserto líbio”, trata da relação entre arte e poder. Nos estudos historiográficos sobre a arte romana normalmente a arte das províncias é retratada como inferior, como sendo uma imitação inadequada daquela produzida no centro do Império. Não havia a preocupação em indagar qual iconografia ou estilo servia aos propósitos indígenas. Faltava também aos historiadores de arte considerar que na Antiguidade não existia separação entre arte e artesanato e também não havia um padrão estético que valesse para todo o Império Romano. A arte era usada por diferentes grupos na sociedade para expressar relações de poder. A arte oficial romana, que se expandia a todas as camadas da sociedade, servia para dar suporte à dominação imperial. No entanto, sabemos que a interpretação da iconografia dependia do contexto e da audiência. Para Mattingly, a adoção do estilo romanizado facilitou a continuação das tradições indígenas.

As tumbas de Ghirza, na Líbia, servem para exemplificar esta questão. Interpretadas à luz da arte romana eram vistas como degenerativas pelos escritores do século XIX e início do XX. Para Mattingly, estas tumbas devem ser consideradas não apenas como monumentos aos mortos, mas também como estruturas que tinham uma continuidade na significância religiosa dos vivos. O objetivo principal de Mattingly, nesta sua pesquisa, foi relacionar a imagética presente nas tumbas com as redes de poder construídas ao redor dos membros vivos e mortos das principais famílias de Ghirza. Sua hipótese é de que existiam duas famílias principais da elite em Ghirza, que procuravam demonstrar poder e status social por meio dos enterramentos e da iconografia funerária. Os chefes das famílias aparecem retratados nas tumbas com cetros e outros elementos simbólicos associados ao poder: vestimentas e adornos, cavalos, cães etc. As mulheres, por sua vez, aparecem representadas usando joias romanas. No entanto, Mattingly conclui que os retratos seguiam o padrão de representação púnico e serviam ao culto ancestral líbio.

Esta série de ensaios de David Mattingly é elucidativa do caminho que a arqueologia romana tem percorrido nos últimos tempos. O conceito de Romanização tem sido colocado em xeque e debatido em vários sentidos. Por isso mesmo, vem sendo utilizado com cautela no sentido de ser uma via de mão dupla, que permita vislumbrar não apenas a ação romana nas províncias, mas também as respostas dos sujeitos subordinados ao Império Romano. O desenvolvimento da teoria pós-colonial foi imprescindível para que vários arqueólogos e historiadores passassem a adotar uma postura mais crítica em relação à Romanização. Este livro de Mattingly é importante no sentido de trazer luz ao debate atual e por propor novas diretrizes para arqueologia romana. O caráter do Imperialismo e Colonialismo romanos, seu impacto econômico, a operacionalidade do poder nas sociedades coloniais e o modo como os indivíduos sob governo imperial construíram suas identidades são pontos-chave de sua proposta (p. 269).

A existência de um “Imperialismo Romano” é defendida enfaticamente no decorrer da obra, sendo que Mattingly não considera que haja problemas na utilização de termos como “Império”, “Imperialismo”, “Colonialismo” e “Colonização”, quando se trata de Roma Antiga. Os estudos sobre Roma foram pautados, no passado, pelo discurso colonialista europeu do final do século XIX e início do XX, do qual os norte-americanos foram herdeiros. Tal fato afetou toda a produção historiográfica que se dedicava aos estudos do Império Romano e possui repercussões até hoje. A teoria da “Romanização” é rejeitada e por meio das abordagens pós-coloniais outros aspectos da sociedade romana podem ser observados, segundo o autor: o dinamismo de seu Imperialismo e Colonialismo; a questão do poder, central para a compreensão da relação entre Roma e suas províncias; a existência de uma “economia imperial”, sendo o vetor econômico pautado pela exploração de recursos um dos pontos que caracteriza o Imperialismo Romano e, por fim, o conceito de “Identidade”, que pode ser usado para se estudar a diversidade e o hibridismo resultado do contato entre romanos e nativos.

Além das proposições teóricas propriamente ditas, Mattingly apresenta sua metodologia de pesquisa, que se detém em interrogar o registro arqueológico procurando exemplos de diferenças no uso da cultura material com o objetivo de saber se tais ocorrências podem ser atribuídas a práticas sociais distintas que foram sendo usadas para expressar noções de identidade na sociedade. O método, derivado da proposta de Sian Jones, está relacionado à abordagem da Arqueologia pós-processual, cuja preocupação com o contexto arqueológico e as questões de status social e poder definem bem este paradigma científico. Desta forma, as “experiências” que se busca traçar do Império Romano estão relacionadas aos vários tipos de ações de Roma e às múltiplas respostas ao Império, que são condicionadas pela região e o período que estivermos analisando. Os estudos arqueológicos permitem esta consideração do contexto para a verificação da atuação das identidades locais. Mattingly exemplifica com suas pesquisas realizadas no Norte da África e Britânia. Mas sua metodologia, resguardadas as diferenças regionais, pode ser aplicada para o Império Romano como um todo.

Alguns autores podem fazer críticas ao modelo de Mattingly pela sua ênfase na questão da diferença e da não uniformidade do Império Romano e, sobretudo, pela sua comparação da atitude imperial romana com a ação imperialista das nações contemporâneas. Ele seria anacrônico ao tomar a experiência de épocas recentes para tentar entender os romanos? Mattingly, em suas considerações finais, tem plena consciência deste fato e se defende dizendo ter uma postura crítica analítica e não se interessar em construir um Império Romano totalmente negativo, em contraposição aos estudos mais antigos, que vangloriavam a grandeza de Roma (p.274-275). Concordo com o autor neste aspecto. A abordagem pós-colonial trouxe novas perspectivas para entendermos situações de colonização e ações imperialistas. Sua utilização em conjunto com a análise do contexto local, por meio de comparações de sítios arqueológicos e da cultura material, é que traz o equilíbrio necessário ao desenvolvimento da pesquisa. É por meio desta combinação de teoria e dados que poderemos tomar ciência da grande diversidade que constituía o Império Romano.

Notas

1. SAID, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993. Edição brasileira: SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

2. JONES, Sian. Archaeology of ethnicity: Constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997.

3. A referência principal do autor para a Teoria da Estruturação é derivada das ideias de Anthony Giddens, em sua obra: GIDDENS, Anthony. The constitution of society: Outline of a theory of structuration. Cambridge: Polity Press, 1984.

Marcia Severina Vasques – Professora Adjunta do Derpartamento de História – UFRN. Doutora em Arqueologia – USP.


MATTINGLY, David. Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire. Princeton: Princeton University Press, 2011. 342p. Resenha de: VASQUES, Marcia Severina. Revista Porto. Natal, v.1, n.2, p.136-149, 2012. Acessar publicação original [IF].

Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul | Rafael Corteletti

Qual o destino dos sítios arqueológicos quando uma pesquisa e concluída no Brasil? Poucos entre milhares passaram efetivamente a ser preservados e transformados em tema de amplo (re)conhecimento público e pesquisa continuada. O esquecimento e o abandono foi o destino da maioria. A destruição, total ou parcial, pelos mais diversos meios, também foi o que aconteceu com uma quantidade desconhecida de sítios arqueológicos pais afora. Todavia, existe uma parcela da comunidade de arqueólogos brasileiros – acadêmicos, funcionários do IPHAN e de outros órgãos públicos, de ONGs e do setor privado –, buscando alternativas para solucionar a destruição do Patrimônio arqueológico no Brasil, uma tarefa gigantesca.

O consenso internacional indica que a principal solução e a publicação dos dados de pesquisa e do sítio arqueológico e a programação de ações que ativem a atuação da sociedade civil organizada em programas como a AGENDA 21. E o meio mais próximo da transparência e da ética aliadas com a ciência, como ferramenta de trabalho da gestão do Patrimônio arqueológico. Junto com elas, a construção de relações simétricas em nível local, envolvendo as comunidades, os pesquisadores, o IPHAN, o Ministério Público e os três níveis de Poder Executivo, para tomar decisões sobre o destino dos sítios arqueológicos

O livro de Rafael Corteletti e um exemplo relevante, que merece ser seguido quando se trata de sítios arqueológicos. Especialmente quando apresenta a localização e o estado de conservação, relatando temas científicos com linguagem despida de jargões, cumprindo o objetivo de atrair e informar o público não acadêmico. Sua abordagem mostra o que aconteceu com os sítios ao longo de 40 anos, desde os primeiros trabalhos de Fernando La Salvia e Pedro Inacio Schmitz em 1966, até Corteletti e seus colegas retornarem em 1999, 2000 e 2006. Os sítios são apresentados individualmente, através de um memorial descritivo das evidências arqueológicas, principalmente das estruturas subterrâneas, dos abrigos sob rocha e dos montículos, da sua quantidade e dimensões, do seu estado de conservação e da distancia de outros sítios.

A maioria dos cadastros de 1966 finalmente recebeu sua coordenada geográfica. Todos os dados quantitativos aparecem em diversas tabelas e gráficos. várias fotos mostram aspectos dos sítios e das pesquisas em 1966 e 1999-2000, 2006. Diversos mapas contextualizam a área piloto da pesquisa, muitos deles vem acompanhados de tabelas e gráficos de diversas informações, desde a relação entre sítio e proprietário atual do terreno, até a relação entre índices de preservação e destruição. Croquis dos sítios também ilustram o livro e mostram aspectos espaciais das estruturas. Desenhos em perspectiva e fotos panorâmicas mostram a inserção dos sítios. Algumas fotos mostram o estado atual dos sítios, inclusive de um aproveitado como lixeira (foto 27). Tabelas com as datações informam sobre a cronologia da ocupação regional. Também foram realizadas diversas análises comparadas sobre as estruturas subterrâneas.

Corteletti complementa a descrição da inserção dos sítios com várias informações sobre o contexto ambiental da área piloto. Com o objetivo de relatar os processos de transformação da paisagem e dos seus impactos sobre os sítios, sobretudo o desmatamento, apresenta um capítulo sobre o processo de ocupação europeia da região da pesquisa, a partir do século 18, com a distribuição de sesmarias pelo governo colonial aos “lusitanos” e seus escravos. Depois trata da instalação de imigrantes, principalmente, italianos. E uma parte importante, pois mostra com clareza como as serrarias, lavouras e a implantação da malha urbana e das vias públicas, afetaram os sítios arqueológicos. O autor mostra qual foi a relação dos italianos, dos lusos e descendentes com a preservação/destruição dos sítios, em função dos tipos de exploração econômica. Nas terras dos italianos 19% estão preservados e 35% alterados, enquanto que os lusos preservaram 36% e alteraram 46%, e Corteletti ressalta que seu objetivo não é “condenar ou isentar quem quer que seja”, mas verificar os efeitos dos modelos de colonização sobre a degradação dos sítios arqueológicos.

Com efeito, o balanço geral e alarmante: 39,5% dos sítios foram destruídos e 37,5% estão seriamente ameaçados. O Patrimônio arqueológico registrado da região de Caxias do Sul está por um fio e o livro e um diagnostico que precisa ser debatido, para decidir qual o destino dos sítios restantes.

Outro aspecto que o livro revela, que de certa forma ocorre desde a pesquisa de 1966, e a relação positiva dos pesquisadores com a comunidade. Por todo o livro, especialmente quando os sítios são descritos, a comunidade aparece representada por diversos personagens, a maioria interessada em colaborar com a pesquisa. O autor faz um balanço sobre o problema da destruição e reflete sobre a necessidade de “vestir a camiseta” da preservação e da busca de alternativas.

Por fim, algumas palavras a respeito da interpretação dos dados de Caxias do Sul como tradição arqueológica. Trata-se do calcanhar de Aquiles da arqueologia brasileira, que não è exclusivo de Corteletti, que se posicionou assim nas conclusões sobre os sítios arqueológicos: “O que se sabe, de concreto, e a ligação com o Tronco Je. Daí em diante, surge uma serie de especulações e hipóteses que tentam atrelar os construtores do planalto com as populações Kaingang”. Corteletti sugere de forma acertada, que o estabelecimento de uma relação de continuidade entre os contextos arqueológicos e históricos “deve ser uma obsessão”. Porém, como autor de trabalhos dedicados a revisar as interpretações dos arqueólogos sobre o caso dos Je do sul, publicados antes de 2008, não posso concordar com a afirmação de que o estado da arte esteja apenas em nível de “especulação e hipóteses”. Primeiro, Corteletti ignora solenemente análises dedicadas “obsessivamente” a examinar os problemas de pesquisa das Tradições Taquara e Itararé, especialmente da minha avaliação detalhada sobre todas as interpretações arqueológicas que trataram da continuidade entre essas tradições e os Je do sul. Segundo, ele preferiu seguir a linha do PRONAPA, que não teve por objetivo examinar o tema da continuidade e passou os últimos 40 anos sem refletir sobre os processos da longa duração dos Je do sul, problemática que eu também analisei com cuidado e de modo muito circunstanciado. Terceiro, ao seguir essa linha também deixou de lado uma serie de historiadores, antropólogos e linguistas que publicaram estudos que contextualizam de forma cabal a presença dos Je do sul, especialmente dos Kaingang, em todos os territórios onde são encontradas estruturas subterrâneas. Quarto, quando trata da ocupação do sul do Brasil pelos Je, Corteletti escreveu que “acredita-se numa possível ligação com povos da chamada Tradição Una”. Novamente desconheceu a detalhada análise que publiquei sobre o processo de ocupação do sul do Brasil, comparando estudos de linguistas e arqueólogos. Também não citou a tese de Jose Brochado, autor da mais ampla e detalhada pesquisa sobre as relações entre as cerâmicas da Tradição Una e das Tradições Itararé e Taquara.

Corteletti não é obrigado a citar as minhas publicações ou a tese de Brochado. Todavia, como ele se apresentou a um campo cientifico composto de várias perspectivas e linhas de pesquisa, deveria no mínimo ter justificado uma razão para não concordar ou não considerar nossas abordagens e conclusões. Especialmente a famosa tese de Brochado, um divisor de aguas da arqueologia brasileira. Talvez seja por causa da linha de pesquisa da instituição onde Corteletti fez seu mestrado, origem do livro, o Instituto Anchietano de Pesquisas da UNISINOS, que mantem basicamente a mesma posição desde o final da década de 1960, centrada na catalogação e descrição. A análise e a interpretação movida por problemas da teoria arqueológica e antropológica nãoesta presente, na espinha dorsal dos inúmeros e importantes projetos conduzidos pelo Anchietano. O fato e que a interpretação de dados tão bem coletados perdeu espaço neste relevante livro, cujo maior mérito e oferecer informações uteis e decisivas para a gestao do Patrimônio arqueológico.

Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporaneos sobre Patrimônio Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporâneos sobre Patrimônio cultural. Tem sido cada vez mais frequente que arqueólogos, no Brasil, intitulem seus livros, pomposamente, como Patrimônio arqueológico de tal ou qual região. Contudo, o que notabiliza o debate contemporâneo internacional e a definição de Patrimônio como categoria de pensamento e ação politica, e não como um dado em si, a depender exclusivamente de um cientista – ou de um arqueólogo e sua equipe – para conceitua-lo e protege-lo. Patrimônio cultural, na acepção contemporânea, e uma categoria que envolve, por um lado, o conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado, considerando-se, inclusive, os próprios arqueólogos, cujas noções e definições nunca estão isentas de politicas e critérios culturais sobre a paisagem; de outro, instituições variadas, como as comunidades cientificas, ONGs, universidades, comunidades locais e os dispositivos da legislação. Os arqueólogos brasileiros, no geral, passam, lamentavelmente, ao largo dessa definição mais ampla e informada sobre Patrimônio arqueológico. O livro de Corteletti não é exceção. Uma coisa e estudar para delinear politicas de proteção aos sítios arqueológicos, função muito bem realizada por Corteletti; outra, muito distinta, e, de saída, definir o conjunto de sítios de uma região como Patrimônio, desconsiderando- se a riqueza e sofisticação contemporâneas dos debates sobre Patrimônio cultural. Ainda assim, os agentes dos órgãos públicos, os arqueólogos e a sociedade civil organizada, dispõem no livro de Corteletti, de um diagnostico efetivo para definir suas pautas de trabalho em defesa dos sítios arqueológicos da região de Caxias do Sul.

Francisco Silva Noelli – Prof. Aposentado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

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CORTELETTI, Rafael. Diálogo com Francisco Noelli a respeito da resenha para o livro “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul”. Revista de Arqueologia, v.23, n.2, p.164-167, 2010.

Não posso negar que Noelli foi bastante crítico em sua resenha. Lembro muito bem do momento em que estava redigindo as passagens que foram comentadas por ele com tanto vigor. Eu estava processava uma grande quantidade de dados numéricos que compõe o capítulo de distribuição e implantação dos sítios e quica posso ter construído uma interpretação arqueológica discutível. Diria que em momentos de grande produção, por vezes, ficamos meio cegos. Enfim, hoje sei que, infelizmente, esqueci muitos autores e não tratei determinadas abordagens. Mas, exatamente por saber disso, atualmente oriento meu trabalho no sentido de contemplar uma serie de questões que deem conta da multiplicidade de estórias-até-agora dos Je Meridionais.

Mas o objetivo principal dessa publicação não foi abordar as origens desse povo, mas sim falar da conservação de sítios arqueológicos. O estudo de caso e Caxias do Sul, mas falo do Brasil e dos desafios da Arqueologia Brasileira. E bom citar que a obra nasceu, ainda em 2006, de uma dissertação de mestrado intitulada “Casas Subterrâneas em Caxias do Sul: Conservação, Distribuição e Implantação”. Em 2007 o texto foi premiado num concurso municipal chamado Fundo pró-cultura. Segundo a comissão de avaliação e seleção ele seria publicado com a condição de que o tom acadêmico fosse esmaecido. Dessa forma adaptei o texto para deixa-lo mais leve e dinâmico e redigi de tal maneira que fosse possível a um leigo a compreensão absoluta da temática arqueológica e, principalmente, da temática conservacionista. Assim, com novo título e remodelado, em 2008, lancei a obra com um objetivo acima de tudo educativo. Com financiamento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, através do Fundo pró-cultura, foi feito um “convite a arqueologia”.

Portanto, o uso da palavra Patrimônio no título não teve objetivos pomposos, muito pelo contrário, foi pragmatismo puro. Independente do que se debate na esfera internacional eu precisava convencer a opinião pública e o pequeno produtor rural de Caxias do Sul de que os “buracos de bugre” ou as grutas com sepultamento tinham um valor imensurável para toda a sociedade caxiense e, por extensão, a brasileira. Precisava despertá-los para a necessidade de manter a mata no entorno dos sítios em pe, precisava alerta-los de que o melhor lugar para a produção de tomates não era exatamente onde os sítios estavam… Por isso o nome do livro tornou-se “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul” diferente da dissertação de mestrado que, convenhamos, tem um título que não chama a atenção de mais do que 20 ou 30 arqueólogos, que dirá de uma comunidade que, como Noelli muito bem apontou, criou um cenário alarmante no que se refere a conservação dos sítios. Com esse título eu disse a comunidade que os sítios têm valor e que e ela, em última instancia, que detém a responsabilidade por sua conservação ou não. Em momento algum o trabalho foi direcionado no sentido de policiar as atitudes e elencar boas ou más ações dos indivíduos ou estabelecer o que deve ou não ser valorizado enquanto bem cultural. Orientei o trabalho no sentido de incorporar os sítios arqueológicos a vida das comunidades (rural e/ou urbana) e dessa forma produzir uma reflexão sobre as facetas da história daqueles locais. Desde o tempo-espaço em que os sítios eram habitados pelos Je, passando pela chegada das famílias de colonizadores europeus, pelas memorias das pesquisas e das pessoas dos anos 60 e chegando até hoje quando alguns sítios já estão fisicamente apagados e outros ainda não.

O livro e na verdade um catálogo atualizado das condições em que se encontra a maior parte dos sítios arqueológicos no município – já que após a publicação outros sítios ja foram detectados. Em determinados momentos o tom e de denúncia pelo Patrimônio destruído e o estado em que se encontra o conservacionismo arqueológico no Brasil, em outros o tom e de paixão pelo Patrimônio e a paisagem em que esses assentamentos se inserem. E permeia em todo o texto a ideia de que e o indivíduo que vai preservar ou destruir esse Patrimônio, e por isso, e o indivíduo, em última instancia, que precisa ser informado para que “a marcha destrutiva e silenciosa que ocorre dia-a-dia sobre este Patrimônio cultural e instrumento de trabalho” de inúmeros profissionais deixe de ocorrer. Assim sendo, como contrapartida a publicação da obra, uma série de atividades de educação patrimonial e arqueologia publica foram realizadas. Durante 30 dias a mostra “Fragmentos da História”, com as peças arqueológicas que estavam há mais de 30 anos na reserva técnica do Museu Municipal, recebeu mais de 1.500 visitantes. Antes disso, a exposição permanente começava sua narrativa com a fundação da colônia italiana, mas agora o passado indígena também faz parte do contexto musealizado.

Cada escola do Município (das redes municipal, estadual e privada) recebeu um exemplar (num total de 300 livros doados) e professores assistiram palestras sobre o tema. Junto disso, no primeiro trimestre de 2009, num novo desdobramento provocado pelas vontades locais, foi dada a largada experimental para aquilo que hoje ja e mais uma atividade de desenvolvimento sustentável: o turismo arqueológico.

Imbuído da ideia de que o Patrimônio Arqueológico e integrado tanto por bens materiais como pelas informações que dele podemos aferir como, por exemplo, a implantação geográfica, a ocupação do espaço e as configurações ecológicas escolhidas pelas populações pretéritas, foi selecionado um sitio de beleza cênica impar localizado na comunidade da Criúva. Para la durante os anos de 2009 e 2010 foram levadas mais de 500 pessoas em grupos que variam em número: desde famílias com 4 ou 5 pessoas ate grupos de 30 ou mais em ônibus escolares. Muitos não sabiam da existência de tal Patrimônio e ficaram impressionados com o que viram. Alguns professores das escolas da região relataram total desconhecimento deste Patrimônio. De certa forma, 500 pessoas não parece um grande número, principalmente, se comparado aos visitantes de sítios como a Missão de São Miguel Arcanjo, por exemplo. Mas o fato e que esta atitude e um embrião que explora as potencialidades locais e gera sustentabilidade – apesar de não existir qualquer tipo de infraestrutura criada para visitação ou divulgação em mídia. Enfim, depois de 40 anos de esquecimento, cooptamos multiplicadores do conhecimento dessa riqueza cultural para que a arqueologia e o passado indígena desabrochassem novamente. O resultado e o trabalho de guias de turismo da própria comunidade instruídos arqueologicamente e dispostos a informar que eles são os agentes diretamente responsáveis pela conservação dessa memoria e promoção desse Patrimônio.

Por tudo isso, creio que Noelli se engana ao comentar que o livro não trata o Patrimônio como “uma categoria de pensamento e ação política”. Como Noelli se notabiliza por ser um grande debatedor teórico-conceitual, e compreensível que sua leitura observe o quanto o livro contempla a base epistemológica das agendas internacionais. Entretanto, apesar de Noelli discordar, o livro cumpre sim – mesmo que incipientemente – a função de articular elementos para a compreensão do “conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado”, na medida em que seu objetivo central e o exercício do dialogo, em primeira instancia, com os grupos sociais da comunidade de Caxias do Sul – e quica da brasileira – para alavancar o despertar de uma pratica conservacionista. E realmente, minhas “noções e definições” não “estão isentas de políticas e critérios culturais sobre a paisagem”, pelo simples fato de que além de ser arqueólogo sou um membro da comunidade. Sou mais um daqueles que tanto entrevistei em Caxias – e continuo entrevistando em outros locais – que lembram com nostalgia das brincadeiras de infância dentro das enormes crateras que ninguém sabia o que eram… No meu caso a nostalgia e maior ainda, já que o sítio que tanto brinquei, anos depois cedeu lugar as ruas de um novo bairro, talvez ao mesmo tempo em que, numa universidade a 300km dali, eu descobria o que as tais crateras significavam. Nesse sentido, a paisagem e um elemento ativo nas ações humanas, ela nutre e e nutrida pelas interações sociais como um conjunto de formas que em dado momento exprimem memorias socialmente construídas – como as minhas.

Em linhas gerais nas Ciências Humanas gostamos muito debater sobre a construção do conhecimento, as vezes falando da sociedade, mas, infelizmente, a parte dela. Alguns arqueólogos, nesse sentido, esquecem que vários sítios arqueológicos, nossa matéria-prima de discussão, estão sendo descartados cotidianamente. Há o descarte inconsciente, por indivíduos que desconhecem totalmente o que e um sitio arqueológico e o destroem por ignorância. Ha, também, o descarte levado a cabo conscientemente por indivíduos que precisam obter renda – como e o caso dos vendedores de terra preta dos cerritos da Praia do Laranjal, entre tantos outros exemplos. E não podemos esquecer, nesses tempos de desenvolvimentismo acelerado, que há o descarte legalizado de sítios através da pratica do “resgate” ou “salvamento”. A coleção arqueológica e salva ou resgatada, mas perde- se o sítio arqueológico, perde-se o lugar e todo o simbolismo que ele poderia expressar se fosse conservado. Não estou demonizando a arquelogia empresarial, não é isso. Afinal, sabemos que a Arqueologia Brasileira vem sendo impulsionada pelas grandes obras de infraestrutura dos últimos anos de tal forma que novas graduações estão ai para suprir a demanda de profissionais. O que questiono, com esse comentário, e a ação de órgãos governamentais e arqueólogos no processo de decisão  daquilo que e relevante e deve ser “salvo” e daquilo que não é relevante e, dessa forma, nem “salvo” precisa ser. Será que nossos profissionais trabalhando em ritmo industrial e, por vezes, com métodos de prospecção pouco sistemáticos realmente conseguem medir a relevância de um bem cultural? Além disso, questiono qual e o nosso papel como produtores e disseminadores de conhecimento? Questiono a validade da produção de conhecimento que não vai além dos debates do próprio grupo que o gerou? Afinal, temos em nossas mãos um objeto de pesquisa que seduz as pessoas, ou uma grande parcela delas. Temos de usar esse objeto a nosso favor e tornar a arqueologia mais popular, mais pública e assim disseminar o conservacionismo do Patrimônio arqueológico e, em última instancia, evitar o descarte dos lugares, o descarte dos sítios arqueológicos para que as pesquisas de hoje e do futuro possam ser desenvolvidas.

Em síntese, concordo com Noelli quando ele diz que devemos buscar arqueologicamente as diferenças que vemos etnologicamente entre os Kaingang e os Xokleng, por mais complicada que essa tarefa seja. E mais, devemos investigar as origens dos Je Meridionais para ilustrar a emergência da complexidade social desses grupos. Mas, não podemos nos furtar de lutar pela conservação dos sítios arqueológicos, já que são eles que nos darão as pistas para elucidar nossas problemáticas.

Rafael Corteletti – Doutorando em Arqueologia no museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), bolsista CNPq. E-mail: rafacorteletti@hotmail.com. Endereço: Avenida Venâncio Aires 70/405, bairro Cidade baixa, Porto Alegre, RS, brasil, CEP 90040-190.


CORTELETTI, Rafael. Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul. Porto Alegre: Nova Prova Editora, 2008. 199p. Resenha de NOELLI, Francisco Silva. Revista de Arqueologia, v.23, n. 2, p.156-159, 2010. Acessar publicação original [IF]