Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX – VILLA (RBH)

VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000. 269p. Resenha de: MARTINEZ, Paulo Henrique. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

Onde reside o interesse de um livro sobre a história das secas no nordeste do Brasil, nos dois últimos séculos? As secas constituem uma realidade presente, atuante nos dias de hoje, como no passado. E isto já bastaria para uma boa recepção ao livro de Marco Antonio Villa, não trouxesse o volume outras tantas qualidades, e também problemas. O que faz de Vida e morte no sertão uma obra não apenas necessária, mas original e instigante, pelo que oferece, pela ajuda que fornece na compreensão do tema e pelo que faz pensar. O impacto provocado pela leitura é comparável àquele de Estação Carandiru, do médico Drauzio Varela, uma vez que ambos expõem as chagas e a indiferença da sociedade e do Estado, no Brasil, diante das mazelas sociais. Este sabor de livro-denúncia, temperado com demonstrações da negligência, incúria, violência, corrupção, manipulação e clientelismo reinantes, decorre da observação, em perspectiva temporal extensa, quase duzentos anos, da ação “reparadora” do Estado brasileiro nos momentos de seca. Villa não aborda a estrutura econômica e social nordestina, sob a qual se abate a calamidade, a mesma que produz e reforça seus efeitos, mas rastreia a ação de órgãos dos governos estaduais e federal, registrando o comportamento e a conduta das elites sociais e dos dirigentes políticos naquela região. A leitura de Vida e morte no sertão pode ser enriquecida, ainda, com outras publicações recentes, tais como Seca e poder: entrevista com Celso Furtado, da Fundação Perseu Abramo (1998), O “Dossiê Nordeste seco”, organizado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber para a revista Estudos Avançados (IEA/USP, nº 36, 1999), e A invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque (Cortez/Massangana, 1999).

A criatividade inventiva do autor foi capaz de suplantar a aridez intelectual que caracterizou as iniciativas governamentais na passagem dos quinhentos anos da viagem de Cabral. A realização da pesquisa contou com o apoio do Instituto Teotônio Vilela, ligado ao PSDB, que veio somar sua participação à de outras entidades similares, como a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, e o Instituto Tancredo Neves, ao PFL. Distantes de desempenhar um papel de think tank nesses partidos, a preocupação que cada um deles, e à sua maneira, demonstra em pensar e conhecer o país não deixa de ser louvável.

O livro estuda as principais secas ocorridas no nordeste brasileiro, entre os séculos XIX e XX, até o governo do general Figueiredo (1979-1985). Uma questão incomoda o autor, e ele a perseguiu com denodo ao longo dos capítulos: o saldo de mortos com as sucessivas secas, de um lado, e o imobilismo das autoridades públicas e da sociedade, de outro. Em operações de mórbida matemática, Villa estimou em torno de três milhões de pessoas as vítimas fatais nesses dois séculos. Um novo holocausto, equivalente a duas guerras do Vietnã. Eis porque o livro é portador de “uma triste história em que a morte rondou diuturnamente a vida dos sertanejos” (p. 13). A seca de 1877-1879, uma das mais terríveis, teria dizimado cerca de 4% da população nordestina, erigindo o Nordeste, desde então, em “região-problema”. Já a morte, convertendo-se em personagem principal, comparece na abertura de todos os capítulos e no encerramento do livro. Ao fechá-lo tem-se a sensação de haver assistido a um espetáculo macabro, impressionante. Palco privilegiado para atuação da morte e dos desmandos parece ter sido o Ceará. Não se sabe se pelas condições particulares daquele Estado ou se pelas condições de acesso e disponibilidade de fontes e documentação, há no livro um certo protagonismo cearense em várias das situações estudadas.

No conjunto ressalta um minucioso trabalho de pesquisa, exemplar em qualidade de análise, dos dados coligidos, na reconstituição de contextos e conjunturas. Os efeitos das secas sobre a economia regional e os grandes prejuízos que ocasionam; o fenômeno das migrações, orientadas, ao longo do tempo, para quase todo o Brasil, com destaque para o Maranhão, Pará, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e capitais do Nordeste; o surgimento de expressões, personagens e situações próprias ao universo das secas, como “indústria da seca”, a Sudene, os saques, retirantes, epidemias, frentes de trabalho, entre outros. Cenários que abrem o leque de problemas correlatos para novas pesquisas, tais como o papel da imprensa, os efeitos das intervenções governamentais, os movimentos sociais, o universo cultural e o imaginário das secas, as ações da Igreja e dos partidos, o Nordeste como “região-problema”, o impacto sobre as comunidades agrárias e a história regional. Se a introdução de dromedários na região, na década de 1850, fez a esperança de superação dos problemas das secas recair antes nas costas desses animais do que na ação dos homens, nas décadas de 1950 e 1960, as repetidas tentativas de definir uma política de desenvolvimento para o Nordeste tornaram-se pregações no deserto. A “inação” dos homens e a inclemência da natureza regaram o canteiro dos discursos de identidade regional, tragando inclusive o Estado da Bahia, até então, unidade avulsa na federação brasileira. Lástima o livro não incorporar o tratamento dispensado às secas sob os governos civis, afinal, Sarney e Collor foram “presidentes do Nordeste”, e na década de 1990, quando o PSDB dirigiu o País. O Instituto Teotônio Vilela poderia, assim, refletir e extrair lições sobre o comportamento de seu próprio partido no governo e das ações que este desenvolveu para enfrentar as calamidades provocadas pelas secas, como a de 1998, por exemplo. Teria havido, nestes últimos anos, mudanças nos procedimentos administrativos de prevenção e reparação dos males? Vida e morte no sertão também desperta a cobiça por estudos comparativos. Em 1998, diante dos incêndios florestais em Roraima (não haveria outras situações semelhantes na região amazônica?), a postura do governo federal diferiu ou se assemelhou àquelas estudadas neste livro? Eis uma questão que pede esclarecimentos. E alguma pesquisa, não uma história-catástrofe.

Onde reside, para os historiadores, o interesse de um livro sobre a história das secas no nordeste do Brasil, nos dois últimos séculos? O interesse pelo Nordeste é remoto e diversificado, conforme constatou a professora Suely Robles Reis de Queiroz, autora de uma Historiografia do Nordeste (São Paulo. Secretaria da Cultura/Arquivo do Estado, 1979, Col. Monografias, 2), dado, por exemplo, o papel que aquela porção de terra ocupou na América portuguesa. Há, também, no livro de Marco Antonio Villa, esse curioso ponto de partida, a geografia, o espaço, as condições climáticas e as particularidades que resultam das intervenções humanas, produtoras das peculiaridades dessa “região”, examinadas em suas dimensões propriamente temporais. Um encontro entre as preocupações da História e da Geografia que caminham, juntas e atentas, às relações entre Estado e sociedade no Brasil. Diante dos problemas que, acredita Villa, deveriam ser enfrentados, o da terra, com a realização de reforma agrária e o estabelecimento de lavouras secas, e o da água, com o armazenamento e o uso social dos recursos hídricos, estariam plantados os “condottieri do atraso”, a elite social e política nordestina. Eis, então, uma questão para os historiadores: “Os fatores de conservação transformaram o semi-árido em uma região aparentemente sem história, dada a permanência e imutabilidade dos problemasComo se com o decorrer das décadas nada tivesse se alterado e o presente fosse um eterno passado. A cada seca, e mesmo no intervalo entre uma e outra, milhares de nordestinos foram abandonando a região. Sem esperança de mudar a história das suas cidades, buscaram em outras paragens a solução para a sobrevivência das suas famílias. Foi nos sertões que permaneceu inalterado o poder pessoal dos coronéis, petrificado durante o populismo e pela migração de milhões de nordestinos para o sul” (p. 252, grifos meus). Como explicar esta persistência? De onde ela emerge e como se alimenta? Ousaria dizer que nas respostas àquela situação encontram-se elos dessa corrente do passado. Uma rigorosa evasão das populações, de um lado, fazendo de cidades e roças fontes ininterruptas de mão-de-obra barata, e a reiteração cultural das elites sociais e políticas, por outro, transformando-as em ponto de sustentação política dos governos estaduais e federal, têm sido respostas que aprisionam os homens à realidade que querem evitar. É o que se depreende de uma leitura desse livro, amparada em Fernand Braudel. Foi por dever de ofício, que o ministro do interior do governo Figueiredo, Mário Andreazza, aspirante à presidência da República, fez perto de sessenta visitas ao Nordeste, entre 1979-1981? Curiosa, também, a omissão da esquerda brasileira perante as secas. O PCB, diz o autor, “omitiu-se politicamente durante os flagelos” e “nunca se dispôs a apresentar um programa para a região” (p. 253).

Uma última palavra, sobre a religiosidade nordestina. Vista, até pouco anos atrás, por segmentos políticos e intelectuais, como uma dentre outras rotas de fuga da seca, ao lado da migração para as cidades e outras regiões do Brasil e, no passado, o cangaço e a jagunçama, a devoção religiosa foi associada a comportamentos sociais passivos no Nordeste, onde Canudos e Caldeirão formariam exceções à regra. Contudo, ao renovar esperanças em dias melhores, chuvas, chegada de alimentos, terra, sobrevivência dos roçados, essa mesma religiosidade converte-se em fator de “promoção social” e de expectativa de uma sedentarização, em condições outras. Permitiria, então, entrever possibilidades distintas daquelas “respostas”, anteriormente referidas?

Paulo Henrique Martinez – UNESP – Assis.

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O pensamento mestiço – GRUZINSKI (RBH)

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 398p. Resenha de: GIL, Antonio Carlos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso historiador da arte de inícios do século XX. Warburg, imbuído de um olhar antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato do estudo de culturas mestiças.

Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente. Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade. Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”, que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens, o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do autor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes, estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial desse processo.

Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem” e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42). Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido, o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’ ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais” (p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós, historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa, África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto histórico (p. 62).

Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume, ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações. Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África. Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p. 94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.

Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena, ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.

De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas, que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio, principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.

Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos. Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise, Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos — o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos meios que o engendraram. Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares, reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço, como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.

Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações, evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).

Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento, não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação” (p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p. 243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de análise.

Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de kung-fu (p. 319).

Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong. Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo em nível mundial.

Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Resta-nos indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.

Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir uma outra América.

Antonio Carlos Amador Gil – Universidade Federal do Espírito Santo.

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Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio – SALIBA (RBH)

SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 366p. Resenha de: DE LUCA, Tania Regina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

O período denominado de pré-moderno tem sido objeto, especialmente a partir da década de 1980, de profunda reavaliação histórica. A própria terminologia consagrada para nomeá-lo já denuncia o anátema que tem pesado sobre a produção literária das primeiras décadas republicanas, que esteve longe de contar com o entusiasmo de alguns dos nossos principais críticos. A idéia de negatividade acabou por se espraiar para o ambiente intelectual e cultural como um todo e mesmo quando se tenta atribuir ao pré-modernismo um sentido forte, ou seja, de antecipação temática e formal do que estaria por vir, a interpretação ainda permanece atada a parâmetros externos, uma vez que o período é avaliado em função de quanto é capaz de anunciar o futuro, numa assunção implícita de que o mesmo carece de essência e sentido próprios.

O peso simbólico de 1922 é de tal ordem que não apenas se impôs enquanto marco periodizador da cultura brasileira, como também homogeneizou os antecessores sob rótulos genéricos, subtraindo-lhes a identidade. A coerência e o equilíbrio desse quadro, construído em larga medida pelo discurso dos modernistas, cujas opiniões, testemunhos e análises foram incorporados de forma pouco crítica pela historiografia, vêm sendo perturbados em mais de um sentido.

O trabalho de Elias Thomé Saliba constitui-se numa significativa contribuição para o premente esforço de releitura das décadas iniciais do século XX. O autor propõe-se a estudar a representação humorística brasileira durante a Belle Époque e nos primeiros tempos do rádio e, para tanto, apresenta os resultados da sua pesquisa em quatro capítulos, precedidos por um prólogo.

No texto de abertura merece particular destaque a discussão a respeito da crise e desarticulação das definições clássicas do humor, ancoradas na procura da essência do risível, e as análises, produzidas justamente no período estudado, das reflexões de Bergson, Freud e Pirandello que, a partir de perspectivas diferentes, enfatizaram o caráter histórico do humor e do cômico. Elias Saliba bem assinala o lugar central então ocupado pelas narrativas sobre a nação, temática que já possuía considerável tradição, mas que se revestiu de novos significados e conteúdos na passagem do século XIX para o XX. As representações humorísticas, assinala o historiador, desempenharam papel de relevo no processo de invenção das imaginações nacionais, e se fomentaram estereótipos, também contribuíram para modificá-los e desmistificá-los. Nessa perspectiva, cabe questionar: O que significaria, então, ser brasileiro num momento de aceleradas mudanças, marcado pela Abolição, República e pelo irromper dos substratos materiais da modernidade? Já éramos uma nação? O que nos faltava para atingir a completude ou, num tom mais pessimista, seria possível realizar tal proeza algum dia? Dilemas que também foram enfrentados pelos humoristas, como demonstra a primorosa pesquisa realizada.

Explicitados os fundamentos e objetivos da obra, o capítulo 1, Preparando o espírito para a Belle Époque, fornece ao leitor um rico panorama da produção humorística brasileira ao longo do século XIX, abarcando desde os folhetos cômicos do período regencial, pasquins, rodapés dos pequenos jornais até o surgimento das primeiras revistas ilustradas, que começaram a proliferar graças ao desenvolvimento da impressão e reprodução. A questão, porém, está longe de haver sido circunscrita aos seus aspectos técnicos. Como alerta o autor, nos decênios finais do Império,

(…) o recurso cômico era não apenas pouco difundido devido à inexistência dos próprios meios de difusão, mas também havia um mal disfarçado desprezo da cultura em geral pela produção humorística, a não ser quando esta se mostrava suscetível de ser incluída — ou classificada — nos moldes estéticos consagrados do romance, do drama ou da epopéia (p.43).

O que se admitia, no máximo, era o bom riso, que não destilasse rancor e tampouco atacasse frontalmente algo ou alguém em especial, postura exemplificada na maior parte da Enciclopédia do riso e da galhofa (1863), de um tal Pafúncio Semicúpio Pechincha, cognome Patusco Jubilado, pseudônimo adotado por Eduardo Laemmert. Quando não era esse o caso, e a narrativa continha (ou era lida como se contivesse) lances forte, com conotação degradante, obscena, grotesca ou marcada pelo rancor pessoal, rixas políticas, ressentimento social, a produção satírica acabava por ser cuidadosamente alocada nas margens da obra do escritor, como ocorreu com Bernardo de Guimarães e Olavo Bilac, por exemplo. Outros, que não adentraram o circuito da produção culta, acabaram esquecidos e proscritos do próprio mundo da escrita, caso de José Joaquim de Campos Leão, Hippolyto da Silva e Pedro Antonio Gomes Júnior.

Se a representação cômica da vida nacional não se iniciou na República, como o autor bem demonstra, parece assente que foi a partir dessa época que ela se intensificou e ganhou novas dimensões. No segundo capítulo, relativo à cidade do Rio de Janeiro, Saliba explicita quem eram os humoristas, sob que circunstâncias atuavam, de que forma se inseriam no campo intelectual, a auto-imagem que cultivavam. Num primeiro momento, a desilusão com o regime republicano congregou homens como Pardal Mallet, Lúcio de Mendonça, Paula Nei, Arthur Azevedo e José do Patrocínio que expunham, valendo-se das armas do humor, as contradições e paradoxos do regime recém instalado.

A esse grupo sucedeu outro, formado por Bastos Tigre, Emílio de Menezes, José do Patrocínio Filho, Raul Pederneiras, K. Lixto, J. Carlos, Storni, Yantok, que seguiu na trilha das críticas ao regime. É interessante notar que essa geração encontrava-se comprimida entre a alta cultura, representada, sobretudo, pelos parnasianos e simbolistas, e a atuação numa miríade de atividades que incluía artigos para jornais e revista, confecção de textos e desenhos para a nascente indústria do reclame, legendas e cartazes para filmes mudos, produção para teatro de revista, seja escrevendo roteiros, criando cenários e/ou figurinos, o que os obrigava a interagir com músicos, cantores, dançarinos, atores, diretores, encenadores, cenógrafos, enfim, todos os envolvidos nesse gênero misto destinado a atingir um público diversificado. As agruras que enfrentavam, a posição subalterna diante das fórmulas consagradas, que os instava a elaborar paródias e anúncios de acordo com os postulados da boa métrica, mas também a premência de agradar o público, atender às demandas dos meios de comunicação modernos e do mercado de bens culturais, que exigiam rapidez, concisão e versatilidade, os aproximava da oralidade, da fala coloquial, tornando-os uma espécie de ponte entre dois mundos. Além de explorar, com riqueza de detalhes, os aspectos mencionados, Saliba não deixa de perguntar como essa produção foi recebida pela elite letrada e de apontar a força do estigma por ela instituído, capaz de constranger esses homens, sintomaticamente denominados de ratés, a admitirem, implícita ou explicitamente, que não faziam literatura.

Questões de natureza semelhante são desenvolvidas no capítulo 3, consagrado aos humoristas radicados em São Paulo que, de forma ainda mais contundente, foram varridos da memória da cidade, possivelmente em função do conteúdo antiprogramático da sua produção, além de não se poder desprezar o fato de eles terem ficado ao largo do movimento de 1922. Os nomes de maior destaque foram: José Agudo (José da Costa Sampaio), Voltolino (Lemmo Lemmi), Cornélio Pires, Raul de Freitas, Juó Bananéri (Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), Oduvaldo Vianna, Victor Caruso, Belmonte (Benedito Carneiro Bastos Barreto), Moacyr Piza, Hilário Tácito (José Maria de Toledo Malta) e, assim como ocorreu com os humoristas radicados na capital federal, muitos deles também transitaram por diferentes práticas culturais, ainda que as oportunidades oferecidas em São Paulo fossem bem mais restritas.

Saliba nos conduz à alta sociedade paulistana da Belle Époque por meio dos romances de José Agudo, ao universo caipira com Cornélio Pires, à babel moderna com o falar macarrônico, que atingiu seu melhor estilo em Juó Bananéri. Consegue, desta forma, dotar de materialidade a ebulição que caracterizava a cidade, com suas levas de desenraizados: ex-escravos, caipiras, imigrantes de origens variadas, que tanto preocupavam os detentores do poder e da ordem. A irreverência, porém, lhes custaria caro, pois:

(…) parece claro, afinal, que Bananéri e seus confrades, com seu hibridismo sintático, sua mestiçagem idiomática e seu anarquismo macarrônico, tinham se tornado um pouco inconvenientes naquela fábrica de certezas que era o clima mental vigente na São Paulo dos anos 20 (p. 212).

As polêmicas nas quais se envolveram Alexandre Marcondes, sempre protagonizadas pelo personagem que criou, e vários de seus confrades humoristas, foram objeto de detida análise, descortinando perspectivas instigantes para compreender as linhas de força que estruturavam o campo intelectual do período, atravessado por antagonismos, adesões, fidelidades, amizades e desafetos.

Por fim, no capítulo 4, questiona-se a respeito das relações que se estabeleceram entre o humor típico da Belle Époque e as novas mídias que se tornavam realidade a partir dos anos 30: o disco, o cinema sonoro, o rádio. O autor demonstra, de forma inequívoca, que os humoristas não tiveram dificuldades em se adaptar aos meios que então surgiam, graças à experiência que haviam acumulado:

(…) a mistura lingüística, a incorporação anárquica de ditos e refrões conhecidos por ampla maioria da população, a concisão, a rapidez, a habilidade dos trocadilhos e jogos de palavras, a facilidade na criação de versos prontamente adaptáveis à música, aos ritmos rápidos da dança e aos anúncios publicitários (p. 228).

As oportunidades abertas pela indústria fonográfica são exemplificadas com Cornélio Pires, pioneiro que, em 1929, já ostentava uma série inteira gravada com suas anedotas e crônicas, baseada na fala caipira, e Juó Bananére, que não chegou ao rádio em função de sua morte precoce. Saliba envereda, ainda, pelas relações entre humorismo e música, reconstruindo especialmente os diálogos entre Lamartine Babo e Bastos Tigre:

(…) espécie de último elo nessa tendência de intermediação cultural que praticamente constituirá a base para o humor radiofônico nos anos 30 e 40, com a geração do Capitão Furtado, Nho Totico (Vital Fernandes da Silva), Adoniram Barbosa, Ademar Casé, Renato Murce, Lauro Borges, Castro Barbosa, Gino Cortapassi e tantos outros(p. 283).

Ao lado da cuidadosa pesquisa, rigor e perspicácia analítica, na melhor tradição dos estudos culturais, Raízes do Riso distingue-se pela riqueza do material iconográfico, apuro editorial e estilo elegante do autor, que não se furta a brindar o leitor com excelentes tiradas de humor, fazendo jus a uma de suas epígrafes: “O humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo” (p. 15).

Tania Regina de Luca – UNESP/Assis.

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Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina – SOUZA (RBH)

SOUZA, Wlaumir Donizeti de. Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina. Sn. Editora da Unesp, 2000. 243p. Resenha de: ALMEIDA, Vasni de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Um bom estudo em ciências humanas, um estudo histórico em particular, ganha relevância ao primar por dois aspectos: a preocupação com as mudanças que marcam uma sociedade numa determinada trajetória histórica e a atenção redobrada com as alterações verificadas nas instituições inseridas e ativas nesse processo de transformação1. Um tratamento cuidadoso para com as redes de interdependências entre diferentes grupos no estabelecimento de uma nova ordem social e cultural e para com os rearranjos internos que acompanham cada um dos grupos envolvidos aponta para a eficácia de um estudo acadêmico transformado em publicação. Esse é o caso do livro de Wlaumir Donizeti de Souza, voltado para a imigração italiana para o Brasil, ocorrida entre a segunda metade do século XIX e os primeiros decênios do século XX. Transição da monarquia para o sistema republicano de governo, a imigração como fator de mudança cultural e social e os elementos sociais em conflito (Estado, catolicismo e anarquismo) formam o esteio da obra.

Procurando se desvincular das armadilhas que tendem a estreitar “o leito do rio”, o autor verificou e destacou a intrincada teia de interesses desse significativo período de mudanças políticas e culturais pelo qual passou o País. Seu olhar esteve atento para as ações da Igreja Católica em relação às forças sociais externas a ela e em relação aos “catolicismos” coexistentes na sua esfera interna. Da mesma forma, sua atenção se voltou para os movimentos anarquistas em suas relações com o poder social do catolicismo, notadamente no que tange ao trato com o imigrante. Completando as forças que se locomoviam ao redor do trabalhador imigrante, estava o agricultor contratador de mão-de-obra. Esses são os elementos básicos que compõem a trama tecida pelo autor.

Para Donizeti de Souza, a população imigrante italiana, contratada para trabalhar no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, foi instrumentalizada pelo catolicismo ultramontano, com a Igreja Católica buscando influenciar a política imigratória num período em que se aproximava o rompimento formal e tardio entre essa religião e o Estado brasileiro. Na tentativa de estabelecer os critérios para a arregimentação de trabalhadores, o catolicismo romanizado estimulou a elaboração de pastorais voltadas para o enquadramento do imigrante, tendo em vista o seu projeto religioso e político. Aos scalabrinianos, instituição missionária fundada em 1887, por dom Giovanni Baptista Scalabrini, religioso com larga experiência no trato com os postulantes `a imigração nas suas cidades de origem, coube essa tarefa. Para sustentar sua análise, o autor se apega ao conceito de imigrante ideal, ou seja, um trabalhador lapidado para atender a interesses econômicos políticos dos grupos que pensavam no sentido de nação, que então se desenhava lentamente, tanto na visão de fazendeiros quanto na de políticos de linhagem conservadora. O imigrante ideal seria aquele comprometido com os laços culturais e religiosos propostos na perspectiva romana de sociedade e indivíduo, imagem idealizada também pela oligarquia que o contratava. Para os fazendeiros, o estrangeiro contratado deveria ser “dócil, ordeiro, familiar e trabalhador”, uma mão-de-obra com as marcas da “resignação”. Na visão do poder religioso ultramontano, caberia ao catolicismo a moldagem do imigrante que satisfizesse os requisitos dos contratantes. O autor aponta com acuidade a conexidade entre o ideal de trabalhador desenvolvido pelo catolicismo romano e o tipo de trabalhador procurado pelo coronel para ser empregado na lavoura. Os dois ansiavam por trabalhadores obedientes. Quais as pretensões de um catolicismo que se via ameaçado por intrincada e complexa rede de inimigos, dentre os quais podemos encontrar os anarquistas, os maçons, os políticos liberais e os protestantes? Donizeti de Souza responde sem mais delongas: ser fonte inspiradora da cidadania brasileira e fonte única de unidade nacional. Enquanto o chefe local buscava aumentar o lucro (com a devida ordem) na unidade agrícola, o catolicismo buscava forjar, sob seus auspícios, a unidade cultural e religiosa do País. O que um fazendeiro esperava de um padre era que este ressaltasse “as obrigações morais do empregado para com o patrão, seu dever de obediência, de humildade, de docilidade e resignação, aceitando sua situação como desígnio divino, uma vez que a ordem social era por ele estabelecida”.

Da sua parte, o ultramontanismo pretendia, além das prerrogativas políticas e econômicas, enquadrar religiosamente o colono do interior do País, pouco afinado com as doutrinas da Igreja, procurando “instar um tempo sem magia”. Sendo assim, os scalabrinianos foram os designados para acompanhar o homem católico, desde a partida até sua instalação definitiva na sociedade hospedeira, isso dada a experiência acumulada por esses religiosos na missão junto ao imigrante. Na visão dos scalabrinianos, a religião seria um fator de patriotismo e de princípios civilizadores para os imigrantes em terras brasileiras. No entanto, como acontece em todos os processos de incursões missionárias, o agente não fica incólume na sociedade envolvente, não tardando muito para que esses religiosos percebecessem os fatores complicadores de sua missão. Havia inúmeras dificuldades em implantar o projeto de pastoral de imigrante: falta de padres, custo das viagens de religiosos, descontinuidade na formação de trabalhadores contratados. Padres ávidos por lucros, ostentadores, boêmios, apresentavam-se também como percalços na organização de uma pastoral alicerçada no ultramontanismo.

Os scalabrinianos, assim, tencionavam atuar junto ao imigrante italiano com maior independência possível do clero local, dada a influência que esse exercia junto às populações interioranas e por serem poucos afeitos às exigências de um catolicismo disciplinador. A religiosidade praticada em regiões distantes dos grandes centros, com a complacência dos padres, poderia colocar em risco o projeto educacional que pretendiam implantar. As divergências entre os scalabrinianos e padres das paróquias logo emergiram e são reveladoras dos embates internos no seio de um catolicismo que atuava numa sociedade que passava por profundas transformações, tanto na esfera política quanto na cultural. Em determinado momento da missão dos scalabrinianos no Brasil, mais precisamente no período em que o padre Cansoni esteve no País, a ordem foi aconselhada a assumir paróquias, onde o sustento seria mais viável. Isso porque a inquietude entre o clero nacional e o ultramontano estava se tornando visível, com os primeiros cada vez mais resistentes à presença da ordem em sua área de atuação, já que esta tinha a liberdade de acompanhar os imigrantes em qualquer paróquia, mesmo sem estar comprometida com ela.

Uma proposta de Domenico Vicentine, substituto de Scalabrini na condução da ordem, restringia a missão dos carlistas à formação de quadros para o serviço junto aos imigrantes, cabendo aos bispos das dioceses a administração da política pastoral ao imigrante. Na verdade, o clero nacional pretendia enquadrar os scalabrinianos nas estruturas das paróquias, impedindo assim que a missão junto aos imigrantes invadisse a jurisdição das dioceses, o que contrariava a intenção da ordem, que era a de agir sem necessariamente estar vinculado às estruturas eclesiais vigentes. Percebendo as dificuldades em atuar na jurisdição das paróquias, os scalabrinianos fundaram um orfanato cujo objetivo seria o de amparar crianças órfãs que vagavam pelas ruas (esquálidas, tristes, fracas e miseráveis), preparando-as para o trabalho e para serem “bons cidadãos” e “cidadãs”. Utilizando como recurso de convencimento o fato de o orfanato ser um espaço de formação de crianças desvalidas, moldando-as para o trabalho, os scalabrinianos obtiveram dos fazendeiros o apoio necessário para a implantação do projeto, conseqüentemente, da estruturação da ordem no País. Lembra o autor que os orfanatos constituíam-se através de uma mentalidade tridentina, fato que mais uma vez denota a tentativa de romanização do imigrante por meio da ação educacional.Ao saírem em missão para angariar fundos para o orfanato, os padres scalabrinianos batizavam, ouviam confissões, faziam casamentos, enfim, atrelavam a proposta educacional à estruturação da ordem, funcionando o orfanato como um ponto estabilizador das missões.

O autor destaca que os scalabrinianos foram acossados, no final do processo imigratório, em três frentes: na primeira, pela oligarquia, já que o imigrante não mais se apresentava como um investimento seguro; na segunda, pelos párocos locais, temerosos de perder a arrecadação junto aos poucos imigrantes que ainda entravam no país; na terceira, sofria a concorrência dos anarquistas e dos maçons. Nessas frentes de combate, a que mais merecia atenção por parte do clero romano era a política desencadeada pelos anarquistas juntos aos imigrantes.

A celeuma entre a ordem scalabriniana e grupos anarquistas, na atuação junto aos imigrantes, mereceu por parte do autor um capítulo à parte. De posse de um documento desses religiosos sobre o desaparecimento de uma das internas do orfanato, Donizeti de Souza rastreou em publicações anarquistas o mesmo assunto. Nas leituras dos periódicos, percebeu com perspicácia a disputa que se travava entre o movimento político anarquista e o movimento religioso católico ultramontano pelo controle do imigrante. Tencionando alcançar o monopólio do acompanhamento ao imigrante em diversas regiões do País, as duas partes procuravam atingir a imagem do outro perante a opinião pública e perante o Estado. Não foi intenção do autor apontar o desenlace da trama envolvendo a menina Idalina, personagem central da discórdia, o que certamente o faria enveredar para um texto novelesco, tão em moda na historiografia atual. Antes, sua atenção esteve voltada para a distinção dos elementos em conflito, fazendo de sua obra uma possibilidade de compreensão dos interesses de instituições nas formulações ideológicas de um período que ainda carece de novos estudos.

Resta apontar os complicadores das considerações de Donizeti de Souza, que são de duas ordens: a primeira diz respeito à afirmação de que a intenção dos scalabrinianos era a de constituir, nas pequenas cidades em ascensão, dada a presença do imigrante italiano, “pequenas itálias”; o segundo complicador desse texto bem articulado reside na afirmação do autor de que no projeto dos religiosos estava embutido um projeto “neocolonial”. Não estariam essas responsabilidades aquém das forças de uma ordem religiosa que não se configurava entre as mais influentes dentre o escopo missionário católico, tanto no Império quanto na Primeira República?

Para além desse pequeno deslize (se é possível considerar como tal uma afirmação que não compromete o texto), essa obra é um alerta para quem reduz aos liberais, à maçonaria e ao protestantismo a capacitação de indivíduos voltados para uma sociedade ordeira e laboriosa, quesitos básicos para a consolidação da República. Em se tratando de moralização de condutas, as intenções de protestantes, católicos e maçons não eram tão díspares quanto podem parecer numa análise estreita. Os ultramontanos buscavam com disposição instilar o rigor disciplinar entre os trabalhadores imigrantes tendo em vista a composição de uma nova ordem social, um tanto quanto ameaçada pelos ideais políticos anarquistas, dos quais os italianos não estavam distantes.

Notas

1 Temos em mente, quando sinalizamos para a rede de interdependências em processos de mudanças (ou de desenvolvimento), as concepções teóricas de Norbert Elias sobre transformações sociais no processo civilizador. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, vol. 1.

Vasni de Almeida – Doutorando em História-UNESP/Assis.

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Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.

A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.

Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.

O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).

A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.

Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.

Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.

Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.

A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.

Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.

A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.

E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).

Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.

Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.

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Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar – CARDOSO; MALERBA (RBH)

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 288p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A organização de uma coletânea voltada para o debate acerca das representações configura um projeto ambicioso, dada a complexidade que o próprio tema encerra. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica. Se uma ressalva pudesse ser feita, apontar-se-ia a ausência de uma detida análise sobre as relações entre a história das artes e as representações ¾ um terreno fértil, mas pouco explorado pela historiografia, especialmente no campo das produções pictóricas e da plasticidade.

No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresenta abordagens que enfocam desde as implicações da representação como objeto histórico até a constatação de sua dimensão lingüística na produção historiográfica. Embora aponte os riscos da utilização indiscriminada da noção supracitada e de determinados paradigmas teóricos sem as devidas precauções metodológicas, o trabalho parte do reconhecimento de que a representação tornou-se uma das pedras angulares do discurso histórico contemporâneo e, como tal, procura caracterizar sua índole e função cognitiva.

Entre as contribuições do volume, chama especial atenção a análise do conceito de representação política na esfera da produção historiográfica brasileira, efetuada por Maria Helena Rolim Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra. As autoras reconhecem a multiplicidade das abordagens, objetos e referenciais metodológicos que têm sido alvo das investigações no âmbito do político, todavia advertem que tal fato não deve ser atribuído aos modismos historiográficos passageiros que tendem a privilegiar os estudos voltados para as representações do poder e do exercício político e sua articulação com a vida social brasileira. Muito pelo contrário, esse deslocamento, do ponto de vista das historiadoras, resulta das aberturas epistemológicas e da operacionalidade proposta pelo estruturalismo e pós-estruturalismo. Nesse contexto, a análise proposta volta-se inicialmente para a identificação dos caminhos percorridos pelo conceito de representações, sua dimensão epistemológica e prática no campo das investigações históricas. E, num segundo momento, procura verificar o impacto do mesmo em cerca de uma centena de dissertações de mestrado e teses de doutorado concluídas nos anos 90, no Brasil.

Com o intento de promover um balanço historiográfico dessa produção, a reflexão abarca desde a análise do elenco dos temas abordados1 até o cômputo das fontes utilizadas nos referidos trabalhos2. A incidência de um confronto entre as posturas adotadas nesses trabalhos e os pressupostos teóricos que informaram as produções dos períodos anteriores às analisadas revelou a tentativa desses pesquisadores estabelecerem um exercício de interlocução com as tendências historiográficas internacionais. Se, por um lado, como salientam as autoras, percebe-se que o resultado de tais iniciativas parecem ter-se reduzido a um tratamento descritivo e pouco analítico, que em última instância revelou significativa dificuldade de compreensão do espaço da política. Por outro, a referida pesquisa possibilitou constatar a importância desse novo campo para a historiografia nacional, além da incorporação de novas fontes e objetos.

Não obstante a constatação do esforço dos profissionais brasileiros, torna-se imperioso admitir, segundo Capelato e Dutra, que mesmo os estudos portadores de maior eficácia empírica e metodológica, não conseguem superar as armadilhas inerentes às simplificações e demonstram uma efetiva dificuldade de aprofundamento teórico pertinente aos conceitos formadores da explanação do conhecimento histórico. Tal assertiva fundamenta-se no rastreamento da noção de representação e na instrumentalização do termo associada às teorias semiolingüísticas consolidadas nos anos 60 e vinculadas à lógica das articulações entre linguagem, símbolo, imaginário e representação. Na trilha dos suportes que embasaram teórica e metodologicamente as pesquisas no campo das humanidades, as autoras pontificam os encaminhamentos propostos por destacados pensadores como Marin, Castoriadis, Lefort, entre outros expoentes.

Nessa direção, a proposta de Capelato e Dutra termina intercruzando-se com as inferências implícitas no texto de Francisco J. C. Falcon, que se ocupa prioritariamente da discussão das matrizes teóricas que informam a construção do conceito de representações. Este, por sua vez, apropriadamente, antes de investigar as acepções das representações, propõe-se a pontuar a concepção do discurso histórico mediante a análise de distintas correntes historiográficas, mais precisamente, na perspectiva dos modernos e na dos pós-modernos. De um extremo ao outro, tende a sublinhar o trânsito do conceito: para esses últimos a representação figuraria como negação do conhecimento histórico, enquanto para os primeiros seria reconhecida como parte integrante do próprio discurso da disciplina. Enveredando pelo circunstanciamento dessa problemática no campo da história cultural, Falcon recupera usos e interpretações do conceito na historiografia atual. Assim, termina resgatando etimológica e cognitivamente acepções do termo e do conceito, ocupando-se das articulações entre representações, ideologia e imaginário, e também do mapeamento de algumas das principais obras dedicadas ao tema em questão.

Assim como Falcon, Helenice Rodrigues da Silva empenha-se na recuperação genealógica das representações e seus sentidos na disciplina histórica, debatendo a operacionalidade da noção de representação na esfera da historiografia francesa. Ao procurar acompanhar a trajetória na qual os estudiosos da história cultural e da história política foram atribuindo primazia ao conceito, ao longo da década de 1970, a autora alerta para a necessidade de se relativizar a importância da noção de representação na prática histórica. Nesse horizonte, ressalta que no universo das renovações teóricas e metodológicas processadas nessa área, a história das representações tendeu a firmar-se como complemento e nova orientação da história cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradição dos Annales, a possibilidade de integração dos atores individuais ao social e histórico. Desse modo, como propõe Roger Chartier, o conceito permitiria a associação entre antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política mantinham separadas3. Em síntese, Silva procura evidenciar como a noção de representação, largamente utilizada em disciplinas como a sociologia e a psicologia (entre outras), tendeu a substituir o conceito de mentalidades na pesquisa histórica e de que forma viria a contribuir para a integração dos distintos domínios da disciplina.

Reportando-se às múltiplas facetas que o conceito implica, Ciro Flamarion Cardoso principia sua análise por intermédio de uma tentativa de perceber as motivações que informaram a denominada “virada cultural” na produção histórica da atualidade. Nesse sentido, detecta as implicações de três dos seus desdobramentos na esfera da nova história cultural4. Do seu ponto de vista, essas tendências tenderiam a inverter as premissas estruturais e explicativas do marxismo e dos Annales, terminando por promover a confecção de uma história cultural do social, em detrimento de uma história social da cultura.

Apesar de entender que as representações contribuem para a edificação de uma dada inteligibilidade do passado, Cardoso mostra-se temeroso em relação à crescente negação do realismo epistemológico, identificado em um número significativo de estudos na área das ciências humanas. Nessa direção, desnuda uma série de vícios que tem informado as pesquisas nessa área do conhecimento, analisa os pressupostos teóricos que fundamentam a obra de Roger Chartier e, posteriormente, debruça-se sobre um minucioso acompanhamento dos usos das representações nos horizontes da psicologia social.

Numa trilha similar, mas apresentando o tema do ponto de vista do sociólogo Norbert Elias, Jurandir Malerba analisa a apropriação que a história vem realizando da noção de representação. Considerando que essa questão deva ser deslocada para o campo da narratividade, o autor busca problematizar os procedimentos mais comuns nessa área. Assim, debate os ditames que orientam a indiscriminada utilização do conceito na historiografia contemporânea, reconduzindo a temática para uma síntese distinta das proposições mais recorrentes. Esse encaminhamento privilegia as articulações entre a teoria simbólica de Elias e a definição de habitus proposta por Pierre Bourdier.

Para Malerba, a teoria simbólica de Elias sugere uma leitura de representações que supera os limites circunstanciais da oposição maniqueísta entre o mundo real e o mundo representado. Nessa linha de argumentação, tal enfoque possibilita a incorporação do homem à natureza escapando de falsos dilemas, processados na edificação da teoria processual do conhecimento e da linguagem, de modo a permitir uma compreensão diferenciada do hábito social. Este, por sua vez, contempla a recuperação de visões da experiência de vida dos indivíduos em sociedade5.

Não menos relevantes são as assertivas de Lúcia Helena C. Z Pulino, Graciela Chamorro e Gustavo Blázquez. Enquanto Pulino equaciona o problema das representações em filosofia a partir da obra de Richard Rorty, Chamorro estabelece as possíveis articulações entre o referido conceito e a teologia, rastreando as representações de Deus na história, apontando as relações da teologia feminista com múltiplas formas do simbolismo (paterno e materno). Por seu turno, Blázquez aborda a maneira como a antropologia social tem-se relacionado com a noção de representação.

À guisa de conclusão, Jurandir Malerba reporta-se, por um lado, à proposta de alinhar possíveis conexões entre os textos que compõem a coletânea, respeitando as particularidades das análises propostas em cada um deles, e por outro, ao desconforto cunhado nas abordagens que tendem a limitar os efeitos das representações em toda e qualquer problemática. Oportunamente, acaba apontando os paradoxos de uma história que se propõe nova, mas enfrenta uma crise de “consciência” da própria disciplina. Para tanto, enfoca tantos os impasses teóricos enfrentados pela história como os problemas inerentes ao estatuto epistemológico da história cultural.

Curiosamente, as evidências ilustram o fato de que a abertura do diálogo da história com outras áreas do conhecimento, a conseqüente ampliação de seus objetos, o corpus documental e as estratégias metodológicas deflagraram aquela que poderíamos nomear como crise de identidade da disciplina e um intenso processo de fragmentação da mesma em múltiplas histórias, tomadas como eixo norteador da explicação sobre as contínuas transformações da sociedade moderna.

Por certo, as razões que motivaram o surgimento desse impasse teórico diante das constantes mutações do objeto histórico passam pela questão do narrativismo histórico. Mas, no contexto de tais transformações, a reflexão acerca das representações tornou-se providencial e seus aportes ganharam, cada vez mais, relevância e interesse por parte dos profissionais da área. Contudo, os excessos unilaterais detectados nas formas de interpretação histórica têm se circunscrito a modismos transitórios e efêmeros.

Sem dúvida, tais contingências explicitam a necessidade de se buscar soluções intermediárias para a abordagem das demandas mais urgentes da sociedade humana, suscitando paradigmas explicativos alternativos. Numa visão de conjunto, torna-se forçoso admitir que as restrições ao conceito de mentalidade propiciaram aos historiadores da cultura a busca de premissas alternativas àquelas assentadas na ambigüidade e na imprecisão, observadas nas articulações entre o mental e o social.

A nova história cultural, longe de tomar como objeto preponderante as interpretações dos expoentes filosóficos e as manifestações formais de cultura (como a arte e a literatura), demonstrou sua “estima” pelas práticas populares ou pelas manifestações das massas inominadas expressas nos rituais religiosos, crenças, festas e resistências cotidianas ao poder instituído.

No terreno da história social e política, o descontentamento com os modelos tradicionais impulsionou também a revisão de axiomas pautados por obnubilantes explicações globais. Desse modo, talvez a conjugação entre o poder e as representações venham a assinalar novos dispositivos de apreensão do saber histórico, sejam eles centrados no estudo do imaginário ou da simbologia política.

Por fim, não se deve furtar de proclamar que os resultados dessa coletânea foram plenamente satisfatórios. Ao superar os propósitos iniciais do projeto, com certeza esse volume se tornará uma obra de referência na esfera da produção historiográfica contemporânea.

Notas

1 Identidade nacional, imagens do poder, representações da política, espetáculos políticos, imagens e símbolos do progresso/modernidade/modernização/desenvolvimento capitalista, produção artística, veículos de propaganda política; instrumentos pedagógicos e meios de comunicação e imagens da cidades, são os temas diagnosticados pelo levantamento efetuado. CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 247.

2 Entre as fontes mais citadas destacaram-se: jornais/revistas/pasquins/relatos jornalísticos; obras literárias/narrativas/crônicas/dramaturgia; memórias/diários/biografias/autobiografias/relatos de viagens; discursos/mensagens/manifestos/escritos políticos; depoimentos; iconografia; fotografia; correspondência; música; estátuas/monumentos/obras arquitetônicas/planos urbanísticos; filmes; álbuns; almanaques; objetos simbólicos/moedas, bandeiras, escudos, emblemas, cartazes; rádio/TV; publicidade; mapas e plantas. Idem, p.249.

3 Idem, pp. 82-83.

4 O autor as nomeia como “virada lingüística”, “virada para o interior” e “virada para exterior”, indicando os respectivos representantes de cada uma delas. Idem, p.11.

5 Idem, p. 218.

Sandra C. A. Pelegrini – Universidade Estadual de Maringá.

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As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928 – WEBER (RBH)

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Editora da UFMS; Bauru: EDUSC, 1999. 249p. Resenha de: SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

O final do século XX reservou descobertas surpreendentes no campo do conhecimento médico, tanto na área da identificação como no tratamento dos males que atingem o corpo de homens e mulheres. O anúncio do mapeamento da seqüência dos genes que compõem o DNA humano, realizado durante a última década pelos pesquisadores do consórcio público internacional Projeto Genoma Humano (PGH), tem sido tratado como a maior conquista da área médica, inaugurando mesmo uma nova era do conhecimento sobre a humanidade. Alguns afirmam que a medicina aproxima-se agora das ciências exatas, pela precisão com a qual esta descoberta poderá municiar o saber médico na identificação e solução das doenças1.

Estamos cada vez mais próximos de uma visão de doença pautada exclusivamente por uma explicação científica, em que os exames realizados por equipamentos ultra-modernos e o recurso à bioquímica responderiam a todas as necessidades e enfermidades do corpo humano? Não há como negar que tal descoberta representa uma grande vitória da medicina laboratorial, pautada no desenvolvimento da técnica e da tecnologia que envolve as descobertas do que se convencionou chamar a “era bacteriológica”. Porém, notícias como estas tendem a reforçar no imaginário social uma visão homogeneizadora e evolucionista do saber médico e de suas práticas. É sobre um mundo bastante contraposto a tal visão que nos fala o livro de Beatriz Weber, As artes de curar.

Elegendo como espaço de pesquisa a sociedade do Rio Grande do Sul na passagem do século XIX para o XX, a autora examina aspectos variados e interligados que caracterizariam a história do saber médico nesta região. Dentre eles, podemos citar as diferentes práticas de cura a que recorria sua população, a luta pela constituição de um campo profissional pelos médicos diplomados, as interferências que a ideologia positivista exerceu no reconhecimento da profissão, o papel da religião, da caridade e da magia na percepção da doença pelos leigos e sua interferência na posição que era assumida pelos médicos diante das mesmas. Sua análise aponta para uma realidade na qual práticas, saberes e crenças, diversos em seus fundamentos e procedimentos, partilhavam de forma às vezes conflituosa, às vezes em sobreposição ou harmonia, um mesmo espaço de ação.

Segundo Beatriz Weber, o poder da medicina é fruto de um processo que foi sendo construído durante todo o século XIX, e vai se consolidar no Rio Grande do Sul apenas por volta da década de quarenta. A teoria positivista e a forma como a medicina era por ela encarada tiveram papel importante neste processo. Conforme a autora, o positivismo era uma marca na formação das elites políticas do Rio Grande Sul e interferiu nas reações do poder público às tentativas de parte do corpo médico em criar restrições ao exercício de sua prática profissional, à adoção de medidas de intervenção para evitar a propagação das doenças e àquelas relativas à organização do espaço e da higiene urbana.

Bastante interessante é a descrição que a autora efetua sobre o modo como o saber médico é percebido por Comte e pelos partidários do positivismo, especialmente a idéia de que a medicina está subordinada à moral e à imagem que aproxima o médico do sacerdote: “aquele que diz o que é preciso fazer e o que se pode esperar, que traz a resignação em nome de uma ordem superior quando a ação não pode modificá-la” (p. 36). Havia, no Rio Grande do Sul, vários médicos partidários do positivismo. No entanto, nem todos partilhavam completamente das proposições dos seus teóricos a respeito do saber e da prática médica, mostrando, assim, como são variadas as possibilidades de apropriação das teorias que circulavam naquele momento, com leituras específicas dentro de contextos determinados.

Sobre este aspecto, chamam a atenção as justificativas elaboradas pelos membros do Apostolado Positivista do Brasil a respeito da defesa da liberdade no exercício da arte de curar. O profissional desta arte devia exercer uma influência espiritual sobre seus pacientes, era preciso que o médico se esforçasse para conquistar sua confiança. Era através dela, somada à sua conduta e ao seu devotamento, que o médico imporia a autoridade de sua palavra, e não por uma reserva de mercado estabelecida pela lei ou pela força. Antes de criticar os empíricos, dos quais teria nascido, a medicina (dita científica) devia apropriar-se dos seus resultados que foram confirmados pela experiência. Além disto, a confiança angariada pelos práticos e empíricos junto à população era fruto de uma identidade de crenças por eles partilhada, de concepções de mundo muito mais próximas do que, por exemplo, as que seriam professadas e propostas pelos médicos diplomados. Miguel Lemos, do Apostolado Positivista, contrapunha a figura do médico moderno aos seus “primitivos confrades, que sabem sinceramente fazer partilhar aos seus doentes a confiança que eles têm nos meios que empregam” (p.43). Este fator talvez também explicasse o sucesso de muitos “charlatães indignos”. À ciência, dizia então, era necessário penetrar no espírito da população para ser aceita.

A autora aborda também as relações entre as crenças positivistas e as questões da higiene e da intervenção pública nos espaços urbanos, e a influência que as teorias científicas sobre o contágio/transmissão (miasmas, bacteriologia) exerceram sobre a administração gaúcha, marcada pela ação de políticos positivistas. Ela frisa que, muitas vezes, concepções teóricas diferenciadas eram agregadas pelas instituições públicas, assim como pelos próprios médicos. Isto põe em cheque a perspectiva evolucionista e triunfalista do conhecimento científico, pautado por conquistas cada vez mais amplas e por uma aproximação sempre maior com a verdade. E não eram só filiações a abordagens distintas sobre a doença e a cura ¾ muitas das quais na época eram consideradas “científicas”, como o espiritismo e a homeopatia, entre outros ¾ que caracterizavam os médicos do período. Havia as crenças de caráter “subjetivo”, como a própria religião, que também marcava a prática de muitos desses profissionais.

Beatriz Weber aborda ainda o processo de constituição de “uma solidariedade corporativa e de um consenso profissional” entre os médicos diplomados. Isto se faz através de instituições como hospitais, associações ou entidades profissionais e da própria Faculdade de Medicina. Porém, como mostra a autora, este não é um processo linear ou simples, mas um caminho conflituoso marcado por desavenças políticas e filosóficas. Ao mostrar que estes médicos não eram os únicos portadores de um saber sobre as doenças e a cura; que seu conhecimento era marcado por incertezas teóricas, além das dificuldades práticas (como o instrumental precário, por exemplo); que participavam de outras crenças, como a religião, que influíam na forma como viam o processo de cura e seu próprio papel como profissionais, a autora desmistifica mais uma vez a velha imagem gloriosa e triunfante da medicina e a noção de que a constituição do poder que este saber exerce sobre a sociedade tenha sido fruto de um projeto homogêneo e sempre vitorioso.

Faz parte, ainda, da sua análise, o papel desempenhado pela Santa Casa de Misericórdia no processo de formação de um campo de saber específico, a transformação de suas funções assistênciais em terapêuticas e de produção de conhecimento, e as tensões que eram criadas pela convivência de práticas e saberes distintos. Por fim, Beatriz Weber mostra a permanência, durante todo este processo de afirmação do saber médico “científico”, das outras diversas práticas de cura às quais recorriam os diferentes grupos sociais. Nesta parte, a autora enfatiza uma perspectiva de análise que toma os grupos populares como sujeitos atuantes na organização do mundo no qual viviam, superando as interpretações que vão apresentar estes grupos como meros objetos ou pacientes de um projeto de normatização (neste caso, de “medicalização” da sociedade), ou que encaram suas ações apenas como uma reação à imposição destas normas disciplinadoras e dominadoras. Conforme afirma Beatriz Weber, estes setores sociais “interagiram socialmente com criatividade e participaram ativamente das definições do mundo em que viveram”(p.18).

Em sua conclusão, a autora nos diz que

(…) as diversas formas de organização para a cura … não se impuseram inclementes umas sobre as outras, garantindo o predomínio de uma visão. Intercambiaram-se elementos entre as concepções, compondo universos explicativos próprios, muitas vezes ambíguos e contraditórios … Muitas desenvolveram formas de atuação que as mantiveram em atividade até hoje. (p.228).

Isto nos leva a pensar sobre as afirmações emitidas pela imprensa sobre a conquista representada pela descoberta do código genético humano, apresentadas no início deste texto. Será mesmo tão absoluto o triunfo identificado nesta conquista? Como têm reagido as pessoas comuns a este avanço anunciado? O que muda na sua perspectiva sobre a doença e o processo da cura? Será que esta descoberta vai fazer esvaziar a peregrinação de pacientes que procuram o “Lar São Luiz”, o Centro do médium Chico Xavier2 e outras diversas “casas de cura”, terreiros de umbanda ou benzedeiras que se espalham através do País? Vamos deixar de lado os velhos chás para o resfriado, a enxaqueca ou outro mal-estar qualquer?

A feição que tem tomado o noticiário a respeito destas descobertas se inscreve na tradição, apontada por Maria Clementina P Cunha na apresentação da obra em exame, que

(…) atribui ao saber [especialmente ao saber dito científico], com sua intrínseca pretensão de deter a verdade, um potencial quase ilimitado de controlar e moldar a sociedade segundo seus próprios desígnios (p.15).

Se a genética promete à sociedade grandes conquistas, ela também apresenta fracassos e erros ¾ que, porém, não encontram publicidade tão marcante nos meios de comunicação. Além disto, ela propõe questões de caráter ético que afetam toda a sociedade e que, portanto, não deverão ser decididas num âmbito cultural, social e político restrito, como até então tem sido feito. É preciso, como nos mostra o livro em exame, ultrapassar a imagem asséptica da medicina [e da ciência como um todo] que lança fora toda crença, toda subjetividade, toda diversidade que fundamentou este saber e suas práticas sobre a cura. A ciência não é tão poderosa e hegemônica como muitas vezes deixa transparecer, nem homens e mulheres vivem ou elaboram o seu cotidiano a partir de uma perspectiva exclusivamente científica, de uma visão de mundo informada apenas pelos saberes que compõem esta esfera da produção cultural da sociedade. A leitura de Beatriz Weber contribui de forma significativa para ultrapassarmos essa visão linear e progressista que ainda hoje marca a imagem do conhecimento científico.

 

Notas

1 “[O] Projeto Genoma Humano, promete a era da bio-medicina de precisão”; “A transcrição … do código genético inaugura a era da medicina como ciência quase exata”. Folha de S. Paulo, “Genoma” (Caderno Especial). São Paulo, 27 de junho de 2000.

2 O “Lar São Luiz” e o centro de Chico Xavier são conhecidas “casas de cura” que realizam consultas e operações espirituais. A primeira está localizada no Rio de Janeiro, e a segunda, em Minas Gerais.

Anny Jackeline Torres Silveira – Coltec – UFMG, Doutoranda UFF.

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O populismo e sua história – debate e crítica – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 380p. Resenha de: BORGUES, Vavy Pacheco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A coletânea organizada por Jorge Ferreira, professor do Departamento de História da Universidade Federal fluminense, se inscreve a meu ver em uma das melhores vertentes da chamada “história política renovada”, trazendo preocupações conceituais como eixo de articulação dos artigos, conforme bem exprime seu título. Como os historiadores têm procurado mostrar, os conceitos, além de históricos (como tudo que se refere ao homem e sua cultura, isto é, tudo que é humano), quando usados em política ¾ eminentemente uma disputa ¾ nunca são neutros. Também as emoções, os sentimentos e instintos dos indivíduos e das “massas” são hoje, para muitos historiadores, uma dimensão fundamental da vida política; os analistas do séc. XIX dela muito se ocuparam, mas essa dimensão foi relegada pelos cientistas sociais brasileiros das últimas décadas. Ao começar seu texto por uma bela epígrafe de Rachel de Queiroz, Jorge Ferreira indica sua intenção de lembrar a importância dessa questão, embora isso só permaneça subjacente aos textos. Cita ele : “Não há povo amorfo. Não há massa bruta e indiferente. A massa é formada de homens e a natureza de todos os homens é a mesma: dela é a paixão, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e de defesa.”

Os autores, em suas análises, fazem-nos dar profícuas voltas e mais voltas em torno do conceito ou categoria explicativa populismo, ao qual se referem também como “noção”, “palavra”, “expressão”, “imagem”, “sentido”… Exploram também aqueles que são vistos como os sujeitos políticos dessa história: os líderes e seus projetos, as “massas” ou as classes e suas relações. Na obra, o populismo surge absolutamente enredado em outros conceitos, como trabalhismo, getulismo, queremismo, sindicalismo ou peleguismo, autoritarismo, fascismo ou totalitarismo (como se fossem termos equivalentes), e ainda nacionalismo e estatismo. Esses são analisados em suas doutrinas e em suas práticas, configuradas estas em noções como “mistificação, manipulação e demagogia”.

São sete artigos, praticamente todos sobre a história brasileira, e a forma de analisá-la. Apenas o de Maria Helena Capelato se debruça sobre a questão no âmbito da América Latina, fazendo uma comparação do chamado fenômeno populista no México e na Argentina. Alguns, na trilha “arqueológica” da história do conceito de populismo, apresentam preocupações teórico-conceituais mais marcantes, sobretudo os de Ângela C. Gomes, Jorge Ferreira e Daniel A . Reis. O artigo de Fernando T. da Silva e Hélio Costa situa-se ainda nesse terreno de fortes preocupações teórico-metodológicas, mas analisando interpretações historiográficas no campo da história social do trabalho. Os outros são mais reconstituições de partes da história política do período denominado populista, cujos inícios, a partir dos anos 1930 (“tempo das origens”), se solidificam no que é apresentado como um sistema político de 1945 a 1964 (a “república populista”). O artigo de Lucília de A . Neves (no campo das idéias políticas) explicita as propostas do trabalhismo, no que ela chama de “um projeto para o Brasil” de 1945 a 1964, entrelaçadas ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo. Eliana Pessanha e Regina Morel comparam experiências de sindicalismo no Rio de Janeiro, que consideram “expressivas da experiência sindical no período considerado”: os operários navais e da indústria siderúrgica.

Como a maioria das coletâneas ou coleções, o resultado é desigual na organização do pensamento e na forma de exposição, da clareza, do estilo, revelando por vezes maior reflexão própria, outras vezes mais resumos e crítica historiográfica, sempre interessantes. Inicia com artigos agradavelmente escritos, como os de Ângela C. Gomes e Jorge Ferreira, com imagens simples e eficientes, e termina com um fecho de ouro, no sentido da narração, que é o artigo de Daniel A. Reis, dotado de uma fina ironia e um estilo envolvente. Há algumas repetições de idéias e de análises de autores que nos dão impressão de vai-e-vem; isso se nota mais no conjunto dos textos, mas por vezes em um mesmo texto.

De uma forma geral, o que ressalta da obra é mais uma demonstração cabal e irrefutável de que os conceitos que usamos para explicar a história política estão sempre enredados nos laços permanentes e inextricáveis entre o momento histórico e sua análise, entre a história e a política1. É preciso estar constantemente atento a esses laços, pois senão, por motivos múltiplos e diversos, as intenções não desvendadas da política levam o analista a considerar o conceito como um fato que se passou ou um tema que mereça um estudo, sem maiores questionamentos2. Não é possível, enquanto cientistas sociais, pensarmos no populismo só na vida política ou só na academia: o imbricamento entre os dois ( visto na coletânea como um “deslizamento”) resulta da luta política mais ampla, como bem se percebe pelos artigos que se detêm no panorama historiográfico, ao abordarem o conceito e seu uso pelos mais diversos agentes e/ou analistas políticos.

Do conjunto da obra depreendem-se claramente os mecanismos pelos quais as explicações sociológicas e da ciência política resultaram de uma luta política mais ampla3. Já no início a Introdução de Jorge Ferreira mostra a elasticidade da categoria até torná-la o que chamei de “categoria-monstro”, quando fiz uma retomada do surgimento do conceito de tenentismo e seus diversos empregos, por diferentes oponentes políticos, em diversos momentos da política brasileira4. Assim como esse, o populismo teve seu sinal invertido, mas em sentido contrário: quando surgiu o uso do termo populista no vocabulário da luta política, este aparecia quase como um mero adjetivo, ligado a “popular”. Getúlio Vargas e João Goulart eram chamados de populistas, e isto não tinha, para Jorge Ferreira, um sentido ofensivo. Depois, tornou-se um insulto para a direita liberal. O tenentismo começou como uma tentativa de descrédito político, depois foi legitimado e positivamente valorizado por Virgínio de Santa Rosa e outros da época, como a “revolução das classes-médias”5.

Ambos os conceitos tiveram também até hoje um uso eminentemente plástico: pelo fato de querer “pôr tudo no mesmo saco” (imagem de Jorge Ferreira) e por querer explicar tudo, acaba-se não explicando realmente nada. Como explicita o mesmo autor, “personagens com diferentes tradições políticas foram reduzidos a um denominador comum: líderes trabalhistas como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola e mesmo Miguel Arraes perfilaram-se ao lado de políticos regionais paulistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros; de um general anódino, como Eurico Dutra; de um udenista golpista, como Carlos Lacerda; e de uma figura ainda mal estudada, como Juscelino Kubitschek. Após 1964, o próprio general-presidente João Figueiredo igualmente entrou no rol, segundo algumas análises. (…) projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um mesmo rótulo: tratar-se-ia de ‘populismo’ ” 6.

Esse populismo, chamado pelos autores de “gato de sete vidas” ou “herança maldita” ¾ pois foi e por vezes ainda é visto como uma categoria explicativa de um sistema político e social brasileiro ¾ tem suas apontadas características explicitadas em muitos dos artigos. São dissecadas com propriedade e clareza as análises clássicas sobre o populismo, em especial as dos anos 1960, de Francisco Weffort e Octávio Ianni, mas também os primeiros trabalhos da década de 1950, do Grupo de Itatiaia e depois do ISEB, que estão nas origens das interpretações posteriores.

Algumas práticas historiográficas ¾ hoje já condenadas ¾ estavam presentes em nossa historiografia naquele momento, sendo de certa forma um pano de fundo que propiciava as interpretações analisadas na obra. As duas principais me parecem a linearidade do chamado “processo histórico” e o papel atribuído ao Estado na história brasileira. A primeira percebe-se numa recorrência da interpretação da nossa vida política: até hoje muitos consideram que 1937 está necessariamente contido em 1930, ou em outras palavras, o golpe de Estado e o autoritarismo eram as únicas possibilidades ao longo do primeiro período getulista, e assim a dita Revolução de 30 teria levado necessariamente ao golpe de Estado e à ditadura do Estado Novo; da mesma forma, no conjunto das interpretações criticadas pelos diversos autores, 1954 ¾ ano da morte de Getúlio ¾ contém em germe, inelutavelmente, o golpe político-militar de 1964, apontado como momento do colapso do populismo, tanto como sistema como prática política (esses dois sentidos por vezes parecem se confundir, na obra )7. Essas relações apresentadas como necessárias e inelutáveis são combatidas por historiadores que, além de recusar modelos de desenvolvimentos de outros tempos e espaços, estão atentos às possibilidades e potencialidades da história, que nunca é uma estrada de mão única, linear e com ponto de chegada definido, predeterminado. O segundo tipo de prática tem a ver com a definição dos sujeitos em história. No “desprezo” da história das grandes figuras do início do século XX, passamos, décadas atrás, a ver o Estado como o demiurgo de nossa história; isso se deu entre os historiadores ainda devido a essa importância atribuída às análises das ciências sociais. A forte presença do Estado na organização da vida política brasileira anulava os outros possíveis sujeitos.

Na verdade, a grande questão que estrutura toda a coletânea é: qual é o papel dos trabalhadores enquanto sujeitos da história brasileira? Os autores internacionais e nacionais que estudaram a história social do trabalho em geral e a brasileira em particular são bastante bem utilizados por alguns textos. Há uma crítica aos trabalhos que tratam de populismo por verem em geral os trabalhadores seja como massa manipulada, seja como “atrasados” em relação a outros desenvolvimentos históricos. Isso aparece centralizar as reflexões sobretudo de Jorge Ferreira, Fernando T. da Silva e Hélio Costa. Os dois últimos lembram o questionamento levantado pelo brasilianista John French, sobre a “mistificação” dos trabalhadores que apresenta como “a grande pergunta, nunca respondida”: “por que os operários sucumbiram aos agrados dos líderes populistas, aceitando a dominação, e, ao mesmo tempo, se dispuseram a confiar em traidores?” Decorre dessa questão o debate sobre os reais avanços da Consolidação Geral do Trabalho (CLT), hoje em dia ameaçada.

Só se pode receber bem estudos e pesquisas sobre a história política do período, ainda muito pouco examinada. Além disso, concordo com Francisco Carlos T. da Silva, autor da orelha da obra, que Jorge Ferreira, ao reunir autores significativos no tema, fez um trabalho “extremamente louvável”, que acaba por constituir uma “garantia contra o pensamento único”. Pois apesar do debate e da crítica a que os diversos artigos nos introduzem e reforçam, o conceito de populismo continua vivo, presente na mídia e em nosso cotidiano, como se referindo a um fato político-social indubitável, tanto no Brasil quanto na América Latina (e por vezes, em alguns breves momentos me pareceu que alguns dos próprios autores do livro escorregam nessa aceitação, legitimando o populismo como um “fenômeno histórico”). O que mostra que um conceito, uma vez consagrado pelo senso comum, é de difícil extirpação8.

Como diz Ângela C. Gomes, “escrever sobre o populismo no Brasil será sempre um risco”. Hoje em dia pode-se perceber que, na boca e na pena da direita conservadora, a pecha de “populista” substituiu a pecha de “comunista”, desde os anos vinte do século passado empregado como o maior insulto, ou seja, uma forte “arma” política. Aliás, Jorge Ferreira destacou a origem do termo populista enquanto insulto desde os anos 1960, mas também hoje em dia, na boca, por exemplo, de nosso presidente atual, Fernando Henrique Cardoso. Percebe-se na luta política mais ampla que, por trás do uso da qualificação de populista, há a tentativa (sempre renovada e proveniente do medo, e por que não dizer, mesquinhez) de se impedir uma decisiva participação de sujeitos políticos que possam mudar os rumos de nossa história, marcada por terríveis indicadores sociais, provenientes em última análise da nossa injusta e desumana distribuição de renda.

Penso que a principal contribuição da coletânea reside em repor a historicidade do conceito de populismo ( e de alguns dos a ele conexos). A tarefa não é empreendida explicitamente por cada texto, mas bem sucedida em seu conjunto. Para ilustrar tal resultado, penso ser interessante relatar um episódio ocorrido durante minha defesa de tese de doutorado, em que Francisco Weffort era membro da banca (trabalho já citado sobre a retomada do conceito de tenentismo). Ele terminou sua simpática argüição pela pergunta seguinte: “mas, afinal, o que foi o tenentismo?” Eu (e os outros membros, assim como parte do público, que compreenderam bem a intenção da tese ) percebemos que, enquanto cientista social e diversamente de Octávio Ianni, que orientara minha tese, Weffort não conseguia compreender o trabalho de um historiador que, numa linha de raciocínio de crítica ao conceito, procurara recuperar sua historicidade9. Não acredito, porém, que um leitor que faça atentamente a leitura desta coletânea, ao terminar pergunte, de forma semelhante à de Weffort: “mas, afinal, o que foi o populismo” ?

Notas

1 Ver BORGES, Vavy Pacheco. “História e Política: laços permanentes”. In Revista Brasileira de História: Política e Cultura. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/SCT/CNpq/Finep, vol. 12, Nº.23/24, pp.7-18, set. 91-ago.92.

2 Esse tipo de preocupação surge entre nós historiadores brasileiros em torno do tema da “Revolução de Trinta”, a partir da década de 1970. No caso, ver sobretudo VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC/HISTÓRIA SOCIAL, USP, 1997.

3 A historicidade dos conceitos tem entre nós, no alemão Reinhardt Kosseleck e no francês Pierre Rosanvallon, alguns de seus expoentes. Os assuntos em questão têm sido debatidos nas apresentações promovidas nos encontros da ANPUH pelos grupos de trabalho de História Política e de Mundo do Trabalho.

4 Ver BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

5 Essa concepção, embora questionada, permanece intocada em muitíssimos trabalhos. Tome-se um exemplo ao acaso, entre inúmeros exemplos recentes de obras de divulgação: a obra Viagem pela história do Brasil, de Jorge Caldeira, publicada em 1997 pela Companhia das Letras; essa apresenta o tenentismo como a expressão dos anseios das classes médias; apresenta também um capítulo intitulado: “O período populista” sem maiores explicitações….

6 Ver pp.10-11 da coletânea.

7 É interessante lembrar que, durante a presidência de Fernando Collor, uma caricatura na grande imprensa paulistana mostrava Collor sentado em um trono presidencial, tendo ao lado um bobo da corte, que carregava um livro intitulado ” O colapso do populismo”.

8 No momento em que escrevo a resenha, dois exemplos: do ponto de vista da academia, a recente versão do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro ¾ pós-1930, produzido pelo CPDOC, traz um item “Populismo” com quase tudo o que é criticado nesta coletânea; do ponto de vista da política, o populismo na mídia tem aparecido como o culpado, em boa parte, pelos insucessos políticos atuais da Argentina (dezembro 2001- janeiro 2002.)

9 Eu respondi a Weffort que a criação do termo, datada do primeiro semestre do ano de 1931, foi resultado de um enorme medo das elites políticas paulistas, depois difundido por essas nas classes médias urbanas, gerado pela presença de uma forma de militarismo na política, que poderia trazer, temiam todos, uma enorme mudança social. Porém, para as elites, antes e depois desse momento histórico, quando os militares fazem o que elas querem, eles não parecem despertar medo algum.

Vavy Pacheco Borges – Universidade Estadual de Campinas.

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Uma estranha ditadura – FORRESTER (RBH)

FORRESTER, Viviane. Uma estranha ditadura. São Paulo: Editora da Unesp, 2001. 187p. Resenha de: CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

Desemprego nos EUA é o maior em 4 anos: 113 mil é o número de postos de trabalho cortados pela economia americana em agosto1. Manchetes como esta continuam a nos assustar. Elas provocam uma sensação de instabilidade, porque questionam aquilo que acreditamos ainda ser vital para a sobrevivência ¾ o emprego. As matérias publicadas na imprensa cotidianamente tentam fazer uma análise da crise econômica que tem afetado o mundo nessas últimas décadas, mostrando os seus reflexos sociais (mesmo porque eles não podem ser negados, dada a sua objetividade) e os caminhos possíveis para a sua superação: a capacidade das empresas de apresentarem produtividade e competitividade no mercado. A lógica deste caminho acena para a possibilidade de uma retomada do crescimento econômico pelas empresas, o que geraria frutos positivos para o conjunto da população, com a diminuição do desemprego e com a melhoria das condições de vida. Questionar esta lógica é o eixo central da análise feita por Viviane Forrester em Uma estranha ditadura, livro escrito em 1999, lançado na França no ano seguinte e publicado no Brasil em 2001, pela editora da UNESP.

Neste livro, a autora retoma reflexões feitas em O horror econômico 2, sobre o momento atual do capitalismo, caracterizado pelo liberalismo absoluto, pela globalização e pela desregulamentação. O modelo que se instala, sob o signo da automação ou das tecnologias revolucionárias, não tem vínculo com o mundo do trabalho, embora esta categoria, sob a roupagem do emprego, continue a ser sustentáculo da sociedade. O trabalho, ou o emprego, transforma-se em mito, em algo constantemente buscado, embora em extinção; e o desemprego ¾ sua negação ¾ continua sendo objeto de promessas de solução, principalmente nos projetos de desenvolvimento e nas plataformas políticas.

Ao trabalhar com temas atuais, como globalização, ultraliberalismo, competitividade, produtividade, Viviane Forrester levanta questões que estão no cerne das reflexões não só de historiadores, economistas, cientistas políticos, mas também nas discussões cotidianas das pessoas que vivem a pressão da mídia, que as conclama para o sacrifício individual na busca de soluções para as economias nacionais, e a sedução das propostas governamentais que, em nome da competitividade nos mercados internacionais, acenam com a flexibilidade dos empregos e dos direitos sociais. Aliás, esta palavra vem adquirindo uma conotação mágica ao ser usada para caracterizar uma pseudomodernidade do capitalismo.

Em Uma estranha ditadura, o conceito de ultraliberalismo é privilegiado. Esse conceito é tratado pelos dirigentes da economia como globalização. Esta identificação tem um sentido político importante, na medida em que o termo globalização, que possui conteúdo histórico, transmite a idéia de um processo irrefutável, que aconteceria de qualquer forma e que, portanto, seria inquestionável. Mas é o próprio estatuto da História, que se constrói na transformação, que nos possibilita resistir a essa idéia:

(…) na verdade, vivemos em um de seus momentos mais efervescentes, que não vêm acompanhados por crises sociais, mas pela mutação de uma civilização até aqui fundada no emprego, o qual está em contradição com a economia especulativa atualmente dominante3.

Vinculando o desemprego às políticas ultraliberais dos últimos decênios, a autora questiona a chamada economia de mercado que se movimenta em um universo virtual, na qual os assalariados e os consumidores não têm importância.

O título do livro ¾ no original Un étrange dictature ¾ é uma referência à nova ordem do capitalismo, identificada com a globalização, um sistema despótico que acredita poder se dar ao luxo, graças à sua força, de suportar a moldura democrática. Essa estranha ditadura, que mais se assemelha a uma ideologia totalitária, assenta-se em uma contradição básica, que se manifesta na diferença entre o discurso que consagra a economia de mercado como modelo único de sociedade e as políticas concretas adotadas pelas empresas, onde se associam lucro e especulação e a acumulação se liga às flutuações virtuais da especulação, de suas apostas alucinantes.

Duas reflexões básicas se destacam neste livro. A primeira diz respeito ao surgimento dos working poors, referência aos que vivem abaixo do nível de pobreza mesmo trabalhando e que, por isso, não aparecem nas estatísticas sobre desemprego. Assistimos hoje à substituição do welfare ( o conceito de bem- estar social) pelo workfare (trabalho forçado), uma tarifa do trabalho só possível depois que os trabalhadores são desprovidos de todos os recursos, gerando a submissão, que os leva a aceitar quaisquer condições de trabalho e de vida. O workfare consiste, sob pretexto de inserção, em forçar as pessoas a aceitar qualquer trabalho. Esse processo expõe a relação, ainda muito forte, que existe entre dignidade e emprego, e seu efeito imediato, visível na divisão entre assalariados e desempregados, o que possibilita a dominação.

Outra reflexão que nos faz repensar em nossos conceitos sobre as relações sociais hoje é a sobre educação dos jovens. Por que formar jovens para profissões julgadas parasitárias e muito dispendiosas? No que empregá-los? O sistema educacional em todos os países está falido. As profissões que não têm vínculo com o mercado especulativo são consideradas supérfluas. Em nome do controle dos gastos públicos, postos de trabalho essenciais, como de professores, enfermeiras, médicos, vigias de museus, entre outros, são suprimidos, anunciando um futuro sombrio para as próximas gerações. Não estaríamos vivendo agora uma nova exploração desenfreada, que a história já registrou para o século XIX, apenas com uma nova roupagem?

Embora o texto apresentado por Forrester tenha o caráter de ensaio, naquilo a que a autora se propôs, ou seja, refletir sobre os caminhos que trilhamos hoje para superá-los, ele cumpre o seu papel. Poderíamos, talvez, cobrar uma análise teórica mais profunda, assentada em uma pesquisa documental mais consistente. Isto significaria desconhecer a trajetória da autora, romancista, crítica literária do jornal Le Monde, atividades que possibilitaram, por outro lado, a comunicabilidade que ela transmite pela escrita. A pergunta inicial proposta no texto, a respeito do ultraliberalismo, já cria um clima de envolvimento do leitor: De onde vem o fato de suas atividades prosseguirem com a mesma arrogância, de seu poder tão caduco continuar a se consolidar e de seu caráter hegemônico ampliar-se cada vez mais?4 Ao analisar esta questão, a autora chama a atenção para a propaganda que, ao indicar falsas premissas, encobre os verdadeiros problemas.

Vivemos hoje no mundo da comunicação acelerada. Recebemos cotidianamente uma avalanche de informações. Ao ler o jornal, ao assistir o noticiário na televisão, somos bombardeados com uma série de dados e eles nos exigem um posicionamento crítico diante dos acontecimentos. Como sujeitos dessa história presente, recebemos uma chuva de notícias, cujos pingos vão nos atingindo de forma isolada, com o objetivo de nos transmitir uma postura positiva a respeito dos despropósitos do mundo atual que, espera-se, possamos assimilar. Ser sujeito desta história é complicado: nossa capacidade de discernimento e análise vê-se prejudicada não só por sermos sujeitos na cena contemporânea, mas também pela velocidade e multiplicidade das informações que nos são repassadas a todo momento, onde se mesclam as imagens do avanço tecnológico e da saúde das empresas com as da pobreza e da violência urbana.

Ao tratar esta realidade, Uma estranha ditadura ultrapassa o objetivo de análise das relações econômicas e sociais contemporâneas e assume o caráter de denúncia. Denúncia das estratégias de convencimento que visam ocultar a realidade das propagandas, que buscam o consentimento para as políticas destruidoras feitas em nome da globalização, esse apanágio para todos os males.

Acompanhando todas as reflexões feitas pela autora, uma pergunta vital não poderia deixar de ser feita: ¾ existe futuro? Ou melhor, existe a possibilidade de um outro futuro? Para enfrentar a ditadura da economia de mercado é necessário desmantelar a impostura, construir formas de resistência, e a opinião pública pode ter um papel fundamental, forçando seus representantes políticos a mudar de direção. Hobsbawm5, em artigo onde analisa a falência da democracia, observa como a opinião pública tem se tornado poderosa, graças aos meios de comunicação de massa, e como ela tem influído nas instâncias decisórias superiores. O poder desta opinião pública é a outra marca deste mundo globalizado, onde os governos têm que conviver com a vontade dos cidadãos, que não avaliam projetos, mas resultados.

Mais recentemente, afirma o autor, as manifestações em Seattle e Praga demonstram a eficácia da ação direta bem dirigida, conduzida por grupos pequenos, mas cientes de como agir diante das câmaras, mesmo quando agem contra organismos erguidos para serem imunes aos processos políticos democráticos, tais como o FMI e o Banco Mundial.

Se a pressão da opinião pública é o caminho, é necessário definir em que sociedade queremos viver. Transformar a sociedade atual é resolver a questão da repartição, jogando por terra as prioridades da economia ultraliberal, centradas no lucro, colocando as pessoas no centro dessas prioridades. Esta é uma operação realizável, como afirma Viviane Forrester, porque afinal o ultraliberalismo nada tem de irreversível.

Notas

1 “Desemprego nos EUA é o maior em 4 anos.” Folha de S. Paulo, 8 set. 2001, p.B1.

2 FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1997.

3 FORRESTER, Viviane.Uma estranha ditadura. São Paulo: UNESP, 2001, p.15.

4 Idem, p. 5.

5 HOBSBAWM, Eric. “A falência da democracia”. In Folha de S. Paulo. Caderno Mais!, 9 set. 2001, pp. 4-7.

Heloisa Helena Pacheco Cardoso – Universidade Federal de Uberlândia/ Projeto PROCAD.

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Ciência e Sociedade / Revista Brasileira de História / 2001

Trazer a público uma discussão acerca das relações entre Ciência e Sociedade constituiu um desafio na medida em que se trata de temática pouco contemplada nas revistas da área de História, apesar da vigorosa e diversificada produção que vem sendo realizada pelos historiadores das ciências.

A resposta rápida, copiosa e diversificada dos autores ao tema proposto indica o acerto da escolha em termos de proporcionar um canal de debate e divulgação desses trabalhos que de hábito são publicados em periódicos das áreas específicas do conhecimento, constituindo assim uma historiografia até certo ponto “invisível” ou de difícil localização. Os artigos aqui reunidos são significativos para a compreensão das relações entre ciência e sociedade em grande abrangência analítica, pois se reportam até o século XVII, não apenas do Brasil, mas do mundo ocidental, com destaque para os estudos voltados para a Inglaterra e a França. A relevância social e científica do tema, revela-se no amplo leque de assuntos abordados em perspectiva de revisão historiográfica, em artigos cujas temáticas interligadas evidenciam o diálogo entre o conhecimento histórico e as demais ciências. Em suma, trata-se de um número especial da revista, de interesse amplo para historiadores e pesquisadores em geral.

Especificamente em relação aos autores da França, ficam registrados os agradecimentos a Laurent Mucchielli, que reuniu os artigos de Claude Blanckaert, Olivier Martin e Pierre-Henri Castel, possibilitando assim um diálogo enriquecedor com a história da sociologia e da temática do transexualismo. A formação de uma tradição durkheimiana na França, a constituição de uma Sociologia acadêmica e os embates institucionais que acompanharam essa trajetória, aqui analisados com o instrumental teórico-metodológico de Bourdieu em perspectiva crítica,possibilitam uma renovação dos estudos das relações entre História e Sociologia e abrem perspectivas inovadoras. O estudo das origens da Sociologia estatística e da Bio-sociologia delineia o percurso institucional e político da constituição da Sociologia e de suas relações com a sociedade francesa, em direção à sua autonomia enquanto disciplina. Completando esta vertente, o tema do transexualismo em perspectiva historiográfica traz importante questionamento acerca desse entrelaçamento, colocando em questão a construção dos conceitos de identidade sexual e de gênero a partir das interpretações psicanalíticas, médicas e sociológicas.

O estudo de Luís Carlos Soares integra a perspectiva analítica voltada para a Europa, com a análise das relações entre Ilustração e academias de ensino no interior da dissidência religiosa inglesa do século XVIII. Abre assim vertente inovadora ao abordar as instituições de ensino mantidas pelos não-conformistas, nas quais o ensino das novas ciências naturais alcançou um espaço privilegiado.

Os estudos sobre o Brasil abrangem os dois últimos séculos e apresentam-se bastante variados e abrangentes em temáticas, perspectivas e problemáticas. Os artigos de Maria Margaret Lopes, Lorelai Kury e Benito Bisso Schmidt colocam em discussão o cientificismo dos séculos XIX e XX, ao realizarem abordagens das missões científicas e da volumosa literatura de viagem por elas produzida, dos museus que foram constituídos para responder a esse interesse e do discurso do movimento operário, igualmente permeado pelas preocupações que estabeleciam algum tipo de nexo entre ciência e progresso, com intuitos civilizadores. Ainda uma vez, a preocupação com o percurso institucional das disciplinas, desta feita na América Latina e especificamente no Brasil, contribui para a compreensão da trajetória da Arqueologia, da Antropologia e da Paleontologia, bem como da difusão das teorias darwinistas, kardecistas e da antropologia criminal, temática também presente na abordagem da Antropotecnia feita por Claude Blanckaert a partir dos estudos de Manouvrier. Teorias raciais e biogeográficas são trazidas à discussão e analisadas em sua dimensão social e política.

Voltados para a Medicina, os artigos de James Roberto Silva e Luiz Antonio Teixeira trazem novas perspectivas. O primeiro deles, ao colocar em questão o olhar médico sobre a doença, e sobretudo sobre o paciente, aborda a constituição de rico documentário fotográfico, ainda pouco explorado pela historiografia, revelando assim um mundo de intencionalidades e subjetividades que se tornaram paradigmáticas de tais registros. O artigo sobre a transmissão da febre amarela recupera os embates sociais que acompanharam o combate à moléstia que tanto afligiu a população no final do século XIX e motivou intensos estudos na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, na qual o médico Luís Pereira Barreto teve atuação destacada.

Comunicação, ciência e tecnologia constitui o tema de dois artigos. O de Laura Antunes Maciel, que aborda a constituição do serviço telegráfico no Brasil, discute questões relevantes sobre cultura e tecnologia, recuperando experiências de modernização técnica e do papel do Estado no campo das telecomunicações. O trabalho de Ana Maria Ribeiro de Andrade e José Leandro Rocha Cardoso analisa a divulgação de ciência e tecnologia em periódicos como Manchete e O Cruzeiro que nos anos 50 constituíam importante veículo de comunicação de massa mediante fotorreportagens que ao idealizarem os construtores da ciência, contribuíram para a divulgação de uma representação estereotipada dos cientistas e para o distanciamento entre ciência e sociedade.

Com este número temático, o Conselho Editorial da Revista Brasileira de História encerra sua gestão, registrando os agradecimentos a todos os autores que enviaram suas contribuições e aos pareceristas que no decorrer desta jornada constituíram o suporte inestimável deste trabalho.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.41, 2001. Acessar publicação original [DR]

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Espaços da Política / Revista Brasileira de História / 2001

Seis artigos compõem o dossiê Espaços da Política organizado para este número da Revista Brasileira de História. Os espaços da política são aqui tomados como aqueles onde se manifestam as nem sempre explícitas relações de poder e nos quais entram em conflito representações e imaginários sociais.

A revista se abre com o artigo de Vicente Sánchez Biosca que, analisando o documentário Shoah, reflete sobre as relações entre memória e esquecimento, entre o fato e suas representações, entre o poder nazista e o horror dos campos de concentração.

Os dois textos seguintes abordam temáticas latino-americanas. José Luis Bendicho Beired discute a extrema direita nacionalista na Argentina, no período entre as duas guerras mundiais, e seu projeto de dominação continental. Apresenta os fundamentos do discurso desse grupo, mostrando seus objetivos e sua concepção de história. Mary Anne Junqueira estuda a revista Seleções, entre 1942 e 1970 e suas representações sobre o território latino-americano. Toma a idéia de wilderness como central para entender o imaginário norte-americano sobre o Oeste; para a autora, a revista associa o território da América Latina ao Oeste e à wilderness.

Os três artigos que fecham o dossiê são diversificados em seus temas. João Pinto Furtado trabalha com a historiografia sobre a Inconfidência Mineira, procurando desmontar alguns mitos construídos sobre a mesma. Pensa que seus protagonistas não formavam um grupo com forte coesão ideológica que propugnava a construção de um projeto de nação definido. Magnus Roberto de Mello Pereira aborda um tema original pouco trabalhado pela historiografia: o direito de almoçataria nas cidades de Portugal e de sua colônia brasileira. Defende a tese de que o Estado moderno voltado para as políticas públicas nasce pela apropriação das atribuições administrativas da cidade. Finalmente, Ernst Pijning estuda as medidas políticas impostas pela Coroa portuguesa para controlar o contrabando no século XVIII, em particular no Rio de Janeiro. Analisa os diversos interesses conflitantes em jogo, a ambivalência do fenômeno e o fracasso em condenar essas práticas como imorais.

Os artigos que se seguem tem por palco as cidades de Recife e de São Paulo. Virgínia Pontual visita as narrativas de memorialistas que descreveram Recife desde o século XVI até o presente. Constata que as mesmas representações nas narrativas de origem continuam sendo reproduzidas e superpostas às da atualidade. Entretanto, mudam os sinais de positivo no passado para negativo no presente. Maria Inês M. Borges Pinto estuda a produção de parte da intelligentsia paulistana enfatizando suas perspectivas contraditórias sobres nacionalismo e regionalismo. Detêm-se na obra de Mário de Andrade e nas vozes dissonantes de Antônio de Alcântara Machado e Manuel Bandeira.

Luis Humberto Martins Arantes tem a peça de Jorge de Andrade, A Moratória, escrita em 1950, como foco de seu estudo. Tecendo as relações entre teatro e história, mostra como o dramaturgo, ao narrar a decadência das elites cafeeiras na década de 1930, constrói uma representação do “homem brasileiro”. Regina Dalcastagnè estabelece um diálogo entre história e literatura, escolhendo duas obras – O Cortiço e Viva o Povo Brasileiro – de Aluísio de Azevedo e de João Ubaldo Ribeiro respectivamente. Ainda que produzidas em épocas diferentes, separadas por quase um século, a autora mostra como a crítica à violência das relações de dominação social está presente nos dois textos.

O último artigo se debruça sobre as fontes documentais, matéria prima do historiador. Analisa a natureza diversa de fontes para o estudo dos preços de escravos, entre 1871 e 1874, na região do Vale do Paraíba, especialmente, as cidades de Cruzeiro, Lorena, Guaratinguetá e Silveira,.

Este número da Revista Brasileira de História, o primeiro organizado pelo novo Conselho Editorial, concentra uma série de artigos com temáticas bastante originais, elaborados por competentes pesquisadores. É preciso mencionar, ainda, que a edição desta revista contou com os imprescindíveis recursos do CNPq.

Conselho Editorial


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Estado e Controle Social / Revista Brasileira de História / 2001

O dossiê Estado e controle social, que a Revista Brasileira de História apresenta aos seus leitores, traz inicialmente um documento de Maurice Halbwachs registrando suas impressões sobre sua eleição para o Collège de France. O autor, que elaborou significativa contribuição teórica para os estudos sobre memória, desvenda neste texto sua própria vida em atividade de memorialista, abrindo perspectivas para a história das ciências humanas e de suas relações com a política. O “grupo de Strasbourg” e suas ramificações no mundo acadêmico francês, suas estratégias de inclusão / exclusão constituem temáticas que remetem à história e à sociologia.

O documento, inédito no Brasil, inicialmente foi publicado na Revue d’ Histoire des Sciences Humaines graças ao trabalho de transcrição e notação de Laurent Mucchielli e Jacqueline Pluet-Despatin. Infelizmente, por motivo de formatação de nossa revista, tais notas foram aqui suprimidas. A apresentação do documento, feita pelos dois autores, contextualiza sua escrita na França ocupada pela Alemanha nazista e revela dados biográficos do autor relacionados à Resistência. O Collège de France é também analisado a partir da perspectiva de campo social dada por Bourdieu, revelando aspectos complexos da inclusão acadêmica dos durkheimianos e de suas ligações com o Estado, até o extremo da eliminação física dos indesejáveis, presenciada por uma instituição incapaz de reagir.

O campo acadêmico e suas relações com o Estado também constituem o tema do artigo de Cláudia Callari, publicado postumamente com a revisão de Lilian Starobinas. Nele, o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais é analisado do ponto de vista da produção do saber histórico e sua instrumentalização pela política durante o Império e a República, mediante a construção de narrativas modelares.

João Fábio Bertonha analisa o Estado a partir das concepções do Integralismo, discutindo as relações deste movimento com o fascismo italiano e sua difusão entre os descendentes de italianos no Brasil. Retoma as discussões sobre as relações entre o modelo europeu e a proposta dos seguidores de Plínio Salgado, tendo como referência as variáveis étnica e de classe especialmente em São Paulo, sem perder de vista outras regiões de colonização italiana.

As políticas emergenciais de Getúlio Vargas para minorar os efeitos da seca no Nordeste constituem o tema do artigo de Frederico de Castro Neves. As relações entre o Estado e os retirantes das secas de l932 e 1942 foram focalizadas em sua intenção de controlar a população migrante mediante a implantação de campos de concentração de flagelados, visando evitar saques e depredações.

O período do governo Vargas constitui também o tema do artigo de Elio Chaves Flores, que analisa as representações cômicas da República publicadas entre 1930 e 1954. O traço memorialístico presente nas caricaturas publicadas em jornais e revistas, é aqui confrontado com discursos satíricos e irônicos numa perspectiva de intertextualidade.

A seção de artigos inicia-se com o trabalho de Anita Novinsky sobre os marranos em Minas Gerais no período colonial. A análise de processos de cristãos-novos revela uma identidade específica, antes uma visão de mundo que uma prática religiosa. A Inquisição atuou nas regiões auríferas motivada pela ação confiscatória, revelando nos documentos arquivados em Portugal aspectos da vida dos acusados de práticas judaizantes, tais como as sociedades secretas e as atividades profissionais a que se dedicaram.

O período colonial foi também abordado por Cristina Pompa, que analisou outro aspecto da religiosidade no Brasil, a construção de profetas e santidades. A partir de relatos missionários, a autora analisa o campo semântico da leitura do xamanismo e a interpretação do profetismo tupi-guarani na perspectiva da alteridade, no contexto do encontro entre indígenas e europeus no Brasil.

Néri de Almeida Souza dá continuidade aos estudos sobre religiosidade no artigo sobre a hagiografia medieval portuguesa, no qual aborda os temas de peregrinação, conquista e povoamento a partir da Vida de Santo Amaro. Trata-se de uma narrativa de viagem ao paraíso terrestre cisterciense, que permite a compreensão de relações entre pensamento histórico e pensamento mítico, da Reconquista aos Descobrimentos portugueses.

Descobrimentos constituem o tema do artigo de Paulo de Assunção em análise das descrições feitas por jesuítas sobre as terras brasileiras. A mentalidade do século XVI é ali abordada a partir de relatos que enfatizavam a natureza tropical da região ao sul do Equador.

O artigo de Carlota Boto insere-se também nos estudos sobre Portugal, desta feita abordando o debate pedagógico ali travado no final do século XIX e início do século XX. A partir de periódicos, a autora analisa o tema da hereditariedade como fator determinante da ação educativa e sua influência sobre as concepções de método e conteúdo. Este número contou com a colaboração financeira dos Núcleos Regionais da AMPUH.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001. Acessar publicação original [DR]

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América Latina no século XIX: tramas, telas e Textos – PRADO (RBH)

PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no século XIX: tramas, telas e Textos. São Paulo: EDUSP; Bauru: EDUSC, 1999, 228 p. Resenha de: FUNES, Patrícia. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Em América Latina no Século XIX: Tramas, Telas e Textos, Maria Ligia Prado trabalha tanto tópicos clássicos do pensamento político latino-americano do século XIX quanto novos temas, produto das últimas revisões da história política: velhos e novos problemas abordados a partir de uma perspectiva atualizada e inovadora1. Borges, resgatando o processo da leitura e da interpretação, certa vez escreveu: “A veces creo que los buenos lectores son cisnes aun más tenebrosos y singulares que los buenos autores.”

Maria Ligia lê e analisa biografias, novelas, relatos de viajantes, quadros e pinturas para interpretar as sociedades latino-americanas do século XIX, especialmente no que se refere à produção de idéias e de imaginários políticos.

Procedamos por círculos concêntricos, partindo de fora para dentro. O livro (editado pela EDUSP e EDUSC em 1999) é um objeto primorosamente elaborado, impresso com esmero e acompanhado por ilustrações muito bem escolhidas, que se tornam imprescindíveis, como no caso do artigo sobre as representações pictóricas da natureza nos Estados Unidos e no Rio da Prata (“Natureza e Identidade Nacional nas Américas”). Este cuidado estético não pretende ser trivial, uma vez que se encontra associado a uma das preocupações da autora com relação ao suporte material da leitura: como se lê, como circulam os textos e para quem estão dirigidos (remeto ao artigo sobre novelas voltadas a um público feminino, editadas pela Imprensa Régia no Brasil Joanino). Maria Ligia também incorpora epígrafes e citações literárias, que em geral são pedras de toque um tanto misteriosas, mas que sempre sugerem uma intenção a decifrar.

A autora nos propõe sete ensaios de história das idéias políticas e das representações e imaginários sociais, tecendo uma trama menos visível e mais sutil, mas sempre operante, aludida no próprio título do livro.

Dissemos que a autora revisa alguns problemas clássicos da historiografia do século XIX, as emblemáticas questões sobre a Independência, enfocada aguda e originalmente em dois dos ensaios. O primeiro analisa a participação das mulheres no processo revolucionário e, mais concretamente, o apagamento e o nivelamento deste protagonismo na historiografia do século XIX a partir dos relatos biográficos. Assim, nos apresenta o processo independentista pelo reverso da tela e mostra os mecanismos de ocultamento e “feminilização” desta participação contestatória e rebelde, operação pedagógico-moralizante dirigida a fixar imagens de “bom comportamento”. Este interessantíssimo contraponto que Maria Ligia realiza entre a recuperação e a reconstrução do papel político das mulheres (Juana Azurduy, Manuela Sáenz, Leona Vicario, Policarpa Salavarrieta) e estas biografias, escritas por homens, desvela um imaginário de nação no qual a família é a metáfora. O lugar da mulher corresponde à moral católica de “mãe e esposa”, à ordem privada e não à pública; em síntese, a valores tradicionais, precisamente num momento em que se recusa esta ordem e em que a vocação é pretensamente secularizadora na ordem política.

O outro ponto abordado na questão da Independência é o das relações entre a Igreja e o processo de ruptura revolucionária e, dentro disto, o papel do clero revolucionário: Hidalgo, Morelos, Camilo Torres, Luis Vieira são associados aos movimentos das classes subalternas. É interessante aqui a reflexão aguda de Maria Ligia acerca das tensões entre os novos e velhos princípios de legitimidade política no interior do clero – cruzado por referências ideológicas diversas, mas explicáveis em seu contexto sociopolítico – e também e particularmente no caso de Hidalgo é instigante a análise da autora a respeito dos dilemas entre liberdade e violência dentro de um contexto revolucionário.

A brecha entre utopias políticas e resultados na construção de uma nova ordem – a distância entre os sonhos e as desilusões – é uma questão que Maria Ligia problematiza neste artigo e em outros dois: refiro-me ao inteligente trabalho sobre as visões acerca da soberania popular, seus recortes e adaptações no pensamento de Luis María Mora e Esteban Echeverería e também em sua leitura de Facundo, de Sarmiento (“Para Ler o Facundo de Sarmiento”). As peripécias na construção dos estados e nações, das identidades e do poder, e o papel da igreja, da ciência e do positivismo, objetivados na criação de instituições universitárias, são analisados com destreza pela autora, comparativamente em três países: Brasil, México e Chile (“Universidades, Estado e Igreja na América Latina”).

Mais do que me referir pontualmente a cada um deles, gostaria de assinalar uma preocupação historiográfica e interpretativa, subjacente a vários trabalhos do livro e que, a meu juízo, está na base das intenções da autora ao pensar na relação entre as idéias e a política. Consideramos que o livro de Maria Ligia nos propõe abordagens sugestivas e instigadoras do ponto de vista da disciplina e da metodologia. Grande parte dos trabalhos é comparativa, estratégia que lança luz sobre traços comuns das sociedades e da política latino-americanas, mas particularmente sobre as especificidades e singularidades de cada processo. O exercício comparativo é uma ferramenta que permite romper com o componente “nacionalitário” e “nacionalizante” que teve a história política tradicional, e ao mesmo tempo abrir a análise a visões menos endogâmicas e autofágicas.

Maria Ligia adverte: “Para defender-se das habituais acusações de elitista, ideológica, particular, factual, nacionalista, a história política teve que repensar suas abordagens e indicar caminhos de investigação inovadores.” Assim, a atuação humana, as subjetividades, a longa duração, a fixação de símbolos identitários são buscas às quais a autora recorre em seu rigoroso trabalho, com resultados muito férteis e explicativos.

Por outra parte, já no terreno das idéias políticas e em épocas de orfandades e intempéries teóricas globalizadoras, em nosso entender a autora não cai em alguns riscos aos quais estão expostos aqueles que trabalham com a produção textual e discursiva. Mais concretamente, Maria Ligia evita o risco do “reducionismo lingüístico ou discursivo” que, no limite, chega a delinear a natureza exclusivamente ficcional da narrativa histórica.

Pensamos que ao abordar o campo das idéias, das ideologias, do pensamento, da produção intelectual, corre-se o risco da análise enredar-se em dois tipos de atitudes: a de pensar em uma “soberania” do mundo das idéias, em que estas se geram e se reproduzem com uma autonomia absoluta numa espécie de território “nebuloso” cujo império é o das meras representações, situadas em algum lugar “acima” das sociedades. Uma segunda atitude é a da ultra-simplificação da linguagem política, que se autolegitima circularmente por estar impregnada do social. A esta complexidade haveria que acrescentar ainda uma outra, já “clássica” entre os analistas das sociedades latino-americanas: a obsessão pela cópia ou a originalidade do pensamento latino-americano, já anunciada nos debates sobre as idéias inspiradoras do processo independentista. A velha visão entre o universal e o particular, inerente à modernidade, cobra, nessas sociedades nas quais a modernidade foi e é um tema controverso, uma vigorosa centralidade. Assim, aqueles que sublinham o caráter de mera “cópia” ou “reflexo” no campo das idéias não deixam de dar uma explicação muito tranqüilizadora no momento de analisar os limites e frustrações dessas ideologias para entender estas sociedades, e de atribuir a essa “colonização” ideológica uma quota de responsabilidade nada desdenhável para explicar suas “disciplinas pendentes”. O avesso desta atitude que, entretanto, circula na órbita do mesmo eixo, é considerar os “modelos clássicos”, as “idéias originais” (o liberalismo, o positivismo, o romantismo, o naturalismo e também os nada vernáculos “nacionalismos”, por exemplo) corpos fechados e acabados que, ao serem contrastados com as “indóceis” sociedades latino-americanas e com suas produções intelectuais (tão obstinadamente resistentes a disciplinarem-se no perímetro destes marcos) dão como resultado uma caracterização destas sociedades como “incompletas”, “inacabadas”, “disformes”, ou sob o império interpretativo dos “proto” ou dos “sub”.

Maria Ligia adverte para estes riscos, por exemplo, ao referir-se a positivistas e liberais, refletindo: “Não se trata, como afirmam tantos, de uma má compreensão ou de uma deformação das idéias matrizes, e sim de uma consciência bastante clara desses atores, para quem as idéias estão sempre a serviço de uma causa político-social, fato que os levou a fazer leituras peculiares dos textos filosóficos clássicos. As ambigüidades encontradas explicam-se, para o historiador, pela análise dos cruzamentos entre os vários campos e por seu entendimento dentro de cada contexto social particular.”2

O caminho que Maria Ligia elege – a nosso ver, com êxito – para evitar estes deslizamentos, é o de trançar a produção ideológica aos contextos sociopolíticos, (re)situando as idéias no tabuleiro do poder, forma pela qual consegue diferenciar-se tanto das visões teleológicas como das essencialistas.

Para não me alongar demasiado, agrego um pequeno parágrafo sobre o astuto e sensível ensaio a respeito das possíveis leituras da natureza na conformação das identidades nacionais; em minha opinião, este é um artigo cheio de criatividade que estimula pensar a respeito de variadas questões, tanto por sua construção quanto por sua análise. A natureza para o historiador, diz-nos Prado, é um objeto sobre o qual se elaboram representações que comportam visões de mundo, repertórios diversos constitutivos da identidade, do território e da nacionalidade. Neste sentido, sua comparação das obras de Turner e Sarmiento, acompanhada pela leitura das imagens dos pintores do Rio Hudson e dos viajantes do Rio da Prata no começo do século XIX, parece-nos um exercício analítico muito agudo e perspicaz, no qual a autora desenha as cumplicidades entre natureza, política e história.

Pinturas, biografias, novelas, telas e textos são suportes nada convencionais que Maria Ligia entrelaça para aproximar-se das sociedades latino-americanas do século XIX, de suas idéias e seus horizontes de pensamento, sem perder de vista a atualidade de algumas problemáticas ou como estas rebatem no presente – lugar explícito onde a autora se instala para realizar sua análise.

Para concluir, gostaria de reproduzir a epígrafe de Karl Bauer que abre o artigo sobre a leitura de novelas no Brasil joanino: “A postura forçada e a ausência de movimento físico durante a leitura, combinada com essa sucessão tão violenta de idéias e sentimentos […] cria preguiça, conglutinação, inchaço e obstrução das vísceras, em uma palavra, hipocondria, que, como se sabe, afeta em ambos os sexos os órgãos sexuais e conduz a estancamentos e corrupção do sangue, aspereza e tensões no sistema nervoso, e, em geral, ao enfraquecimento de todo o corpo.” Karl Bauer, 17913

Não se preocupem. Nada disso ocorre com a leitura deste livro. Ao contrário, por sua escritura ágil e fluida nosso corpo se alonga e se estira. Ativa e estimula novas perguntas e ressignifica velhos problemas através de proposições criativas e originais que nos aproximam da compreensão das sempre complexas e fascinantes sociedades latino-americanas.

Notas

1 Este texto foi lido por ocasião da apresentação do livro no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de San Martín, organizada por este Centro e pelo Instituto Gino Germani, da Universidade de Buenos Aires, em 8 de junho de 2000. Tradução de Stella Maris Scatena Franco.

2 PRADO, M. Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: EDUSP; Bauru: EDUSC, 1999, p. 116-117.

3 Id., p. 119.

Patrícia Funes

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Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio – PETRAS; VELTMEYER (RBH)

PETRAS, James; VELTMEYER Henry. Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Petrópolis: Vozes, 2000. 268 pp. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Se em meados dos anos 80 muito impacto causou à sociedade estadunidense o livro de Paul Kennedy Ascensão e queda das grandes potências, com certeza maior apreensão trará, hoje, para as comunidades organizadas da América Latina, o trabalho de James Petras e Henry Veltmeyer A hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Kennedy defendia a tese de que o poderio de Washington estava em decadência devido a uma “excessiva extensão imperial”. Isto é, a soma total dos interesses e das obrigações dos Estados Unidos no mundo se tornara muito maior que a capacidade que o país apresentava de defendê-los simultaneamente. Assim sendo, houve um aumento desproporcional entre tais interesses e obrigações e o seu crescimento econômico, empurrando-o obrigatoriamente para o descenso. Cabe lembrar, diz o autor, que essas foram as causas da queda de grandes impérios, como o espanhol e o britânico.

Mas os autores, ao contrário, demonstram como o imperialismo estadunidense – e também o europeu – ressurge com muita força neste limiar de milênio. A melhor explicação para a prosperidade das economias norte-americana e européia e a crise do Terceiro Mundo, segundo os autores, encontra-se na teoria do imperialismo, que focaliza o “Estado-nação” imperial como o centro de poder e tomada de decisão, e também como beneficiário de relações desiguais. Enquanto ocorrem melhoras de alguns indicadores macroeconômicos em determinados países pobres, os macrossociais caem vertiginosamente para as classes assalariadas. Atualmente, na América Latina, apenas entre 15% e 20% de sua população desfrutam de um estilo de vida de “Primeiro Mundo”.

A obra também analisa o uso irrestrito do poder militar pelos Estados Unidos para impor sua hegemonia, bem como a investida euro-americana contra toda tentativa de países do Terceiro Mundo de limitar sociopoliticamente a expansão empresarial multinacional.

O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN/EUA, os ataques aéreos ao Iraque, o lançamento de mísseis contra a Somália e o Afeganistão, a ampliação do grupo de membros da OTAN para incluir países que limitam com a Rússia, a incorporação na OTAN de 23 novos integrantes como associados na paz, a incontestada hegemonia dos EUA sobre a Europa Ocidental, exercida mediante a OTAN, são sinais de crescente militarização e exercício unilateral do poder de polícia mundial pelos EUA. Este poder imperial ressurgente está intimamente relacionado com o formidável crescimento do domínio econômico norte-americano nos anos 90.1

Diante disso, conclui que há um governo global a partir de uma nova ordem mundial centrada em Washington e Wall Sreet, enquanto potências européias e asiáticas se subordinam a instituições militares e econômico-financeiras dominadas pelos EUA. Por isso, para uma classe capitalista mundial, especialmente a estadunidense, a década que passou foi sem dúvida a melhor de todo o século, em termos de acumulação. E conclui que está em marcha para todo o Terceiro Mundo um novo projeto de colonização. A Lei Helms-Burton e o depósito feito direto ao Tesouro dos Estados Unidos pelos compradores internacionais do petróleo mexicano são dois exemplos deste processo.

O livro está dividido em três partes muito concatenadas: Parte I: A economia do imperialismo; Parte II: Estratégia e ideologia do imperialismo; Parte III: Política do imperialismo.

Na primeira parte os autores analisam como o capitalismo, nas duas últimas décadas, tem causado tantos estragos à América Latina e, ao mesmo tempo, um período de prosperidade jamais visto para os bancos e corporações multinacionais estadunidenses. É o capitalismo chegando a seu estágio superior: o imperialismo. Esta nova ordem imperial se ergue sobre cinco pilares básicos: a) pagamentos de juros da dívida externa, b) maciças transferências de lucros provenientes de investimentos diretos e de ações e títulos, c) aquisição de empresas públicas; d) rendimentos provenientes de royalties; e e) balanços de contas correntes favoráveis.

E assim desmistificado o conceito de globalização apresentado como único e irreversível, e afirma que desde o início (século XVI) ela esteve associada ao imperialismo assim como a uma configuração específica de classe. Analisa igualmente a política agrícola estadunidense para a América Latina como uma estratégia de venda de máquinas e de insumos básicos produzidos por suas multinacionais bem como uma política agro-exportadora.

Na segunda parte são trabalhados os mecanismos ideológicos utilizados pelo império estadunidense para dominar o Terceiro Mundo – sem rebeliões –, que sofre o efeito do “ajuste estrutural”. Aqui desempenha papel relevante o Banco Mundial. O Estado imperial também se utiliza de outras vias, tais como as políticas de combate ao narcotráfico na América Latina, as estratégias da “cooperação para o desenvolvimento”, a política utilizada pela direita e, finalmente, o papel das ONGs como subsidiárias das políticas imperiais. Neste capítulo, o autor faz uma crítica muito pertinaz a essas “organizações governamentais” que, com raríssimas exceções, estão a serviço da implementação das políticas neoliberais. E distingue, com muita clareza, o que é solidariedade para um onguista e para um marxista.

A terceira parte é dedicada a temas mais especificamente políticos, tais como a democracia imperialista, a globalização e a cidadania, bem como a revolução socialista e a globalização. Descreve, por exemplo, como os regimes populares, democraticamente eleitos, foram derrubados pela classe capitalista ou por uma potência hegemônica simplesmente porque tentaram transformar ou reformar o sistema de relações de propriedade existente.

À pergunta reforma ou revolução? para enfrentar todos estes problemas gerados por uma classe capitalista internacional que tem nas elites de cada país do Terceiro Mundo os seus mais fiéis colaboradores, os autores respondem que a reforma não tem dado conta de resolver tais problemas, cabendo, sim, à revolução as grandes mudanças estruturais de nosso continente. E, ato seguido, analisa alguns exemplos revolucionários e suas conquistas, bem como os movimentos sociais radicais que começam a se fortalecer cada vez mais em toda a região.

Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio é um livro polêmico, contundente e sem meias palavras. Pela força de sua argumentação e de seus dados, merece ser lido e estudado.

Notas

1 PETRAS, James & VELTMEYER Henry. Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 15.

Waldir José Rampinelli – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937) – CALDEIRA (RBH)

CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937). São Paulo, Annablume, 1999, 135p. Resenha de: CYTRYNOWICZ, Roney. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

A publicação do livro Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937), do historiador João Ricardo de Castro Caldeira (São Paulo, Annablume, 1999), suscita a reabertura do debate referente às leituras e interpretações sobre o Integralismo no Brasil. Os estudos já dedicados ao movimento/partido Ação Integralista Brasileira (AIB), que existiu legalmente no Brasil entre 1933 e 1937, concentraram-se principalmente na análise de sua ideologia. Tendo como marco inicial o livro de Hélgio Trindade em 19741, cerca de dez livros e artigos foram escritos desde então sobre o tema, cujo campo é ainda uma grande frente de pesquisa em aberto. Esta produção historiográfica e de ciências sociais é reduzida se comparada, por exemplo, à vasta bibliografia sobre movimentos e partidos de esquerda, e mais ainda se analisada no contexto da produção sobre o primeiro período Vargas e o Estado Novo.

A importância de se estudar o Integralismo decorre, entre outras razões, de sua expressiva atuação política entre 1933 e 1937, do interesse de comparar o Integralismo com outros movimentos fascistas (aceitando-se ou não sua caracterização como fascista2), da necessidade de se pesquisar a história dos movimentos e do pensamento de direita e de extrema-direita no País (que não são apenas miméticos em relação à Europa) e, por fim, do interesse que personagens e obras como as de Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale e outros tiveram e têm como matrizes de movimentos e pensamentos no País, muito além do próprio Integralismo. As ressonâncias do Integralismo têm forte presença na atualidade, seja pela ação de pequenos grupos de extrema-direita que se dizem seguidores do Integralismo, seja pela difusão de livros e sites na Internet3, especialmente anti-semitas, que também retomam a ideologia integralista4.

A pesquisa de João Ricardo de Castro Caldeira, realizada como dissertação de mestrado em História na USP, está focalizada na atuação política da AIB no Maranhão e preenche uma lacuna importante na historiografia. Primeiro, por pesquisar o apelo do ideário intregralista em um Estado do Nordeste, tanto no interior como na capital, tendo como eixo central as questões regionais. Segundo, por centrar sua pesquisa na atuação política do partido: suas alianças e oponentes, sua prática política, seus aliados e adversários e seu comportamento eleitoral. O estudo de Caldeira mostra que uma pesquisa local ou regional sobre Integralismo não é apenas a repetição das questões nacionais, mas um alargamento da própria compreensão da atuação do Integralismo no País, e também da compreensão do jogo político entre as forças políticas locais e o regime de Getúlio Vargas. Além disso, as características do Estado, com baixa urbanização e industrialização, colocam um desafio suplementar para se entender a emergência desta ideologia naquele Estado.

O Integralismo foi provavelmente o primeiro partido de massa do País, mantido com a contribuição de seus próprios membros, o que o distinguia dos partidos tradicionais baseados em um modelo oligárquico. Há várias estimativas relativas aos militantes, com números difíceis de confirmar que variam de 100 mil a 1 milhão, discrepância e cifras que sugerem uma percepção de massa que ficou registrada na memória social e na própria historiografia.

Os principais fatores que catalisaram o apoio ao Integralismo no Maranhão, segundo Caldeira, foram o anticomunismo, o nacionalismo, valores próximos ao cristianismo e o importante apoio de setores da Igreja. O anticomunismo deve ser entendido e matizado diante de dados como o número de apenas 3.105 operários nos anos 20 (para uma população, em São Luis, de 70 mil), número que deve ter aumentado pouco na década seguinte. Os integralistas também direcionavam sua propaganda para operários, mulheres e jovens, setores quase não representados pelos partidos existentes. Em 1934, no Maranhão, mulheres fundaram a Ação Feminina Integralista e chegaram a representar 18% dos membros do partido.

O discurso antioligárquico era um dos motes principais do partido no Maranhão. Em uma campanha para a prefeitura de Pedreiras, uma propaganda integralista bradava que o Integralismo pretendia a “liberação de Pedreiras das garras de um feudalismo entorpecente e retrógrado”. Várias caravanas integralistas, originárias de São Paulo e Rio de Janeiro, visitaram o Maranhão. As caravanas eram também chamadas de “bandeiras integralistas” e pretendiam difundir a imagem de um novo desbravamento mítico do País. Delas participava Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras, que fazia pregações anti-semitas em discursos sobre a “escravização do Brasil aos banqueiros judeus”5.

O Integralismo atraía, assim, especialmente setores das classes médias urbanas, e camadas não representadas na política tradicional, que respondiam ao discurso de um movimento que prometia que as “libertaria” do poder das oligarquias regionais. Aderiam jornalistas, advogados, professores, estudantes, empregados domésticos, médicos, funcionários públicos, padres, funcionários de comércio e operários, entre outros. Esta mistura social já é um dado significativo de uma representação política distinta. A presença de profissionais liberais e de intelectuais explica-se em parte pelo apelo cultural nacionalista. Em suas memórias, Miguel Reale destaca a militância no Integralismo como um espaço importante de discussão da “realidade nacional”6.

É bastante indicativo também que a primeira referência pública na imprensa do Maranhão em relação ao Integralismo fizesse a seguinte descrição: “A ‘camisa verde’ que ele criou para distintivo material de sua idéia está aparecendo, cativante, alegre, persuasiva, em vários pontos do território nacional.” Para entender o Integralismo, certamente tão importante quanto o “conteúdo” do discurso, era o apelo definido por meio de desfiles minuciosamente coreografados, as “Bandeiras” (caravanas), os símbolos, palavras de ordem, canções, discursos dramatizados, estandartes, uniformes, insígnias, rituais, a movimentação da massa, uma mitologia de imagens que Walter Benjamin – referindo-se ao Nazismo – definiu como “estetização da política”. Estes elementos eram um poderoso atrativo e diferenciador perante as práticas dos partidos e criavam toda uma mística ritualizada (rituais que regulavam do nascimento à morte) da adesão que deveria ser considerada não a um partido, mas a um movimento que se apresentava como renovador das forças espirituais da nação7.

No entanto, apesar do discurso violento contra as oligarquias, ao passar do plano do ideário político para o da negociação para chegar ao poder, o Integralismo acabou tendo uma conduta política semelhante à das oligarquias que ele combatia, assumindo políticas clientelísticas e assistencialistas. O partido apoiou, por exemplo, uma negociação em 1936 para eleger um governador ligado a Getúlio Vargas, e participou de uma ampla composição de forças tradicionais da política local, passando a integrar a administração pública. Em 1936 e 37, o Integralismo cresceu no Estado, chegou a deter uma emissora de rádio, a Rádio Sigma, e um jornal comparável aos maiores do Maranhão, que recebia até anúncios da Goodyear. Em 1937, no Maranhão, os integralistas participavam da administração pública, do parlamento estadual, e tinham o apoio de padres e de chefes políticos locais, sem sofrer qualquer repressão. Apesar disso, nas eleições de 1937, embora com núcleos organizados em 17 municípios do Maranhão, apenas seis lançaram candidatos a prefeito ou vereador, e apenas um vereador foi eleito. Nas eleições para prefeito de São Luís, em que se inscreveu sob a legenda “Deus, Pátria e Família”, o partido teve cerca de 5% dos votos e era identificado com as forças da situação.

Esta dualidade entre movimento e partido, entre um combate retórico violento contra o sistema democrático, partidário e parlamentarista (no plano nacional) e antioligárquico (no plano regional, o que lhe dava uma aparência modernizadora) e, de outra parte, aceitação do jogo da política oligárquica e clientelística, quando se trata de negociar alianças e cargos mostra, talvez mais do que qualquer outro dado, os limites objetivos (felizmente) à emergência do Fascismo no Brasil. E também talvez forneça pistas para entender por que o movimento teve pouco apoio eleitoral se comparado à sua repercussão, à época, como marco (ultra) nacionalista de debates dos grandes temas do País, como a organização de um Estado centralizado, além de sua atração como um partido identificado como nacional e antioligárquico. Também se pode sugerir que algumas das bandeiras do Integralismo estavam presentes no próprio ideário do Estado-Novo que se implantaria em 1937, o que pode ter contribuído para difundir seu ideário, apesar de oficialmente banido.

A descrição do processo político e da prática política dos integralistas no Maranhão é realizada por Caldeira com precisão e acuidade, constituindo o eixo central do seu livro. O autor optou por uma pesquisa que privilegiou a prática política e não a análise ideológica, que nem sequer ganha um resumo introdutório, que poderia contribuir para a pesquisa e para uma leitura mais compreensiva para um tema tão (academicamente) pouco conhecido. A pesquisa é coerente com a proposta. Mas não terá essa opção do autor esvaziado em parte o caráter fascista da ideologia integralista, ou simplesmente esvaziado ideologicamente o Integralismo?

A pesquisa sobre a “prática” das alianças eleitorais do partido, o jogo político que em nada difere do jogo político mais arcaico, apesar de uma retórica antioligárquica inflamada, tudo isso acaba mostrando um partido que, no calor da disputa eleitoral, não se diferencia das oligarquias locais. É evidente que este é um dado da pesquisa relevante e consistente, mas não deveria esta ênfase sobre a prática ser colocada para análise juntamente com a análise ideológica do movimento, sob o risco de perder de vista a especificidade e a violência ideológica particular do Fascismo, que é o que caracteriza o Fascismo e o torna específico, com suas variações locais e nacionais?

Caldeira poderia recusar este comentário não apenas reafirmando uma opção historiográfica, diante de uma bibliografia inteiramente dedicada ao estudo da ideologia (em sua maior parte produzida pelas ciências sociais), mas também como uma conclusão da própria pesquisa, no sentido de que esta mostra, no Maranhão, um partido esvaziado de sua violência ideológica e de conteúdos que existiam apenas no discurso nacional, mas não no regional.

Mas não será esta contradição entre a retórica violenta do movimento e sua atuação “prática” esvaziada precisamente uma contradição central do Fascismo brasileiro, expressão das camadas médias que se beneficiavam do alargamento da ação do Estado e das oportunidades de emprego e ascensão social abertas nos anos 30, com a montagem de uma vasta máquina estatal, ao mesmo tempo em que defendiam vagas reformas na estrutura do Estado e se opunham fracamente às oligarquias às quais estavam de fato subordinadas, e diante das quais eramo estruturalmente dependentes? Se é próprio das classes médias não ter um projeto político autônomo, neste caso isto foi acentuado por sua relativa ascensão nos anos 30 e pelo discurso estado-novista que parecia contemplar seus anseios.

E, em conseqüência, este limite do Integralismo no Brasil na década de 30 não seria dado pelo relativo atraso do desenvolvimento capitalista no País e pela não-difusão das relações capitalistas? Esta tese, defendida em estudos de peso, como os de José Chasin, Antonio Rago e no trabalho extremamente instigante de Gilberto Vasconcelos, deve ser colocada para discussão, e não simplesmente negligenciada8.

A dualidade entre Fascismo movimento e Fascismo partido, entre a retórica e o poder, também pode ser observada no Fascismo italiano e no Nazismo alemão, e isto em nada significa atenuar as conseqüências da guerra e do genocídio. Estudos recentes sobre o Nazismo alemão mostram uma convivência, até hoje desconhecida e negligenciada, de partidos tradicionais e de elites políticas locais com os nazistas, que não tinham quadros próprios para fazer funcionar o Estado. Esta idéia, longe de atenuar os crimes nazistas, alarga a responsabilidade por crimes como o próprio genocídio contra os judeus, que não foram “apenas” a decorrência de um discurso violento do partido nazista mas resultado de uma gigantesca e minuciosa operação de destruição que envolveu muitos setores da sociedade e do Estado alemães, havendo, claro, matizes entre responsabilidade indireta, conivência e cumplicidade direta9. Ou seja, entender a passagem da retórica para o poder é um tema central dos estudos de movimentos fascistas e a contradição é própria destes movimentos que não têm maior enraizamento social. Basta lembrar, na Alemanha, o crescimento do partido, a partir dos anos 20, diante dos partidos baseados em forças sociais historicamente estruturadas, como a social-democracia, os comunistas e os partidos centristas, conservadores e católicos. Também no Brasil, a adesão ao Integralismo não tem um enraizamento social mais consistente e prévio aos anos 30, havendo uma história irregular de pequenos movimentos e partidos de extrema-direita.

Ao privilegiar o estudo local, regional, do Integralismo, corre-se o risco de se alargar um horizonte de compreensão, mas de se fechar outro e de menosprezar o poder ideológico do Fascismo como a ideologia do ódio e da destruição. Mais do que optar por uma única interpretação e torná-la profissão de fé – o que Caldeira jamais faz, ressalte-se – é importante pensar sempre entre as diferentes interpretações, confrontando-as diante da pesquisa.

Se há algo que os historiadores têm mostrado nos últimos dez anos de um verdadeiro rush de estudos históricos sobre Nazismo e Fascismo é que, à parte o desejo de se estabelecer tipologias do Fascismo (a mais célebre talvez seja a de Renzo de Felice; a última, a de Umberto Eco10), é cada vez mais esclarecedor e produtivo combinar análises da ideologia com a pesquisa empírica, documental, que busque as especificidades locais da eclosão do Fascismo, que entenda sua prática política específica e, ao mesmo tempo, busque caracterizar uma ideologia que existiu basicamente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e que pode ser tipificada.

As particularidades do Integralismo devem ser entendidas em toda a sua complexidade para que seja possível compreender, por exemplo, por que um intelectual como Luís da Câmara Cascudo tornou-se seu asdepto no Rio Grande do Norte11. É preciso efetuar esta discussão sem maniqueísmo prévio, em um arco que comporte personagens tão díspares entre si como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, os três mais importantes dirigentes nacionais que, com conflitos, conviveram nos anos 1930. Se pensarmos na importância política e intelectual que Reale teria durante décadas, como paradigma de um certo liberalismo, longe de aceitar que sua militância integralista foi apenas um breve parêntese juvenil, ganharíamos na compreensão de como a ideologia fascista é capaz de exercer atração sobre intelectuais que não são “tipos ideais” do Fascismo e de como o Fascismo pode ter pontos de contato com outras ideologias e movimentos. É esta maleabilidade e caráter intrinsecamente contraditório, próprio das condições históricas do entre-guerras, que permite entender estas adesões. No caso de Cascudo, certamente há toda uma gama de questões de política e cultura locais12.

É próprio da ideologia fascista ser um aglomerado de idéias contraditórias entre si, porque o Fascismo e o Nazismo devem ser entendidos, historicamente, muito mais como respostas, como reação, como ideologia do anti (principalmente anticomunismo e, no caso alemão, anti-semitismo) e da destruição, do que como a formulação efetivamente coerente de constituição de um projeto nacional. O partido nazista derivava sua força muito mais da violenta reação contra a democracia, o parlamento, os judeus e o Comunismo, e da violenta pregação que prometia uma inclusão aos setores marginalizados e ameaçados pela crise. Por isso, a guerra e o genocídio, da mesma forma que o racismo e a eugenia, estiveram no centro da ideologia e da ação nazistas. ‘Eu não sou ninguém, mas ao menos não sou judeu’, escreveu Thomas Mann, sintetizando uma pregação chave do Nazismo, que foi o anti-semitismo associado ao anticomunismo. Por justapor idéias contraditórias, como ser simultaneamente anti-capitalista e anti-comunista, o Fascismo atrai diferentes setores sociais e seu discurso repercute em diferentes demandas, falando para várias camadas sociais e dirigindo apelos específicos e contraditórios a cada uma. Assim, não faz sentido procurar em cada militante ou eleitor do Fascismo um representante “ideal” desta ideologia. Igualmente não faz sentido transferir a ideologia mecanicamente para cada situação histórica como se a ideologia se manifestasse apenas como reprodução de si mesma. Mas é fundamental não apenas estabelecer as identidades ideológicas, bem como suas diferenças, e entendê-las como manifestações dos anos 20 e 30, seja no Brasil, Portugal, Romênia, Hungria, Itália ou Alemanha.

A recente eleição de um governo, na Áustria, em aliança com a extrema-direita em um País que é um dos mais prósperos da Europa, com menor índice de desemprego, mostra que o apelo fascista atinge setores nem sempre objetivamente ameaçados por uma crise econômica e social, uma das interpretações clássicas da emergência do Nazismo na Alemanha. Ao contrário, como mostrou Marilena Chauí em seu ensaio sobre o Integralismo13, a crise é uma poderosa imagem engendrada pelo próprio discurso fascista, que investe em um discurso emocional e irracional, repleto de imagens aterrorizantes, brandindo a ameaça de que a sociedade e seus valores estão em desagregação, à beira do caos, e que seria preciso um movimento restaurador de valores, regenerador do homem e uma nova ordem.

Mas é preciso jamais perder de vista que se chame Fascismo, Nazismo ou Integralismo, e em que pesem suas diferenças, o Fascismo é uma ideologia da destruição, da negação e do horror ao conflito, da recusa ao diferente e ao outro, do ódio às divisões sociais, à democracia e ao sistema de representação, do nacionalismo xenófobo, da liderança ditatorial, da guerra, da destruição das organizações da sociedade civil, do terror, da intimidação e do racismo. O fim da história no “Estado Integral” ou no “Reich de Mil Anos” pressupunha um estado permanente de harmonia social, exterminados previamente na “solução final” todos os que fugiam à norma ideal racista. Para o Nazismo, o extermínio dos povos considerados inferiores era considerado “biologia aplicada” que abreviaria um processo que a própria natureza se encarregaria de realizar. Neste ponto, o Integralismo não era monolítico, havendo diferenças sérias entre, por exemplo, Gustavo Barroso e Plínio Salgado, sendo que o anti-semitismo ficou mais marcado na pregação de Barroso.

O livro de Caldeira certamente se insere em um novo caminho historiográfico para os estudos sobre o Fascismo no Brasil (ou movimentos como o Integralismo e outros, sendo que a discussão sobre o caráter fascista não pode ser evitada), no qual ela trabalha com consistência e coerência. Há trinta anos atrás, Gilberto Vasconcelos escreveu seu livro, o professor Florestan Fernandes escreveu no prefácio que duvidava até se o Integralismo era um tema a justificar estudos acadêmicos14. A um pensamento de esquerda racional e intelectualmente sofisticado, a violência caótica e contraditória do discurso integralista parecia apenas desprezível, fruto de um movimento político inexpressivo no Brasil. Quem lê Gustavo Barroso, por exemplo, pode se surpreender com a aparente irracionalidade e total aparente non-sense dos seus panfletos. Foi Jean Paul Faye, entre outros, quem explorou a gramática fascista, mostrando o terrível poder daquela linguagem incitadora de violência e da destruição por meio da articulação de poderosas imagens de crise, de destruição e de ódio. O discurso fascista é extremamente eficaz, atingindo pulsões, sentidos, emoções e circuitos que o discurso racional não penetra. Ler um texto fascista implica desmontar a lógica da construção do Fascismo e não apenas aceitar um debate político racional. Os livros-panfleto de Gustavo Barroso são um exemplo dessa terrível eficácia do mal.

Estas reflexões são sugeridas pelo livro de João Ricardo de Castro Caldeira e pelo seu trabalho de mestrado muito bem articulado e exemplar enquanto pesquisa de história. O campo de pesquisa e de interpretação sobre a história do Integralismo no Brasil é ainda um território em aberto, especialmente à pesquisa documental aliada à análise ideológica. E, sobretudo, politicamente urgente. Poucos dias após a posse do novo governo austríaco, em aliança com a extrema-direita, cujo líder, Haider, tem aberta simpatia pelo Nazismo, foi na Praça da República, no coração da cidade de São Paulo, em 6 de fevereiro de 2000, que um grupo que se diz publicamente integralista e seguidor de Plínio Salgado e Gustavo Barroso cometeu o assassinato de Edson Neris da Silva, de 35 anos, o qual, segundo o grupo que o matou, “parecia homossexual”. Nunca é demais lembrar que o Fascismo é essencialmente a ideologia do ódio ao diferente e que, dependendo das circunstâncias, este ódio transforma-se em destruição física.

Notas

1 TRINDADE, Hélgio. Integralismo, o Fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1974. O livro pioneiro de Trindade é ainda o mais completo e compreensivo estudo sobre o tema, com ampla pesquisa de campo. Os trabalhos que vieram depois particularizaram temas ou aprofundaram certos aspectos ideológicos específicos.

2 Hélgio Trindade considera que a AIB era um partido fascista “em função da composição social dos seus aderentes, das motivações de adesão de seus militantes, do tipo de organização do movimento, do conteúdo do discurso ideológico, das atitudes ideológicas de seus aderentes e do sentido de solidariedade do movimento em relação à corrente fascista internacional”. Mas o debate neste campo entre os poucos pesquisadores do tema é muito intenso.

3 Sobre os sites racistas, ver KAHN, Tulio. Ensaios sobre Racismo. Manifestações Modernas do Preconceito na Sociedade Brasileira. São Paulo: Conjuntura, 1999.

4 Os livros anti-semitas de Gustavo Barroso, como Brasil colônia de banqueiros, foram reeditados pela editora Revisão que edita em português livros nazi-negacionistas em relação ao genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e outros panfletos anti-semitas como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, cuja primeira edição em português foi apresentada pelo próprio Barroso.

5 Sobre Gustavo Barroso, ver MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio Janeiro: Imago, 1992; RAGO FILHO, Antonio. A crítica romântica à miséria brasileira: o Integralismo de Gustavo Barroso. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1989 e CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de 30. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1992; neste último, um capítulo mostra a conexão entre o nazi-negacionismo e Gustavo Barroso. Há ainda muito material e campo de pesquisa para se estudar Gustavo Barroso, sua trajetória intelectual e política. Sobre o anti-semitismo na década de 30, ver LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica. Rio Janeiro: Imago, 1995, e para uma descrição da documentação do anti-semitismo, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

6 REALE, Miguel. Memórias. Vol. 1. Destinos Cruzados. São Paulo: Saraiva, 1986.

7 Para conhecer a importância das imagens no Integralismo, ver SOMBRA, Luiz Henrique e GUERRA, Luiz Felipe Hirtz (orgs.). Imagens do Sigma. Rio Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

8 Além da obra já citada de RAGO FILHO, Antonio, ver VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia Curupira: análise do discurso integralista. São Paulo, Brasiliense, 1979, e CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

9 Sobre isso, ver CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP/Nova Stella, 1990.

10 DE FELICE, Renzo. Explicar o Fascismo. Lisboa: Edições 70, 1976, e ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1997. As tipologias sempre agregam elementos interessantes para a análise, em que pese sua generalização e pretensão de modelo que dê conta de todas as particularidades.

11 Até hoje, a chamada cultura popular é tradicionalmente muito mais apropriada por forças políticas conservadoras do que de esquerda, que a vê, muitas vezes, como arcaica, repetitiva e estruturalmente conservadora. Se de um lado a cultura popular está associada a estruturas centenárias de submissão e dominação, criando espaços narrativos míticos de redenção e utopia em uma esfera fora da situação social objetiva, por outro haverá outra saída que não equacionar repetição e criação, enraizamento e libertação, fixação e nomadismo? Esta discussão de história da cultura é sumamente importante para entender o apelo regional, local, que o Integralismo teve no país. Um dos três principais líderes, Gustavo Barroso, violento anti-semita e com posições que podem ser aproximadas ao Nazismo alemão, era um escritor regionalista de sucesso e foi membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu presidente. É preciso entender como o Integralismo operou estas justaposições e como se organizou seu apelo.

12 O estudo de GERTZ, René. O Fascismo no Sul do Brasil. Germanismo, Nazismo, Integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, é exemplar a respeito de como não de pode fazer generalizações que à primeira vista parecem óbvias, ao tratar das diferenças e conflitos entre germanistas, nazistas e intregralistas nas “colônias” alemãs no sul do país.

13 CHAUÍ, Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

14 FERNANDES, Florestan. Prefácio ao livro de VASCONCELOS, Gilberto, Op. cit., p. 11.

Roney Cytrynowicz – Doutor em História Social pela USP.

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Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas – CHAVES (RBH)

CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87). FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38). RODRIGUES, André Figueiredo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

O país das Minas é, e foi sempre, a capitania de todos os negócios.

Para Waldemar de Almeida Barbosa.

A exploração econômica e a evolução populacional sentidas na América portuguesa no período colonial deveram-se a inúmeros fatores, tanto externos quanto internos. Relativamente a estes últimos, salienta-se prioritariamente, estudando o século XVIII, o povoamento e a colonização de Minas Gerais.

A penetração rumo ao interior exigiu que Portugal abrisse novas rotas comerciais que ligassem o litoral e os seus portos de abastecimento de mercadorias ao intricado, afastado e desconhecido “sertão” central da América portuguesa. O descobrimento e a exploração do ouro e das pedras preciosas definiram a forma de ocupação da capitania mineira. A concentração de grande quantidade de habitantes, nos centros urbanos das Minas Gerais, acelerou o desenvolvimento das novas rotas de abastecimento.

Desde o início do século XVIII, produtores rurais estabeleciam-se na circunvizinhança desses centros urbanos e ao longo dos principais caminhos que levavam às zonas mineradoras, com o intuito de fornecer os suprimentos básicos à sobrevivência daquela população.

Não só de produtores rurais vivia o abastecimento da região mineira. Para lá, também se dirigia um grande número de comerciantes ligados às casas comerciais do Rio de Janeiro, Bahia e de Portugal. Estes ofereciam aos mineiros toda a sorte de gêneros, sobretudo artigos de luxo, destinados à população mais abastada, como, por exemplo, comestíveis importados do reino, equipamentos para a mineração e instrumentos agrícolas, além de uma série de utilidades domésticas.

Os estudos das relações comerciais e dos mercadores que atuaram na capitania de Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, ganharam duas novas contribuições: os livros de Cláudia Maria das Graças Chaves, Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas setecentistas, e de Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas.

Estas obras estão ligadas às novas abordagens historiográficas que vêm procurando entender a história mineira do século XVIII para além da economia mineradora. Tributárias de análises que chamam a atenção para a importância da agricultura de subsistência e a constituição de um mercado de abastecimento interno, articulado aos demais mercados regionais na época, esses estudos abarcam novas interpretações que nos ajudam a compreender a história brasileira, separando-a daquela vinculada ao grande latifúndio exportador, das discussões teóricas acerca do “tradicional” sistema colonial e dos ganhos obtidos com a atividade mineradora, assim como das teses que apontam para a estagnação da economia mineira após a retração aurífera, na segunda metade do setecentos. As autoras superam, destarte, esses temas para tratar da constituição e do desenvolvimento de um vigoroso mercado interno na América portuguesa. Em ambas, a preocupação central é analisar o comércio e os comerciantes mineiros da primeira metade do século XVIII.

A obra de Cláudia Chaves, Perfeitos Negociantes, tem por objetivo estudar a atuação dos tropeiros, responsáveis por quase todo o transporte de mercadorias destinadas ao comércio mineiro, e como se tornou possível a existência de um mercado interno que garantisse a circulação dos produtos importados e dos produzidos no interior das Minas Gerais.

Assim, compreender as Gerais, levando-se em consideração as práticas agrícolas e a formação de um mercado interno, praticados intensa e independentemente dos interesses metropolitanos, conduziu a autora a detectar a articulação dos tropeiros no transporte e no comércio de mercadorias, tanto originários de outras capitanias quanto os produzidos nas Minas.

Valendo-se dos códices da “seção colonial” do Arquivo Público Mineiro e das Câmaras Municipais de Ouro Preto, Mariana e Sabará, além dos códices dos livros de registro ou de passagem da Delegacia Fiscal — que são livros de “contagem” da capitania que contêm as anotações diárias dos fiéis desses postos sobre os produtos que circulavam no interior das Minas Gerais — o livro de Cláudia Chaves centra sua pesquisa na movimentação de mercadorias nas comarcas de Rio das Velhas e de Serro Frio.

A obra é dividida em quatro capítulos. No primeiro, “A economia colonial: velhos problemas, novas abordagens” procura, a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema do mercado interno colonial, traçar alguns pontos específicos do comércio sobre o abastecimento na capitania mineira. A seguir, em “O mundo do comércio nas Minas setecentistas”, identifica os principais agentes do comércio mineiro, as suas regras e as taxas que incidiam sobre esta atividade.

No terceiro (“Um negócio bem sortido: as mercadorias do comércio mineiro”) e quarto (“Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas”) capítulos, trabalhando especificamente com a documentação fazendária, Cláudia Chaves procurou levantar as rotas que levavam às Minas e os produtos que passavam pelos postos fiscais localizados naqueles caminhos. É nesse momento que encontramos a presença de personagens como Manoel Gomes Cruz, que comerciava com várias regiões das Minas Gerais e com outras capitanias, passando por vários registros, anos sucessivos, com grandes carregamentos. Ou ainda, e em grande número, diversas outras pessoas, como Antônio, Francisco, João, José, Juliana — todos “fulanos de tal” (são nomeados na obra) — que andavam pelos caminhos comercializando pequenas e variadas cargas. Comerciantes eventuais que, em muitos casos, passavam uma única vez pelos registros para vender prolongamentos de suas lides produtivas — milho, feijão, linho, açúcar, arroz, trigo, etc.

Assim, enquanto Cláudia Chaves estuda os pequenos e “itinerantes” comerciantes, Júnia Furtado analisa em Homens de Negócio a correspondência trocada entre o grande homem de negócio português Francisco Pinheiro e seus agentes comerciais, que se localizavam nas comarcas de Rio das Velhas, Serro Frio e Ouro Preto, em Minas Gerais, entre os anos de 1712 e 1744.

O livro de Júnia divide-se em quatro capítulos. No primeiro (“Fidalgos e, lacaios”) apresenta o que é ser comerciante no Brasil e em Portugal no século XVIII. Trata neste item das origens da classe mercantil, sua distinção em Portugal como cristão-novo, a ordenação das companhias privilegiadas de comércio, o papel do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde marquês de Pombal, no desenvolvimento do comércio luso-brasileiro. Assim como da intrincada rede comercial, que os agentes comerciais portugueses estabeleceram no além-mar, fazendo com que vários interesses metropolitanos aqui se enraizassem e se misturassem aos dos mineiros, ocorrendo o que Maria Odila Leite da Silva Dias nomeou de “a interiorização dos interesses metropolitanos na colônia”1. Idéia central da obra Homens de Negócio, de Júnia Furtado.

Ao longo do segundo capítulo (“O fio da narrativa”), do terceiro (“As Minas endemoniadas”) e do quarto (“Negociantes e caixeiros”), percebemos que havia duas ordens de interesses circundantes nas práticas comerciais. A primeira refere-se aos interesses portugueses que se expandiam nas Minas Gerais por meio de atividades mercantis, como o controle do abastecimento, a arrecadação de impostos sobre o transporte e o comércio de mercadorias nos registros e nas lojas abertas nos centros urbanos, e os mecanismos de endividamento da população que ficavam nas mãos dos comerciantes. A segunda dizia respeito aos interesses dos agentes de Francisco Pinheiro que, por outro lado, enraizavam-se em outras atividades comerciais, como a pecuária, a agricultura e a mineração, sendo estas práticas econômicas difíceis de serem, muitas vezes, definidas como puramente metropolitanas, uma vez que seus interesses estavam tão enraizados na terra. Esses comerciantes passavam também, com o transpor dos anos, a atuar como colonos.

A figura central da documentação estudada na obra — Francisco Pinheiro — era extremamente atenta aos seus negócios, como se percebe pelo montante de correspondência analisada por Júnia. Esses documentos estão pontilhados de instruções, repreensões e exigências quanto ao cumprimento de suas instruções e à manutenção da ordem na prestação de contas devidas. Sua fortuna foi feita à sombra da corrida do ouro, na primeira metade do século XVIII. Portanto, ao utilizar as correspondências comerciais, os inventários e/ou testamentos de 212 negociantes que atuaram nas Minas na primeira metade do setecentos e que tinham ligações com Francisco Pinheiro, assim como livros de devassas das visitações eclesiásticas, Júnia Furtado procurou acompanhar o processo de expansão e interiorização da colônia para o interior da América portuguesa. O relato de acontecimentos cotidianos, tanto públicos quanto privados, que existiram naquela época e que repercutiram nas práticas comerciais: motins, fome, intempéries, cobranças de impostos e inépcia de administradores são assuntos tratados pela autora em sua obra.

Cláudia Chaves e Júnia Furtado levam-nos instigantemente a penetrar no universo setecentista, em que as práticas comerciais permitem-nos pensar nos mecanismos metropolitanos, para levar o seu poder ao interior das Minas Gerais através das práticas comerciais e das redes informais de comerciantes que se estabeleceram nas diversas partes do reino e da América portuguesa. Tanto assim que, em 1732, o secretário das Minas enviou representação ao rei dom João V, comentando que Minas Gerais era, “e foi sempre, a capitania de todos os negócios”2. Negócios sortidos e de pequeno porte, como estudou Cláudia, e/ou grandes empreendimentos comerciais, como pesquisou Júnia.

Enfim, vendia-se nas Gerais toda a sorte de gêneros da América e de outras partes do mundo. Os mercadores mineiros especializaram-se em tudo para se tornarem perfeitos negociantes, como nos indicou Cláudia Chaves no título de sua obra.

Notas

* São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87).

**São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38).

1 Conferir: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “A interiorização da metrópole (1808 — 1853)”. In MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1982, pp. 160–184.

2 “Representação do secretário das Minas ao rei, 1732”. Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial, Códice 35. In FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 197.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre-História/USP

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A pobreza no Satyricon de Petrônio – FAVERSANI (RBH)

FAVERSANI, Fábio. A pobreza no Satyricon de Petrônio. [Editora da UFOP, 1999]. Resenha de: VIZENTIN, Marilena. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

A reflexão sobre os Estudos Clássicos coloca-se como fundamental na construção de uma História Cultural do Ocidente; e já que o Brasil se insere dentro deste quadro, é razoável esperar que nós, brasileiros, possamos produzir algo sobre este momento do pensar em nossa própria cultura.

Malgrado o número bastante reduzido da tiragem (apenas 90 exemplares), acreditamos que a publicação e divulgação deste texto causará um impacto bastante positivo na comunidade científica brasileira que se dedica a este ramo da História. Além disso, trata-se de um estudo que se insere dentro de uma nova frente de trabalhos sobre História Antiga no Brasil, os quais buscam uma maior autonomia em relação à historiografia produzida na Europa e Estados Unidos, bem como uma nova abordagem de conceitos há muito cristalizados. Nesse sentido, esta nova “geração” de historiadores procura uma melhor inteligibilidade de problemas inerentes à época atual a partir do estudo de sociedades antigas, de forma a contribuir para a construção de uma identidade cultural nacional própria.É aproximadamente com esta colocação que Fábio Faversani, autor da obra em epígrafe, inicia o trabalho sobre o qual nos deteremos nesta resenha. Fruto de sua dissertação de mestrado, A pobreza no Satyricon de Petrônio, lançada recentemente por uma iniciativa da Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, representa uma contribuição de grande relevância para o avanço dos estudos sobre a Antigüidade Clássica no Brasil.

A obra de Faversani, deste modo, procura responder à seguinte questão: “(…) as posições sociais são determináveis pela posição dos agentes nas relações de poder?” Na tentativa de respondê-la, o autor dedica-se à análise de uma das obras mais polêmicas produzidas pelo mundo antigo, seja pelo seu conteúdo, seja pelo estilo único com que foi redigida: o Satyricon, de Petrônio. A partir dela, reflete sobre os livres pobres em Roma à época do Principado e sobre as relações diretas de poder engendradas por estes personagens. Sua primeira conclusão é a de que a posição dos agentes sobre os quais se detém é determinável pela sua inserção na dinâmica das relações sociais e não apenas pelo controle deste ou daquele atributo. Discute, para tanto, ao longo dos capítulos, questões que se referem diretamente à problemática da obra latina; questões de fundo mais teórico, como os conceitos de “classe” e “estamento”; e o tratamento dado pela historiografia aos livres pobres do Império romano. Ademais, utiliza-se de instrumentos analítico-conceituais próprios de forma a efetivar sua proposta inicial de trabalho.

Estruturada desta maneira, Faversani dá início à sua exposição enfocando primeiramente a obra latina sob múltiplos aspectos. Assim, propõe um resumo bastante breve e esquemático de seu conteúdo, dividindo-o em cinco partes, de modo a colocar o leitor a par da história ali narrada. A seguir, passa para os problemas, a nosso ver bastante comuns quando se trata de um texto antigo, relativos à data e autoria do mesmo. Nesse sentido, perfaz, com bastante acuidade, todo o caminho de estudos realizados com esta finalidade, ressaltando a grande importância dos próprios códices para a definição destas questões. No sentido de elucidar o nome de seu verdadeiro autor, tece uma série de argumentos que, se de início nos parecem relativamente confusos, aos poucos vão se definindo mais claramente. Identifica, pois, C. Petrônio Arbiter como o verdadeiro autor em questão.

No concernente à data em que foi escrito o Satyricon, Faversani apresenta os diferentes meios pelos quais se procurou chegar a um período aproximado, quais sejam: recursos lingüísticos, econômicos e estilísticos. A seu ver, entretanto, nenhuma das datas propostas pôde solucionar verdadeiramente o embate, o que o leva a tomar o termo hortus pompeianus como chave para a elucidação do mesmo1.

Outros pontos sobre os quais ainda tece algumas considerações referem-se aos locais em que se ambientam os episódios narrados e as condições em que foi escrita a história. Para Faversani, a definição precisa das cidades citadas no texto latino, para seu estudo, é absolutamente irrelevante; basta-lhe saber que se tratava de um ambiente urbano do centro-sul italiota, notadamente cidades de porte médio. Quanto ao contexto em que teria sido escrito, deixa alguns aspectos a desejar, pois pressupõe que o leitor esteja bastante familiarizado com o período retratado, não entrando em maiores detalhes sobre os aspectos políticos e econômicos — fundamentais pelo que se pôde depreender da análise subseqüente. Este fato, por sua vez, produz uma visão — errônea — da existência de um mundo à parte, composto apenas pelos livres pobres, como se eles não interagissem e não fizessem parte de toda uma estrutura social já estabelecida.

Finalmente, para encerrar este capítulo, Faversani esboça a trajetória da tradição textual petroniana atentando para as falsificações existentes acerca do Satyricon (o texto que nos chegou não está completo), e alertando para o uso inadequado destas falsificações, principalmente em edições brasileiras (segundo ele, todas elas dão o texto como concluído). Este item serve de mote para a introdução do estilo e das intenções petronianas. Para o autor, Petrônio, ao pintar a realidade que o cerca de forma cômica e parcial, acaba controlando o que seus leitores vêem de forma direta, daí a dificuldade, hoje, em se compreender e nomear seu estilo. Chega-se à conclusão, portanto, de que se trata de um estilo original e inédito, na medida em que faz uso de inúmeros gêneros literários já existentes. Sua exposição, mesmo que em tom popularesco, apresenta criticamente uma “realidade afastada do natural e inegavelmente em crise”, daí o recurso adotado por Petrônio, qual seja, o de apontar para diferentes perspectivas na busca de outras tantas soluções.

O segundo capítulo, a seu turno, tratará dos aspectos teórico-metodológicos e dos instrumentos analítico-conceituais a serem utilizados na posterior análise da fonte, cujo foco de preocupação será apenas a pobreza construída no Satyricon. Tendo isto em vista, Faversani coloca a abordagem da historiografia com relação ao tema escolhido, centrando sua atenção em historiadores como Rostovtzeff, Catherine Salle, Paul Veyne, E. Badian e Ramsey MacMullen. Alguns deles encontram o que ele chamou, bastante a propósito, de “consoladora solução”, isto é, a idéia do panem et circenses, na qual os pobres viveriam despreocupadamente à sombra das dádivas dos ricos… Os argumentos subseqüentes, em função disso, procuram recolocar a questão das condições de vida dos pobres — verdadeiramente “sofríveis” —, concluindo que a plebe não poderia sobreviver sem qualquer tipo de estratégia que lhe garantisse ao menos o sustento.

Esta constatação leva Faversani a uma discussão sobre dois conceitos hegemônicos na historiografia social: classe e estamento. Sua abordagem dar-se-ia pelo fato de constituírem elementos bastante importantes para a compreensão da posição social ocupada por Trimalchio, um dos principais personagens da narrativa petroniana e comumente o mais analisado pela historiografia. Seria Trimalchio um típico representante de uma classe ascendente, vinculada ao mercado, e concorrente ou aliada plausível da aristocracia fundiária romana ou, ao contrário, seria típico na demonstração de que os libertos não podiam constituir um grupo hegemônico ou serem admitidos naqueles já existentes, tanto por limitações jurídicas, quanto culturais? É o que Faversani procurará demonstrar por meio da análise dos dois conceitos acima referidos. Tanto um quanto o outro, infere, são ou insuficientes para a análise da sociedade romana, ou eficientes apenas para a compreensão da elite senatorial, e não em relação aos libertos. Crê, portanto, que a solução para todos os impasses apontados esteja na “(…) criação de uma categoria analítica alternativa, capaz de satisfazer as necessidades de compreensão das potencialidades ou efetiva ocorrência de ações coletivas dos agentes sociais”.

Nesse sentido, Faversani vai se ocupar do que chamou de “relações diretas de poder”. Retoma, para tanto, a discussão encetada a partir da década de 60 pelos historiadores ingleses (P. Gansey, R. Saller, A. Wallace-Hadrill, C. Whitaker, entre outros) e dá continuidade à mesma aumentando as possibilidades de tipos de relações diretas de poder e observando — daí sua inovação —, as redes de ordenação e controle que, em conjunto, elas estruturam. Ademais, respeita a multiplicidade qualitativa destas relações, tratando-as como tipologicamente diferenciadas, sem privilegiar um único tipo. Inclui, assim, diferentes categorias que se inter-relacionam, tais como clientes, libertos, protegidos, amigos, protetores, senhores e patronos, inferindo ser a extensão das redes entre eles muito variável e dependente da capacidade de cada agente em estabelecer ligações.

Na “difícil busca de uma idéia de pobreza”, portanto, Faversani conclui este capítulo com um panorama de como os romanos da elite encaravam seus contemporâneos pobres e com uma nova abordagem das categorias utilizadas pela historiografia para classificar e definir a pobreza. Busca, a partir disso, uma melhor visualização de como os pobres se colocavam diante do universo dos ricos e de que maneira interagiam com ele. Assim, segundo o autor, existiria um grande debate a respeito da idéia de pobreza, mais do que sobre o pobre enquanto agente social em si, o que não contribuiria em muito na reconstrução dos mecanismos de produção e reprodução da vida social criados pelos pobres. Nesse sentido, aponta para as dificuldades de se delimitar conceitualmente a pobreza, passando a discutir alguns estudos que, mesmo não tendo como tema central a Antigüidade Clássica, procuraram esclarecer, ou pelo menos levar em consideração a questão da pobreza.

Em “As relações de poder no Satyricon“, temos finalmente a análise dos agentes sociais presentes na narrativa de Petrônio. Em relação a isso, e visando a uma maior inteligibilidade por parte do leitor, Faversani divide o texto latino em “episódios” (mais precisamente quatro), nos quais buscará conclusões de validade mais geral para esta fonte. Estuda, para tanto, cada um deles por ordem crescente de complexidade, levando em conta sua extensão, as redes de poder minimamente independentes, o número de agentes sociais envolvidos e os dados que levam à caracterização destes. Antes de iniciar sua análise acerca destas questões, entretanto, elabora um estudo dos protagonistas do Satyricon, pois cada um deles participa de mais de um episódio e sua repetição, a seu ver, poderia se revelar enfadonha.

A partir de sua caracterização, Faversani traça as diversas estratégias de sobrevivência empreendidas por estes personagens, bem como as relações sociais encetadas pelos mesmos. Disso infere que tais estratégias teriam um caráter mais defensivo, ao mesmo tempo em que funcionavam como mecanismos de escape para as faltas cometidas ao longo de seus estratagemas. Daí as relações sociais que estabeleciam não poderem, de forma alguma, ser duradouras, visto a iminência de serem reconhecidas por outrem.

Na análise que se segue dos episódios (“de Quartilla”, “Viagem a Crotona”, “Farsa de Crotona” e “Cena Trimalchionis“), observa-se sempre uma breve síntese de cada um deles e uma primeira identificação dos principais personagens envolvidos no excerto em questão. Dentre eles, Faversani detém-se sobretudo no último episódio elencado, destacando a figura de Trimalchio e sua atuação perante os convivas do lauto banquete que oferece. Para tanto, apresenta “os olhares da historiografia” sobre este personagem, verificando as “tipicidades” atribuídas a ele e as diferentes concepções de sociedade romana que motivaram a criação dos “típicos Trimalchios”. A seu ver, Trimalchio seria típico apenas de como as elites viam os libertos ricos e não de como eles de fato poderiam ser, de forma que uma análise mais coerente deveria levar em consideração também as suas relações sociais e não apenas os estereótipos elaborados tanto pela epigrafia produzida pelos próprios romanos, quanto pela tradição textual remanescente.

Em vista disso, sob o “prisma das relações diretas de poder”, Faversani vai analisar a figura de Trimalchio ressaltando a multiplicidade de personagens que atuam na Cena Trimalchionis e seu verdadeiro papel em relação a seu anfitrião, aspectos estes que considera extremamente importantes para a construção da personalidade do mesmo. Estabelece, assim, uma tipologia, dividindo-os entre comensais (em sua maioria libertos), indivíduos mencionados pelos comensais, e servidores (pertencentes à familia trimalchionis), de maneira a reconstruir as inter-relações estabelecidas entre eles. Ao examinar cada uma destas “categorias” — que convergem, direta ou indiretamente para uma única pessoa, ou seja, Trimalchio —, estabelece, por fim, um quadro geral de relações de poder que os envolvem, cumprindo, sem dúvida alguma, os objetivos a que se propusera no início de seu trabalho.

Na busca de uma melhor compreensão da pobreza, portanto, Faversani acaba confirmando “a importância das relações diretas de poder como elemento ordenador e estruturador da sociedade romana” — ao menos daquela cuja imagem Petrônio nos permitiu vislumbrar —, por meio de instrumentos analítico-conceituais próprios que, à primeira vista, pareceram-nos absolutamente pertinentes. Talvez, como o próprio autor afirmou, estes instrumentos não tenham a mesma validade junto a períodos históricos mais abrangentes, daí a necessidade de se propor novas alternativas de análise que possam contemplar também outras questões, além da pobreza.

Ao enfocar os livres pobres do período neroniano, todavia, Faversani coloca-nos diante de questões que, malgrado os muitos séculos decorridos, ainda se revelam preocupantes. Nesse sentido, a utilização que faz de exemplos tirados de outros contextos históricos não é fortuita. Apenas revela ser a pobreza um problema latente, não só para os que a observam de longe — sejam senadores romanos ou acadêmicos —, mas sobretudo para os que dela fazem parte e que sobrevivem, ainda, graças àquelas mesmas estratégias (guardadas as devidas proporções). Procurar investir em outras “alternativas de análise”, como a aqui esboçada, embora possa parecer muito pouco perante a injusta realidade brasileira, sem dúvida muito auxilia na construção de “uma visão do passado a serviço da transformação (…) de nossa sociedade”. O caminho escolhido, convenhamos, não é dos mais fáceis, mas até aqui, parece-nos, andou-se bem!

Notas

1 Segundo Faversani, só teria sentido possuir um hortus pompeianus antes de 79 d.C., ano em que Pompéia é soterrada pela erupção do Vesúvio. Deste modo, a obra só poderia ser anterior a esta data.

Marilena Vizentin – Mestre-História, USP.

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O Mistério do Samba – VIANNA

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. [Zahar, 1995. 193p.]. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

À medida que a década de 1990 se encaminha para o final, torna-se evidente por si só a importância deste trabalho de Hermano Vianna a respeito das relações entre samba e identidade nacional. Possivelmente em nenhum momento estas duas temáticas tenham sido debatidas com a amplitude que vem ocorrendo ultimamente, e uma parte do crédito deve ser dado a este livro. Os motivos para o seu sucesso e influência são facilmente reconhecíveis mesmo em uma leitura menos atenta. O autor inicia o texto expressando sua estranheza em relação à narrativa mais tradicional da história do samba, que aponta dois momentos na trajetória deste que é tido como o ritmo nacional por excelência. Em um primeiro momento, o samba teria sido perseguido pelas elites como bárbaro e incivilizado, para em seguida transformar-se no símbolo nacional que conhecemos hoje. Esta narrativa, como Hermano Vianna aponta com acerto, tem sido há muito tempo partilhada por pesquisadores não acadêmicos, cientistas sociais, jornalistas e historiadores, em um arranjo multidisciplinar que tem mostrado grande vitalidade e que busca explicar a formação de símbolos nacionais a partir da resistência popular à opressão das elites, até o momento da vitória final, com a transformação de uma “cultura popular” em “cultura nacional”. A partir deste estranhamento, Hermano Vianna coloca o problema que ocupará seu livro: como se deu a passagem entre estes dois momentos na história do samba?

O autor identifica, com indiscutível acerto, esta questão como potencialmente de grande interesse para se compreender o processo de construção de uma identidade nacional, dentro da qual o samba foi um fator de grande destaque na identificação de “o que é ser brasileiro”. Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural (não situado temporalmente de forma clara, mas aparentemente delimitado entre as décadas de 1910 e 1930) em que ganhava força o interesse por “coisas nacionais”. Beneficiando-se deste interesse, o samba teria chegado à sua condição atual, o que teria sido possibilitado na prática pela ação de “mediadores culturais”, que levariam fragmentos da “cultura popular” a uma “cultura de elite” que desconheceria em boa parte os elementos desta “cultura popular”. Neste sentido, o livro é organizado em torno de uma noitada que reuniu intelectuais interessados na construção de um projeto de identidade nacional (incluindo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda), com alguns “portadores” desta “cultura popular” prestes a ser alçada ao status de símbolo nacional (entre eles, Pixinguinha e Donga). Por suas características (intelectuais em busca de “coisas brasileiras” reunidos com sambistas, sendo esta ligação feita pelo poeta modernista europeu Blaise Céndrars), este encontro é visto pelo autor como um símbolo do processo que pretende retratar em seu livro.

A riqueza da temática proposta por Hermano Vianna garantiu, com justiça, o sucesso de seu livro. Escapando da armadilha de tratar a cultura como decorrência do contexto socioeconômico, o autor propõe uma articulação entre música popular e identidade nacional visando a compreender a permanência da utilização do samba como elemento aglutinador da nacionalidade. Neste sentido, uma breve discussão sobre os limites da abordagem deste livro revela-se de grande interesse para historiadores e cientistas sociais que se preocupam com questões por ele tratadas. A principal questão que se pode apontar como limitadora do enfoque de Hermano Vianna é a problemática das fontes utilizadas, ou, no caso deste livro, da ausência das mesmas. O autor pretende renovar o debate sobre o tema sem levar a cabo novas pesquisas, buscando meramente reinterpretar elementos levantados por outros pesquisadores dentro dos parâmetros teóricos que adota. Ou seja: o autor se apropria de dados utilizados pela bibliografia existente (que os utilizou para demonstrar a opressão sofrida pelo samba), pensando-os como demonstradores de uma permanente interação cultural entre diversos segmentos sociais, interação esta fundada na ação dos “mediadores culturais”. Isto acaba por levar O Mistério do Samba a algumas limitações. Em primeiro lugar, torna o autor um prisioneiro da mesma bibliografia que pretende criticar, posto que é exatamente esta bibliografia que vai fornecer-lhe as situações em que sua análise é baseada. Com isto, Hermano Vianna acaba sendo levado a debates antigos e pouco produtivos, como a busca por demonstrar que o violão nunca foi um instrumento totalmente desprestigiado, um debate recorrente na tradicional bibliografia sobre música popular do início do século, e que lida com os dados desta mesma bibliografia, em uma discussão de pouco relevo para a análise desenvolvida. Com este debate, o autor pretende demonstrar que o fosso entre “cultura de elite” e “cultura popular” nunca foi tão grande quanto a bibliografia aponta. Mas fazer isto sem acrescentar novos dados à discussão é irrelevante, apenas poupando o leitor de fazer por si só a reinterpretação de algo que já está disponível em uma série de outros livros.

Além disto, ao organizar o livro em torno dos elementos que julga importantes para a ascensão do samba, Hermano Vianna produz capítulos como “A Unidade da Pátria”, “O Mestiço” e “Gilberto Freyre”, compostos de breves e superficiais resumos de argumentos alheios a respeito de temas de ampla importância. No mesmo sentido, o autor acaba, na necessidade de se basear em dados levantados por outros pesquisadores, por vezes se afastando perigosamente do contexto estudado. Como a bibliografia sobre o contexto cultural carioca dos anos 20 não é das mais extensas, o autor acaba sendo obrigado a ir buscar no modernismo paulistano muitos exemplos de um “interesse por coisas nacionais” que não necessariamente seria igual nas duas cidades. Flagrante neste sentido é o caso, destacado pelo autor, da encenação em São Paulo, no ano de 1919, de uma peça de conteúdo nativista em que os membros das mais tradicionais famílias paulistanas se vestem de sertanejos. Este evento, estudado por Nicolau Sevcenko1, é bastante ilustrativo de um processo da construção de uma identidade paulista, mas pouco ou nada diz a respeito da elevação do samba ao status de símbolo nacional. Porém, na falta de exemplos do mesmo porte disponíveis na bibliografia sobre o Rio de Janeiro no mesmo período, o autor foi levado a buscar, em função de sua opção de não realizar sua própria pesquisa, exemplos que dizem respeito a um outro contexto, ainda que no mesmo período.

Sendo levado a um contexto diferente do que aquele que deveria lhe interessar, Hermano Vianna deixa de atentar para múltiplas experiências da cidade do Rio de Janeiro, que tiveram seu papel na difusão do samba e de sua concretização como elemento aglutinador da identidade nacional. Uma delas, a ligação entre modernistas cariocas e a “cultura popular”, balizada por outras questões relativas ao contexto da Capital Federal2. Outro lado desta moeda é a flagrante ausência da cultura de massas — central na veiculação dos símbolos nacionais — em O Mistério do Samba. A relativa escassez de bibliografia a respeito da massificação cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do século impediu o autor de ver a importância deste fenômeno, expresso de modo evidente no caso do teatro de revista, que debatia diariamente a questão da identidade nacional para um público o mais amplo possível em meio à execução de música de todos os tipos, inclusive o samba Aparentemente Hermano Vianna concebe o debate sobre a identidade nacional como um privilégio de poucos intelectuais, sem atentar para o fato de que, para estar envolvido neste debate, bastava viver no Rio de Janeiro entre as décadas de 20 e 30. Este debate estava na imprensa, no teatro de revista, nos circos e em uma série de veículos que atingiam todos os segmentos da população, ao contrário do que sugere o termo “pré-cultura de massas”, com o qual o autor conceitua a difusão cultural no período (p. 22). Em resposta ao pouco papel dado pelo autor à cultura de massas, pode-se lembrar o fato de que no mesmo momento em que o samba explodia como ritmo de grande sucesso, outros ritmos sincopados, bastante apropriados para a dança, também chegavam ao sucesso pela via da cultura de massas, como é o caso flagrante do jazz e de outros ritmos americanos, que corriam o mundo, incluindo o Brasil, naquele momento. As exigências da cultura de massas por ritmos “dançáveis” é um elemento que não deve ser subestimado ao se estudar o sucesso do samba.

Talvez em função de desconhecer a profundidade da importância deste processo de massificação cultural no debate sobre os símbolos nacionais, o autor tenha atribuído um papel tão grande ao pensamento de Gilberto Freyre em um livro sobre o samba. É certo que, como Hermano Vianna observa, Gilberto Freyre teve um papel central no processo de criação de uma unidade nacional “mestiça” (p. 14). Contudo, associar tão fortemente a ascensão do samba a Freyre acaba por refletir uma idéia muito genérica de “busca por coisas nacionais”, que acaba por englobar o regionalismo de Freyre, o nativismo sertanejo que se destaca em São Paulo, e a glorificação do samba como símbolo nacional no Rio de Janeiro, três movimentos ocorridos em um mesmo período centrados na valorização do que seria “tipicamente brasileiro”, mas que não necessariamente refletem projetos que mantenham uma concordância de princípios entre si. Assim, esta genérica “busca por coisas nacionais”, com que Hermano Vianna busca explicar todo o debate sobre o “nacional” e o “popular” nas décadas de 10, 20 e 30, acaba por explicar pouco ou nada. Haja vista que se o nativismo paulista também é parte de um contexto de valorização do “nacional”, serviu também como origem de duras críticas a uma “cultura carioca”, na qual o samba estaria incluído por parte de setores do modernismo paulistano3.

Outra opção teórico-metodológica do autor, que acabou por limitar o alcance de seu livro, é a pouca atenção dedicada ao samba, que acaba funcionando como mero representante de um contexto cultural mais amplo de “busca por coisas nacionais”, contexto este que determina totalmente os sentidos do samba como símbolo nacional nos anos 20 e 30. Aqui não se nega a possibilidade de realizar um estudo que utilize o samba como “campo privilegiado onde é possível perceber determinados aspectos do debate sobre a definição da identidade brasileira” (p. 33). Contudo, é necessário sublinhar o fato de que nenhuma especificidade é conferida à música popular no amplo contexto cultural que Hermano Vianna desenha, acabando por dissolver esta importante manifestação artística em um processo mais amplo que lhe determina totalmente o sentido. Com isto, o autor acaba transformando seu objeto em um mero representante de um contexto mais amplo, transformando o tradicional determinismo socioeconômico — com que a bibliografia tende a retratar a identidade nacional e a música popular — em um determinismo sociocultural, menos distante do objeto, mas que igualmente lhe retira qualquer grau de autonomia.

A rigor, é possível mesmo notar que o autor se interessou muito pouco em conhecer a fundo os processos específicos da música popular que estuda. Talvez isto possa ser considerado secundário, mas não é difícil identificar que o autor em diversas passagens torna-se presa de seu diminuto conhecimento dos matizes do universo musical da capital federal, ao diluir toda a música feita por negros na categoria “samba”. É muito fácil notar que este termo estava longe de ter um sentido claro nos anos 20, e ainda era aplicado a ritmos rurais ou utilizado no sentido mais amplo de festa ou dança. Uma conseqüência disto é o grande destaque dado a Pixinguinha, Donga e os Oito Batutas, compositores e executores de uma infinidade de ritmos rurais, urbanos e estrangeiros, que nunca tiveram ênfase no samba em suas carreiras. Porém, sendo negros e cariocas, o autor apressadamente os enquadrou como “sambistas”, apontando Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira como definidores da música que seria considerada “a partir dos anos 30, como o que o Brasil tinha de mais brasileiro” (p. 20). Infelizmente o autor não poderia listar 3 ou 4 sucessos destes três músicos cariocas que pudessem ser tidos como sambas, em especial no período apontado, a década de 30. Com isto, valoriza como decisiva na consolidação do samba a atuação de compositores de choros e valsas, como Pixinguinha. Aqui tem-se a prova do risco indiscutível da ausência de reconhecimento de fatores que são específicos ao objeto estudado. Com tudo isto, é bastante possível que ao fim do livro, o leitor de O Mistério do Samba se sinta plenamente convencido de que havia, no período estudado, uma demanda por um ritmo que pudesse ser enquadrado como “tipicamente nacional”. O que fica no ar é a pergunta: E por que o samba veio ocupar este espaço, em vez de qualquer outro ritmo urbano ou rural existente na mesma época? Havia no período uma enorme diversidade de ritmos “populares”, e o fato de a primazia de “ritmo nacional por excelência” ter sido dada ao samba não é algo que se explica por si só. Aparentemente tal idéia não ocorreu ao autor, que unifica toda esta diversidade musical popular do período sob o rótulo “samba”.

Um último elemento a ser ressaltado é a ausência de um sentido mais acurado de contexto histórico ou espacial da parte do autor. Buscando demonstrar a plausibilidade da presença de membros da elite na produção do samba como símbolo nacional, Hermano Vianna nos leva a uma descrição de uma festa em Salvador no ano de 1802 (p. 37), no intuito de mostrar uma “tradição” de contatos entre elite e música popular. Contudo, é possível notar que o autor opera com um conceito restrito de “tradição”, pois a existência de interação cultural na Bahia Colonial em nada garante a existência do mesmo fenômeno em tempos e espaços inteiramente diversos. Não é necessário aqui argumentar longamente a favor da idéia de que qualquer tradição é dinâmica e pode ser alterada por conjunturas específicas. Na verdade, um mérito do autor é demonstrar o tipo de espaço em que se deram estas interações ao longo do tempo. Mas não reconhece que isto pouco nos informa sobre o Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930.

Ausência de pesquisa em fontes originais, pouco interesse pelas especificidades do objeto estudado (como a massificação cultural, no caso do samba), contextualização histórica insuficiente. Estes são alguns problemas da abordagem realizada por Hermano Vianna. Porém, estes problemas, que devem estar na mente de qualquer pesquisador interessado em qualquer pesquisa na área de história ou ciências sociais, materializaram-se concretamente apenas quando este autor finalmente livrou-se da aplicação dos velhos esquemas economicistas na música popular. Por muito tempo acreditou-se que o abandono de determinismos no estudo da música popular e a adoção de novos pressupostos seria o caminho para o avanço na pesquisa sobre identidades sociais e música popular. Ao trilhar este caminho, Hermano Vianna resolveu de vez este problema. Entretanto, acabou revelando novos problemas em sua abordagem, e o desafio que se impõe é o da superação dos problemas aqui apontados na constituição futura de uma nova bibliografia a respeito deste assunto importante e intensamente discutido em tempos recentes.

Notas

1 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 240-244.

2 Ver o caso de Manuel Bandeira em GARDEL, André. O Encontro Entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.

3 Ver o exemplo de VELLOSO, Mônica. “A ‘cidade-voyeur’: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas”. In Revista Rio de Janeiro. Niterói, 1986, nº 4, pp. 55-65.

Tiago de Melo Gomes – Doutorando Unicamp/Fapesp.

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A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920 – DIAS (RBH)

DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, 189p. Resenha de: FIGUEIREDO, Aldrin. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Quando, em 1927, Mário de Andrade – então cacique do modernismo brasileiro – visitava a Amazônia em sua famosa viagem de Turista Aprendiz, ao ser questionado sobre o que achou da capital do Amazonas, respondeu sem titubear que de “virgem de luxo” a cidade estava se transformando em “mulher fecunda”1. As metáforas do poeta serviam para criticar os adornos que foram artificiosamente colocados sobre Manaus ainda “nos tempos áureos da borracha” e que, passado pouco mais de uma década, pareciam já legenda de um tempo remoto. As riquezas oriundas da exploração da goma elástica haviam criado uma época de fausto ilusório, de luxo efêmero, de um progresso inconstante. Nos anos 20, quando a produção amazônica respondia por apenas 5% do consumo mundial de borracha, Manaus amargou dias difíceis. Mário de Andrade viu com bons olhos esse duro aprendizado. Sem o dinheiro fácil da exportação do látex, os governantes locais teriam que ser criativos para produzir “uma nova florada de empreendimentos de alcance elevado”2. Mas essa visão do literato paulista não era partilhada pela maioria dos que viviam na Amazônia. Nessa época, vicejou na região uma verdadeira ideologia da decadência. Os que testemunharam essas mudanças passaram para os mais novos uma memória do “fim da grande vida” – como referiu o poeta amazonense Thiago de Mello, recompondo as lembranças de seus pais, parentes e antepassados. O registro é impressionante:

Do dia pra noite, se foram acabando o luxo, as ostentações, os esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo trabalho praticamente escravo do caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou bruscamente a construção dos grandes sobrados portugueses, dos palacetes afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. Não se mandou mais buscar mármores e azulejos na Europa, ninguém acendia mais charutos com cédulas estrangeiras. O enxoval das moças ricas deixou de vir de Paris. Os navios ingleses, alemães e italianos começaram a escassear na entrada da barra. Muitas grandes firmas exportadoras, de capital europeu, começaram a pedir concordata. Das casas aviadoras (que forneciam dinheiro e mercadoria aos seringalistas do interior da floresta), as mais fracas faliram logo, algumas resistiram um pouco, mas não puderam evitar a falência. As companhias líricas de operetas italianas foram deixando de chegar para as suas temporadas exclusivas no sempre iluminado Teatro Amazonas. Os coronéis de barranco não podiam pagar com fortunas uma carícia mais quente das francesas importadas e refinadas na arte do amor comprado, as quais, por isso mesmo, foram logo tratando de dar o fora, substituídas nas pensões noturnas pelas nossas caboclas peitudas e de cintura menos delgada. Dar o fora foi também o que fizeram os comerciantes ingleses e alemães, os navios partiam carregados deles com a família inteira3.

Com um misto de saudosismo inconfesso e alegria conformada, Thiago de Mello guardou na memória que, com a tal decadência da borracha, Manaus voltou a ser como antes: “pôde ser ela mesma, a viver de si mesma”. A cidade havia, afinal, empenhado um valor muito alto pelos benefícios da riqueza oriunda da exploração da goma, “ao preço da miséria e da servidão de milhares de caboclos”. O fim dessa “virgem de luxo”, nas palavras de Mário de Andrade, era o consolo de quem não viveu os tempos eufóricos das folies du latex. De fato, todo esse luxo sempre pareceu aos visitantes uma espécie de anomalia surpreendente. Teatros, bancos, magazines, palacetes, boulevards, praças e monumentos não combinavam (e ainda não parecerem combinar) com as imagens da floresta, do labirinto de rios e da propaganda ecológica do mais rico ecossistema do planeta. Se essa ambigüidade persiste com força nos dias de hoje, não é de surpreender que não fosse diferente há quase um século. Enquanto já na década de 1920 as histórias da belle époque amazônica passaram a vicejar apenas nas memórias do passado, a imagem do “anfiteatro” amazônico coberto pela verdejante floresta voltou a ocupar a literatura sobre a região4. Tanto em Mário de Andrade como em Raymundo Moraes, preferido entre os literatos locais pelo poeta paulista5, é a natureza amazônica – com sua “autenticidade” selvagem e primitiva – que tomou o lugar de destaque, entronizada até hoje na mídia, em qualquer parte do dito mundo globalizado.

Revirar a história desse tempo, há muito mitificado, passou a ser assunto de memória ou negócio de historiador. Sabendo disso, Edinea Mascarenhas Dias, historiadora paraense há tempos radicada em Manaus, professora aposentada da Universidade do Amazonas, impôs-se a tarefa de questionar muitas das histórias contadas sobre a Manaus do fin-de-siècle. Seu livro, originalmente uma dissertação de mestrado defendida em 1988 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação de Déa Fenelon, deve ser uma grata surpresa ao mais exigente dos leitores. A capital do Amazonas apresentada por Edinea Dias revela detalhes de uma história já anunciada em algumas memórias sobre a virada do século XIX, justamente o tempo em que Manaus sofrera o “primeiro grande surto de urbanização” graças aos investimentos oriundos da exploração da seringueira, como nos informa a autora logo na introdução6. A partir daí, os argumentos da obra são desenvolvidos em duas partes: primeiramente, passamos a vista no processo de construção da “cidade do fausto”, com uma análise detida sobre as origens dessa pretensa urbe moderna no meio da floresta. Na segunda parte, Edinea volta-se para analisar os beneficiados e os excluídos nessa política de melhoramentos públicos. Com isso, a autora percorre os meios utilizados pelas elites do Amazonas na constituição das políticas públicas que ambicionaram transformar uma pequena “aldeia” em uma cidade moderna, tal e qual suas propaladas congêneres européias. Das notícias de viajantes, como Henry Walter Bates, Robert Avé-Lallemant ou Louis Agassiz, que por lá aportaram nas décadas de 1850 e 1860, aos relatórios administrativos dos governos municipais das décadas seguintes, a historiadora acompanhou esse processo de transformação no “rosto” da cidade, imiscuído num projeto de modernização alicerçado em estratégias de exclusão social da pobreza urbana.

Em 1890, em pleno apogeu da exploração da goma, de cada 10 moradores de Manaus, 8 eram analfabetos. Passadas duas décadas, o fosso entre ricos e pobres aumentou ainda mais a constituição de um espaço privilegiado para as reformas sanitárias e para a segregação da cidade eleita. As ruas e logradouros centrais ganharam outros contornos, com novo embelezamento e com uma forte política de higienização do espaço público central. A idéia dos intendentes municipais era mesmo a de disciplinar o transeunte, o vendedor ambulante, o mendigo, o trabalhador comum. Edinea Mascarenhas Dias mostra o porquê de tudo isso não ter dado certo. Os inúmeros projetos de modernização só foram completamente exeqüíveis na cabeça dos governantes de então, embebedados que estavam com as façanhas de Haussmann na capital francesa. Se Manaus preservou alguns desses símbolos do fausto, como o seu famoso teatro, seu porto flutuante, o elegante prédio da alfândega, o palácio da justiça e tantos outros, também possibilitou que ficasse oculta, nesses mesmos relatórios oficiais, uma outra cidade que recebia as imensas levas de imigrantes que vinham de toda a parte em busca das tais riquezas do látex. Edinea visitou essa cidade oculta, recuperou seus números, revolveu seus insucessos, e nos apresentou suas estratégias de lutas pela sobrevivência. Se há uma crítica para ser feita a esse livro é que o mesmo ainda se recente das histórias miúdas dessa população anônima, rejeitada nas estatísticas oficiais. Mas, apesar disto, a autora soube muito bem criticar, sem os habituais excessos anacrônicos, os percursos e as estratégias políticas dos administradores da capital do Amazonas, tomando, um a um, seus nomes e seus feitos.

Por tudo, A ilusão do fausto é um livro necessário não somente a historiadores interessados nas histórias “belepoquianas” das capitais brasileiras do final do século XIX, mas também, e especialmente, a todos aqueles que ainda mantêm intocadas suas imagem sobre a selva amazônica, suas cidades anômalas, com sua gente vivendo à margem da história, como naqueles dias quis Euclides da Cunha7. O trabalho de Edinea Mascarenhas Dias não recaiu (e talvez essa seja uma de suas grandes virtudes) no usual recurso de contrapor a floresta, o ambiente selvagem e primitivo dos rincões amazônicos às vicissitudes da experiência humana nas cidades da região. Por mais incrível que possa parecer, essa é uma grande lição para os pesquisadores mais versados no assunto, sem falar naqueles que propagandeiam a região como laboratório para pesquisas e para a divulgação de seus projetos que pouco, ou quase nada, têm a ver com o dia-a-dia amazônico. Refiro-me aqui, especialmente, ao modo com a imprensa brasileira ainda teima em tratar esses “paraísos” ecológicos, sempre acompanhados de suas desastradas experiências sociais. É justamente contra essa visão da presença humana como “anomalia” na selva amazônica que se insurge o livro de Edinea Mascarenhas Dias. Em vez de acreditar piamente que estava ingressando no éden perdido, “resgatando” a história do homem e suas infrutíferas tentativas de domar a natureza, a autora preferiu trilhar esse mesmo caminho desconfiando dessa velha formulação tirada de velhos e bonitos manuais de história natural, tão ao gosto dos literatos e cientistas dos tempos da borracha.

Notas

1 Diário Oficial. Manaus, 8 de julho de 1927, p.1

2 Idem.

3 MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984, pp. 27-28.

4 Ver MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Livraria Clássica, 1927, p.2.

5 ANRADE, Mário de. “A Raymundo Moraes”. In Diário Nacional. São Paulo, 20 de setembro de 1931, p. 2.

6 DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, p.19.

7 CUNHA, Euclides da. À margem da história. Porto: Livraria Chardron, 1909.

Aldrin Moura de Figueiredo – Universidade Federal do Pará.

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Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês – KOSELLECK (RBH)

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Resenha de: MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. Revista Brasileira História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

Obra de fundamental importância para o conhecimento da dinâmica interna do Iluminismo e da gênese do mundo burguês, Crítica e crise, publicada na Alemanha em 1953, é traduzida somente agora em língua portuguesa. Pretendendo desvendar a natureza do mundo contemporâneo, a obra pode ser lida também como importante contributo à Teoria da História.

Koselleck propõe-se a demonstrar como a Filosofia da História, produção intelectual elaborada no século XVIII, não apenas justificou a ascensão da burguesia, como também inaugurou uma nova percepção do mundo, do mundo em crise, algo que se estende desde a Revolução Francesa até a Guerra Fria. Esta percepção do mundo é elaborada através da Filosofia da História, que cria a prospectiva utópica.

Nesta tese, o autor procurará associar análises relevantes da produção intelectual do XVIII, sem fazer, contudo, uma História das Idéias (Geistgeschichte). O movimento das idéias lhe interessa apenas na medida em que desvele o incidente político. Interessam-lhe menos as genealogias ou as formas do pensamento organizado, e mais sua evidência política.

Seu tema versa sobre os filósofos das Luzes antes da revolução, seus atos e pensamentos, independentemente de serem eles pensadores eruditos ou meros autores de panfletos anônimos. Interessa-lhe destacar seus denominadores comuns: a abordagem heurística, que visa a elucidar a ligação entre a utópica filosofia da história e a revolução desencadeada em 1789, que reside na conexão pressuposta entre crítica e crise (p. 13).

Segundo ele, a conjuntura a partir da qual surgiram as Luzes não explica as mudanças ocorridas no século XVIII. O que mudou foram as circunstâncias: o Estado estava se enfraquecendo na França, e por isso, em que pese o monarca continuar a decidir soberanamente, ele pareceu submeter-se às Luzes. No entanto, o Estado Absolutista permanece intacto até a Revolução Francesa1.

A crítica dos iluministas provocou a crise na medida em que o senso político lhes escapava. O espírito burguês do século XVIII transformou a História em um processo. Ao soerguerem como que um tribunal da razão, as Luzes passam a chamar às falas a Teologia, a História, a Arte, o Direito, o Estado e a Política. E, interessante, os filósofos das Luzes aplicaram o método divino à história (condenação/salvação). Submete-se o plano da salvação divina às Luzes.

Neste processo de secularização, o plano da salvação se torna o plano do futuro, moralmente justo e conforme a razão. Mas a moral (ética cristã secularizada) é estrangeira à realidade dada, e vê na ordem política uma determinação heteronômica que embaraça sua autonomia. Por isso, a salvação secularizada (doravante concebida como progresso) só pode se concretizar no futuro, pois a crítica é impotente diante das instituições estabelecidas. Por isso a história se reveste de uma perspectiva utópica.

Dois fatos importantes marcaram o início e o fim do Absolutismo: as guerras religiosas e a Revolução Francesa.

Na França, onde o Estado consegue muito cedo subjugar as guerras religiosas por meio de uma ação racional (pela política, porquanto o Estado logra eliminar todas as demais instituições autônomas em seu favor), constrói-se, de forma mais evidente, a doutrina da razão de Estado.

A razão de Estado pressupõe que a política pode ser tratada fora das considerações morais. Esta se desenha pela percepção de que as guerras religiosas são fruto da intolerância e da liberdade do povo para escolher entre esta ou aquela verdade moral.

Para que a paz seja estabelecida faz-se necessário, pois, que o soberano suprima a liberdade do povo em nome da própria paz.

Barclay2, já em 1605, confrontou o monarca com a seguinte alternativa:

Ou restituis a liberdade ao povo, ou lhe assegureis a paz interior, pela qual o povo sacrificou sua liberdade (…) Se o monarca admitisse oposição, sem dívida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por todas as agitações que nascessem da intolerância (…) ou fazia que todos se curvassem ou ninguém se submeteria (p. 22).

Mas não há, nestes escritos, a idéia de perda total da liberdade. A liberdade deve ser vivenciada no mundo interior. Nesta esfera, é o indivíduo mesmo que se julga, no refúgio de seu eu. Já o seu eu exterior é julgado pelos que dominam. Quem quer externar o que sua consciência diz, morrerá. Logo, a consciência é algoz de si mesma, pois é ela quem provoca a guerra religiosa.

Esta distinção entre vida exterior e vida interior faz com que se rompa a relação responsabilidade/ culpabilidade, constitutiva da consciência. Os súditos não tinham mais responsabilidade, apenas culpabilidade. A responsabilidade passou a ser apanágio do soberano.

Entretanto, para que o soberano domine, necessário se faz agir com eficácia: não lograr manter a paz é o limite de seu próprio poder. Por isto, necessita acumular poder, elaborar regras e jogos que só ele conhece e que não podem ser conquistados pela moral.

As guerras religiosas influenciaram decisivamente a Teoria Política de Hobbes. Ele funda uma antropologia individualista, ao afirmar serem para o homem bem problemáticos os vínculos sociais, políticos e religiosos, pois ele tende, inexoravelmente, ao apetite e à fuga, ao desejo e ao medo. Trata-se, pois, de uma teoria da guerra civil, donde se justifica a importância do Estado: o Estado de guerra pertence à natureza humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo… (p. 27). Já a razão não precisa da moral, pois substitui a moral na política, porque a moral é definida pela religião, e como há muitas religiões, os valores se conflitam. Afinal, quando os presbiterianos e independentes evocam a graça teológica, trata-se apenas da expressão de sua paixão (p. 29).

A pretensão das seitas, para Hobbes, de julgar entre o bem e o mal, não leva à paz, mas é fonte do próprio mal. Isto se deve não apenas à vontade de poder que atiça a guerra civil, mas também à referência a uma consciência que não tem apoio exterior. A consciência moral não é causa da paz, mas da guerra.

Ao separar consciência e ação, Hobbes introduz o Estado sob o aspecto de instância, que exclui a moral de suas repercussões políticas, pois o interesse público e o ato de legislar do soberano são a autoridade e não a verdade. E submete também o Direito ao Estado, porquanto o Direito, por sua vez, está ligado aos interesses sociais e esperanças religiosas. Por esta razão, também o Direito tem de se sujeitar à autoridade do rei.

O Estado torna-se então o Deus mortal. Mais do que isto: torna-se um automaton, a grande máquina (p. 33). Ele assegura, protege, prolonga a vida dos homens. Mas como mortal, ele pode se esfacelar e fazer a sociedade cair no estado da natureza — o que levaria a uma nova guerra civil. Portanto, o Estado tem de fazer de tudo para assegurar a obediência de todos.

É a partir desta clivagem que o homem se parte em dois, uma metade privada e a outra pública, e suas convicções passam a ser vivenciadas no secreto — in secret free.

A dicotomia entre homem simples e homem público é constitutiva da gênese do segredo. As Luzes dilatarão pouco a pouco o foro interior da convicção, mas toda a pretensão ao que revelava domínio do Estado ficava necessariamente envelopada com o véu do sagrado.

A neutralização da consciência pela política favorece a secularização da moral. Mas o arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado, porque os temas tradicionais vão ser reeditados de forma secularizada. Quando se esquece as origens do Estado (guerra civil), a razão de Estado aparece como imoral por excelência. Com o fim das guerras de religião, o Estado será portanto encarado como uma pessoa moral que, independentemente da Constituição (católica ou protestante), Monarquia ou República, vê-se face a face com outros Estados. Neste território, a um só tempo existencial e político, os filósofos das Luzes debruçam-se sobre si mesmos. Seu ponto de partida é o foro interior, que vai se dilatando até que se crie como que um segundo espaço público. Gradativamente, esta dilatação atingirá o próprio Estado.

Para John Locke, que viveu num país em que o parlamento já exercia bastante influência sobre o Estado, há três sortes de leis:

A Lei divina, que regulamenta o que é pecado e o que é dever (The divine law the mesure of sin and duty); a Lei civil, que regulamenta o crime e a inocência (The civil law the mesure of crimes and innocence), ou seja, a lei do Estado, ligada à coerção cuja tarefa consiste em proteger o cidadão; em terceiro lugar, a lei especificamente moral, que arbitra sobre o vício ou a virtude, que é revelada pela opinião pública (p. 50).

Uma vez que não é autorizada pelo Estado, a opinião pública só existia secularmente nos clubes, cafés e salões, onde as pessoas transitavam e emitiam seus juízos — não legislavam diretamente, mas a força de seu julgamento autônomo residia na censura, donde a necessidade de publicizá-la.

É neste contexto que se compreende o movimento intelectual de Locke que, ao interpretar a lei filosófica como opinião pública, investe politicamente no foro interior da consciência humana — subordinada por Hobbes à política do Estado. Para Locke, as ações públicas não devem estar submetidas apenas ao Estado. Por isto, ele trespassa a restrição existente no Absolutismo, porquanto a moral não se limita ao eu interior, mas afronta o Estado.

Quem decide? Instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Ou os dois em conjunto? A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta.

Neste círculo (da crítica) encontrar-se-ão os burgueses arrivistas, os protestantes perseguidos, os sábios, eclesiásticos progressistas, militares de alta patente, magistrados, atores que constroem um segundo domínio, compreendido por Koselleck como o reino da crítica.

A estratégia deste novo domínio público (que é ao mesmo tempo privado) é semelhante à dos maçons, que pretendiam traçar planos racionais para a felicidade da vida social. Afinal, os maçons mesclam poderes místicos da igreja e polícia secreta do Estado, ao que associam ainda um terceiro poder — a censura.

No reino da crítica, ainda não se pretende destruir o Estado; quer-se viver como iguais entre si, à parte do Estado, sem hierarquias. O segredo é a garantia de sua proteção: A liberdade secreta se torna o segredo da liberdade. A outra função do segredo é a de propiciar a coesão entre os irmãos. Nasce aí uma nova elite, denominada humanidade, que sente ser seu dever servir a este novo mundo.

A quem eles obedeciam? Ao desconhecido, pois o seu superior era invisível. Logo, quem detinha mais segredos sobre as organizações, detinha mais poder.

Os maçons, aos seus próprios olhos, queriam fazer o bem, mas encontravam obstáculos, quais fossem: a divisão do mundo entre homens e Estados divergentes, a hierarquia social e as religiões em conflito.

Por esses motivos, a crítica permanecia obediente ao Estado, devendo os progressistas limitarem-se ao espírito das ciências3.

No entanto, à medida que a crítica da razão torna todos iguais, inclusive o soberano, ela reduz todos os homens à condição de cidadãos. E se todo cidadão é igual, todo poder é abuso de poder, e o rei absolutista é um usurpador.

Por outro lado, tanto quanto o rei, os críticos transformam-se em tiranos de sua própria argumentação, ou seja, têm de ser igualmente criticados. Para Kant, no reino da crítica com seus segredos, a política pareceu retomar as funções do Estado com seus arcanos. Não é mais a crítica que se substrai do Estado; ela quer estender seu reino tão soberanamente, que são os Estados e as Igrejas que parecem fechar-se diante do julgamento da crítica, para se submeterem a ela. A crítica adquire tanta segurança que chega a tachar o Estado e a Igreja de hipócritas. Se o Estado não se submete à razão crítica, ele só tem direito a um respeito dissimulado. Em síntese, o politicum da crítica não se caracteriza pelo falado, mas por separar o Estado de seu reino.

O dualismo entre o reino da moral e o reino da política permitiu abrir um horizonte apolítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e gradativamente contra o Estado. Graças a este pensamento dualista, a nova elite adquiriu uma consciência de si original, a saber, um grupo de pessoas que como representantes e como educadores de uma nova sociedade tomam posição dizendo não ao Estado Absolutista e à Igreja.

No momento em que as Luzes negam o Estado Absolutista, a história fica em aberto e, assim, se enuncia a crise4.

Na Alemanha, observa-se clara percepção da tensão entre moral e política, o que deveria provocar a cisão entre Estado e sociedade5. Todavia, nesta região, a burguesia é fraca e minoritária, logo, as sociedades secretas são ferrenhamente perseguidas e colocadas fora da lei. Diz-se delas que são um Estado dentro do Estado, que se trata de uma conspiração jesuítico-maçônica, acima dos Estados soberanos, para destruí-los, a eles e às igrejas. O que os incita a pensar nestes pequenos grupos como tão poderosos, com uma força catastrófica? A Filosofia da História, vista como grande ameaça, pois iria substituir a religião pela moral.

Os maçons, segundo Leibniz,

aparecem no lugar de Deus. Assim como Deus só age de maneira oculta, fornece ser, força, vida e razão sem deixar-se perceber, os irmãos das lojas também têm que encobrir seu segredo, pois na opacidade de seus planos reside a bondade, a sabedoria e o sucesso do grande projeto (p. 115).

Para Leibniz, os maçons queriam abolir o Estado, sem violência, simplesmente minando-o gradativamente.

Ainda, a Filosofia da História, para Leibniz, legitima a arte moral e produz o homem novo, deus na terra que quer dirigir a história (p. 116), mas não o fará pela violência, e sim pela vontade.

Göchhausen, um militar prussiano, maçon, mas lacaio do rei, assim denuncia os iluministas:

A razão, aparentemente, irá criar um território sem fronteiras e instaurar a era da frugalidade espiritual, física e política no país de fria abstração; mas, de fato, só haveria duas condições toleráveis: a classe que governa e a classe que é governada (p. 119).

Dadas estas perseguições, a revolução não se desenlaça na Alemanha, mas na França. Neste país, a crise se inicia com Turgot, Ministro de Estado oriundo das Luzes, censor moral que entra na cena pública. Para conter a revolução, defendia ser necessário criar-se um Estado cesarista, com um espaço para os liberais. Colocava-se contra os parlamentos e contra o rei.

Turgot, como Hobbes, defendia o Absolutismo esclarecido. Logo, o rei só tinha legitimidade quando suas leis se assentassem no direito moral, sem o que perderia sua autoridade. Ao operar uma divisão dualista entre a moral e a política, Turgot elide

a questão concreta de saber onde e como o direito moral e o poder coincidem, o que equivale a uma forma política de uma ordem moral de Estado… Se para os absolutistas a subordinação da moral à política era o princípio de ordem que colocou um fim à guerra civil e impediu que ela se reacendesse, para Turgot, esse princípio transformou-se no facho que a inocentava, pois, para Turgot, submeter a consciência à política não é evitar a guerra civil, mas fomentá-la. Opor-se à voz da consciência é ser sempre injusto, é justificar a revolta e dar lugar ao tumulto (p. 125).

Com este reconhecimento, Turgot prepara a cena para a revolta.

Rousseau, o primeiro dos democratas modernos, apresenta-se com a seguinte questão: A condição de liberdade é que cada um só obedeça a si mesmo. O monarca não representa a vontade da sociedade, esta é representada pela vontade geral. Mas esta vontade geral, que é agora soberana, é entretanto invisível. Se todos são soberanos, a sociedade é estatizada. Mas esta totalidade racional só o é em aparência, pois cada cidadão só adquire liberdade quando participa da vontade geral, mas como homem ele não sabe quando e como seu eu interior coincide com esta vontade geral, pois o homem individual se engana, enquanto a vontade geral nunca pode se enganar.

Para não permitir o engano, impõe-se a correção das vontades, que é concretizada com a ditadura. A ditadura se diferencia do Absolutismo porque nela se integra o eu interior, e não apenas o eu exterior (ou seja, há que se transformar as ações em convicções). Para tanto, como nem todos os cidadãos conhecem a vontade geral, precisam de guias que criem a identidade entre a moral e a política — com vistas a mostrar o bom caminho. O reino da opinião pública de Rousseau se torna ideológico. O censor público transforma-se em chefe ideológico. Entretanto, ele não pode demonstrar que está mandando, ele tem de dissumular, como nas sociedades secretas.

A ditadura ideológica da virtude desaparece atrás da máscara da vontade geral. Mas porque é instável, impõe-se, ao lado da ideologia, o terror. Daí resulta a desagregação da ordem. Logo, a autoridade não é só ela imoral, mas transforma toda a sociedade em imoral, porque mesmo o homem esclarecido tem de ser hipócrita.

A inocência moral leva à desobediência, que leva à revolta, que resulta na guerra civil. A crise significa então o tribunal da moral, onde vencerá o despotismo ou a justiça.

Este paradigma pode ser evidenciado em Raynal — que enxerga na independência dos Estados Unidos a oposição entre velho e novo mundo; o velho, déspota, o novo, da inocência moral6. Quem triunfa naquele país é a verdade moral dos oprimidos. Ou seja, é com a guerra e com seus meios violentos que se inicia o tempo em que a virtude e o vício se separam. Raynal conclama à revolução em nome da Filosofia da História; crise e Filosofia da História estarão doravante intimamente ligadas.

Com estas constatações, Koselleck conclui que a incerteza da crise se identifica com a certeza do planejamento da história utópica. Esta provoca aquela, e vice-versa; as duas juntas perpetuam o processo que os intelectuais burgueses abriram contra o Estado Absolutista. A burguesia usurpa o poder com a má consciência de um moralista que crê que o sentido da história é o de tornar dispensável o poder. A utopia como resposta ao Absolutismo abre assim o processo dos Tempos Modernos. Porque, de resto, com Tom Paine, a vitória da revolta norte-americana deu-se pela verdade moral, e na França revolucionária, pela política…

Notas

1 Com esta afirmativa, o autor se afasta das interpretações que entendem as idéias como responsáveis pela revolução. Se elas o foram, não foram seus atores que estiveram à frente do movimento (p. 19 e ss.).

2 Humanista e jurista, Barclay tinha em vista o Estado Absolutista; suas idéias foram acompanhadas de perto por Richelieu.

3 A institucionalização da crítica se dá, num primeiro momento, de forma dissimulada, pelo e no teatro ou pela e na literatura. O resgate do drama tem este sentido, de oposição de forças diametralmente opostas: razão/ revelação, liberdade/ despotismo, natureza/ civilização, comércio/ guerra, moral/ política, decadência/ progresso, luz/ trevas.

4 Koselleck toma de empréstimo o termo crise, tal qual ele é empregado por Rousseau, como uma doença do corpo.

5 À época do Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto), primeira fase do Romantismo, também compreendido como Romantismo Ilustrado.

6 Segundo Koselleck, em Raynal, a inocência moral deixa de ser pensada como antecessora no tempo do Absolutismo, e é projetada no presente, geograficamente — o oprimido dos Estados Unidos contra a Europa despótica.

Marionilde Dias Brepohl de Magalhães – Universidade Federal do Paraná

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Brasil, Brasis / Revista Brasileira de História / 2000

A produção significativa de eventos comemorativos em torno dos chamados 500 anos de Brasil motiva a Revista Brasileira de História a trazer a público o dossiê “Brasil, Brasis”. Distante da efeméride, seu objetivo é estimular reflexão sobre os diversos sentidos que o conceito de Brasil apresentou historicamente. Visando repensar as interpretações do passado, os artigos que o constituem abrem-se para diversidades sociais, econômicas políticas e culturais, abordadas em tempos e espaços múltiplos.

Seu ponto de partida localiza-se no significado dos três séculos de colonização portuguesa que implicaram na configuração de um território, de relações com a metrópole, de uma sociedade colonial e na difusão da língua portuguesa. Na seqüência, busca-se repensar tal herança na atual sociedade brasileira.

O artigo de Seth Garfield abre o dossiê com o estudo das relações entre a população indígena e as políticas nacionalistas do Estado Novo, sobretudo a da Marcha para o Oeste. A partir de uma perspectiva de dupla direção, aborda tanto a política indigenista construída e aplicada por intelectuais e funcionários do governo, quanto a interlocução obtida com seus destinatários. No campo da cultura política situa-se também o artigo de Antônio Penalves Rocha, que analisa a difusão das idéias antiescravistas da Ilustração no Brasil, no início do século XIX, evidenciando a especificidade de sua reconstrução por intelectuais, numa releitura que configura um dos Brasis, o da escravidão e de suas contradições presentes nos movimentos abolicionistas. O artigo de Élio Serpa examina aspectos da cultura política nacionalista durante a Primeira República. Desavindos ou desacordes eram os intelectuais portugueses e brasileiros, na tarefa de produzir representações sobre a antiga colônia. A existência de um “Brasil mental” construído por portugueses teve como referenciais o nacionalismo e o colonialismo; veiculado em periódicos, esse discurso estabeleceu contraponto no diálogo entre a metrópole e as colônias remanescentes na África.

Analisando redes mercantis a partir de contratos e inventários Helen Osório desenvolve pesquisa minuciosa sobre a formação do “grupo mercantil” no Rio Grande de São Pedro, dada pela perspectiva de sua inserção na América Portuguesa. Sua leitura atenta de amplo corpus documental resulta na construção temática de um Brasil pouco estudado, em suas relações, por vezes conflituosas, com a elite comercial hegemônica do Rio de Janeiro e com a metrópole.

Dois artigos ampliam o leque das interpretações sobre o Brasil, ao abordarem o campo artístico. O texto de Eduardo Morettin elabora uma interpretação historiográfica do tema do descobrimento cruzando diversos tipos de fontes e de perspectivas analíticas, a historiografia do século XIX, o cinema, as artes plásticas e, completando o circuito, os livros didáticos. A interpretação da produção e circulação da temática inova ao cotejar elementos que permitiram a construção de um quadro de referências no qual a nação brasileira constitui presença obrigatória. Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman dão continuidade aos estudos historiográficos do campo artístico ao analisar metodologicamente as discussões em torno das origens da música popular brasileira. Neste Brasil feito de experiências e de obras musicais, Brasil e samba são sinônimos? Este e outros mitos são desconstruídos ao longo do estudo que tece um quadro polifônico de sons e idéias. O artigo de Luís Felipe Miguel completa o dossiê ao desvendar o Brasil da mídia, produzido pela moderna indústria de comunicação de massas, a qual teve nas últimas décadas impacto decisivo na história política.

Integrado aos estudos das relações entre história e música, José Geraldo Vinci de Moraes abre a seção de artigos ao sistematizar reflexões acerca da avaliação teórico-metodológica da canção popular em termos historiográficos. Indica a necessidade de superação da tradicional história da música por uma abordagem interdisciplinar especialmente promissora ao permitir análises integradas de manifestações musicais em movimentos sociais, abrindo possibilidades de releituras da música / canção popular numa perspectiva de circularidade fornecida pela história cultural. No mesmo sentido de abertura da história às manifestações artísticas e literárias, o artigo de Antônio Paulo Rezende analisa a obra de Octávio Paz. O Labirinto da solidão desafia a historiografia a compreender a história como dimensão poética que confronta o antigo e o moderno em sua leitura do mundo.

Finalmente, o artigo de Olga Brites analisa representações sobre a infância e a família construídas pela propaganda durante as décadas de 1930-1950, caracterizando seus vínculos com as questões referentes a higiene e saúde. A análise de anúncios veiculados sobretudo em periódicos fundamenta a abordagem do discurso publicitário, dos valores que foram por ele expressos e de suas propostas de sociedade, seu papel decisivo para a formação de hábitos e a configuração de um imaginário social.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20, n.39, 2000. Acessar publicação original [DR]

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Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850 – CARVALHO (RBH)

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, 353 p. Resenha de: RICCI, Magda. Revista Brasileira de História, São Paulo: v.20 n.39, 2000.

De repente um gemido. Certamente era de dor, certamente era fruto de uma execrada instituição que infelizmente governava o Brasil de 1831. Gritos escravos permeados pelo som do açoite. Eles constituíam a prova de que o castigo e a submissão grassavam o mundo Imperial, explicitando uma certa continuidade da exploração colonial. Restava aos negros crioulos e, especialmente aos africanos, a saída pela rebeldia pré-política. Restava-lhes o suicídio e a fuga para quilombos. Estas interpretações foram, durante muito tempo, temas prediletos dos pesquisadores da escravidão no Brasil. O outro lado desta história estava por ser pesquisado: a liberdade e seus muitos significados.

Aqueles gemidos acima referidos foram ouvidos no Recife de 1831 por Charles Darwin. Eles serviram de epígrafe ao livro de Marcus Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Distanciando-se das interpretações mais corriqueiras, o ousado estudo de Carvalho, interpreta-os de uma outra forma, demonstrando uma clara afinidade com aquilo que de mais interessante vem sendo produzido pela atual historiografia sobre escravidão no Brasil.

A liberdade é um tema difícil, tanto quanto maravilhoso. Para estudá-la, de imediato, surgem alguns entraves. Primeiramente, o problema do foco central de análise. Até recentemente, estudos sobre liberdade no século XIX só faziam sentido dentro do mundo da escravidão e da relação bipolar entre senhores e escravos. Por este raciocínio, estudar a escravidão significava analisar um eterno conflito dentro de um sistema ou modo de produção a ser definido minuciosamente. No entanto, hoje esta abordagem pode, no mínimo, gerar “polêmica”1. No lugar das certezas do escravismo (ou escravismos) surgiram múltiplas abordagens da escravidão e da liberdade.

Desde a época ao redor do centenário da abolição, em 1988, nossos livros sobre os tempos do cativeiro têm trazido a público alguns inusitados escravos. Eles vêm saindo do universo quase auto-suficiente do trabalho nas fazendas de cana e café. Vêm entrando em outros espaços, criando complexas e fascinantes situações a seus senhores e a nós, historiadores e leitores do século XX. Ganharam as ruas das cidades2, invadindo as cabeças e fazendo ressurgir, sobre outros olhares, a prática dos abolicionistas e/ou imigrantistas da segunda metade do século XIX3. Deixando seus donos pasmos, foram à justiça, atrás de justiça e uma dada noção de cidadania. Por outro lado, fizeram eclodir rebeliões dentro e fora das senzalas. Aqui, porém, seus quilombos revigoraram-se sob outra perspectiva, que não a do isolamento. Quase sempre, estes fugitivos mantinham relações comerciais e culturais com o mundo senhorial4.

Certamente os nossos escravos mudaram muito nos livros de história dos últimos dez anos. No entanto, mesmo assim, continuaram escravos. Por mais que alguns estudiosos denunciem a benevolência e o paternalismo historiográfico dos pesquisadores dos anos oitenta para com a escravidão dos séculos XVIII e XIX no Brasil, creio que, na maioria absoluta dos trabalhos, a dimensão do sofrimento e da dor escrava nunca foi esquecida5. Se a liberdade era uma bandeira poderosa, a escravidão era seu contraponto. O mundo do escravo transitava entre o sonho da liberdade e o cotidiano da luta dentro da escravidão. É neste ponto que o livro de Marcus Carvalho pode ser exemplarmente ressaltado.

Seguindo o rico percurso traçado por trabalhos pioneiros como os de João José Reis, Leila Algranti ou Sidney Chalhoub6 e, ao mesmo tempo, centrado em uma documentação das mais valiosas, o autor dá um passo adiante, revelando indícios de interessantes rumos historiográficos que se anunciam. Carvalho busca a liberdade dentro de um contexto de rupturas e rotinas da escravidão, ou como inapropriadamente insiste em chamar, do escravismo. Para o autor, a liberdade escrava situava-se, muitas vezes, longe do universo do trabalho nas fazendas. Por outro lado, o autor realçou enormente a dimensão do esforço cotidiano de luta, da árdua rotina constitutiva da vida de homens e mulheres expostos e surrados em praça pública e traficados quase como um material inerte.

É preciso lembrar que nos anos oitenta e início dos noventa a historiografia da escravidão no Brasil, ou parte significativa dela, buscava um escravo com ações autonômicas7. Era a partir deste campo de análise que, quase todos, recriavam uma vivência escrava rumo à liberdade que assumia ares de explícita, porém complexa, luta de classes. Os quilombolas analisados por Flávio Gomes, por exemplo, deixaram de ser fugitivos de um sistema escravista para tornarem-se combatentes de um outro tipo de liberdade. Surgiram dali homens com histórias de vida próprias e memórias de lutas coletivas. Como bem notou Silvia Lara, a influência thompsoniana neste tipo de estudo tornou-se evidente. Ela unia a história da escravidão àquela referente aos estudos sobre as relações e processo de trabalho livre no Brasil8. Para esta historiografia, os escravos e quilombolas eram indivíduos com personalidade e problemas pessoais, mas também faziam-se classe em diferentes contextos, especialmente quando imbuídos de um espírito de luta herdado e partilhado por experiências vindas de um presente ou de um passado em comum.

Por seu turno, o estudo de Carvalho, seguindo uma atual tendência, percebe a ação escrava dentro de relações que são sociais, étnicas e culturais. Sem abandonar a “economia moral” thompsoniana, as lutas pela liberdade ganharam outros ares, ampliando-se dentro de um universo em que muitos escravos desejavam ser ou tornar-se livres, vivendo sobre si e tendo quem os servissem. Ser livre era, em suma, ter propriedades, fossem elas um terreno ou um escravo. A liberdade estava contida, portanto, seja nas rebeliões e fugas escravas, seja na solidariedade de classe e/ou étnico-religiosa, que extrapolava, em muito, as fronteiras da relação senhor-escravo. Estava na cabeça de escravos, tanto quanto na dos homens livres ricos e pobres. Situava-se na cidade do Recife, mas também em seus muitos engenhos e roças. Nas casas dos ricos proprietários e em suas senzalas, bem como na casa do Conselho de Governo Provincial e nas inúmeras disputas partidárias em prol da emancipação brasileira durante as décadas de 1820 até 1850.

Em suma, o que de mais interessante apresenta o estudo de Carvalho é uma simbiose muito apropriada entre o universo da política imperial para os anos de 1822-1850 e o valioso contexto de lutas escravas e não escravas pela liberdade nos arredores de Recife. Juntando estudos que tradicionalmente caminhavam em paralelo, Carvalho percebeu a importância de associar temáticas dentro e fora dos debates historiográficos da escravidão. Se Pernambuco era a terra das Revoluções de 1817, de 1824 ou de outras como a Praieira, este local também tinha uma complexa tradição de revoltas escravas. Por outro lado, era o espaço da rotina escravista, da dor e do sofrimento de africanos e crioulos.

Entender este locus é uma tarefa árdua, que, quando bem empreendida, surte um resultado profícuo. Talvez Carvalho pudesse ir um pouco adiante, relacionando mais densamente alguns tempos históricos que se entrecruzavam no Recife da primeira metade do século XIX. É importante notar, por exemplo, que o calendário religioso, assim como o parlamentar e o da colheita e plantação da cana-de-açúcar estavam imbricados em um mundo repleto de credos e razões absolutas, que se contrapunha às novas liberdades constitucionais recém alcançadas. Certamente no Recife de frei Caneca e de outros tantos clérigos havia uma junção muito generosa entre a Igreja e o Estado, surgindo daí outras formas de se compreender os significados múltiplos da liberdade escrava e não escrava dentro deste universo.

Ressalva à parte, o livro de Carvalho deve ser lido pelo que se propõe efetuar. São três partes que o compõe: uma primeira dedicada à explicação espacial e social da cidade do Recife, de seus moradores e de suas tradições de luta. Uma segunda que estuda o tráfico e sua lógica de comércio e alianças sociais e políticas dentro do Recife. E uma terceira que se centra nos caminhos da liberdade (política e social) nos melindrosos cenários rebeldes da primeira metade do século XIX. Como ressalta Carvalho, para bem se entender os “vários passos que podiam, ou não, ser dados em direção à ‘liberdade'”, é preciso buscar outras “possibilidades humanas na história da escravidão”. É preciso estudar “outras tantas situações intermediárias” dentro do restritivo campo tradicionalmente traçado por senhores e escravos.

Robert Slenes, em recente estudo, chamou a atenção para estudos que valorizassem as relações entre senhores e subalternos, contrariando a tradicional dicotomia entre senhores e escravos. Sidney Chalhoub, por sua vez, desvencilha-se dos escravos, debruçando-se sobre a análise de um Rio de Janeiro pluri-étnico e culturalmente febril. João José Reis percebe em um movimento, como a cemiterada de Salvador, algo mais do que homens e mulheres ultrapassados e escravocratas, lutando contra a modernidade. Em A morte é um festa, desvenda um precioso viver no século XIX, que caminha muito próximo da diversidade cultural que ele possuia9.

Neste mesmo sentido segue o estudo de Carvalho que aqui apresento e recomendo. Estuda o escravismo, ou melhor, a escravidão, sem que as relações de trabalho tornem-se hegemônicas e quase auto-evidentes na explicação histórica. Analisa a liberdade, sem ficar restrito à dicotomia senhores versus escravos. Por fim, estuda a cidade do Recife, sem fazer regionalismos, ou uma história local e desinteressante ao público em geral.

A cidade do Recife descrita por Carvalho é específica e única, com ruas, bairros e pessoas muito próprias. No entanto, ela pode ser a síntese de tantas outras cidades e pessoas. Longe da Corte, estava, entretanto, tão próxima ao centro em muitas ocasiões. Todavia, em vários instantes, os moradores do Recife e de Pernambuco pleiteavam tomar o lugar dos cariocas. A cada levante social, a cada escravo que disputava espaço para bem viver o seu dia a dia, a cada traficante que contabilizava lucros e perdas sociais e políticas, a cidade do Recife e seus moradores livres e escravos se uniam a tantos outros habitantes de locais como Belém, Salvador ou São Paulo. Todos olhavam para a Corte, vendo imagens e semelhanças, tanto quanto diferenças e conflitos. Em resumo, o livro de Carvalho especifica muito bem o que seria o Brasil de então. Sem o exagero ufanista e nacionalista, tratava-se de um Brasil por se fazer. Um país ainda escravocrata em muitos sentidos, mas também cheio de liberdades. Um Brasil de leis novas, mas repleto de rotinas tradicionais como as do trabalho e as do tráfico. Um local de longas tradições religiosas e culturais, mas de rupturas sociais e políticas tão bruscas, quanto temerárias e deslumbrantes.

Notas

1 Para alguns autores como Suely Robles Reis de Queiróz o atual debate historiográfico sobre a escravidão no Brasil seguiu um percurso, no mínimo, equivocado, e assim, ainda hoje, seria “uma questão que continua polêmica”. Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”. In FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Cantexto/USF, 1998, p. 117. Para uma contraposição a esta autora, ver, especialmente: MACHADO, Maria Helena P. T. “História e historiografia da escravidão e da abolição em São Paulo”. In Antonio Celso Ferreira et. al. (orgs.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo, UNESP, 1999, pp. 61-70.

2 Sobre escravidão urbana, ver, entre outros, os trabalhos de: ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988.

3 Ver, especialmente: AZEVEDO, Célia M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/EDUSP, 1994.

4 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. A lei de locação de serviços de 1879. Campinas, Papirus, 1988; REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996.

5 A crítica e a denúncia vieram, principalmente de Jacob Gorender. Ver: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo, Ática, 1990.

6 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986; ALGRANTI, Leila M. op. cit.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.

7 Para uma boa análise deste debate historiográfico, ver: LARA, Silvia Hunold. “Conversas com a bibliografia”. In Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 97-113.

8 LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto história: revista do Departamento de pós-graduação da PUC-SP. São Paulo, EDUC, no 16, 1997, pp. 25-38.

9 SLENES, Robert. “Senhores e subalternos no Oeste Paulista”. In NOVAIS, Fernando & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil. Império, a Corte e a modernidade nacional. São Paulo, vol. 02, Cia das Letras, 1997, pp. 233-290. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Cia das Letras, 1996 e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1991.

Magda Ricci – Universidade Federal do Pará.

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 Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação – PRATT (RBH)

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC, 1999, 394p. Resenha de MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

O livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque, Routledge, 1992, que aparece agora em versão para o português, com o título de Os Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, traduzido por Jézio Gutierre e com revisão técnica desta autora e de Carlos Valero, Bauru, EDUSC, 1999, é um trabalho de grande peso intelectual, que vem sendo profusamente discutido nas universidades norte-americanas, latino-americanas e, em menor escala, no meio acadêmico brasileiro. A presente tradução, facilitando o acesso ao livro, deve sanar esta lacuna.

Obra de grande impacto acadêmico, com discussões teóricas inovadoras e análise minuciosa de uma ampla gama de relatos de viagem, o livro de Mary Pratt encontra-se na intersecção da análise de texto e crítica ideológica. Procurando desvendar não apenas os mecanismos ideológicos e semânticos por meio dos quais os viajantes europeus, a partir de meados do século XVIII, criaram um novo campo discursivo, forjando uma consciência planetária a respeito do outro colonial e suas culturas, a autora associa estes escritos e seus tropos às diferentes fases do expansionismo capitalista e suas conquistas dos territórios interiores do mundo colonial. Neste sentido, é este livro hoje considerado fundamental para a reavaliação dos processos de constituição de um repertório semântico-cognitivo imperialista que se construiu a partir dos anos de 1750, entrelaçando as amplas dinâmicas da expansão do capitalismo em direção às áreas coloniais à produção de um saber que vai criativamente reinventar a realidade colonial, produzindo os novos paradigmas e o repertório de imagens por meio dos quais estas novas dinâmicas puderam ser efetivamente realizadas e implementadas.

Como nota a autora em sua introdução, este livro foi escrito no ambiente acadêmico norte-americano da década de 1980, como parte de um amplo esforço de resistência à onda conservadora que então se impunha, e como exercício de descolonização do conhecimento. Embora se encontre estruturado nos moldes dos estudos acadêmicos, neste trabalho Mary Pratt não se furta à discussão política em seu sentido mais profundo, estabelecendo alguns marcos teóricos para resistência intelectual às análises globalizantes. Conceitos largamente desprezados pelas análises de texto pós-modernas, como os de imperialismo e descolonização, aparecem neste livro contextualizados num recorte teórico afinado com as discussões mais atuais, tornando este um livro que se localiza numa perspectiva interdisciplinar, útil aos estudos da literatura, antropologia, história e outras disciplinas.

Valendo-se da análise de texto e da crítica ideológica, Mary Louise Pratt analisa a literatura de viagem relativa à África no momento em que os europeus lutavam por superar os obstáculos que se antepunham à conquista do território interior do continente, possibilitando o enraizamento dos interesses políticos e comerciais. A autora se volta igualmente para a análise da literatura de viagem sobre a América do Sul, com algumas incursões sobre o México, ressaltando exatamente sua coincidência com o que se convencionou denominar como crise do sistema colonial, eclosão dos movimentos de independência e rearticulação desta área à divisão internacional do trabalho da era imperialista. Neste empreendimento a autora vai propor uma nova visão das relações entre a metrópole e as áreas coloniais, entre o saber europeu e o saber nativo, entre visitantes e visitados, entre viajantes e viajados (neologismo que a autora lança mão para sublinhar o caráter interativo destes encontros). A dimensão da autora é global – mas não globalizante – e é, sobretudo, relacional e interativa, desprezando as análises unilaterais e pretensamente imparciais mas que tomam, por princípio, o olhar imperial e o ponto de vista difusionista como verdade neutra e marco zero analítico. Novos recortes temáticos, novos conceitos e releituras renovadas da literatura imperial permitem que a autora coloque literalmente de cabeça para baixo as interpretações clássicas deste tema, sempre por meio da desconstrução de um universo semântico aparentamente neutro e objetivo. Para tal, alguns conceitos são fundamentais e eu vou apenas nomeá-los rapidamente.

Primeiro o de transculturação, entendido como um fenômeno da zona de contato e que se refere às apropriações dos materiais nativos pelos europeus mas também à maneira pela qual os coloniais se apropriam dos estilos imperiais, construindo eles próprios modos de representação que, absorvidos pelo olhar imperial, constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado como originariamente europeu. O termo transculturação foi criado na década de 40 por Fernando Ortiz em seu Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, e é lá correlacionado ao universo das trocas culturais. Este mesmo conceito foi, na década de 70, utilizado por Angel Rama nos estudos literários. No entanto, parece-me que o uso extensivo do conceito de transculturação em Olhos do Império reporta-se a um universo mais amplo, que é o da constituição de repertórios de símbolos, imagens e discursos que conformam um modo ou estilo cognitivo e um repertório semântico e imagético por meio do qual o outro colonial passa a ser abordado.

Outro conceito fundamental ao livro é o de zona de contato que é compreendido como sinônimo de fronteira cultural, enfatizando as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, pondo em questão como os sujeitos coloniais são constituídos nas e pelas relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e visitados, em termos de interação e trocas no interior de relações assimétricas de poder. Frente a esta dimensão a autora, invertendo os paradigmas analíticos da análise objetiva, racionalista e eurocentrada do olhar imperialista, faz a pergunta fundamental que, de fato, norteia sua abordagem: Em que medida as construções européias a respeito do outro subordinado teriam sido moldadas pelos próprios subordinados através da construção de si próprios e de seu ambiente tal como eles – os próprios coloniais – os apresentaram aos europeus? Refletindo sobre a constituição do paradigma imperialista, Pratt ressalta a importância da viagem e da literatura de viagem romântico-naturalista como experiência daquilo que se convencionou denominar de modernidade, propondo a crítica aos conceitos reificados que norteiam estas análises e que igualmente legitimam a utilização acrítica dos conceitos da pós-modernidade.

Marcadas por processos culturais complexos norteados pelo racionalismo, pela ciência, pelo romantismo, pela constituição de um self individualizado e pelas teorias raciais, a experiência da viagem e da literatura de viagem se apresentavam como espaço privilegiado para a articulação do novo paradigma imperial. Possibilitando, por meio do deslocamento, a que viajantes e seu público – as sociedades envolvidas com os desafios da modernidade – refletissem a respeito de si próprias, a literatura de viagem, ao mesmo tempo, abria espaço para a construção, por oposição, de um discurso sobre a alteridade e sobre o papel do ocidente no domínio, condução e absorção das sociedades não-ocidentais. Enquanto experiência individual do sujeito-viajante às portas da modernidade, a viagem para terras longínquas surgia claramente como metáfora da viagem interior, suportando experiências pioneiras de subjetividade e auto-conhecimento. Enquanto discurso auto-reflexivo do homem que, ao viajar, observa, reflete e cataloga terras estranhas e povos selvagens, a viagem realizava uma apropriação discursiva das áreas coloniais, dando origem a uma configuração nova, porém extremamente efetiva de conquista, que Mary Louise Pratt denominou de “anti-conquista”, em alusão ao caráter aparentemente pacífico e reflexivo do viajante-naturalista e às características abstratas da apropriação catalagadora por ele promovida.

A literatura de viagem naturalista – masculina, eurocêntrica, com traços edipianos, da dedicação dos filhos viajantes ao pai Lineu, ou mais tarde ao pai Humboldt, ou no caso do Brasil, a Martius – e seu objetivo de estabelecer uma posse intelectual e abstrata de um saber e da natureza, traços sugestivos da idealização e impotência do filho edipiano, expressa um desejo de posse a ser realizado sem violência, que caracterizaria a anti-conquista. Note-se que um dos objetivos explícitos de Olhos do Império é o de discutir as relações entre a viagem, sua literatura e a questão de gênero. Para tal Mary Pratt não apenas sublinhou o caráter androcêntrico da viagem naturalista como dedicou todo um capítulo às viagens realizadas e relatadas por mulheres, procurando determinar as particularidades do olhar feminino sobre as áreas coloniais, bem como sua inserção na construção de formas específicas e variadas da abordagem imperial.

Os estudos acadêmicos sobre o Iluminismo, fortemente eurocentrados, têm freqüentemente negligenciado o papel dos agressivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus que funcionaram como modelo, inspiração e base de teste para formas de disciplina social que, re-importadas para a Europa nos finais século XVIII e inícios do XIX, tornaram-se importantes mecanismos sociais na construção da ordem burguesa. É preciso igualmente lembrar que a sistematização da natureza coincidiu com o apogeu do tráfico de escravos, com o sistema de plantation, com o genocídio colonial na América do Norte e na África do Sul, com as rebeliões de índios e escravos nos Andes, Caribe e América do Norte e noutras partes do globo. Na seqüência, Mary Pratt faz uma aproximação entre a célebre acumulação primitiva de capital e a sistematização da natureza que, nela inspirando-se, conduziu a idéia de acumulação a um extremo totalizante. Enquanto base de um gênero literário a literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de cultura, educação e lazer das nascentes classes médias européias e norte-americanas, construindo, entre outras coisas, um repertório comum a respeito dos povos selvagens e um consenso sobre a necessidade da intervenção do homem branco no mundo pós-colonial que então se esboçava.

Por meio da crítica ideológica e da desconstrução dos textos naturalistas, a autora também reelabora o conceito de natureza. Segundo nota Mary Pratt, nos escritos de viagem do período, natureza significa antes de tudo regiões e ecossistemas não dominados por europeus, embora incluindo muitas regiões da entidade geográfica conhecida como Europa. A história natural impôs uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre todo o planeta, elaborando um entendimento racionalizador, extrativo e dissociativo, que suprimiu as relações funcionais e experenciais entre as pessoas, plantas e animais. O resultado deste processo concretizou-se na prefiguração de uma certa forma de hegemonia global, que deu origem a um paradigma descritivo e uma apropriação do planeta aparentemente benigna e totalmente abstrata, produzindo uma visão utópica e inocente da autoridade mundial européia, a qual a autora se refere como a de anti-conquista.

Conforme sublinha Os Olhos do Império, a literatura de viagem anterior ao paradigma naturalista segue o modelo do antigo relato de viagem marítimo. Neste, o enredo gira em torno das narrativas de aventura e sobrevivência (catástrofes, naufrágios, lutas pela sobrevivência em terras estrangeiras) nas quais a perspectiva analítica é interativa e os nativos podem ainda ser inclusos no mesmo universo institucional dos europeus. Acrescente-se que nesta literatura o marco divisório a partir do qual o europeu julga e classifica a sociedade nativa é a escravidão que estabelece a divisão básica entre o eu e o outro, sendo os escravizados percebidos como brutais e inferiores, mesmo quando o observador, homem, europeu e branco, refere-se às sociedades africanas e à escravidão tradicional e doméstica nelas existente.

Por seu turno, a literatura de viagem que começa a se concretizar com a expedição do geógrafo Charles de la Condamine à América do Sul em 1735 e com as viagens realizadas também em meados do XVIII à África, reflete um empreendimento narrativo, de caráter cumulativo e organizacional, na qual a geografia é minuciosamente documentada e o mundo humano naturalizado. Aqui se reencena Adão no Jardim do Éden nomeando a natureza. A paisagem é descrita como inabitada, devoluta, sem história e desocupada, até mesmo pelo próprio viajante. A atividade de descrever a geografia e identificar a flora e a fauna estrutura uma narrativa a-social em que a presença européia ou nativa é absolutamente marginal, ainda que fosse este, evidentemente, um aspecto constante e essencial da viagem em si. Neste sentido, conforme aponta Mary Pratt, é fácil relacionar esta literatura e sua produção de um corpo sem discurso, desnudo e biologizado com a força de trabalho desenraizada, despojada e disponível criada pelo colonialismo. Nestas descrições, as mudanças são naturalizadas e descritas como lacunas, a historicidade das sociedades locais desaparece e o estado em que os viajantes encontram estas sociedades – muitas vezes já profundamente deterioradas pela influência colonial – é descrito como eterno e atemporal.

Em sua análise, a autora reflete sobre os princípios da anti-conquista mostrando a maneira pela qual esta se legitimava ideologicamente argumentando a existência de uma reciprocidade entre europeus e as sociedades coloniais, entre viajantes e viajados. Utilizando-se de conceitos derivados do discurso das nascentes ideologias liberais e capitalistas, porém contextualizado-os na análise de texto, a autora aponta para a falácia desta suposta troca, que legitimaria a intervenção classificatória do sábio europeu nas áreas coloniais, aqui denominada como zona de contato. Mary Pratt forja o conceito da mística da reciprocidade mostrando que a literatura de viajem naturalista assenta-se sobre as mesmas bases ideológicas e discursivas do capitalismo. Interessante notar que uma parcela do livro concentra-se no enfoque da literatura de viagem sobre a África, como a realizada por Mungo Park e relatada em seu livro Travels in the Interior of Africa, publicado em 1799 (por sinal, lido e citado por Southey quando escrevia a História do Brasil), bem como sobre muitas outras, que aparecem vinculadas aos interesses europeus comerciais e de conquista do interior da África. Entre estas destacam-se as que objetivavam delimitar o curso, direção, nascente e desaguadouro do Rio Niger, com vistas a estabelecer rota transcontinental mediterrânea, que atravessasse a África, supostamente desaguando no Nilo. Por meio da análise destes textos, constrói a autora uma taxionomia da literatura de viagem e das fases da conquista da África. Assim, o viajante naturalista que lança mão da ciência se associa ao aparato estatal e panóptico da vigilância, absorvendo as ambições territoriais dos impérios. Por seu turno, a viagem sentimental (associada às qualidades da domesticidade, interioridade e privacidade), alia-se aos ideais do comércio e da iniciativa privada. Conclui a autora que a mística da reciprocidade na literatura de viagem remonta à mística da reciprocidade das relações capitalistas, embora saiba-se que o capitalismo tem como base exatamente a negação deste princípo na própria base das relações sociais. Neste sentido, a viagem sentimental identifica-se com a fase de tentativa de conquista da África e seus autores com a missão civilizadora que é, em essência, o contrário ideológico e simbólico da reciprocidade

Numa operação ainda mais ousada, Mary Louise Pratt percebe nos conflitos entre raça, relações raciais e movimentos abolicionistas dos finais do XVIII e inícios do XIX nas Américas, os motivos de uma literatura de viagem sentimental, que em seus enredos e soluções narrativas estabelece as relações sentimentais entre homens brancos e mulheres nativas, com a óbvia submissão destas últimas, como codificadora de uma nova solução racial. Isto é, na realidade, as soluções narrativas desta literatura dão forma a uma proposta política reformista em ascensão nesta conjutura, que propõe uma saída humanitária ao problema da escravidão e da assimetria das raças, que seria o da abolição com a manutenção da subserviências das culturas nativas e afroamericanas ao homem branco. Seria o romantismo criação da zona de contato e expressão destas experiências inusitadas de encontros culturais assimétricos e, recambiado para a metrópole, seria apropriado como a mais pura expressão do espírito europeu?

Analisando a literatura de viagem sobre a América hispânica, a autora chama a atenção para a reivenção da América enquanto natureza, operação esta que se concretizou por meio da reatualização do deslumbramento dos primeiros cronistas, sobretudo de Colombo, como se três séculos de colonização não houvessem ocorrido. O grande inspirador desta vertente foi Alexander von Humboldt e, no caso do Brasil, este lugar foi ocupado por Martius. A autora aponta para a historicidade desta reinvenção, pois a América é reinventada como natureza primal e o espanto e deslumbramento inicial são reatualizados como ato histórico, embora a infraestrutura colonial a partir da qual os viajantes se valem para realizar a viagem esteja lá, bem presente, embora completamente eludida nos relatos de viagem. Assim, por exemplo, as solidões andinas, que constituem uma imagem extremamente valorizada por Humboldt, que as descreve em cenas carregadas de dramaticidade. No entanto, sabemos que é nesta mesma solidão que vive a maior parte da população indígena do Peru, tendo sido inclusive o centro de gravidade de grandes civilizações.

A autora descontrói o discurso naturalista, analisando a historicidade da produção do texto em todas as suas instâncias de produção, circulação e apropriação. Ao mesmo tempo, e este me parece é outro aspecto extremamente importante a ser ressaltado, é o fato de que o saber que os naturalistas produzem é na verdade fruto da apropriação do saber nativo. Mais ainda, as relações sociais estabelecidas entre o viajante e as populações coloniais, sejam elas compostas de índios, escravos, autoridades coloniais ou fazendeiros, apenas surgem no texto exercendo funções instrumentais, de informantes, guias ou hospedeiros do viajante. Desta maneira, como aponta Mary Pratt, as populações coloniais surgem no texto em um estado de disponibilidade, que é em si a essência das relacões coloniais. Assim, a natureza ahistórica, as populações instrumentalizadas e despersonalizadas e o processo histórico colonial elidido (e acrescente-se para o caso das antigas civilizações, do México e Peru, a arqueologização da cultura, que desconhece os elos entre aqueles índios decaídos que carregam as malas e os instrumentos e os produtores das maravilhas das antigas civilizações) forjam um saber que, vazado num estilo da ciência do XIX, conforma aquilo que convencionamos chamar de literatura de viagem ilustrada e naturalista. Refazendo estes circuito, Pratt pergunta-se se o romantismo foi, de fato, concebido na Europa e daí transplantado para a América ou na verdade foi ele um, entre tantos processos originais produzidos nas e pelas Américas e, transculturado para Europa, ali transformou-se na concretização mais sutil e sublime do espírito europeu.

Interessante sublinhar que a autora não pára aí, isto é, no desvelamento da historicidade e na crítica ideológica da escrita de viagem e do saber científico naturalista, mas refaz o circuito mostrando como a produção e publicação da literatura de viagem irá realimentar um sistema que tem como elo final a volta à América. Nela, esta mesma literatura será apropriada pelas elites crioulas do XIX, mas não de forma mecânica. Na verdade o que vai ocorrer é uma apropriação seletiva que vai justificar uma nova inserção da América no contexto imperial, no processo de descolonização e nos movimentos de independência. Movimentos novos e essencialmente americanos, como sublinharam Benedict Anderson e a própria autora (embora Pratt não pareça compartilhar da mesma concepção de comunidade imaginada de Anderson), estes serão apropriados pelas elites crioulas europeizantes em busca de sua auto-justificação e legitimidade. Todas estas idéias estão minuciosamente discutidas e analisadas no texto propondo novas formas de se pensar estas questões fundamentais para nossa história. Embora o Brasil não seja o tema deste livro, as interpretações e debates aqui discutidos têm para nós grande interesse.

Finalmente, chamo atenção para um erro que aparece na página 42 da tradução portuguesa, na qual Carl Linné é citado como “naturalista francês”, embora no livro Os Olhos do Império, em sua versão original, inglesa e na tradução em espanhol, ele apareça corretamente denominado como de origem sueca.

Maria Helena Pereira Toledo Machado – Universidade de São Paulo;

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Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea – SAMARA et al (RBH)

SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS, M. Izilda S. de. Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997. Resenha de: MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

Eni de Mesquita Samara, Rachel Sohiet e Maria Izilda S. de Matos são professoras universitárias, vinculadas aos Departamentos de História da USP, PUC-SP e UFF -RJ, respectivamente, cujas trajetórias junto à pesquisa em História têm sido marcadas pela preocupação com as investigações sobre as mulheres e, mais recentemente, também pelos estudos de gênero. Enquanto as análises de Samara e Sohiet denotam as suas preocupações mais marcadamente influenciadas pelos estudos e práticas feministas, Matos tem indicado em seus últimos trabalhos a necessidade de também se valorizar, em enfoques de gênero, as perspectivas de análise relacionadas às experiências vividas pelos homens e a construção das significações sociais relativas ao “ser masculino”. Autoras dos três textos que compõem o livro Gênero em Debate, Sohiet, Samara e Matos apresentam as suas abordagens teóricas particulares e também demarcam os temas e problemáticas aos quais têm dado primazia em seus trabalhos de pesquisadoras.

O que as reúne é o objetivo de discutir os referenciais teóricos de gênero que se fazem presentes na historiografia contemporânea e que têm nas mulheres o seu principal objeto de estudo. Para isto, discutem o contexto nos quais as pesquisas sobre a mulher e sobre gênero surgiram e foram originalmente pensadas, assim como a questão das influências recíprocas entre a produção historiográfica e o movimento feminista. Abordam a crise dos paradigmas e premissas conceituais da ciência moderna, bem como as diversas tendências e correntes teóricas presentes no campo da disciplina histórica contemporânea, situando, a partir daí, os seus pontos de vista quanto aos aspectos teóricos e metodológicos que priorizam na produção historiográfica.

As autoras ressaltam as análises que enfatizam a necessidade de crítica às noções abstratas e universais de homem e de mulher, apontando para a importância em se produzir interpretações que considerem a “diferença dentro da diferença”, isto é, a pluralidadade de masculinos e femininos que se constituem em cada situação histórica particular. Enquanto em seu texto “Outras Histórias: as Mulheres e Estudos dos Gêneros”, Matos ressalta a importância de se entrecruzar elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação para se acompanhar a diversidade na construção social dos gêneros, em “O Discurso e a Construção da Identidade de Gênero na América Latina”, Mesquita aponta para a necessidade de atenção para as variáveis raça e classe, visando a “realizar estudos comparativos que vão nuançar as diferenças mas, ao mesmo tempo, realçar e permitir o entendimento dos pontos em comum das “identidades femininas”1.

Embora Sohiet, em “Enfoques Feministas e a História: desafios e perspectivas” também indique a crítica historiográfica que opôs as categorias históricas universais às idéias de diferença e de múltiplas identidades para as mulheres, a sua reflexão propõe um debate mais voltado para os pressupostos da história social que têm como eixo a investigação das relações de poder travadas nas lutas do viver cotidiano, com ênfase na análise das práticas e representações que constituem a experiência social e cultural dos sujeitos. Deste modo, a autora destaca a importância do trabalho com a categoria gênero nos estudos referentes aos interesses e jogos de poder relativos às políticas de Estado e demais instituições sociais. Porém, a sua ênfase é para a necessidade de um trabalho voltado para a história do cotidiano e das mulheres, de forma a garantir maior visibilidade aos processos sociais em que estas viveram “papéis informais, situações inéditas e atípicas”. Insistindo, portanto, no estudo das lutas e poderes das mulheres, inscritos em uma “experiência feminina”, a autora apresenta as suas ressalvas a uma historiografia sobre as mulheres que seja construída dentro dos mesmos pressupostos metodológicos e mesmos marcos políticos e cronológicos de uma história escrita pelos setores dominantes e do ponto de vista masculino.

Analisando a produção bibliográfica, principalmente a brasileira e européia ocidental, as discussões de Matos levantam questões em torno dos novos desafios colocados para o trabalho do historiador, a partir da “politização do privado e da privatização do público”, considerando-se a “pluralidade de possíveis vivências e interpretações em relação às diferentes dimensões da experiência social, inclusive, a da trama das relações cotidianas”2. Indica, ainda, para o campo de controvérsias que se encontra aberto e que requer a continuidade dos debates sobre o trabalho com o conceito de gênero em torno de problemas tais como os de “definição, fontes, método e explicação”. A sua crítica, entretanto, ressalta o quanto a produção historiográfica tem privilegiado “o enfoque das experiências femininas em detrimento de seu universo de relações com o mundo masculino”, sendo poucos os estudos que tratam da masculinidade ou da homossexualidade, “deixando de revelar a pluralidade dos masculinos e femininos”3.

Mesquita propõe uma discussão em torno da utilização das categorias gênero e identidade nos estudos sobre as mulheres na América Latina. A sua preocupação é discutir como a historiografia tem abordado a “condição feminina e as relações entre os sexos na América Latina” e para isto apresenta aos seus leitores uma discussão da ampla e variada produção bibliográfica mais recentemente publicada nos Estados Unidos e em vários países da América Latina. Conclui que, “apesar das tradições culturais comuns, é impossível traçar um perfil único para a mulher da América Latina”, sendo que a complexidade da vida destas mulheres deve ser remetida a uma reflexão sobre a diferença “nas práticas cotidianas, no discurso, no processo de socialização e na construção da identidade social de gênero”4. A autora realiza, ainda, uma discussão sobre o significado do “marianismo” e do “machismo” na construção dessas identidades de gênero.

Os textos indicam tanto para os impasses e tensões que permeiam a discussão do conceito de gênero diante da impossibilidade em se trabalhar com categorias definitivas ou precisas no campo da ciência atual, como para a carência de um aprofundamento da discussão teórica e interpretativa que fundamenta estudos sobre gênero, sugerindo a necessidade de adensar a bagagem conceitual e intelectual que envolve tal categoria. Sem dúvida, no campo geral dos estudos históricos, é necessário que se realizem e concretizem trabalhos que permitam avançar para além de meras descrições ou apresentações de determinados temas ou matérias. Ao invés disto, é preciso que se venha a propor novas configurações interpretativas e conceituais, as quais possam servir de suporte e de ferramentas para a descoberta de outras realidades históricas.

Constituindo-se em um importante referencial para a ampliação das reflexões propostas atualmente pelos estudos de gênero, este livro pode corresponder a um duplo interesse do leitor, tanto pela discussão teórica e bibliográfica proposta, como pelo diálogo com autores que são agentes do próprio processo de produção de conhecimento que se propuseram analisar e discutir. Em uma linguagem didática e acessível àqueles que se pretendem iniciar os estudos neste campo historiográfico, e sem incidir na simplicação dos conceitos, tal obra visa a situá-los nos debates teóricos e colocá-los a par da diversificada bibliografia recentemente publicada sobre o assunto.

Notas

1 SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS M. Izilda S. de. Gênero em DebateTrajetórias e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997,
pp. 45-46.

2 Idem, p. 105.

3 Idem. p. 106.

4 Idem, p. 13.

Maria de Fátima Salum Moreira – UNESP/Pres. Prudente.

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Identidades – Alteridades / Revista Brasileira de História / 1999

Configurações identitárias abordadas em diversas perspectivas temáticas e metodológicas estão presentes nos artigos reunidos no dossiê Identidades / Alteridades, o qual, ao abrir este número da Revista Brasileira de História, traz aos leitores o primeiro resultado da atual gestão. Espaços e temporalidades diversos contribuem para tornar mais abrangente a configuração do conjunto de trabalhos que partilham reflexões voltadas para estudos de cultura, família e política.

A complexidade das relações entre cultura e identidade constitui a problemática dos artigos de Jaime Rodrigues, Paulo Koguruma e Maria Inês Machado Borges Pinto. O artigo de Jaime Rodrigues tem como eixo as relações sociais estabelecidas a bordo de navios negreiros destinados ao Brasil, nos séculos XVIII e XIX, evidenciando a constituição de identidades sociais a partir de elementos integrantes da chamada cultura marítima, aos quais agrega com destaque elementos constitutivos de hierarquias, disciplinas e rituais vigentes nas embarcações. Trata-se de uma abordagem de práticas e representações direcionadas para a garantia da sobrevivência no duro cotidiano do mar a que estavam sujeitos tanto a tripulação quanto os escravos submetidos a condições desumanas de vida, apoiada em diários de bordo, relatos de viajantes, processos de apreensão de embarcações negreiras e dicionários portugueses de marinharia.

Processos identitários urbanos constituem o objeto do artigo de Paulo Koguruma, construído a partir de narrativas de memorialistas, cronistas e viajantes sobre São Paulo nos anos finais do século XIX e início do XX. Diferentes ritmos sociais configuram especificidades da urbanização que resultou na construção de identidades plurais. As tensões entre formas complexas de sociabilidade foram abordadas de modo a colocar em evidência o cosmopolitismo no espaço urbano.

Maria Inês Machado Borges Pinto, por sua vez, retoma o tema no artigo que aborda a constituição de papéis femininos produzidos pela cultura de massas. Tendo como referencial o cinema, analisa representações da mulher referidas à modernidade em seus apelos de consumo e aparência, bem como à adoção de novos valores e atitudes.Seu oposto, a identidade feminina constituída a partir de referências ao lar, ao espaço da vida doméstica, adquire significado como objeto de contestação pelas películas veiculadoras de um novo discurso normativo.

O objetivo de pensar identidades no âmbito das relações de família aproxima os artigos de Maria Adenir Peraro e André Ricardo Pereira, possibilitando a compreensão de múltiplas redes de relações, representações, práticas a apropriações. Maria Adenir Peraro elege as relações de família para abordar o estatuto dos filhos ilegítimos em Cuiabá no século XIX; a organização de famílias alternativas ao modelo tradicional inspira reflexões acerca da universalidade da família patriarcal e seus desdobramentos em torno da questão da legitimidade, em suas especificidades referentes a Mato Grosso, numa análise que busca superar abordagens homogeneizadoras do social.

André Ricardo Pereira empreende, em estudo sobre a criança no Estado Novo, uma abordagem de processos identitários, ressaltando o político enquanto fator fundamental, tanto para a delimitação da infância, quanto para práticas e representações a ela relacionadas. Nesse intuito, analisa políticas de amparo à infância empreendidas pelo Departamento Nacional da Criança, ressaltando seu caráter assistencialista e seu fundamento manipulador de metáfora dualista excludente. O discurso médico que legitimou a ação governamental e as razões do pensamento autoritário são cotejados em análise minuciosa do programa de proteção materno-infantil.

A temática da história política presente nos artigos de Cássia Chrispiniano Adduci, Christian Laville e Fernando Kolleritz permite a compreensão de perspectivas múltiplas.Na temporalidade das últimas décadas do século XIX, Cássia Chrispiniano Adduci realizou um estudo historiográfico sobre dimensões do separatismo paulista, notadamente suas ligações com o republicanismo e as concepções escravistas, ressaltando assim dois eixos de fundamental importância na construção de suas peculiaridaes.

Christian Laville apresenta uma análise de questões referentes ao ensino de história. Seu referencial são as práticas escolares em diversas sociedades,em especial Estados Unidos e Canadá, tendo como base as relações entre a narrativa ensinada e projetos políticos centrados na constituição da nação como tarefa do Estado. Experiências diversas partilham o propósito de instrumentalização do ensino da história para a configuração de identidades.

O artigo de Fernando Kolleritz encerra o dossiê e coloca em discussão processos identitários forjados no interior de práticas políticas afeitas ao campo do socialismo, notadamente ao stalinismo. A análise de três autobiografias de intelectuais franceses situa face a face a identidade comunista e sua negativa, num confronto partilhado de atendimento a necessidades próprias do campo da subjetividade. Recoloca em cena, portanto, a cultura e as sociedades comunistas a partir da abordagem de um projeto de construção de um homem novo, em seus aspectos afetivo, moral e cognitivo, tratados em perspectiva da dialética indivíduo-sociedade na qual o cotidiano constitui aspecto decisivo.

A seção de artigos abre-se com o trabalho de Antonio V. P. Morás. Referido aos estudos de cultura, o artigo analisa a permanência de mitos celtas no folclore medieval, bem como a assimilação de seus temas e motivos pela cultura clerical a partir do século XII. As representações de mulheres como fadas e o universo feérico são por ele rastreados na literatura medieval, numa análise que aborda complexos míticos relacionados aos seus significados no mundo céltico, bem como as transformações neles operadas desde seu contato com a cultura clerical. Decodificações de significados são assim evidenciados em termos de permanência e atualização, relacionadas às condições sociais presentes numa dada produção cultural.

Política e educação às vésperas da República constituem o tema do artigo de Carlota Boto em sua análise da instrução pública como instrumento para a constituição da cidadania. A partir do pensamento pedagógico de Rui Barbosa, aborda o ideário liberal no âmbito da transição do Império à República, problematizando a emergência de uma preocupação democrática que não consegue mascarar o temor do voto popular, antes procura domesticá-lo mediante sustentação pedagógica. Ressalta o binômio democracia-educação presente nos debates políticos acerca do povo tutelado e da validade de escrutínios políticos.

A fotografia como documento para a escrita da história é valorizada por André Amaral de Toral, que realiza extensa cobertura de registros fotográficos da Guerra do Paraguai. A linguagem fotográfica e sua utilização específica no contexto da guerra são abordadas neste trabalho no sentido de evidenciar as cartes-de-visite que retratavam militares e cenas da frente de batalha. Além de analisar aspectos da composição fotográfica enquanto linguagem de comunicação, o autor ressalta o olhar dos fotógrafos sobre o conflito, humanizando o inimigo, registrando a crueldade e a carnificina. Valoriza assim o caráter de denúncia desses documentos e a sua eficácia em questionar os nacionalismos em luta.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.38, 1999. Acessar publicação original [DR]

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Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto – GOLDHAGEN (RBH)

GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37 sept. 1999.

Em 1996, o livro de um jovem professor de Harvard provocou um verdadeiro terremoto no meio universitário europeu e americano, além de uma verdadeira crise de consciência na Alemanha, onde o texto foi lido, relido e provocou imenso debate. Sua tese central: os alemães, como povo, foram ativos e voluntários carrascos dos judeus durante o Holocausto nazista.

Goldhagen refuta categoricamente a idéia de que os carrascos nazistas assassinaram os judeus por coerção, por uma disciplina tipicamente alemã que os levava a cumprir mesmo as ordens que consideravam indignas, por pressão psicológica, ou ainda, numa recusa clara das teses de Hannah Arendt1, por serem burocratas cumprindo suas obrigações, sem se importar com mais nada. Para ele, os alemães massacraram os judeus porque acreditavam realmente que assassinar o povo hebreu era algo necessário e correto, e a base para essa crença seria o anti-semitismo, desenvolvido em séculos de história alemã.

Trabalhando em torno dessa tese, o autor vai procurar demonstrar as origens do anti-semitismo em torno do cristianismo e a sua lenta evolução de um padrão “religioso” onde havia aversão e discriminação (mas onde não se pregava o extermínio e se abriam as portas, ao menos teóricas, da conversão) para um outro “nacional” e cada vez mais “racial”, onde o problema judeu só poderia ser realmente resolvido com a sua eliminação do corpo nacional e racial alemão.

Para ele, o modelo anti-semita alemão, com ênfase na periculosidade e na necessidade de eliminar os judeus, já estava plenamente desenvolvido na Alemanha do século XIX e início do XX. O regime nazista não teria criado, assim, o ódio aos judeus, mas se aproveitado de um sentimento antigo e disseminado pela sociedade alemã como um todo. Tanto seria assim que as leis anti-semitas e o próprio Holocausto teriam sido integralmente apoiados pela sociedade alemã, mesmo entre os grupos (católicos, conservadores etc.) que, por outros motivos, opunham-se ao menos parcialmente, ao Reich.

Hitler e o nazismo sempre teriam tido, sempre segundo Goldhagen, a intenção de efetivar o genocídio. Apenas as condições objetivas teriam retardado o processo até o momento adequado, quando então o massacre dos judeus se tornou a prioridade número um do regime.

O texto procura ressaltar à exaustão que os alemães foram cruéis até o último segundo. Que não eram burocratas executando ordens. Odiavam. Que não foram enganados. Tinham consciência e apreciavam o que faziam. Que não foram coagidos. Eram voluntários. E que, especialmente, os carrascos não eram simplesmente os SS, mas militares, policiais, alemães comuns, os “carrascos voluntários” de Hitler.

A abordagem de Goldhagen é muito interessante em vários aspectos. Em primeiro lugar, a idéia de interromper o estudo da máquina de morte alemã na voz passiva, como se ela fosse apenas uma estrutura mecânica, sem homens de carne e osso que a faziam funcionar e estudar as motivações desses homens é muito importante ao recuperar o seu papel (e a sua culpa) num processo em que eles não eram, sem dúvida, cem por cento passivos.

O livro também cresce ao ressaltar o papel das idéias e das mentalidades no fazer-se histórico. De fato, é uma realidade que o extermínio dos judeus foi realizado contra toda a lógica das necessidades militares e econômicas, e é possível até imaginar que o uso racional da mão de obra judia na economia e nas forças armadas poderia ter levado a Alemanha à vitória na guerra. Em nome da necessidade de eliminar o grande inimigo (cem por cento imaginário, sem dúvida) da raça alemã e de atender o leitmotiv de sua ideologia e uma das bases de sua estrutura mental (o “perigo judeu”), os nazistas podem, paradoxalmente, ter destruído as suas próprias chances de vitória. Nesse sentido, os carrascos não eram, certamente, totalmente passivos e a grande maioria devia considerar que fazia o correto e o justo, por mais repugnante que isso possa parecer.

Pensando nesse sentido, a idéia assustadora levantada pelo autor de que os nazistas foram, talvez, os maiores revolucionários modernos, não deve ser descartada. Eles não pensavam, realmente, em apenas resolver questões de classe e poder, mas em reverter a moral européia, arrasar a herança do moralismo cristão e do humanismo iluminista e criar um novo mundo baseado na biologia, na raça, na dominação e no ódio.

Apesar de tudo, porém, várias das teses de Goldhagen podem ser questionadas. Que havia uma base cultural de séculos que facilitou e muito o trabalho dos nazistas e que eles não criaram e impuseram o anti-semitismo, é algo evidente, mas é grandemente duvidoso que esse anti-semitismo tenha sido tão generalizado e genocida como ele propõe.

De fato, suas provas de que o anti-semitismo era absoluto e incontestável na Alemanha; de que o povo alemão estava total e completamente consciente do que ocorria, que aprovava tudo sem hesitação2 e de que toda pessoa que compartilhasse algum traço de anti-semitismo (por mais sutil que fosse) era um genocida pronto a atuar quando as condições fossem propícias, são muito falhas e não refletem a realidade histórica.

Não sejamos ingênuos. É verdade que a idéia, correta para muitas pessoas, de que os judeus deviam morrer, colaborou para o Holocausto e que, muito provavelmente, as resistências teriam sido muito maiores se, para usar o exemplo do autor, tivesse sido o povo dinamarquês o escolhido para vítima. Esse anti-semitismo, porém, era comum à grande parte da Europa e o autor não consegue provar que o alemão era tão particularmente genocida como ele deseja demonstrar.

Diferenças nacionais frente ao anti-semitismo certamente existiram e determinaram reações diferentes frente ao desejo nazista de exterminar o judaísmo europeu (ver o colaboracionismo báltico ou romeno e a resistência italiana e dinamarquesa), mas não há nada que indique realmente que apenas o alemão, apesar de fortíssimo e com suas peculiariedades3, tinha o ethos cultural que levaria inevitavelmente ao genocídio.

A particularidade da Alemanha nazista, na realidade, é que um grupo particularmente radical e disposto a implantar seus ideais (e dentro destes a eliminação do “perigo judeu” atingia uma importância única), assumiu o poder (fazendo-o não apenas pelo seu anti-semitismo, ao contrário do que propõe o autor) e não só permitiu, como estimulou ao extremo a criação de uma máquina de morte que foi dirigida com especial ênfase e crueldade aos judeus, mas que podia ser transferida (e o foi) contra outros povos e até mesmo contra os próprios alemães, se isso fosse necessário para a manutenção do poder e a criação do “mundo novo” nazista4. Goldhagen apenas consegue isolar o elemento que explica o “tratamento especial” dado aos judeus5 e não aquele capaz de nos fazer compreender a “máquina da morte” nazista como um todo.

Nesse sentido, parece-nos que, apesar das objeções de Goldhagen, as informações e reflexões de Hannah Arendt e Cristopher Browning6 sobre como muitos dos mentores e agentes do extermínio não eram necessariamente anti-semitas extremados, mas principalmente fiéis funcionários da Alemanha e do Reich que cumpririam quaisquer funções – com maior ou menor entusiasmo – para os quais fossem designados, continuam válidas. Sendo assim, o extermínio dos dinamarqueses, por exemplo, teria suscitado muito menos entusiasmo e muito mais resistências do que o dos judeus, sem dúvida, mas, se fosse esse o interesse dos dirigentes do Reich, teria sido certamente realizado.

Também é bastante questionável a sua convicção (compreensível dentro do seu esforço para mostrar o massacre dos judeus como efeito natural do anti-semitismo alemão) de que o Holocausto figurava permanentemente nas mentes de todos os alemães desde sempre. Que muitos alemães, desde o século XIX, e, especialmente, muitos nazistas (incluindo Hitler), pensavam com freqüência na idéia de exterminar os judeus e esperaram o momento propício para isso, é perfeitamente aceitável. É difícil acreditar, porém, que essa idéia tenha estado sempre tão presente na mente de todos os alemães e mesmo na de todos os nazistas e que soluções outras não tenham sido cogitadas. Mais provável é que a evolução das condições históricas tenha feito a cúpula nazista decidir pela “solução final” e não que eles tenham simplesmente esperado essas condições para implementar um plano decidido desde sempre7.

A incapacidade (ou falta de vontade) do autor em fazer distinção entre, por exemplo, os iluministas alemães do XIX interessados em assimilar pacificamente os judeus e ferozes anti-semitas realmente genocidas como, por exemplo, Streicher, também é frustrante. Ao reunir, de fato, numa categoria única (determinada pela cultura alemã) todas as pessoas que tenham tido algum tipo de pensamento ou ação anti-semita, isolá-las de seus contextos e ignorar o anti-semitismo fora das fronteiras da Alemanha, ele acaba negligenciando o próprio papel e a própria culpa das elites nazistas e dos genocidas verdadeiros, pois, se levarmos o seu raciocínio ao extremo, o Holocausto não teria sido mais do que a expressão da essência da alma alemã. Voltamos à “voz passiva” de onde tínhamos tentado sair.

O livro também tem inconsistências metodológicas evidentes e é irritantemente repetitivo, como que desejando convencer o leitor pelo cansaço da validade de suas teses. Entre essas inconsistências, as mais gritantes são a generalização, as simplificações, a colocação de fatos fora do contexto e a ignorância de dados que poderiam contradizer a tese principal.

De fato, a partir de alguns exemplos de anti-semitismo dos carrascos (certamente verdadeiros), ele generaliza para todo o povo alemão, sem dar virtualmente nenhum indício consistente de que essa generalização era possível8 e recusando fontes que fornecem indícios em contrário9. No decorrer do próprio livro, além disso, são contínuos os momentos em que, para demonstrar o anti-semitismo generalizado e absoluto dos alemães, ele cita exemplos que acabam por contradizê-lo10. São problemas que afetam, sem dúvida, a credibilidade do trabalho11.

O livro, além disso, procura mostrar-se como totalmente inovador ao trabalhar as motivações dos carrascos e a resposta definitiva ao problema do Holocausto, o que na verdade não é12. Em grande parte, realmente, ele não passa de uma “reescritura” de velhos textos, o que nos impede de aceitar que ele seja o “supra-sumo” da historiografia que o autor considera. Ele é útil ao isolar, ainda que de forma problemática, um elemento (o anti-semitismo) que fez dos judeus a grande vítima da “máquina da morte” nazista, mas é incapaz de trabalhar com o conjunto que fez dessa máquina um perigo para todo o mundo, incluindo judeus, não judeus e até alemães.

Notas

1 ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalém. Um retrato sobre a banalidade do mal. Rio de Janeiro, Diagrama e Texto, 1983.

2 Que não havia total ignorância, é evidente até pela própria magnitude do evento. Ver LAQUEUR, Walter. O Terrível Segredo – A verdade sobre a manipulação de informações na “solução final” de Hitler. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

3 Ver TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. O Anti-semitismo na era Vargas (1930-1945). São Paulo, Brasiliense, 1988, parte 1; POLIAKOV, León. A Europa Suicida. São Paulo, Perspectiva, 1985 e SORLIN, Pierre. O anti-semitismo alemão. São Paulo, Perspectiva, 1974.

4 O caso do extermínio dos doentes mentais alemães é, nesse sentido, exemplar. Goldhagen tem razão, porém, em recordar como o massacre dos alemães levantou muito mais protestos na Alemanha do que o dos judeus. Ver CYTRYCNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie – A história do genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. São Paulo, EDUSP/Nova Stella, 1990, pp. 47-56 e BURLEIGH, Michael. Euthanasia in Germany, 1900-1945. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.

5 Ele demonstra com razoável eficiência (ainda que ignorando a brutal violência e crueldade nazista contra os eslavos e ciganos, por exemplo, e subestimando o fato, sobre o qual ele é plenamente consciente, de que a crueldade nos campos não era, muitas vezes, derivada apenas de motivações cognitivas, mas também de uma estratégia cuidadosamente pensada para instituir a dominação e a submissão) que realmente os judeus foram o povo escolhido não para o trabalho escravo e a morte e a violência ocasionais, mas para o extermínio e a crueldade totais. Ainda assim, e ainda que os séculos de anti-semitismo tenham influência clara nessa situação, esquecer o papel da “pirâmide racial nazista” na determinação dos níveis “aceitáveis” de violência e extermínio em relação a cada grupo é problemático.

6 ARENDT, Hannah. op. cit. e BROWNING, Cristopher R. Ordinary Men – Reserve Police Batallion 101 and the final solution in Poland. New York, Harper Collins, 1992.

7 Ver CYTRYNOWICZ, Roney. op. cit. e BURRIN, Philip. Hitler e os judeus – Gênese de um genocídio. Porto Alegre, L & PM, 1990.

8 Ainda assim, sua demonstração de que os agentes do Holocausto não eram apenas os membros da SS e que incluíram muitos alemães comuns é convincente e merece ser destacada como lembrança do nível de envolvimento do povo alemão com o nazismo. Só nesse sentido é que a “culpa geral do povo alemão” poderia, no nosso entender, ser aceita.

9 Ver o diário do judeu alemão Viktor Klemperer, onde há vários exemplos de alemães solidários com os judeus (subutilizado no livro) ou, para ficar em exemplos mais conhecidos da mídia, os casos de Edward Schultze e Oskar Schindler. Ver KLEMPERER, Viktor. I will bear witness – A Diary of the Nazi years, 1933-45. Random House, 1998; LAQUEUR, Walter e BREITMAN, Richard. O herói solitário. São Paulo, Best Seller, 1987 e o filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg.

10 O mais gritante é o das páginas 371-372, onde ele mostra prisioneiras judias em plena “marcha da morte” sendo impedidas de receber alimentos ofertados pela população das pequenas aldeias alemãs por onde elas passavam. Um bom exemplo de como os guardas, muitos deles “alemães comuns”, não apreciavam (para dizer o mínimo) os judeus e desejavam puní-los, mas dificilmente um bom indício de que o anti-semitismo era tão absoluto como o que ele propõe.

11 Para uma análise detalhada dos problemas metodológicos do livro de Goldhagen, ver FINKELSTEIN, Norman e BIRN, Ruth. A Nation on trial. New York, Metropolitan, 1998.

12 Cristopher Browning e Raul Hilberg, por exemplo, já haviam trabalhado a questão das motivações dos carrascos, mas se concentrado nas circunstâncias que haviam feito bons pais de família alemães virarem genocidas, incluindo preocupações anti-semitas, mas não propondo um anti-semitismo absoluto como motivação única. Ver BROWNING, Cristopher. op. cit. e HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews. New York, New Viewsport, 1973.

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá.

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Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888) – WISSENBACH (RBH)

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, 1998. Resenha de: MOURA, Denise. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37, sept. 1999.

Graças à iniciativa do Programa de Pós-Graduação em História Social, do Depto. de História da USP e a Ed. HUCITEC, Sonhos africanos, vivências ladinas, defendido como dissertação de mestrado em 1989, é mais um volume da série Teses que vem facilitando o acesso dos pesquisadores a estudos de relevo, que têm contribuído para entendermos um pouco mais sobre nosso passado e nossa própria atualidade.

A autora, Maria Cristina Cortez Wissenbach, vem se destacando com publicações em diversas revistas especializadas e mais recentemente com um dos capítulos do 3o volume da História da Vida Privada. Em 1997, apresentou sua tese de doutorado sobre práticas mágico-religiosas nas primeiras décadas do século XX paulista.

Em Sonhos africanos…, sua pena de historiadora coloca-nos diante das experiências de vida de pessoas comuns. Homens, mulheres, forros ou escravos, remediados ou muito pobres. Uma gente engenhosa o suficiente para se apropriar das asperezas da vida e das relações cotidianas e criar estratégias de sobrevivência. O quê nos liga a estes homens e mulheres das terras paulistas de 1850-1880?

Tributária de uma vertente teórica que nos anos 80 trouxe novos ares aos estudos de escravidão – E. P. Thompson, E. Genovese, Herbert G. Gutman -, a autora empreendeu um vigoroso trabalho de pesquisa em documentos do Tribunal de Justiça, trazendo à luz práticas, percepções e valores de uma gente de ontem disfarçada no discurso das camadas dominantes. É nos processos-crime – e na documetanção processual em geral – que ouvimos o sussuro de suas existências. Mesmo revelando um universo sutilmente recortado pelos interrogatórios, é nos processos jurídicos que estão estas vozes: sofridas, tímidas, medrosas, ladinas, chorosas.

São vozes que a renovação historiográfica dos anos 80 tornou mais perceptíveis e que têm desconcertado formas mais tradicionais de se ver nosso passado escravista. A começar pela maneira desfigurada do escravismo em São Paulo dos anos 1850-1880, pois núcleo urbano tímido que era, favoreceu uma situação na qual pessoas de diferentes condições sociais serviam-se das mãos e pés escravos, sob a forma de aluguel ou ganho, numa vivência tão estreita que tendia a confundir senhores de posses irrisórias com seus cativos.

A escravidão urbana tendeu a atenuar os rigores do regime, ampliando a margem de negociação dos escravos com seus senhores, dando-lhes maior liberdade para circular pelas ruas e improvisar variados expedientes que aumentavam seus ganhos, além de favorecerem o exercício de uma sociabilidade nas irmandades e em pontos específicos da cidade.

De página em página, o leitor vai assistindo a cenas intrigantes da vida de pessoas comuns: desentendimentos, confusões com guardas locais insistentes em alinhar condutas em padrões definidos, um ir e vir incessante, solitário ou em ajuntamentos, sempre procurando tornar a vida melhor de ser vivida.

Os níveis de criminalidade cativa – e a própria documentação que a autora utilizou – apontam para a violência destes tempos. Esta criminalidade, insana em muitas situações, coexistia no entanto com histórias bastantes corriqueiras, como a dos escravos de Joaquim Camargo do bairro de Santana, que podiam usar o carro do senhor para venderem lenha, produto de seus próprios negócios1. Quantos não se ocuparam de outros serviços nos intervalos das tarefas incumbidas por seus senhores. Afinal, eram possibilidades extras de ganhos. Produção agrícola ou criações independentes também fizeram parte desta política de consentimentos e acordos nos relacionamentos de escravos e senhores.

No capítulo “O sentido social do crime e da criminalidade escrava” vemos o quanto transgressões à lei e o recurso à violência pelos escravos foi parte de um movimento mais amplo, dotado de uma coerência criada por eles próprios e que aos poucos foi ruindo o regime de escravidão.

Foi recolhendo os fragmentos da fala de negros cativos ou forros e homens livres, pobres ou remediados, que a autora foi costurando o tecido social da São Paulo destes anos. Eram lavadeiras, quitandeiras, domésticas e trabalhadores de ofícios, andejos na sobrevivência e que diariamente incomodavam as autoridades locais e as famílias mais abastadas. Parecia intrigante aos olhos de senhoras brancas e senhores sisudos o vai-e-vem nervoso de uma gente de cor ora com trajos que quase a confundia com seus donos, ora com adereços que lembravam as tradições africanas.

Intolerável era o conversar ruidoso, em torno aos chafarizes, em meio às rodas de capoeira e partidas de jogos, misturando-os a homens livres pobres, também trabalhadores de diversos ofícios e expedientes, numa convivência tensa e necessária para a sobrevivência.

O capítulo “O escravo e o mundo caipira na comarca de São Paulo” é primoroso ao revelar o ritmo da escravidão num meio rural pobre, afrouxado pela pobreza dos senhores e pelas interrupções do trabalho inerentes à faina na roça.

É o potencial criativo que as pessoas carregam consigo que vamos acompanhando por meio da narrativa de Sonhos africanos…. Artistas da sobrevivência, escravos criavam a partir das condições que o “ser escravo” em São Paulo na segunda metade do XIX permitiam, ou seja, o regime abria esta possibilidade e os escravos souberam se apropriar disto com astúcia e sabedoria, donos que eram de uma erudição das ruas, aprendida nos imprevistos que enfrentavam, nas traições, nas brigas em torno do chafariz, nos sofrimentos de amor e nos laços de vizinhos e parentes que tão bem sabiam tecer.

O leitor se vê diante de uma sociabilidade tensa e solidária nas praças, largos, pontes, becos, festas e reuniões. Espaços onde solucionavam discórdias, lavavam a honra e tramavam ganhos e negócios. Sob o foco de estudo pioneiro e clássico da história social e das mulheres2, a autora vai desvelando flagrantes da pobreza feminina paulista, na vida de forras audaciosas o suficiente para afrontarem imposições de maridos e autoridades, firmando sua condição de mulheres que respondiam por boa parte – senão por todo – o sustento da casa.

O conjunto iconográfico do volume é tocante: uma galeria de fisionomias comuns e antigos locais de trânsito, trabalho e encontros que desafiaram o tempo graças à arte fotográfica do conhecido fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1835-1905).

O estudo de Wissenbach é também um desafio ao tempo, fazendo com que os sonhos e as vivências de homens e mulheres que viveram tão antes de nós não caiam na grande armadilha do esquecimento. Mas como estes sonhos de uma vida melhor de ser vivida e esta arte de improvisar e criar a sobrevivência parecem tanto com os dos dias de hoje.

Notas

1 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, p. 135, 1998.

2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1995.

Denise Moura – Doutoranda do Dep. de História da Universidade de São Paulo

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História Social da Criança Abandonada – MARCÍLIO (RBH)

MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. Resenha de: VENÂNCIO, Renato Pinto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37, sept. 1999.

Nos meios acadêmicos brasileiros, a Demografia Histórica é freqüentemente identificada aos excessos dos métodos quantitativos e à ausência de problemáticas definidas. Ao longo de sua prolífica vida acadêmica como professora, pesquisadora e, principalmente, como autora dos primeiros e principais trabalhos de Demografia Histórica do Brasil, Maria Luiza Marcílio só fez desmentir tais estereótipos. Nos anos 60, ao ingressar no doutorado na França, foi orientanda de Fernand Braudel e, posteriormente, de Louis Henry, o que lhe possibilitou transitar com facilidade entre a História Social e a Demografia Histórica. Da mesma forma que em trabalhos anteriores, como A Cidade de São Paulo ou Os caiçaras, seu livro História Social da Criança Abandonada é um exemplo de como a sensibilidade e até mesmo o envolvimento afetivo com um tema podem andar irmanados com seriedade e rigor metodológico. Marcílio sensibiliza-se com o destino trágico de milhares de crianças que desde a Antigüidade foram abandonadas por seus familiares; emociona-se, contudo, sem resvalar para uma história militante, tão propícia a anacronismos e perspectivas vitimizadoras.

O livro História Social da Criança Abandonada dividi-se em três partes, obedecendo assim a uma arquitetura cara à autora: o desenvolvimento da narrativa histórica do geral para o particular. Segundo Maria Luiza Marcílio, é possível detectar a permanência, durante vários séculos, de uma preocupação com a proteção da criança “sem-família”. No que diz respeito a tal proteção, é importante sublinhar que, na Antigüidade, a confluência do estoicismo com o cristianismo diferenciou Roma das demais sociedades. Durante a Alta Idade Média, a preocupação com o destino dos enjeitados foi institucionalizada: os mosteiros, procurando erradicar o infanticídio, aceitaram os oblatas, ou seja, enjeitados que deviam seguir a carreira sacerdotal. No século XII, a emergência da crença no Purgatório e de sua versão mirim, o Limbo, expandiu para o restante da comunidade cristão dever de proteger os meninos e as meninas desvalidos. Não por acaso, esse período também foi caracterizado pelo ressurgimento da vida urbana no Ocidente, fenômeno que por diversas razões foi acompanhado pelo aumento do nível de pobreza na sociedade. A preocupação em garantir o sacramento do batismo para todos os recém-nascidos – protegendo-os dessa forma do Limbo – somada ao temor frente ao risco do reaparecimento do infanticídio nas cidades, levaram à fundação de uma forma de assistência infantil que conheceu, entre os séculos XIII e XIX, um enorme sucesso: a Roda dos Expostos.

Tais Rodas, explica a autora, eram

de forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira – que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido”.

Uma vez recolhida, a criança era entregue a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca que cuidava do menino ou menina até completarem sete anos de idade, quando então deveriam ser encaminhados para atividades produtivas.

No século XVIII, aponta Maria Luíza Marcílio, começou a ocorrer uma outra mutação que atingiu seu apogeu no século XIX e XX: a emergência da infância abandonada como uma questão social, alvo de políticas do Estado; mutação que em grande parte explica o progressivo declínio e fechamento das Rodas.

Na segunda parte do livro, a autora apresenta, para o caso específico do Brasil, os processos de formação e de adaptação do sistema de proteção europeu a uma sociedade colonial. Da mesma forma que em vários aspectos da realidade brasileira, a assistência nos trópicos caracterizou-se pela ausência de recursos financeiros regulares e pela longevidade de instituições consideradas arcaicas no mundo europeu. A precariedade da assistência colonial – apenas quatro Rodas foram fundadas até fins do século XVIII – levou os Senados das Câmaras a assumirem a dispendiosa tarefa de manter os enjeitados. Este apoio só declinou em meados do século XIX, época em que o sistema de Rodas conheceu notável expansão. Mesmo um século depois das Rodas portuguesas terem sido desativadas, os receptáculos brasileiros continuavam em pleno vapor, a maioria deles só encerrando suas atividades nos anos 1930-1950 (diga-se, de passagem, não devido ao desaparecimento do abandono de crianças recém-nascidas, mas sim em função das deliberações do Código de Menores de 1927, que determinou o fechamento das Rodas).

A terceira parte do livro apresenta os resultados dos últimos vinte anos de pesquisas de Demografia Histórica a respeito do abandono infantil. Em razão do enjeitamento de recém-nascidos ter sido registrado sistematicamente nas atas paroquiais de batismo, assim como nos livros das Câmaras e dos Hospitais, foi possível conhecer o perfil da criança abandonada e – nos casos daquelas acompanhadas de bilhetes – os motivos que levaram os pais a recorrerem à assistência hospitalar e camarária. O capítulo dedicado às “causas do abandono” é fascinante. Marcílio não se deixa levar, como acontece com muitos historiadores atuais, pelos estereótipos do passado, ou seja, pela caracterização dos pais e mães que enjeitavam os filhos como irresponsáveis e promíscuos; ao contrário disso, a autora sublinha o quanto a miséria era um fator importante na desagregação das unidades familiares.

Da mesma forma que nas seções anteriores, a última parte estende a análise até o presente, superando assim as prisões da “curta duração”, traço bastante comum aos estudos do tema em questão, elaborados por sociólogos, antropólogos e assistentes sociais. Ao integrar sua análise na “longa duração”, Marcílio, a meu ver, contribui até para que seja repensada a atual política assistencial frente à criança e ao adolescente carentes.

Dito em termos mais explícitos: após mil e quinhentos anos de assistência infantil, é possível observar duas realidades distintas; a primeira diz respeito aos países europeus, nos quais o abandono de crianças foi praticamente erradicado; a segunda à realidade da América Latina, onde o abandono conheceu um processo de expansão do período colonial à atualidade. Pelo que se pode perceber por meio da leitura do História Social da Criança Abandonada, erram os que pensam que a primeira situação é um reflexo automático do processo de desenvolvimento econômico. Na realidade, a melhoria da condição infantil foi resultado de muitas lutas populares e de uma compreensão das formas específicas da organização familiar das camadas populares.

Em uma passagem magistral (pp. 80-81), Marcílio aprofunda essa questão mostrando que o número de crianças abandonadas na Europa do século XIX atingiu proporções ainda mais assustadoras do que as brasileiras. Frente a tal situação, vários países europeus reavaliaram o sistema assistencial herdado do Antigo Regime e progressivamente, a começar pela França, adotaram a política de “subsídios às mães pobres (…) para impedir que estas abandonassem seus filhos”.

Eis um importante ensinamento que serve como tema de reflexão a propósito das atitudes das elites brasileiras frente ao abandono de crianças: o que elas encaram como uma novidade esquerdista no Brasil de nossos dias, era uma realidade institucional na Europa dos anos 1830!

Por fim, cabe sublinhar que a História Social da Criança Abandonada apresenta uma magnífica bibliografia, remando contra a maré do provincianismo monoglota de alguns estudos de Demografia Histórica elaborados mais recentemente. Cabe apenas lamentar que a editora Hucitec não tenha tido o cuidado de incluir na presente edição índices onomásticos e temáticos, que muito facilitariam a consulta dessa obra de referência obrigatória.

Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto.

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Infância e Adolescência / Revista Brasileira de História / 1999

Infância e Adolescência é o tema do dossiê deste número da Revista Brasileira de História. A relevância e oportunidade da discussão não requer malabarismos teóricos, ela é evidente num país onde quase oito milhões de crianças perambulam pelas ruas. Miséria, abusos, violência, drogas, prostituição, roubo, crime, medo da morte são os ingredientes que compõem o cotidiano dessas crianças, que possuem pouca ou nenhuma perspectiva de futuro. Cenas de chacinas, perseguição policial, espancamentos ou que evidenciam abandono, descaso, delinqüência infanto-juvenil e exploração sexual transformaram-se em imagens que caracterizam o Brasil e, âmbito internacional.

Nesse sentido o artigo de Bengt Sandin, que analisa o lugar da criança na sociedade sueca, poderia parecer, num primeiro momento, muito distante da realidade local. Contudo, ao evidenciar os novos significados que a noção de infância adquiriu no decorrer do século XX, o autor fornece um balanço amplo e de longo alcance, que extrapola fronteiras nacionais e aponta para a emergência e consolidação de um modelo de infância planejada e racional, que acabou por substituir os ideais românticos herdados do século XIX. O leitor indagará a respeito dos limites e paradoxos desses modelos na sociedade brasileira.

O abandono está no centro das preocupações de Judite Trindade, que insere o problema em ampla perspectiva espaço-temporal. O diálogo com a experiência européia, sobretudo francesa, colabora para precisar os pontos em comum e as especificidades brasileiras ao longo de mais de três séculos. As diferentes condutas em face da infância abandonada permitem discernir mudanças no discurso e nas práticas médicas, legislativas, educacionais e assistenciais em relação às crianças que, no limiar do século XX, passam a ser encaradas como seres que necessitam ser protegidos e salvos de perigos que podem comprometer seu futuro.

A escola, que Judite já indicara como um componente essencial das novas preocupações que cercavam a infância, é o tema do artigo de Alessandra Schueler. Perscrutando projetos, debates, reformas e políticas públicas da segunda metade do século XIX, a autora evidencia que o princípio da obrigatoriedade do ensino primário às crianças e jovens foi constantemente reiterado. Esclarece as motivações e expectativas que envolviam as propostas educacionais então em pauta, articulando-as com as preocupações do tempo: o fim do trabalho escravo e a necessidade de formar cidadãos morigerados, úteis à nação e portadores de um saber técnico; a tentativa de controlar a criminalidade, a delinqüência e a desordem social por meio da retirada das crianças e adolescentes das ruas e becos das cidades; o combate à ignorância e ao analfabetismo, que se fazia acompanhar pela difusão de determinados comportamentos e valores morais.

Nas discussões em torno da infância, a rua e os seus perigos constitui-se um tema recorrente. A imagem de crianças ociosas, vagando sem a supervisão de adultos, é freqüentemente mobilizada para legitimar intervenções e medidas do poder público. Valendo-se da literatura, de relatórios policiais, dos discursos de homens públicos e empresários, da grande imprensa, dos jornais operários e de imigrantes, Esmeralda Blanco descortina os múltiplos significados que a rua assumia na São Paulo do início do século XX: espaço de lazer operário e de sociabilidade para os habitantes das classes pobres; mas também o lugar do ócio, crimes, delinqüência, vícios, prostituição, enfim dos comportamentos desviantes e socialmente inaceitáveis.

As crianças, adultos em formação, como nos ensina a autora, deveriam não apenas ser retirados das ruas mas também educadas, corrigidas e disciplinadas. Porém, o mundo do trabalho, no qual estavam depositadas as esperanças regeneradoras, pouco se coadunava com a construção idílica e sacralizada de infância, como atesta a ferrenha exploração a que estavam submetidos os meninos e meninas que vivenciavam o cotidiano das fábricas.

A preocupação com o futuro da nação sempre permeou o discurso em torno da questão da infância. A comemoração do Centenário da Independência em 1922 colocou na ordem do dia o debate em torno da identidade nacional, da modernização e do lugar do país no cenário internacional. James Wadsworth evidencia como a infância ocupou lugar dos mais importantes nesta discussão. Apoiado em ampla pesquisa, o autor analisa os modelos de assistência à infância idealizados pelo médico Arthur Moncorvo Filho, suas inúmeras atividades e propostas em relação aos cuidados que deveriam ser dispensados às mães e às crianças. Discute, ainda, as motivações sociais, econômicas e ideológicas subjacentes ao discurso das elites brasileiras e às concepções que resultaram, em 1927, no Código de Menores.

Antes deste Código, crianças e adolescentes em situação de conflito com a Lei estiveram sujeitas aos Códigos Criminal do Império, Penal e Civil. Escandindo normas e prescrições legais, Ailton José Morelli discute a questão da imputabilidade penal, evidenciando a distância entre as determinações e as práticas efetivas, o que permite colocar em outros termos a decantada impunidade dos “menores”, fossem eles infratores ou abandonados.

Fecha o dossiê o artigo de Marina Ertzogue, que adentra o cotidiano dos estabelecimentos disciplinares do Serviço Social de Menores do Rio Grande do Sul entre 1945-1964 para flagrar punições e castigos preconizados em regulamentos, manuais, leis e textos pedagógicos. Descortina-se um amplo panorama das estratégias de “recuperação” das crianças e jovens sob custódia do poder público.

Mary Del Priore abre a seção de artigos. O leitor é convidado a percorrer o imaginário em torno do corpo feminino e as formas de sua descrição e apreensão tanto pela filosofia cristã quanto pelo saber médico dos séculos XVII e XVIII. Especulações em torno da fisiologia feminina consubstanciaram-se numa construção que estigmatizava a mulher, considerada um ser social e moralmente inferior.

A exclusão e o estigma também estão presentes no texto de Sandra Pesavento. A personagem, porém, é outra. Por meio de memórias, romances, crônicas e jornais dos anos 1880 a 1920, a autora distingue os contornos de uma outra Porto Alegre: a da cidade condenada e amaldiçoada que se deseja normatizar. O registro lingüístico permite-lhe rastrear a carga simbólica e os significados pejorativos e discriminatórios atribuídos a espaços, estabelecimentos e moradias. Delineia-se, então, uma cartografia de práticas, sociabilidades e comportamentos marginais ou desviantes em relação a um ideal que se desejava implantar.

Interpretações dissonantes a respeito do Brasil são analisadas nos artigos de Eliana Dutra e José Carlos Reis. No primeiro, a autora foca sua atenção em Plínio Salgado com o intuito de esclarecer o quadro referencial e as matrizes subjacentes às suas concepções de nação, povo, identidade e brasilidade. Dutra estabelece, de forma nítida, o débito de Plínio, assim como de Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde, Tasso Silvieira e Vicente Licínio Cardoso, para com o romantismo de viés conservador. Reis, a seu turno, elege A Revolução Brasileira (1966), de Caio Prado Júnior, como tema. As polêmicas, oposições e reações que a interpretação suscitou são reconstituídas pelo autor, que insere a obra no contexto do impacto da derrota sofrida pelas esquerdas na década de 1960.

Os efeitos do regime que se instaura em 1964 são apontados por Antonio de Almeida, que se volta para o ABC paulista e pontua as dificuldades e adversidades enfrentadas pela liderança sindical a partir do golpe militar. A emergência, em meados da década de 1970, de movimentos de contestação à ordem deu-se, como evidencia o autor, a partir da ampla participação das bases, o que acabou por redimensionar a prática política anterior, calcada na cúpula dirigente. A experiência do novo sindicalismo desembocou na fundação do PT e da CUT.

O Conselho Editorial manifesta seus agradecimentos à Professora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, que colaborou decisivamente para a concretização do dossiê Infância e Adolescência; ao CNPq; à ANPUH Nacional e aos núcleos de Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número.

Deixamos aqui registrada a profunda consternação pela perda da Profª Drª Ilana Blaj, reconhecida historiadora, docente do Departamento de História da USP, membro do Conselho Editorial da RBH e nossa estimada colega. A ela este número é dedicado.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, set., 1999. Acessar publicação original [DR]

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Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario -HOMET (RBH)

HOMET, Raquel. Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario. Rosario, Pontificia Universidad Católica Argentina/Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales del Rosario, 1997, 257 p. Resenha de: SOUZA, Néri de almeida. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.38, 1999.

Desde o pioneirismo de Philippe Ariès, a morte não deixou de interessar aos historiadores. Medievalistas e modernistas exploraram e ainda exploram com interesse as possibilidades deste objeto. À visão panorâmica de Ariès se seguiram estudos regionalizados, com recortes temporais mais estreitos, baseados em uma documentação mais homogênea, e sobretudo, um grande número de objetos correlatos ou que se beneficiaram do tema ganharam luz como a história da espiritualidade, da liturgia, da família, da sensibilidade e mesmo das relações de poder e a história social.

O olhar de Ariès sobre a infância, no entanto, não despertou interesse de igual intensidade. Embora os trabalhos inspirados em sua pesquisa nunca tenham deixado de aparecer, são claramente menos numerosos e influentes. O estudo de uma faixa etária específica de um conjunto social apresenta evidentemente inconvenientes metodológicos que devem estar relacionados a tal carência. É o caso da dificuldade de se abordar com objetividade grupos isolados em um conjunto social. Impedimento que, de resto, afeta a já antiga e melhor desenvolvida história das mulheres. Para os períodos mais antigos não seria sequer necessário lembrar a parcialidade documental como inviabilizadora de uma história que repercuta nossas necessidades de descoberta e comprovação.

A historiografia destes segmentos sociais vê-se, assim, conformada a limites cuja ultrapassagem apenas os mais esperançosos podem divisar. Mesmo o recurso à arqueologia, que, embora ainda tímida, ganha cada vez mais importância entre os medievalistas, não promete um desbravamento muito amplo. Mas para além das dificuldades metodológicas, impedimentos mais profundos talvez guiem nosso desinteresse por recortes etários que fogem às vozes dominantes em nossa documentação. Neste momento histórico de uma valentia ímpar na proposta de objetos historiográficos, talvez vivamos uma ambigüidade na historiografia semelhante àquela que temos em nosso cotidiano político.

A criança, a mulher e o idoso fazem parte de um discurso constante de defesa e proteção que não repercute na maior parte de nossos gestos e preocupações quer em nossa vida institucional quer em nosso cotidiano. Para a Idade Média a valorização destes três objetos deveria dar-se ao menos devido à sua ligação com o tema da morte cuja relevância social, política e religiosa tem sido atestada em inúmeros trabalhos. Estas três personagens de relações extremas com a morte por si só seriam emblemáticas de uma experiência com os limites da vida do ponto de vista da cultura medieval e poderiam orientar uma releitura de documentos escritos com os olhos em outros resultados históricos e ambientes sociais.

Estes fatos fazem com que a opção temática da professora Raquel Homet já torne seu trabalho louvável, pois preenche de forma oportuna uma lacuna e um silêncio que, infelizmente, afetam não apenas a história medieval mas também a contemporânea. Tais circunstâncias fazem de seu trabalho uma pesquisa historiográfica de grande importância, mas também um atualíssimo alerta social. No entanto, neste caso, a ousadia exige seu preço, e o historiador tem de se debater com um campo aberto carente de apoio para firmar suposições. Por isso, a professora Raquel Homet acerta na opção por uma obra ampla cronologicamente e tematicamente abrangente. Seu texto se organiza em dois grandes blocos em que a autora estuda sucessivamente retratos da condição social do idoso e da consideração da velhice e representações dos mesmos na longa duração da história castelhana que vai do século VIII ao XV.

As duas partes da obra sintetizam um problema fundamental do pensamento sobre as idades da vida no período, quando estas foram quase sempre influenciadas por um enquadramento mítico que as relacionava ora a uma escala de decadência ora a uma consumação temporal que aproximava seus extremos da beatitude. A autora procura acompanhar a mudança desta perspectiva que, segundo ela, acontece com o aparecimento de uma visão mais objetiva do idoso ao longo das mudanças demográficas do final da Idade Média. No entanto, as representações mentais não deixam de, à sua maneira, acompanhar este movimento no ressurgimento compensatório de outras tradições que vinculavam a velhice à sabedoria e à pureza espiritual1.

Os resultados apresentados na primeira parte da obra foram obtidos a partir da análise de um conjunto documental tão vasto quanto heterogêneo. Foram pesquisadas correspondências particulares e institucionais, cartas de doação, testamentos, legislação, literatura, regras religiosas, textos teatrais e hagiográficos de Castela e, por vezes, de um círculo hispânico mais amplo. Na segunda parte, a documentação perde o caráter exclusivamente regional. São utilizados textos que, embora tenham uma história bem documentada de difusão no território de circunscrição da pesquisa, foram produzidas em outros locais e tiveram circulação em escala européia.

Aqui as fontes também mudam de tom. Mesmo a hagiografia, que na primeira parte teve selecionados exemplares próximos de uma verdadeira biografia, na segunda parte dá lugar à documentação estereotipada da Legenda aurea, por isso mesmo bastante adequada aos imperativos da pesquisa das representações. Embora tenha sido composta na segunda metade do século XIII, a Legenda aurea, com sua hagiografia recolhida sobretudo em fontes da alta Idade Média, segundo a autora, ao lado da interpretação do legado bíblico, fornece o modelo de interpretação da velhice nas representações da alta Idade Média e da Idade Média central. Junto com a Legenda aurea tem destaque o Libro del Conoscimiento de uma anônimo franciscano espanhol e o Libro de las Maravillas del mundo de John de Mandeville, ambos de meados do século XIV.

Francamente motivada por sua experiência pessoal com a “velhice ditosa” de seus avós, a autora se interessa em examinar a definição da velhice ao longo do tempo e as formas de assistência e amparo previstas pelos costumes e pela legislação para o cuidado do sustento, abrigo e saúde do idoso. As dificuldades na perseguição desses objetivos não são mascaradas pela autora. A própria definição do que a sociedade entende como sendo um homem velho é muito difícil no período uma vez que não se trata de uma “questão de idade cronológica mas de apreciação subjetiva”2, não diz respeito também simplesmente à aparência, como para nós. Ademais, as posições apresentadas nas fontes são vagas e contraditórias. No entanto, a autora mostra que, ao menos nos estratos mais altos da sociedade – aqueles que as fontes contemplam com maior precisão – o afastamento das funções sociais não vinha com data marcada, definida por taxas etárias precoces como acontece hoje mas com a incapacidade trazida pela decrepitude física.

Esta situação, segundo Raquel Homet, era responsável por abusos como os deveres de guerra que eram exigidos a cavaleiros idosos. Quadro agravado por uma legislação que apenas no final da Idade Média passou a prever meios institucionais para a manutenção de idosos. Por outro lado, esta “aposentadoria” tardia também permitia, em presença das condições físicas para tal, uma vida social e econômica mais longa que preservava, ao menos por mais tempo, o idoso da “exclusão” e lhe reservava melhor consideração social. No entanto, permanece o fato de que o idoso, incapacitado para se manter, se não podia contar com o auxílio de sua família via-se em situação de indigência. A única opção ficava por conta das instituições eclesiásticas às quais a autora dedica especial atenção.

As dificuldades para abordar a história dos velhos e da velhice na Idade Média não estão limitadas às fontes primárias. A bibliografia apresentada pela professora Homet mostra como a história dos velhos ainda carece de atenção. É ao caráter pioneiro desta pesquisa, portanto, que se devem algumas de suas limitações. A necessária amplitude documental e cronológica deste estudo numa área em que quase tudo ainda está por ser feito, deu ao resultado da pesquisa um caráter desigual. As conclusões não aparecem num mesmo volume ao longo dos diferentes capítulos e partes da obra. A conclusão final, por sua vez, ficou devendo uma correlação mais extensa entre os dois eixos de desenvolvimento da pesquisa: a sociedade e o imaginário. A exposição, segundo uma seqüência cronológica secular, não estabelece uma ligação constante e incisiva da história dos velhos com o desenvolvimento histórico geral da sociedade. Por fim, infelizmente, as fontes não permitem muitos avanços na precisão da origem social dos idosos e mesmo as realidades econômicas dos diversos extratos sociais.

O cuidadoso inventário de fontes de naturezas tão diversas e sua apresentação e análise criteriosa, no entanto, fazem desta obra um amplo panorama de orientação de pesquisa. A riqueza documental que por vezes dificultou a obtenção de resultados, por outro lado, é um manancial de possibilidades de recorte. Implicitamente, a pesquisa da professora Homet indica também a necessidade de se percorrer o caminho de monografias mais circunscritas em termos documentais, no espaço e no tempo. Um exemplo disso pode ser encontrado no capítulo “Longevidad y eterna juventud” que, envolvendo um volume mais amplo de fontes similares às utilizadas, daria um belo livro comparativo. Tal orientação, porém, não abole a importância de visões panorâmicas, aliás tão caras aos trabalhos, já mencionados, de Philippe Ariès.

Cabe ao leitor avaliar com maior profundidade a importância de se prosseguir na exploração desta linha investigativa e decidir se esta não nos levará aos mesmos impasses que outros objetos historiográficos contemporâneos. De nossa parte, o recorte etário parece extremamente oportuno para a abordagem da história medieval, pois fornece um critério alternativo, que podemos considerar universalmente válido que estabelece recortes, funções, valores e relações sociais. Perspectiva antropológica que fornece um ponto de partida que permite ao historiador reatualizar sua consideração do tecido social e das fontes, ultrapassando o critério anacrônico de “classe” e a noção ideológica e elitista das “ordens” do período. Talvez a perspectiva etária nos leve a reavaliar o retrato da sociedade legado por teorias e ideologias e nos aproximem de um perfil mais verossímil das práticas históricas.

Notas

1 HOMET, Raquel. Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario. Rosario, Pontificia Universidad Católica Argentina\Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales del Rosario, 1997, p. 228.

2 Idem, p. 10.

Néri de Almeida Souza – Departamento de História – UNESP – Franca.

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[IF]

Do Império de Portugal ao Império do Brasil / Revista Brasileira de História / 1998

Revista Brasileira de História oferece aos seus leitores dois dossiês neste número. O primeiro, proposto pelo Conselho Editorial, centra-se no ensino de história. Justamente no momento em que os profissionais da área defrontam-se com parâmetros e diretrizes que trazem no seu bojo propostas de redefinição dos conteúdos, objetivos e métodos; e com uma realidade que obriga a repensar as noções de tempo, espaço e memória, a reflexão a respeito do saber e do fazer histórico assumem caráter de urgência.

Os três artigos iniciais articulam-se em torno do tema currículo. Maria Stephanou discute a noção de conteúdo curricular e analisa os currículos oficiais da disciplina. Evidencia que, longe de se tratar de uma questão técnica ou formal, o discurso curricular não apenas elege alguns objetos e exclui outros, mas também envolve a produção de sensibilidades, formas de compreender e interpretar, constituindo-se em importante instrumento no processo de formação da consciência social. Maria Martins e Claudia Ricci, voltam-se para uma experiência concreta: a mudança curricular paulista iniciada na década de 1980. As polêmicas que envolveram a proposta de história e os conflitos no interior da CENP são discutidos por Martins, que se vale de depoimentos orais daqueles que estiveram diretamente envolvidos na elaboração da reforma. Já Ricci dirige sua atenção para os professores, perscrutando nas suas falas os sentimentos, desejos, esperanças, necessidades e expectativas que possuíam em relação às mudanças em curso.

Com Ernesta Zamboni, alcançamos o próprio espaço da sala de aula. Os materiais didáticos disponíveis para serem utilizados com os alunos na produção do conhecimento histórico – filme, vídeos educativos, fotografias, gravuras, pinturas, contos infantis, documentos, livros paradidáticos – são analisados pela autora, que alerta para a especificidade da linguagem de cada um deles.

A importância estratégica atribuída ao ensino de história é evidenciada nos textos de Katia Abud, Luis Fernando Cerri, Maria das Graças Almeida e Newton Dângelo, que se atêm sobretudo à Era Vargas. Os programas da disciplina e os manuais escolares do período atestam, de acordo com Abud, uma concepção pragmática que pretendia difundir o sentimento nacional brasileiro, alicerçado na irmandade de raça, língua e religião. Entretanto, a construção de uma história nacional envolve uma complexa dinâmica, como bem lembra Cerri, que discute os embates em torno da incorporação – ou não – das versões regionais, tomando por mote o discurso da paulistanidade, que teve na escola um de seus meios privilegiados de difusão.

O projeto pedagógico pernambucano proposto durante o Estado Novo, seus princípios norteadores e a concepção de educação enquanto ferramenta para a regeneração do Estado e importante aliada contra o que se qualificava de desordem, são abordados por Almeida, que também chama a atenção para as exonerações e aposentadorias forçadas, estratégias utilizadas para silenciar vozes dissonantes. No âmbito das iniciativas que perseguiam a regeneração nacional, estava a radiodifusão educativa, tema de Dângelo. O autor revisita projetos, relatórios, publicações e alguns programas da época, que objetivavam consagrar uma memória histórica oficial.

O segundo dossiê, Do Império do Brasil ao Império de Portugal, foi organizado com base nas contribuições enviadas ao Conselho Editorial. Um conjunto significativo de texto abordava as redes de poder e pertencimento que vinculavam a metrópole portuguesa e sua colônia na América. A semelhança temática permitiu enfeixá-los num todo articulado. O artigo de Russell-Wood discute, a partir de uma ampla perspectiva cronológica, a noção de centro-periferia, enfatizando estas redes de poder e seus significados, as negociações e tensões envolvidas, esmiuçando como a metrópole se enraizava no além-mar, e alertando para as contrapartidas.

Os trabalhos de Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa e Iara Lis Carvalho e Souza analisam a atuação da Câmara, principalmente seu sentido político. O papel da Câmara do Rio de Janeiro durante os setecentos, época em que a região assume a hegemonia política no centro-sul do Brasil, é tratada por Bicalho, que relaciona a prática desta instituição aos conceitos políticos que sustentavam o Império Português. Gouvêa empreende um breve e necessário balanço historiográfico, atentando para a composição social do Senado da Câmara do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e início do seguinte, estudando a formação desta elite. Carvalho e Souza, por sua vez, flagra a desmontagem desta arquitetura de poder. Concentrando-se na atuação das Câmaras no início de 1820, a autora esclarece a forma pela qual estas acabam por estabelecer um pacto social com D. Pedro, que nelas fundava sua real soberania.

Ilana Blaj, ao concentrar sua atenção na São Paulo colonial, lança luz a respeito da formação de uma elite local, suas relações familiares, modos de enriquecimento. Sob este aspecto, seu texto encontra parentesco com as contribuição de Marcus de Carvalho, que aborda a história das lutas em Pernambuco, a conformação das elites locais, as descensões familiares que vão definindo uma dada noção de independência.

O último artigo do dossiê, de Maria de Lourdes Lyra, detêm-se nos escritos de Frei Caneca e aponta para um problema novo e radical no Brasil do início dos oitocentos, isto é: de que maneira se concebe a pátria, como vem enviesada pela idéia de nação, como vai ganhando força e sentido políticos.

Ao longo dos anos, a Revista Brasileira de História ganhou projeção nacional, tendo publicado artigos que enriquecem nossa cultura historiográfica, alargam os horizontes desta produção, contribuem para redefinir seus sentidos. Se, por um lado, este fato expressa tanto a vitalidade da pesquisa histórica brasileira quanto o reconhecimento da RBH na comunidade científica; por outro, a grande quantidade de artigos que a revista tem recebido ocasionou um desmesurado aumento no número de páginas, colocando um novo desafio para o Conselho Editorial, ainda mais agravado pela diminuição das verbas provenientes das agências financiadoras.

O Conselho manifesta seus agradecimentos à artista plástica Regina Silveira, que permitiu a reprodução de sua obra na nossa capa; à ANPUH Nacional, Núcleo Regional de Minas Gerais e FAPESP, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número. A edição também contou com a decisiva colaboração do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco.

Conselho Editorial.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.36, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Arte e Linguagens / Revista Brasileira de História / 1998

O Dossiê que se apresenta neste número da Revista Brasileira de História, Arte e Linguagens, abarca múltiplas temáticas e temporalidades. No artigo de abertura, Arnaldo Contier discute, tendo por base a produção de Carlos Lyra e Edu Lobo, o projeto nacional-popular gestado na década de 1960; em seguida, Marcos Napolitano e Mariana Vilaça analisam o significado estético, social e histórico do tropicalismo e suas interfaces com a indústria cultural.

Com Tereza Aline, entram em cena as peças de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, e de Enrique Buenaventura, La Diestra de Dios Padre. Atentando para a ambientação, tipos, temas, microcosmo social e construção formal, o artigo discute a apropriação e a recriação da herança medieval ibérica no continente americano.

A especificidade da linguagem cinematográfica, por sua vez, é posta em evidência pela análise de uma seqüência de Os Bandeirantes (1940), filme de Humberto Mauro que produziu, segundo Eduardo Morettin, significados e sentidos nem sempre compatíveis com a expectativa de Taunay e Roquette Pinto, seus idealizadores.

Nos textos de Ricardo Marques e Sérgio Norte, a cidade é o personagem central. Com perspectivas bastante diversas, a resistência aos mecanismos de controle e condicionamento é tematizada: a Paris do século XIX versus os planejadores urbanos; a São Paulo do início deste século na percepção poética libertária.

Cândido Grangeiro conduz o leitor aos manuais de fotografias do século passado, atentando para a teia de relações que se estabeleciam entre o fotógrafo e os desejos, sonhos e fantasias do cliente, realçando os aspectos técnicos, estéticos e estilísticos que envolviam a produção de um retrato.

Do século XIX voltamos para a Florença renascentista e a poesia de Michelangelo. O processo criativo e as opiniões do mestre a respeito da hierarquia entre escultura, pintura e literatura são discutidos por Luciano Migliaccio, que ressalta o papel de Benedetto Varchi no processo de cristalização de uma determinada leitura desta lírica.

Annatereza Fabris fecha o dossiê com um texto que aborda a problemática da visualidade nas sociedades contemporâneas, tomada como uma nova escritura, alertando para o fato dos diferentes sistemas de produção de imagens remeterem a discursos peculiares que não se circunscrevem a aspectos meramente técnicos.

A diversidade presente na Seção Artigos não é menor. Bárbara Weinstein discute a recente produção norte-americana a respeito das questões de gênero, destacando os embates teóricos que a tem caracterizado; José Batista Mazieiro volta sua atenção para as representações construídas em torno da prostituição na cidade de São Paulo entre 1870 e 1920.

As relações entre técnica, trabalho e natureza na sociedade brasileira a partir da segunda metade do XIX, a supremacia das artes liberais sobre as mecânicas, a permanência de uma cultura literária e os (des), caminhos da cultura técnica no país são abordados por Hermetes Araújo. O seu artigo permite estabelecer um contraponto com o texto de Cláudio DeNipote que acompanha, por meio dos hábitos de leitura de dois intelectuais da década de 1910, a formação típica do homem de letras no Brasil

As questões que envolvem a posse da terra estão presentes nos textos de Vania Lousada, que estuda os projetos nacionalistas e de reforma agrária dos anos 50, e nas histórias de vida de ocupantes de terra na cidade de São Paulo, analisadas por João Carlos de Souza.

Os dilemas políticos atuais são o mote para Alexandre Hecker discutir a tradição democrática do socialismo brasileiro, por ele identificada ao Partido Socialista.

O presente número da Revista Brasileira de História fornece ao leitor um instantâneo significativo da produção historiográfica atual, em sua vitalidade e variedade de temas e abordagens.

Os recursos financeiros que viabilizaram a publicação foram disponibilizados pelo CNPq, ANPUH-Nacional e os núcleos de São Paulo e Santa Catarina.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.35, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História: Novos Problemas / Revista Brasileira de História / 1998

Revista Brasileira de História oferece aos seus leitores dois dossiês neste número. O primeiro, proposto pelo Conselho Editorial, centra-se no ensino de história. Justamente no momento em que os profissionais da área defrontam-se com parâmetros e diretrizes que trazem no seu bojo propostas de redefinição dos conteúdos, objetivos e métodos; e com uma realidade que obriga a repensar as noções de tempo, espaço e memória, a reflexão a respeito do saber e do fazer histórico assumem caráter de urgência.

Os três artigos iniciais articulam-se em torno do tema currículo. Maria Stephanou discute a noção de conteúdo curricular e analisa os currículos oficiais da disciplina. Evidencia que, longe de se tratar de uma questão técnica ou formal, o discurso curricular não apenas elege alguns objetos e exclui outros, mas também envolve a produção de sensibilidades, formas de compreender e interpretar, constituindo-se em importante instrumento no processo de formação da consciência social. Maria Martins e Claudia Ricci, voltam-se para uma experiência concreta: a mudança curricular paulista iniciada na década de 1980. As polêmicas que envolveram a proposta de história e os conflitos no interior da CENP são discutidos por Martins, que se vale de depoimentos orais daqueles que estiveram diretamente envolvidos na elaboração da reforma. Já Ricci dirige sua atenção para os professores, perscrutando nas suas falas os sentimentos, desejos, esperanças, necessidades e expectativas que possuíam em relação às mudanças em curso.

Com Ernesta Zamboni, alcançamos o próprio espaço da sala de aula. Os materiais didáticos disponíveis para serem utilizados com os alunos na produção do conhecimento histórico – filme, vídeos educativos, fotografias, gravuras, pinturas, contos infantis, documentos, livros paradidáticos – são analisados pela autora, que alerta para a especificidade da linguagem de cada um deles.

A importância estratégica atribuída ao ensino de história é evidenciada nos textos de Katia Abud, Luis Fernando Cerri, Maria das Graças Almeida e Newton Dângelo, que se atêm sobretudo à Era Vargas. Os programas da disciplina e os manuais escolares do período atestam, de acordo com Abud, uma concepção pragmática que pretendia difundir o sentimento nacional brasileiro, alicerçado na irmandade de raça, língua e religião. Entretanto, a construção de uma história nacional envolve uma complexa dinâmica, como bem lembra Cerri, que discute os embates em torno da incorporação – ou não – das versões regionais, tomando por mote o discurso da paulistanidade, que teve na escola um de seus meios privilegiados de difusão.

O projeto pedagógico pernambucano proposto durante o Estado Novo, seus princípios norteadores e a concepção de educação enquanto ferramenta para a regeneração do Estado e importante aliada contra o que se qualificava de desordem, são abordados por Almeida, que também chama a atenção para as exonerações e aposentadorias forçadas, estratégias utilizadas para silenciar vozes dissonantes. No âmbito das iniciativas que perseguiam a regeneração nacional, estava a radiodifusão educativa, tema de Dângelo. O autor revisita projetos, relatórios, publicações e alguns programas da época, que objetivavam consagrar uma memória histórica oficial.

O segundo dossiê, Do Império do Brasil ao Império de Portugal, foi organizado com base nas contribuições enviadas ao Conselho Editorial. Um conjunto significativo de texto abordava as redes de poder e pertencimento que vinculavam a metrópole portuguesa e sua colônia na América. A semelhança temática permitiu enfeixá-los num todo articulado. O artigo de Russell-Wood discute, a partir de uma ampla perspectiva cronológica, a noção de centro-periferia, enfatizando estas redes de poder e seus significados, as negociações e tensões envolvidas, esmiuçando como a metrópole se enraizava no além-mar, e alertando para as contrapartidas.

Os trabalhos de Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa e Iara Lis Carvalho e Souza analisam a atuação da Câmara, principalmente seu sentido político. O papel da Câmara do Rio de Janeiro durante os setecentos, época em que a região assume a hegemonia política no centro-sul do Brasil, é tratada por Bicalho, que relaciona a prática desta instituição aos conceitos políticos que sustentavam o Império Português. Gouvêa empreende um breve e necessário balanço historiográfico, atentando para a composição social do Senado da Câmara do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e início do seguinte, estudando a formação desta elite. Carvalho e Souza, por sua vez, flagra a desmontagem desta arquitetura de poder. Concentrando-se na atuação das Câmaras no início de 1820, a autora esclarece a forma pela qual estas acabam por estabelecer um pacto social com D. Pedro, que nelas fundava sua real soberania.

Ilana Blaj, ao concentrar sua atenção na São Paulo colonial, lança luz a respeito da formação de uma elite local, suas relações familiares, modos de enriquecimento. Sob este aspecto, seu texto encontra parentesco com as contribuição de Marcus de Carvalho, que aborda a história das lutas em Pernambuco, a conformação das elites locais, as descensões familiares que vão definindo uma dada noção de independência.

O último artigo do dossiê, de Maria de Lourdes Lyra, detêm-se nos escritos de Frei Caneca e aponta para um problema novo e radical no Brasil do início dos oitocentos, isto é: de que maneira se concebe a pátria, como vem enviesada pela idéia de nação, como vai ganhando força e sentido políticos.

Ao longo dos anos, a Revista Brasileira de História ganhou projeção nacional, tendo publicado artigos que enriquecem nossa cultura historiográfica, alargam os horizontes desta produção, contribuem para redefinir seus sentidos. Se, por um lado, este fato expressa tanto a vitalidade da pesquisa histórica brasileira quanto o reconhecimento da RBH na comunidade científica; por outro, a grande quantidade de artigos que a revista tem recebido ocasionou um desmesurado aumento no número de páginas, colocando um novo desafio para o Conselho Editorial, ainda mais agravado pela diminuição das verbas provenientes das agências financiadoras.

O Conselho manifesta seus agradecimentos à artista plástica Regina Silveira, que permitiu a reprodução de sua obra na nossa capa; à ANPUH Nacional, Núcleo Regional de Minas Gerais e FAPESP, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número. A edição também contou com a decisiva colaboração do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco.

Conselho Editorial.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.36, 1998. Acessar publicação original [DR]

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O Brasil na América: caracterização da formação brasileira – BOMFIM (RBH)

BONFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. (prefácio de Maria Thétis Nunes). 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 415p. Resenha de: IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: O VALOR DA REEDIÇÃO DA OBRA

Após 66 anos do lançamento da primeira edição, em 1929, a obra de Manoel Bonfim volta a ser editada, demonstrando uma retomada dos interesses sobre a formação brasileira. Exatamente quando o senso comum afirma ser anacrônica a recuperação histórica, uma vez que este é um momento em que o importante é estar inserido no mercado globalizado e assimilado na cultura de massa que unifica costumes e elimina a questão nacional, e onde alguns vão mais longe e propõem o fim da história, a reedição do livro é surpreendente.

Em primeiro lugar, gostaria de analisar as razões de Maria Thétis Nunes em propor à Topbooks sua reedição. Em seguida, passarei a recuperar a leitura deste admirável sergipano sobre o Brasil, a América e as noções de educação e desenvolvimento formuladas em um conjunto significativo de trabalhos considerados pela historiografia moderna como clássicos do pensamento político brasileiro.

No prefácio, Thétis Nunes levanta como hipótese sobre o esquecimento, o desinteresse das elites por idéias tão avançadas para o seu tempo. Este problema foiapontado também por Dante Moreira Leite na obra O Caráter Nacional Brasileiro, Antonio Candido, Nelson Verneck Sodré entre outros. A criação do primeiro laboratório de Psicologia Experimental do Brasil, a atualidade de estudos filosóficos e as críticas ao cientificismo e ao evolucionismo são argumentos que comprovam a seriedade intelectual de Bonfim. Entretanto, para a prefaciante, seu nacionalismo entendido como” identificação do indivíduo com a terra natal, que o conduziria à solidariedade, à confiança e a luta para a preservação da liberdade e da independência”1, são a chave do esquecimento.

Em 1929, o jogo político das oligarquias cafeicultoras experimentava uma profunda crise demonstrada pelas articulações entre as dissidências oligárquicas e os novos setores sociais que disputavam com maior amplitude a participação na cena política nacional. Além do mais, ao longo das primeiras décadas deste século a imigração cresceu, introduziu os europeus orientais, os japoneses e alemães, que ao lado dos imigrantes do final do século passado, procuravam um maior nível de integração no conjunto nacional. Assim, a conjuntura política do período, diferente daquela vivida pelos modernistas de 1922, não mais permitia a exclusão dos vastos contingentes de imigrantes que naquele momento eram capitães de indústria, assessores do governo e novos proprietários, especialmente os beneficiários da crise do café, após o crack da bolsa, em 1929.

Parece-me, entretanto, que o autor não estava preocupado em demonstrar o nacionalismo como algo que emergia das tradições históricas e da paulatina descoberta do sentido da brasilidade pela incorporação da diversidade dos grupos étnicos culturais aqui estabelecidos. Um dos elementos sui generis apresentado pelo autor é o da incorporação daqueles que lutaram pela preservação do território como se esta luta garantisse legitimidade e unidade aos diferentes grupos.

Outra colocação importante de Bonfim, não recuperada inteiramente pela autora do prefácio é a discussão bastante complexa que faz das noções de cultura, raça e alteridade. Para ele, nenhum dos grupos étnicos-culturais que ocuparam o Brasil puderam preservar seus valores sem que eles sofressem profundas alterações. Deste modo, a idéia subjacente é a que há uma circularidade cultural independente da aceitação ou não desta objetividade.

Assim, afirma:

(…) o Brasil, como agrupamento-povo, não poderia ser considerado simples soma de elementos étnicos, estimulados isoladamente: o português _ A, o negro _ B, o índio _ C… para chegar ao tipo apenas composto A-B-C. No povo brasileiro encontram-se essas três raças, diferentes, muito diferentes mesmo. A constatação de tais origens, em qualidades e tom de civilização, como origens dispersas, seria banalidade, repetida sem outra significação além da tecnologia, pois o que tem interesse não é a fútil resenha antropológica, e a corriqueira enumeração de caracteres etnográficos, mas a boa compreensão do modo segundo o qual aqui se encontram os elementos formadores da nação, até que logicamente se defina o efeito histórico da mesma formação. É isto o que faz valer cada uma das qualidades elementares das raças misturadas, e dá a fórmula geral da combinação nacional, resultante da mistura. (…) Ninguém admitiria hoje [que] isto é do negro, tal é do índio ou do português, sem conseguir reconhecer o que haja de novo e de próprio no gênio brasileiro2.

Dito de outro modo, não eram os portugueses tolerantes, democráticos ou mais assimilados, mas foram as condições históricas do conflito e as acomodações possíveis no cotidiano que engendraram as relações sociais. Para os cientificistas e racistas, Bonfim ironizava afirmando que o sentido da superioridade só poderia ser considerado se os superiores conquistassem raças, grupos ou lugares superiores a eles. E mais, perguntava qual o mérito em dominar um fraco? Seria possível sentir orgulho batendo ou violentando uma criança?

Para Maria Thétis, a importância da reedição do livro é recuperar um dos pioneiros da formulação de uma ideologia nacional. Peno que as razões são bem diversas.

O BRASIL NA AMÉRICA

Em primeiro lugar, vale ressaltar que Bonfim escreveu este livro em continuidade a um amplo debate que se abriu no início do século no Brasil. Na década de vinte, a oposição ao conceito de latino-americano se colocava para o autor, uma vez que essa unidade era entendida de modo preconceituoso especialmente pelos Estados Unidos, que atribuía a todo o continente o estigma de atraso, inferioridade e alienação. Muitos intelectuais de renome aceitavam essa desqualificação e procuravam constituir fórmulas para o embate entre a civilização (Europa e Estados Unidos) e a barbárie. Deste modo, figuras como Oliveira Lima, Oliveira Vianna, Domingos Sarmiento ou Riva Arguedas, desenvolveram tratados históricos ou projetos de desenvolvimento para superar os males de origem. A obra de Bonfim é escrita com o intuito de negar a homogeneidade que o conceito de América Latina apresentava e ao mesmo tempo procurar o lugar da nação nas singularidades encontradas.

De um lado, uma clara e firme posição anti-imperialista, e de outro, a busca do nacional como especificidade de um projeto incorporador, na medida em que a cultura singular de cada lugar ou região, permitia a análise por um novo contributo ao entendimento do pertencimento e da memória. Deste modo, o regresso ao passado colonial é realizado com vistas ao encontro de formas de entendimento que pudesse responder, não a uma abstração idealizada do que significava cada um dos acontecimentos e as várias dimensões do conflito, mas os resultados transformadores numa dialética de tempos desiguais e simultâneos em ação.

Assim, na primeira parte, Origens, estão tecidos cinco capítulos que procuram reconstituir a epopéia do pioneirismo ibérico, as conquistas ultramarinas, as relações entre europeus e o gentio, o sentido menos destrutivo dos contatos, as alterações nos vários modos de vida, a formação da população brasileira com os elementos centrais da mestiçagem, o cruzamento das tradições e a gênese do sentido de inferioridade atribuído ao Brasil em decorrência do negro escravo. Neste capítulo em especial, nosso autor combate Oliveira Vianna, que de modo acrítico e a-histórico repete as teorias cientificistas e racistas sem levar em consideração a realidade histórica brasileira. Na Segunda parte, O Primeiro Brasil, encontram-se os seis capítulos onde o autor desenvolve sua tese central, ou seja, a nacionalidade foi sendo formada nas lutas pela preservação dos territórios e através delas formaram-se o entendimento do Brasil e do ser brasileiro.

As lutas foram sendo incorporadas de modo muito especial por cada um dos grupos envolvidos, separando-se os elementos inassimiláveis, articulando localismos, regionalismos e mesmo o caudilhismo. Assim, aquilo que aparece como as longas durações históricas, são poderosas forças de acomodação e particularidades, tecidas e criadas na superação do modo de vida anterior de cada grupo. Estes elementos tornaram-se a tessitura da nova conformação social geradores do Estado Nacional. Deste medo, as comparações que Bonfim estabelece entre os processos que se desenvolvem nas colônias espanholas e as do Brasil são sempre linhagens de argumentação para demonstrar a formação brasileira em sua singularidade. Não há como atribuir a ele, contextualizando seu pensamento, um sentido hierarquizado ou mesmo uma centralidade fixa na conformação nacional apresentada.

Em conclusão, Bonfim afirma:

Na América, foi a colônia portuguesa a primeira a afirmar-se como nacionalidade. De formação essencialmente rural-agrícola, sabendo aproveitar as populações indígenas, essa colônia se expandiu naturalmente, por virtude própria, ao ponto de ocupar todos os territórios que se lhe abriam, até entestar com o domínio definitivo das gentes castelhanas. (…) O Estado português com que se fez a primeira defesa, logo declinou e, quanto mais viva a luta decisiva pela terra pátria, já foram os brasileiros que as fizeram3.

O interessante é notar como Bonfim modifica o conceito de nacional comum entre seus interlocutores. Mais radical que seus contemporâneos, ele atribui valor às lutas concretas em defesa da territorialidade e considera serem agregadores os elementos constitutivos dessa ação. Antecipando Mário de Andrade, constrói um entendimento sobre a cultura como movimento em movimento, e a circularidade de seus elementos, negando qualquer hierarquia e sobreposição entre uns e outros. São fruto de circunstâncias e de experiências históricas indivisíveis. Por isso, na linguagem de Mário, Macunaíma é simultaneamente o complexo da formação cultural brasileira, não apenas em termos de valores, mas também de crenças, lugares, hábitos e desejos.

Hoje, no encerramento deste século XX, quando o paradigma clássico do Estado/ Nação está totalmente superado, quando os controles supra-nacionais realizam a gestão econômico-política dos antigos governantes, reestrutura-se a necessidade do debate sobre o sentido do nacional e os elos agregadores ainda existentes. A moderna teoria4 tem enfatizado o papel das lutas no e pelo território, como elemento engendrador do pertencimento e, cada vez mais, as histórias do lugar são referências identitárias.

Um livro desta importância será estimulador do debate histórico político e solicita-se à Topbooks, que fez um cuidadoso trabalho de texto e capa, que providencie uma encadernação mais adequada, pois o simples abrir das páginas, para um leitor interessado, é suficiente para desmontar o livro que esperou mais de seis décadas para ser oferecido ao público.

Notas

1 NUNES, Thétis. Prefácio à Segunda edição, p. 15.

2 BONFIM, Manoel. op. cit., p. 36

3 Idem, p. 381.

4 Ver SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo, Nobel, 1992; BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização na aurora do século XXI. São Paulo, Hucitec, 1996; ROY, Pierre. La faim dans le monde. Paris, Le Monde Éditions et Marabout, 1994; entre outros.

Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo.

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Cidade: Os Cantos e os Antros – LAPA (RBH)

LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: Os Cantos e os Antros. São Paulo, EDUSP, 1996, 361 p. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A história da cidade de Campinas, a partir da década de 50 do século XIX, foi marcada por tensões que confundiam elementos culturais coloniais e nascentes práticas modernizantes. A transição de uma economia açucareira para a promissora e lucrativa produção cafeeira elevou a cidade à condição de “capital agrícola da província”1 provocando a ascensão de uma nova elite que, contrapondo-se aos antigos hábitos aristocráticos locais empenhou-se num projeto de redimensionamento do público e do privado.

Num livro denso e primoroso, apoiado em farta documentação manuscrita e impressa dos anos 1850-1900, José Roberto do Amaral Lapa desvela as inúmeras faces deste projeto, abordando temas da história social, cultural e econômica num total de quinze capítulos que prometem fecundar muitos temas de pesquisa. Profundo conhecedor da história da antiga Vila de São Carlos e intensamente envolvido na preservação da sua memória, o historiador Amaral Lapa além de prof. titular no Departamento de História da UNICAMP, foi um dos responsáveis pela fundação e direção do Centro de Memória-atualmente coordena a área de publicações -, estabelecido na mesma universidade e que reúne vasto acervo de documentos e livros, além de competente grupo de pesquisadores e funcionários cujo trabalho e dedicação entusiasma e estimula a difícil tarefa de percorrer as trilhas da investigação histórica.

Conforme Amaral Lapa percebeu, a modernidade parece ter chegado muito timidamente a Campinas, urdindo-se e eludindo-se à escravidão, aos castigos infligidos aos escravos, à Guarda Nacional, aos muares, às diligências, festas e quermesses. Conforme constata, até 1869 a cidade ainda conservava muitos traços urbanos coloniais, com ruas sem calçamento, cheias de buracos, atoleiros, parcos meios de comunicação e minguados transeuntes durante a semana. Sobrevivências e resistências coloniais que o autor alude a um “componente de caipirice”, pois o enriquecimento da cidade através da lavoura de açúcar era recente e a camada superior que se favorecia dos seus lucros” contentou-se com padrões de vida que ofereciam no atendimento maior quantidade e não maior qualidade”2.

Aos lucros gerados pelo café e à nova camada dominante que se configurou neste contexto outros ritmos somaram-se ao cotidiano da cidade, com a diversificação do quadro ocupacional, a transformação lenta das relações de trabalho e a agilização dos deslocamentos através das estradas de ferro. Na medida em que a escravidão convivia com as modificações urbanas e econômicas, as posturas municipais procuraram regrar este convívio cativo em meio ao mundo livre, restringindo os ajuntamentos e os jogos nas praças, aguadas e subúrbios.

Os prelúdios da chegada da modernidade em Campinas puderam ser sentidos ainda em 1833, quando o francês Hércules Florence – um dos pintores da expedição Langsdorff – , estabelecido na cidade, obteve a fixação da imagem através da camera obscura, descobrindo a fotografia no Brasil, mas parece ter sido a fundação do Teatro São Carlos (1850) que inaugurou o movimento efetivo em busca da modernização.

Muito vagarosamente a cidade foi deixando de lado a taipa de pilão e substituindo-a pelos tijolos. O arquiteto Ramos de Azevedo levou monumentalidade para a cidade, promovendo uma remodelação urbanística e arquitetônica com aspirações cosmopolitas. O traçado do perímetro urbano-largura das vias e calçadas-passou a levar em conta o coletivo, o circular das pessoas e as posturas detiveram-se no aformoseamento das fachadas e ruas, procurando padronizar os prédios, disciplinar a privacidade e os olhares através da proibição das rótulas de madeira, cancelas, balcões e folhas que abriam para fora.

Esta modificação e modernização dos hábitos urbanos brotou em meio a práticas de enforcamento e exibição pública e permanente de corpos esquartejados dos escravos rebeldes, tendo sido atribuído a um deles, Elesbão, poderes mágicos e milagrosos, pois suas mão teriam ficado brancas no alto do poste ao qual havia sido expostas3.

Seguindo a trajetória proposta por Amaral Lapa e entrando nas casas populares ou nas aristocráticas era possível perceber que até meados do Dezenove sua arquitetura ignorava o banheiro. Nos fundos da casa havia um recinto destinado aos banhos e o ato de defecar comumente praticava-se à noite, no quarto e durante o dia, de cócoras no quintal. No intuito de normatizar estes hábitos o saber público uniu-se ao médico, desodorizando e saneando a cidade e os corpos das pessoas. A higienização incluía o controle do lixo nas casas e quintais, a fiscalização intensa de uma polícia sanitária, a compulsoriedade da construção dos “gabinetes de latrina,” com o intuito de combater os recipientes mantidos no quarto e o estímulo ao banho diário.

Numa cidade em vias de modernização, mas ainda convivendo com práticas seculares o ritmo da vida no interior dos sobradões corria ao sabor senhorial, através do uso de titulações do Império e de todo um gestual que legitimava valores de nobreza. Nestes sobradões expressava-se a convivência contraditória dos “recursos da modernização urbana, capitalista e burguesa a serviço de um estilo de vida estamental e refratário à exposição que a cidade reclama, mas não tanto aos serviços que ela oferece”4.

Neste sentido e conforme o autor enfatiza, a transição de uma ordem senhorial para uma burguesa fez-se lentamente, incluindo investimentos particulares na saúde, educação, religião, cultura, trabalho, lazer, esporte e filantropia. Ao crescimento do operariado somou-se intensos esforços de controle social de suas “horas urbanas” no interior e exterior das fábricas, disciplinando seu morar, trabalhar, descansar, jogar, rezar, instruir-se e movimentar-se.

No cerne de uma cidade improvisada diariamente pelos escravos e pobres livres, clandestina, transgressora das posturas e sem pudores germinava uma moral atenta à rotina dos cortiços, pardieiros, becos e ruelas. Combatia-se o modo de se vestir e as conversas. Tentou-se normatizar a própria mendicidade, restringindo-se a prática do esmolar às quartas e sábados. Aos poucos a lógica capitalista criava uma maneira urbana de existir.

Conforme mostra Amaral Lapa, a aspiração a modernidade que se espraiava pela ainda senhorial sociedade campineira racionalizou as práticas filantrópicas e esforçou-se por confinar os sofrimentos humanos, pois dor, pobreza e fragilidade não coadunavam com a imagem de civilidade e imponência que se buscava. Portanto, cabia à Santa Casa de Misericórdia atender os desvalidos, regrando a assistência com a disciplinarização moral e social.

Às entidades voltadas para o confinamento das pessoas impunha-se a tarefa de subtrair da circulação das ruas mendigos, indigentes, loucos, prostitutas e bandidos, pois com seus comportamentos vistos como desviantes, abalavam os alicerces de uma modernidade desejada e que se tentava impôr. Segundo Amaral Lapa, a modernização implicou em” confinamentos compulsórios”, predominando, nos bastidores da filantropia, objetivos racionais e práticos, próprio de uma sociedade capitalista. Neste sentido, atenção especial era dedicada aos leprosos e andarilhos com os corpos chaguentos e deformados. Com o aburguesamento das relações sociais a própria sensibilidade assumia outra face e tanto a pobreza como a doença passavam a causar medo e apreensão na” cidade sã”5.

A epidemia de febre amarela que atingiu dezenas de pessoas a partir de 1889 e ao longo de toda a década de 90 é um outro capítulo da história de Campinas ressaltado pelo livro, tendo em vista o sério abalo provocado no projeto modernizante em curso, através do esvaziamento da cidade pelo êxodo das pessoas, evidenciando a precariedade do saneamento público vigente6. A epidemia forçou intervenções abruptas das autoridades e a criação de políticas públicas visando a higienização e a saúde das pessoas. Estas, diferentemente dos cariocas, não reagiram com a mesma violência em relação à obrigatoriedade da vacina, mas mostraram certa resistência, entrando com processos na justiça visando suspender a ação do poder público.

Neste sentido, vê-se que desde as reflexões filosóficas sobre a origem do mundo do moleiro de Carlo Ginzburg, na Itália da Renascença, passando pelas práticas de leitura dos camponeses de Roger Chartier na França do século XVIII, não é possível subestimar a participação dos iletrados em muitas esferas da vida social. Aos pobres e desprivilegiados de poder econômico e prestígio cabia também a busca da resolução de seus problemas no plano jurídico7.

Mas no processo modernizante da cidade de Campinas, aos inúmeros desamparados gerados pelos surtos epidêmicos as autoridades e a elite local respondiam com a criação de instituições encarregadas de abrigar menores órfãos e abandonados, distribuir roupas e alimentos e prestar socorros aos doentes pobres. Toda esta preocupação com a saúde pública e amparo dos desvalidos, sempre liderada pela atuação particular, moveu-se em torno de uma prática visando a força de trabalho, a busca da urbanidade e o controle social.

No cerne deste processo civilizador o olhar perscrutador das posturas deteve-se no comércio e nos mercados, dado seu potencial de ilicitude. Nestes espaços uma série de situações propiciavam a violentação do que era entendido como decoro, higiene, silêncio, moral, justiça e convívio social,8 pois não só sitiantes e serviçais se dirigiam para estes locais com o objetivo de comerciar. Na realidade, estes eram espaços multifacetados da sociabilidade, onde as pessoas se reuniam para prosear, esmolar ou cantar. A narrativa de Amaral Lapa acompanha os passos dos vagabundos, loucos e ébrios nestes “cantos” da cidade, sempre cerceados na sua presença e movimentação nos mercados, sendo proibidos os ajuntamentos tanto de livres como de escravos. Ao longo do capítulo “Comércio & Mercados”, o autor desvenda a trama comercial que envolvia o abastecimento local, envolvendo tanto o comércio lícito como aquele que fugia às determinações das posturas.

“De chafarizes e águas” surpreende pela sensibilidade em perceber as nascentes de água potável, os próprios chafarizes e as bicas enquanto locus de sociabilidade, abrigando encontros, cantorias, danças e inúmeros comportamentos coletivos arredios ao prescrito. Em meio ao processo de abastecimento de água e a implantação de uma rede de águas e esgotos na cidade, o autor projeta questões ligadas à história social. Destaca-se muito na narrativa do autor a fluidez das temáticas abordadas, captadas através do entrelaçamento da sua dimensão física, econômica, política, simbólica, social e cultural.

Assim, a visita do Imperador em 26 de março de 1846 é tratada não só no seu aspecto político, mas no seu conteúdo cultural, mostrando à resistência de padrões tradicionais de honra e fidalguia em meio a um cenário social que se aburguesava com os lucros oriundos da economia agrária. Os mercados não eram apenas locais para abastecimento, compra e venda, mas para a manifestação da sociabilidade necessária e para o reordenamento das prescrições através da improvisação de outros papéis sociais, como o esmolar, a cantoria, o comércio ambulante.

Obra da maturidade, “Cidade: os cantos e os antros” nasceu clássico e percurso obrigatório para quem deseja embrenhar-se pela história de Campinas. Com narrativa agradável, sem fugir à erudição e rigor, é um livro rico em informações sobre a cidade. No cerne deste tenso processo de modernização eludindo a cidade colonial e burguesa o rural parece absorvido por esta urbanidade nascente, mas mesmo esta ausência não abala o mérito do estudo.

Notas

1 LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: os cantos e os antros.São Paulo, EDUSP, p. 20, 1996.

2 Idem, p. 23.

3 Idem, p. 74.

4 Idem, p. 106.

5 Idem, p. 227.

6 Sobre este assunto, a coleção campiniana, editada pela área de publicações do Centro de Memória da UNICAMP e coordenada pelo próprio Prof. Amaral Lapa lançará ainda neste mês de dezembro o inédito estudo “A febre amarela em Campinas 1889-1900”, de Lycurgo de Castro Santos Filho e José Nogueira Novaes.

7 CARLO, Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Betania Amoroso, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e Chartier, Roger.” Textos, impressos, leituras. Práticas e representações: leituras camponesas em França no século XVIII”. In A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa, Difel, 1990.

8 LAPA, José Roberto do Amaral. op cit., p. 275.

Denise A. Soares de Moura – Doutoranda pela Universidade de São Paulo.

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“Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892 – BENCOSTTA (RBH)

BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. “Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892. São Paulo: FAPESP, 1996. Resenha de: ALMEIDA, Vasní de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A publicação de Marcus Bencostta é resultado de um estudo rigoroso sobre a educação protestante e as transformações econômicas e sociais ocorridas na região de Campinas (SP), na segunda metade do século XIX. É um trabalho cativante que também trata a educação pelo viés da modernidade, conceito muito discutido nos círculos políticos e intelectuais a partir de 1850. Apesar de abordar um colégio protestante, o autor deixa bem claro que não se trata de um estudo sobre a educação e sim de “uma compreensão da presença religiosa dos missionários presbiterianos em Campinas como integrantes da sua Igreja no Brasil”1.

Há uma grande tendência no meio acadêmico, quando se pesquisa a educação protestante no Brasil, em analisá-la em oposição ao ensino católico, muitas vezes enveredando pelos antagonismos atraso e progresso, conservador e liberal, científico e humanista e assim por diante, principalmente quando se trata de escrever sobre a modernidade do final do Império e início da República. Nesse sentido, logo no prefácio da obra Augustin Wernet alerta que a afinidade entre a elite progressista paulista e o ensino católico existiu de forma acentuada, prova disso foram os colégios organizados por várias ordens religiosas, sempre sob a orientação da alta hierarquia romana. Porém, esse não foi o caso de Bencostta, antes procurou analisar a educação presbiteriana no contexto da formação de uma intelectualidade progressista que procurava respostas à novas situações que surgiam no ambiente econômico e social daquela região em transformação. Bem mais do que se comprometer com as questões internas do presbiterianismo, este trabalho carrega uma preocupação com os padrões modeladores de condutas presentes em uma determinada região, onde diferentes atores sociais compõe e se contrapõe no jogo das representações simbólicas. No entanto, ele não se furta de buscar na cosmovisão calvinista a postura desses evangélicos a frente de uma instituição de ensino que recebia apoio de expressivas personalidades públicas campineiras. Da mesma forma que traça os contornos sócio-econômico e cultural da cidade, suas escolas, sua vida artística e seus projetos de desenvolvimento urbano, procura na organização da igreja mantenedora do Colégio Internacional a herança teológica e eclesiástica que permeavam a consciência de seus dirigentes. É a difícil arte de colar as representações religiosas a outros elementos que se interagem na construção da identidade regional. Essa é uma das contribuições da obra, mesmo que o autor não tenha “este trabalho como exercício de pesquisa em história regional”2.

Uma outra contribuição que esse trabalho traz é a que diz respeito à relação existente entre uma instituição de ensino e o grupo religioso que a dirige, ou melhor, entre o proselitismo que este último exige e liberdade religiosa que os diretores missionários pregam. Bencostta aborda com precisão a contradição existente entre a obrigação de cumprir a promessa de formar cidadãos nos preceitos liberais e democráticos e a de preparar líderes que assumissem o projeto religioso da Igreja. O que se percebe quando se analisa as propostas educacionais confessionais é que a posição dos responsáveis pelo seu funcionamento tem que estar carregada de muita flexibilidade. Há os compromissos externos e os internos, há dois mundos distintos aos quais esses educadores necessitam prestar contas; um é a sociedade com a qual se comprometeu e que em maior ou menor quantidade recebeu apoio, outro é composto pela hierarquia da religião responsável por esse modelo de educação. Além de impregnar de religiosidade o ensino, é ela quem dá a palavra final da necessidade ou não da existência de uma escola em um determinado espaço geográfico. É preciso se identificar com a linguagem da sociedade que se abriu para sua proposta de ensino e não desafinar com o grupo religioso em que se está comprometido. Foi essa relação que Bencostta percebeu na prática dos diretores do Internacional:

Por um lado, Morton utilizou de um discurso político-cultural junto à intelectualidade campineira, que procurou identificar a proposta do colégio como inerente ao mundo civilizado que o Brasil desejava participar. E, por outro, Lane valeu-se do discurso religioso e missionário em sua visita à Igreja Presbiteriana Americana ao expor a necessidade de transmissão dos preceitos do protestantismo através de uma educação escolarizada3.

Não há como negar que os interesses de componentes sociais distintos, num mesmo espaço geográfico se fundem, se sobrepõem e sofrem desfigurações, em nome do relacionamento que mantêm sua existência. No entanto, cada segmento social preserva, explícita ou implicitamente, o seu próprio, o seu jeito particular de ser.

Notas

1 BENCOSTTA. Marcus Levy Albino, op. cit. p.17.

2 Idem, p.17.

3 Idem, p.77.

Vasní de Almeida

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Formação Sindical no Brasil: história de uma prática cultural – MANFREDI (RBH)

MANFREDI, Silvia Maria. Formação Sindical no Brasil: história de uma prática cultural. São Paulo, Escrituras Editora, 1996, 212 p. Resenha de: RODRIGUES, Kátia Souza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 36, 1998.

O primoroso trabalho de Sílvia M. Manfredi desafia os leitores a assumirem a tarefa proposta pelo mestre Paulo Freire na apresentação do livro, ou seja, “produzir também a significação do texto”. Dessa maneira, mergulhar no passado das experiências e práticas de educação e/ou formação sindical no Brasil, do princípio do século até a década de 80, é encontrar igualmente uma outra história do movimento operário.

Relegados a um plano secundário nos estudos existentes sobre o movimento operário-sindical, temas como educação, cultura sindical, formação/organização e poder político em entidades sindicais ganham dimensão e visibilidade inéditas. Por tudo isso, a leitura desse livro revela a importância de “outros quereres” na trajetória do movimento operário brasileiro.

Suas preocupações com a educação de um modo geral – no meio acadêmico e na militância – remontam às experiências de alfabetização pelo método Paulo Freire e à conseqüente prática de “educação popular”1. Já na sua tese de doutoramento, publicada em livro em 19862, a autora voltava a atenção para o resgate da educação sindical no Estado de São Paulo entre as décadas de 60, 70 e início dos anos 80.

Na sua obra mais recente, Sílvia M. Manfredi propõe como objetivo uma reconstituição histórica de grande amplitude. Assim, mesmo diante das dificuldades inerentes ao empreendimento – tais como a escassez de estudos e pesquisas sobre o tema educação e/ou formação sindical e o acesso a fontes documentais, escritas ou orais -, com certeza muitos sindicalistas e trabalhadores hão de sentir satisfação ao ler este livro, que, por sinal, descortina um campo fértil e atraente para outros pesquisadores3.

No primeiro capítulo Sílvia M. Manfredi realça inicialmente a preocupação central de “resgatar e refletir sobre experiências e práticas de educação dos trabalhadores brasileiros, no seu processo de constituição como sujeitos coletivos, isto é, como sujeitos instituintes/instituídos de coletividades (…)”4. Além disso, define educação sindical a partir das práticas educativas mais sistemáticas, como congressos de trabalhadores, cursos, seminários e palestras realizados por associações de classe ou outras entidades socioculturais, com o propósito de divulgar projetos e propostas político-sindicais e formar quadros organizativos. Sem falar, obviamente, de iniciativas referentes à imprensa sindical, programas de rádio e televisão, boletins, revistas, teatro, cinema etc. Ela dá então início à reconstrução da preocupação educacional no movimento operário-sindical brasileiro com a apresentação das propostas educativas dos libertários, particularmente dos grupos anarco-sindicalistas, englobando os anos 1902-1920. No Brasil, como é salientado, o projeto educativo dos libertários tinha três dimensões que se ligavam entre si: a educação político-sindical, a educação escolar e as práticas culturais de massa5.

A partir daí, a autora destaca que a concepção educacional anarquista “articulava as práticas educativas (…) com outras práticas no campo cultural e do lazer, de caráter massivo e popular. Teatros, festivais de música e poesia, piqueniques eram constantemente promovidos pelos libertários nos bairros operários dos centros industrializados da época”6.

Sílvia M. Manfredi enfatiza sobretudo no projeto de educação dos libertários o seu “caráter globalizante” (aspectos culturais, educativos e libertários) que o caracterizava “como um projeto de educação classista (…) voltado para a emancipação político-ideológica e cultural da classe operária”7. Dessa forma, os libertários propuseram a construção de um “projeto educativo singular, próprio e autônomo”8.

O segundo capítulo situa o Estado brasileiro e a proposta educativa nos anos 30 e 40. Ela lembra que por intermédio do Ministério do Trabalho desenvolveu-se um esforço incomum – de cunho “educativo e propagandístico” – que incluía uma política de sindicalização com vistas a construção do sindicalismo oficial. Como parte desse empenho sobressaem as emissões radiofônicas dirigidas aos trabalhadores em cadeia nacional (1942-1945), o curso de orientação sindical (1943), também publicado em livro pelo Ministério do Trabalho, o tablóide Vargas – Boletim do Trabalhador, a edição popular da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Serviço de Recreação Operária (SRO) (1943), destinado a promover atividades culturais, desportivas e recreativas.

Há que se observar ainda alguns pontos importantes evidenciados pela autora que merecem referência, como o fato de o Estado, pela primeira vez, tomar para si a iniciativa de organizar um projeto educativo contrário àqueles gestados pelas tendências de esquerda no período pré-30. A proposta estatal, que entendia as atividades educativas como iguais às de caráter recreacional e assistencial, esvaziava-as de qualquer significado político-ideológico e implicava na inauguração de um “estilo de educação sindical” que sobreviverá até a década de 60.

No terceiro capítulo o foco de análise são as iniciativas de educação sindical assumidas por partidos e organizações de esquerda entre 1945 e 1950, em contraposição às iniciativas oficiais. Serão investigadas a atuação e as propostas do Partido Socialista Brasileiro bem como a surpreendente recriação da universidade popular dos anarquistas em 1945.

Nesse momento, a presença do PCB no movimento operário-sindical é de fundamental relevância. O que se percebe no partido é o nítido privilégio conferido à formação político-partidária (formação de quadros), à qual se resumia, em última análise, sua prática de “educação sindical”9. As escolas do PCB serão examinadas de maneira extremamente profícua. Ao lado de fontes escritas, as fontes orais – os depoimentos de ex-dirigentes como Hércules Correa, Armênio Guedes e Jacob Gorender – dão um toque especial no que tange à análise e à reflexão sobre a pedagogia comunista. Vale frisar o item “Avaliando os cursos à luz da experiência de hoje”10, no qual a desvinculação entre o partido e as bases e a desqualificação dos próprios dirigentes sindicais – chamados de “sindicaleiros” – dão uma mostra da visão de educação do PCB.

O capítulo quatro se detêm na formação sindical nas décadas de 50 e 60. Nele, Sílvia M. Manfredi salienta “as práticas avalizadas e incentivadas pelo Ministério do Trabalho” e as consideradas “alternativas”11, por se oporem à concepção estatal.

Abre-se um amplo leque de práticas de formação diversificadas, indo desde a ação do complexo IPES/IBAD, do Instituto Cultural do Trabalho (ICR), até as atividades programadas pelo Ministério do Trabalho e outras de caráter mais autônomo desenvolvidas em alguns sindicatos (por exemplo, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Têxteis do Rio de Janeiro, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e o Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, que, convém sublinhar, chegou a ter um Centro Popular de Cultura). Passam ainda pelo crivo da autora as práticas do ISEB, dos movimentos de educação e cultura popular, e dos vários grupos ligados à Igreja Católica, englobando tanto o movimento circulista como as organizações tipo JOC, JAC, ACO e a Frente Nacional do Trabalho (FNT).

É necessário ressaltar novamente as fontes utilizadas neste capítulo. Com muita propriedade os textos acadêmicos irão se juntar aos depoimentos dos trabalhadores, demonstrando a preocupação e a pertinência de dar “vez e voz” aos “excluídos da História”. O capítulo cinco trata de quatro entidades que podemos considerar como “núcleos irradiadores” tanto para experiências específicas como quando da constituição das centrais sindicais. As atividades desenvolvidas entre anos 70 e 80 no DIEESE, na Fundação Casa do Trabalhador (MG) na Fase e na Contag, são os destaques do texto. As propostas formativas e educativas dessas entidades ganham luz própria e, sobretudo, mostram a capacidade de realização que une intelectuais e trabalhadores na formação de quadros e lideranças, seja nos sindicatos, nos movimentos populares e/ou rurais.

No capítulo seis são enfocados os projetos e as práticas de formação sindical da CUT, da CGT e da Força Sindical na década de 80 e início dos anos 90. Mesmo concordando com a autora quanto ao fato desses projetos ainda estarem em processo efetivo de configuração, considero que ela poderia enriquecer ainda mais o trabalho se a reflexão e o balizamento (que ocorreram nos capítulos anteriores) sobre as centrais sindicais e suas propostas educativas tivessem um contorno mais nítido. Afinal, estamos diante de propostas distintas de sindicalismo, o que significa dizer que a dimensão político-ideológica cutista – apesar dos pesares – difere muito do “sindicalismo de resultados” da Força Sindical12.

Portanto, acredito que o capítulo ganharia mais ao matizar os projetos e as práticas formativas das centrais, mostrando claramente suas diferenças político-ideológicas, que, no meu entendimento, não podem estar dissociadas do projeto educacional que implementam. Não há dúvida que a utilização de depoimentos, nesse caso, seria também absolutamente imprescindível para essa diferenciação.

O sétimo capítulo evidencia as denominadas “três matrizes discursivas” da formação sindical do “novo sindicalismo” – a matriz marxista, a da educação popular e a da pedagogia paulo-freiriana. Como observa a autora, é importante ressalvar que essas três matrizes foram incorporadas de modo distinto nas formulações pedagógicas e nas práticas formativas das três centrais brasileiras. No primeiro caso, está muito presente a influência do pensamento gramsciano, enquanto na segunda vertente sobressaem os trabalhos de Carlos Rodrigues Brandão, Luiz Eduardo Wanderley e Frei Betto. Já na terceira perspectiva, Paulo Freire, obviamente, e Madalena Freire são os intelectuais cujas obras são examinadas.

Por último, cabe reafirmar que Sílvia M. Manfredi cumpre a finalidade que se propôs atingir. Nas suas próprias palavras, o livro atende ao propósito de “recuperar práticas educativas tidas como pouco relevantes por fazerem parte de um universo de práticas culturais que se dão fora dos espaços sociais concebidos como `social e culturalmente legítimos'”13. Para chegar a dar conta de seu objetivo, a autora percorreu um caminho espinhoso e não usual. O “tão complexo embricamento entre cultura, educação e sociedade”14 é leitmotiv para os leitores saborearem esse texto.

Não posso deixar de anotar ainda que, numa eventual reedição deste livro, é imprescindível maior cuidado com a composição gráfica do texto, tantos são os erros verificados nesta edição. Excetuando o capítulo seis, nos outros encontramos freqüentemente problemas de grafia e outros mais, principalmente nas notas dos capítulos três, quatro, cinco e sete.

Hoje, talvez mais do que nunca, se impõe a quem opta por um mundo `gentificado’ a luta sem trégua pelo sonho possível, pela utopia, contra a ideologia fatalista neoliberal que vem engendrando um `pragmatismo’ pedagógico negador dos homens e das mulheres como seres da decisão, e da ruptura. Como seres óticos.

Com estas palavras, o mestre Paulo Freire define para mim o significado do texto de Sílvia M. Manfredi. Formação Sindical no Brasil é um encorajamento para homens e mulheres organizarem suas experiências e práticas educativas e culturais, produzindo suas próprias representações e significados, como “seres óticos”.

Notas

1 Essas experiências são abordadas em MANFREDI, S. M. Política: educação popular. São Paulo, Símbolo, 1978.

2 Ver MANFREDI, S. M. Educação em sindicatos (Quem disse que a gente não sabe?).Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 1983 e, da mesma autora, Educação sindical entre o conformismo e a crítica. São Paulo, Loyola, 1986.

3 É interessante, para efeito de comparação, ver como essa questão se configura historicamente num outro contexto, especialmente entre o final do século XIX e a década de 60 deste século. Ver DAVID, Marcel. “Formação operária e pensamento operário sobre a cultura em França a partir de meados do século XIX”. In Níveis de cultura e grupos sociais. Colóquio da Escola Normal Superior de Paris, Lisboa, Cosmos, 1974, pp. 267-306.

4 MANFREDI, S. M. op. cit., p. 23.

Sobre uma das propostas educativas mais famosas dos libertários, vale conferir o vídeo Escolas Modernas _ educação libertária na São Paulo do início do século, de Carlo Romani, H. Pimentel e O. P. Cardoso. São Paulo, Coletivo Cinestesia, 1995.

6 MANFREDI, S. M. op. cit., pp. 25-26.

Idem, p. 26.

8 Idem.

A preocupação com a formação político-partidária que compreendia a formação de quadros como tarefa básica do PCB é fruto de uma orientação internacional que regia os PCs. Cf. TARTAKOWSKI, Danielle. “Un instrument de culture politique: les premières écoles centrales du Parti Communiste Français”. In Le Mouvement Social. nº 91, 1975, pp. 79-108.

10 MANFREDI, S. M. op. cit., pp. 57-61.

11 Idem, p. 71

12 A experiência da prática de formação da CUT e o processo de avaliação de seu projeto e de suas práticas pode ser visto em uma publicação recente, da qual a própria Sílvia M. Manfredi participa. Ver a obra coletiva Avaliação externa da política nacional de formação da Central Única dos Trabalhadores. São Paulo, Xamã, 1997.

13 MANFREDI, S. M. op. cit., p. 199.

14 Idem.

Kátia Sousa Rodrigues – Universidade Federal de Uberlândia.

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a cultura della plebs romana – HORSFALL (RBH)

HORSFALL, Nicholas. La cultura della plebs romana. Barcelona: PPU, 1996. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 36, 1998. PPU, 1996. Resenha de:

Nicholas Horsfall debruçou-se sobre o tema da cultura da plebe romana, a convite da Academia Americana em Roma, em 1995, e este livro, publicado em italiano pela Universidade de Barcelona, representa o resultado final, após a sua apresentação em diversas universidades (Oxford, Roma, Barcelona, entre outras). Horsfall já era bastante conhecido por sua reflexão sobre a importância da escrita no mundo romano, não tanto em termos estatísticos, pois que não podemos sabê-lo com qualquer grau de certeza, mas como um estado d’alma (state of mind)1. Neste livro, Horsfall estuda, de maneira geral e articulada, as artes e linguagens da plebe romana, em especial a partir da tradição literária, não temendo apresentar seus argumentos contra mundum, para citar suas palavras2. O autor, ainda que se refira à plebe no título do livro, esclarece que prefere tratar daquilo que define como “cultura popular”, já que as fontes antigas referem-se à plebsplebecularustici, entre outros termos, para designar essa cultura não-erudita. Como estudioso da literatura greco-latina, Horsfall concentra sua atenção nas fontes literárias e não se preocupa com o fato de mesclar, para um mesmo argumento, documentos separados por meio milênio, como admite, logo ao início3.

Horsfall aproveita-se da riqueza da língua italiana para referir-se ao povo, objeto de sua pesquisa, utilizando-se de termos como “popolano”4, “svantaggiati”5, “popolo minuto”6. O autor começa por lembrar a existência de uma cultura oral de longa duração, radicada na memória e fundada na música, cujos versos, cantáveis e de cunho político, podiam transforma-se em instrumento político potente e duradouro, podendo servir tanto de apoio como de crítica7. Em seguida, passa a tratar da cultura formal e reafirma que “no mundo romano a capacidade de ler, escrever e contar não dependia, necessariamente, de uma formação escolar”8, ainda que não saibamos como se processaria esse aprendizado popular. De maneira muito perspicaz, propõe que o conhecimento de lugares-comuns filosóficos, atestados nos grafites e na boca dos libertos, no Satyricon, poderiam provir das alusões filosóficas presentes no mimo, um gênero teatral popularesco9. Ainda nessa linha, discute o papel dos circulatores, organizadores de círculos, entendido circulus como um círculo de ouvintes ao redor de um organizador (“intrattenitore”), cuja função consistia em cantar ou ler poesias, trechos de livros, atuando como lector (leitor ou leitor dramático). Um escólio esclarece que “ao meio dia, eles declamam poesia ligeira10.

O autor ressalta que as manifestações coletivas populares, como cantos, slogans, insultos rítmicos (vaias) e aclamações, não devem ser interpretados como mero resultado da manipulação por parte da aristocracia. Neste sentido, denuncia o “coro uníssono de desprezo” pela cultura popular romana11. Segundo o modelo dominante, a grande maioria – vítima das necessidades econômicas, da prepotência aristocrática e da instrumentalização política – estaria condenada ao analfabetismo e à ignorância, depauperada intelectual e culturalmente. Horsfall discorda radicalmente deste esquema e prefere propor um modelo bipolar (pace Ginsburg): “há bons motivos para aceitar a existência de uma outra cultura `paralela’, popular, também essa rica e vigorosa, à sua maneira, fundada não sobre os textos literários, mas sobre a música, as canções, o teatro, a memória, os jogos”12. Ainda contra a corrente, característica, aliás, marcante do livro, o autor não concorda com a interpretação canônica (E.G. Walsh), segundo a qual Petrônio, no Satyricon, apresenta os libertos como dignos de desprezo, mas, ao contrário, os libertos aparentam amar seu modo de falar, assim como demonstram usar com entusiasmo e com criatividade sua língua. Não se consideravam ignorantes, no plano lingüístico, mas criativos13.

Horsfall, embora ressalte a especificidade da cultura popular, lembra que havia gostos partilhados com a elite e que esta, em particular, não deixava de se deleitar com certos entretenimentos populares; para tanto, lembra que Andreotti, ao viajar de avião com a seleção italiana, não deixava de …jogar baralho com os jogadores! Ademais, os próprios autores eruditos podiam escrever obras que se destinassem, segundo as palavras dos próprios autores, ao povo. Assim, Cícero (Pro Murena 61) lembra que “homens do mais baixo nível econômico (homines infima fortuna), sem esperança de qualquer atividade política (nulla spe rerum gerendarum), artesãos (ofices), gostam da História”. Também Plínio, o Velho menciona que seus trinta e sete volumes da História Natural haviam sido escritos para o “povo humilde (humili vulgo)… para a massa de camponeses e artesãos (agricolarum, opificum turbaepra)14. Para a elite, no entanto, o povo, normalmente, era descrito como composto de imperiti, indocti, stultiinsipientes (grosso modo, ignorantes das regras eruditas), viés que predomina, em grande parte, na historiografia moderna sobre o tema. Horsfall não hesita em incluir-se, pois, em uma interpretação minoritária da cultura popular romana que se recusa a aceitar os juízos da elite como parâmetro. Dessa posição decorre uma conclusão de caráter tanto cultural quanto político. Culturalmente, não se deveria julgar a cultura popular como inferior ou como mera imitação degenerativa daquela erudita, pois, antes de mais nada, era diversa, rica a seu modo. Em seguida, se o povo era autônomo em sua cultura, não se poderia admitir que fosse pura e simplesmente manipulado politicamente, espectador passivo do pão e do circo, ou que se concebesse sempre como agregado, dependente do compadrio, como os modelos dominantes nos tentam fazer crer. Horsfall, ainda que se limite às artes e às linguagens representadas na tradição literária, deixando de lado as inscrições, a cultura material e as representações em geral, não deixa de demonstrar que uma leitura menos subserviente e mais crítica das fontes antigas pode nos relevar uma cultura original e criativa. Não fossem outros os méritos da obra, só esta independência intelectual do autor já recomendaria a sua leitura.

Notas

1 Cf. “Statistics or state of mind?”. In Journal of Roman Archaeology. Supplementary series nº 03, pp. 59-76.

2 HORSFALL, Nicholas. La cultura della plebsromana. Barcelona, PPV, 1996, p. 68.

Idem, p. 13, (così mi sembra già di sentire qualche brontolio sul mio modo apparentemente disinvolto di usare testimonianze separate da mezzo milenio di tempo).

Idem.

5 Idem, p. 27.

6 Idem, p. 51.

7 Idem, p. 19.

8 Idem, p. 21.

9 Idem, p. 25.

10 Idem, p. 134, (meridie levia carmina dicunt, Schol Persio1).

11 Idem, pp. 33-34.

12 Idem, p. 34.

13 Idem, p. 38.

14 PLINIO (o Velho). Naturales Quaestiones. Paris, “Les Belles Lettres”, s/d, ef. 06.

Pedro Paulo A Funari – Universidade Estadual de Campinas

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O Brasil na América: caracterização da formação brasileira – BOMFIM (RBH)

BONFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. 2ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 415p. (prefácio de Maria Thétis Nunes). Resenha de IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: O VALOR DA REEDIÇÃO DA OBRA

Após 66 anos do lançamento da primeira edição, em 1929, a obra de Manoel Bonfim volta a ser editada, demonstrando uma retomada dos interesses sobre a formação brasileira. Exatamente quando o senso comum afirma ser anacrônica a recuperação histórica, uma vez que este é um momento em que o importante é estar inserido no mercado globalizado e assimilado na cultura de massa que unifica costumes e elimina a questão nacional, e onde alguns vão mais longe e propõem o fim da história, a reedição do livro é surpreendente.

Em primeiro lugar, gostaria de analisar as razões de Maria Thétis Nunes em propor à Topbooks sua reedição. Em seguida, passarei a recuperar a leitura deste admirável sergipano sobre o Brasil, a América e as noções de educação e desenvolvimento formuladas em um conjunto significativo de trabalhos considerados pela historiografia moderna como clássicos do pensamento político brasileiro.

No prefácio, Thétis Nunes levanta como hipótese sobre o esquecimento, o desinteresse das elites por idéias tão avançadas para o seu tempo. Este problema foiapontado também por Dante Moreira Leite na obra O Caráter Nacional Brasileiro, Antonio Candido, Nelson Verneck Sodré entre outros. A criação do primeiro laboratório de Psicologia Experimental do Brasil, a atualidade de estudos filosóficos e as críticas ao cientificismo e ao evolucionismo são argumentos que comprovam a seriedade intelectual de Bonfim. Entretanto, para a prefaciante, seu nacionalismo entendido como” identificação do indivíduo com a terra natal, que o conduziria à solidariedade, à confiança e a luta para a preservação da liberdade e da independência”1, são a chave do esquecimento.

Em 1929, o jogo político das oligarquias cafeicultoras experimentava uma profunda crise demonstrada pelas articulações entre as dissidências oligárquicas e os novos setores sociais que disputavam com maior amplitude a participação na cena política nacional. Além do mais, ao longo das primeiras décadas deste século a imigração cresceu, introduziu os europeus orientais, os japoneses e alemães, que ao lado dos imigrantes do final do século passado, procuravam um maior nível de integração no conjunto nacional. Assim, a conjuntura política do período, diferente daquela vivida pelos modernistas de 1922, não mais permitia a exclusão dos vastos contingentes de imigrantes que naquele momento eram capitães de indústria, assessores do governo e novos proprietários, especialmente os beneficiários da crise do café, após o crack da bolsa, em 1929.

Parece-me, entretanto, que o autor não estava preocupado em demonstrar o nacionalismo como algo que emergia das tradições históricas e da paulatina descoberta do sentido da brasilidade pela incorporação da diversidade dos grupos étnicos culturais aqui estabelecidos. Um dos elementos sui generis apresentado pelo autor é o da incorporação daqueles que lutaram pela preservação do território como se esta luta garantisse legitimidade e unidade aos diferentes grupos.

Outra colocação importante de Bonfim, não recuperada inteiramente pela autora do prefácio é a discussão bastante complexa que faz das noções de cultura, raça e alteridade. Para ele, nenhum dos grupos étnicos-culturais que ocuparam o Brasil puderam preservar seus valores sem que eles sofressem profundas alterações. Deste modo, a idéia subjacente é a que há uma circularidade cultural independente da aceitação ou não desta objetividade.

Assim, afirma:

(…) o Brasil, como agrupamento-povo, não poderia ser considerado simples soma de elementos étnicos, estimulados isoladamente: o português _ A, o negro _ B, o índio _ C… para chegar ao tipo apenas composto A-B-C. No povo brasileiro encontram-se essas três raças, diferentes, muito diferentes mesmo. A constatação de tais origens, em qualidades e tom de civilização, como origens dispersas, seria banalidade, repetida sem outra significação além da tecnologia, pois o que tem interesse não é a fútil resenha antropológica, e a corriqueira enumeração de caracteres etnográficos, mas a boa compreensão do modo segundo o qual aqui se encontram os elementos formadores da nação, até que logicamente se defina o efeito histórico da mesma formação. É isto o que faz valer cada uma das qualidades elementares das raças misturadas, e dá a fórmula geral da combinação nacional, resultante da mistura. (…) Ninguém admitiria hoje [que] isto é do negro, tal é do índio ou do português, sem conseguir reconhecer o que haja de novo e de próprio no gênio brasileiro2.

Dito de outro modo, não eram os portugueses tolerantes, democráticos ou mais assimilados, mas foram as condições históricas do conflito e as acomodações possíveis no cotidiano que engendraram as relações sociais. Para os cientificistas e racistas, Bonfim ironizava afirmando que o sentido da superioridade só poderia ser considerado se os superiores conquistassem raças, grupos ou lugares superiores a eles. E mais, perguntava qual o mérito em dominar um fraco? Seria possível sentir orgulho batendo ou violentando uma criança?

Para Maria Thétis, a importância da reedição do livro é recuperar um dos pioneiros da formulação de uma ideologia nacional. Peno que as razões são bem diversas.

O BRASIL NA AMÉRICA

Em primeiro lugar, vale ressaltar que Bonfim escreveu este livro em continuidade a um amplo debate que se abriu no início do século no Brasil. Na década de vinte, a oposição ao conceito de latino-americano se colocava para o autor, uma vez que essa unidade era entendida de modo preconceituoso especialmente pelos Estados Unidos, que atribuía a todo o continente o estigma de atraso, inferioridade e alienação. Muitos intelectuais de renome aceitavam essa desqualificação e procuravam constituir fórmulas para o embate entre a civilização (Europa e Estados Unidos) e a barbárie. Deste modo, figuras como Oliveira Lima, Oliveira Vianna, Domingos Sarmiento ou Riva Arguedas, desenvolveram tratados históricos ou projetos de desenvolvimento para superar os males de origem. A obra de Bonfim é escrita com o intuito de negar a homogeneidade que o conceito de América Latina apresentava e ao mesmo tempo procurar o lugar da nação nas singularidades encontradas.

De um lado, uma clara e firme posição anti-imperialista, e de outro, a busca do nacional como especificidade de um projeto incorporador, na medida em que a cultura singular de cada lugar ou região, permitia a análise por um novo contributo ao entendimento do pertencimento e da memória. Deste modo, o regresso ao passado colonial é realizado com vistas ao encontro de formas de entendimento que pudesse responder, não a uma abstração idealizada do que significava cada um dos acontecimentos e as várias dimensões do conflito, mas os resultados transformadores numa dialética de tempos desiguais e simultâneos em ação.

Assim, na primeira parte, Origens, estão tecidos cinco capítulos que procuram reconstituir a epopéia do pioneirismo ibérico, as conquistas ultramarinas, as relações entre europeus e o gentio, o sentido menos destrutivo dos contatos, as alterações nos vários modos de vida, a formação da população brasileira com os elementos centrais da mestiçagem, o cruzamento das tradições e a gênese do sentido de inferioridade atribuído ao Brasil em decorrência do negro escravo. Neste capítulo em especial, nosso autor combate Oliveira Vianna, que de modo acrítico e a-histórico repete as teorias cientificistas e racistas sem levar em consideração a realidade histórica brasileira. Na Segunda parte, O Primeiro Brasil, encontram-se os seis capítulos onde o autor desenvolve sua tese central, ou seja, a nacionalidade foi sendo formada nas lutas pela preservação dos territórios e através delas formaram-se o entendimento do Brasil e do ser brasileiro.

As lutas foram sendo incorporadas de modo muito especial por cada um dos grupos envolvidos, separando-se os elementos inassimiláveis, articulando localismos, regionalismos e mesmo o caudilhismo. Assim, aquilo que aparece como as longas durações históricas, são poderosas forças de acomodação e particularidades, tecidas e criadas na superação do modo de vida anterior de cada grupo. Estes elementos tornaram-se a tessitura da nova conformação social geradores do Estado Nacional. Deste medo, as comparações que Bonfim estabelece entre os processos que se desenvolvem nas colônias espanholas e as do Brasil são sempre linhagens de argumentação para demonstrar a formação brasileira em sua singularidade. Não há como atribuir a ele, contextualizando seu pensamento, um sentido hierarquizado ou mesmo uma centralidade fixa na conformação nacional apresentada.

Em conclusão, Bonfim afirma:

Na América, foi a colônia portuguesa a primeira a afirmar-se como nacionalidade. De formação essencialmente rural-agrícola, sabendo aproveitar as populações indígenas, essa colônia se expandiu naturalmente, por virtude própria, ao ponto de ocupar todos os territórios que se lhe abriam, até entestar com o domínio definitivo das gentes castelhanas. (…) O Estado português com que se fez a primeira defesa, logo declinou e, quanto mais viva a luta decisiva pela terra pátria, já foram os brasileiros que as fizeram3.

O interessante é notar como Bonfim modifica o conceito de nacional comum entre seus interlocutores. Mais radical que seus contemporâneos, ele atribui valor às lutas concretas em defesa da territorialidade e considera serem agregadores os elementos constitutivos dessa ação. Antecipando Mário de Andrade, constrói um entendimento sobre a cultura como movimento em movimento, e a circularidade de seus elementos, negando qualquer hierarquia e sobreposição entre uns e outros. São fruto de circunstâncias e de experiências históricas indivisíveis. Por isso, na linguagem de Mário, Macunaíma é simultaneamente o complexo da formação cultural brasileira, não apenas em termos de valores, mas também de crenças, lugares, hábitos e desejos.

Hoje, no encerramento deste século XX, quando o paradigma clássico do Estado/ Nação está totalmente superado, quando os controles supra-nacionais realizam a gestão econômico-política dos antigos governantes, reestrutura-se a necessidade do debate sobre o sentido do nacional e os elos agregadores ainda existentes. A moderna teoria4 tem enfatizado o papel das lutas no e pelo território, como elemento engendrador do pertencimento e, cada vez mais, as histórias do lugar são referências identitárias.

Um livro desta importância será estimulador do debate histórico político e solicita-se à Topbooks, que fez um cuidadoso trabalho de texto e capa, que providencie uma encadernação mais adequada, pois o simples abrir das páginas, para um leitor interessado, é suficiente para desmontar o livro que esperou mais de seis décadas para ser oferecido ao público.

Notas

1 NUNES, Thétis. Prefácio à Segunda edição, p. 15.

2 BONFIM, Manoel. op. cit., p. 36

3 Idem, p. 381.

4 Ver SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo, Nobel, 1992; BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização na aurora do século XXI. São Paulo, Hucitec, 1996; ROY, Pierre. La faim dans le monde. Paris, Le Monde Éditions et Marabout, 1994; entre outros.

Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo.

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Travessias: Migrações / Revista Brasileira de História / 1997

O presente número da Revista Brasileira se História tem como Dossiê o tema Travessias: Migrações em que os importantes problemas da imigração e migração receberam um tratamento original e inovador por diversos autores.

A questão das motivações para a vinda e a permanência de tradições de luta operária dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul; o papel da família e da ética do trabalho como estratégia de sobrevivência e integração de italianos no Espírito Santo e alemães em Curitiba; a participação na cultura urbana em Buenos Aires, revelam novas tendências nas pesquisas sobre os imigrantes.

A fase anterior do levantamento e descrição das várias modalidades do trabalho imigrante, os núcleos coloniais de pequena propriedade, as diferenças étnicas permitem agora o desenvolvimento de novas vertentes de pesquisa. O que se privilegia hoje é o seu impacto na sociedade brasileira e sua contribuição global ao mesmo tempo que se estuda os efeitos da imigração sobre os padrões culturais de seus agentes.

Por outro lado, temos uma pesquisa que dá notícia dos primeiros migrantes nordestinos (cearenses) para a lavoura cafeeira paulista e que, a partir de 1920, viriam a substituir cada vez mais a corrente européia em declínio. Finalmente, a análise de uma entrevista com migrante sem terra de Brasilia tenta, no campo da história oral, esquadrinhar o universo do imaginário dos eternos andantes do mundo rural brasileiro tão bem retratados por Graciliano Ramos.

A secção Documentos tem a oportunidade de transcrever interessante testemunho de viajante francês anônimo que descreve a baía de Guanabara e o Rio de Janeiro sob o ponto de vista geográfico e de estratégia militar, acrescido de observações sobre os costumes brasileiros.

Os artigos estudam os carijós que os paulistas levaram para Minas Gerais; as festas religiosas e seus choques com o ultramontanismo do clero; o papel do informante na estrutura repressiva policial da ditadura militar e a política da Frente Popular no Chile.

O Conselho Editorial agradece a cortesia do Museu Lasar Segall em ceder o direito de reprodução do quadro Navio de Emigrantes de seu acervo para a capa deste número.

Queremos ainda agradecer a atual administração da Anpuh que, cumprido compromisso assumido no Simpósio de julho de 1997 avocou a responsabilidade financeira e gráfica da publicação deste número 34.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.17, n.34, 1997. Acessar publicação original [DR]

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Mauá, empresário do Império – CALDEIRA (RBH)

CALDEIRA, Jorge. Mauá, empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 550p. Resenha de LEAL, Marília Helena Paulos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.17, n.33, 1997.

Marília Helena Paulos Leal – Doutoranda pela Universidade de São Paulo.

Acesso ao texto integral apenas pelo link original

Pólvora y Tintas. Andanças de Bandoleros Anarquistas – NEVES; COUTURE (RBH)

NEVES, Salvador; COUTURE, Pérez. Pólvora y Tintas. Andanças de Bandoleros Anarquistas. Montevideo: Banda Orientas, 1993, 141 p. (ilust.). Resenha de: SILVA JÚNIOR, Adhemar Lourenço da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.17 n. 34, 1997.

Pouco conhecida por profissionais brasileiros, a historiografia uruguaia vem produzindo interessantes trabalhos. Diferentemente do Brasil, onde a pós-graduação é locus privilegiado da produção científica, as exigências da graduação no Uruguay levam a investigações comparáveis a dissertações de mestrado. Tal é o caso da monografia de Neves e Pérez, cuja história inicia-se em outubro de 1927, quando o Comité Pro Presos y Deportados argentino, sem dinheiro, soluciona o problema assaltando o Hospital Rawson, em Buenos Aires. O butim compensa o risco, mas a morte de um guarda em meio ao tiroteio leva a polícia à caça dos assaltantes, predominantemente catalães. Enquanto a polícia mobiliza infrutiferamente agentes e informantes, o grupo atravessa clandestinamente o Prata rumo a Montevideo, local seguro para fugitivos políticos latino-americanos e europeus. A polícia argentina pressiona as autoridades uruguaias para encontrar os assaltantes, mas estas, ciosas da soberania nacional, não cedem facilmente aos apelos portenhos.

A partir daí se desenvolve o livro, estruturado como uma novela policial. A narração percorre, em idas e vindas que deixam o leitor sem fôlego, redes de solidariedade e normas de segurança que permitem aos fugitivos políticos anarquistas abrigarem-se clandestinamente no Uruguay, envolvendo militantes e criminosos comuns (inclusive uma rede capaz de falsificar dinheiro dentro da prisão). Mas o momento não era propício: a aproximação das eleições legislativas apontava para o asedio conservador que vinha ocorrendo desde 1925, e o governo uruguaio via-se pressionado também pelos jornais católicos que exigiam a deportação dos anarquistas, ateus e assassinos.

O panorama, desenhado por meio de fontes jornalísticas, poderia assemelhar-se a outros em que argentinos atravessavam o Prata e buscavam abrigo na Banda Oriental. Mas os assaltantes do Hospital Rawson violaram a regra de ouro prescrita pelos militantes uruguaios: a de não praticar ilegalidades no país. O alvo escolhido foi a casa de câmbio Messina, situada na Plaza Independencia. O assalto, financiado com parte do auferido no Hospital Rawson, foi longamente planejado e executado em outubro de 1928, mas, aos erros cometidos, somou-se o azar dos assaltantes: não só a casa de câmbio tinha pouco dinheiro em caixa, como houve reação. O assalto rendeu, no máximo, conforme estimativas, 2.000 pesos – o valor de um automóvel, ou de 33 novilhos -, mas o custo fora alto: três mortos, vários feridos e um problema para os anarquistas uruguaios. Com o assalto em Montevideo, a polícia uruguaia investigou as redes de solidariedade – o que produziu as fontes utilizadas pelos autores – e conseguiu prender parte dos anarquistas.

Se a narrativa é um dos méritos do livro, também lhe traz problemas. Um deles refere-se à necessidade de produzir análises sobre o contexto histórico, imprescindíveis em trabalhos acadêmicos. As análises feitas quebram o ritmo da narração, apresentando-se como colagens pouco articuladas com o caso tratado, fazendo a obra oscilar entre a perspectiva que toma casos como elucidativos exemplos de um fenômeno mais geral (criminalidade, relações políticas transplatinas, solidariedade internacional, etc.) e a que toma o contexto como explicativo do caso, não sendo, portanto, necessário tanto detalhamento nessa análise. As análises do contexto no livro remetem antes a um pano de fundo da ação do que a um universo de relações sociais mediado e reatualizado pela conduta dos agentes. Um segundo problema restringe-se aos leitores lusófonos: o abuso da gíria policial (a de hoje ou a da época?), que facilita o clima narrativo mas dificulta a leitura.

Trabalhos como o de Neves e Pérez não se limitam a abordar aspectos localizados da história operária uruguaia e argentina: fornecem, no mínimo, subsídios para pesquisadores do Brasil compararem formas de organização, quando não sugerem possibilidades de pesquisa. Com efeito, militantes anarquistas como Manuel Moscoso, Nino Martins e Antônio Nalepinski circularam por vários países e Estados, cabendo-nos interrogações sobre a influência dessa circulação de trabalhadores na conformação de sua experiência de organização. Por outro lado, traz-nos uma questão mais geral que abre possibilidades a investigações biográficas e prosopográficas: o que são esses ideais políticos, capazes de fazer alguém sacrificar sua vida pessoal? O que se ganha em troca desse sacrifício?

Sem querer adiantar respostas, tampouco o epílogo do livro, basta dizer que, dentre os condenados pelo assalto no Uruguay, houve os que cumpriram sua pena na prisão de Punta Carretas e os que, por meio de um estratagema que mereceria outro estudo monográfico das redes de solidariedade, conseguiram fugir poucos anos depois.

Notas

1 NEVES, Salvador; COUTURE, Pérez. Montevideo: Banda Orientas, 1993, 141 p. (ilust.).

Mestre pela UFRGS, Professor da UFPel.

Adhemar Lourenço da Silva Júnior – Universidade Federal de Pelotas

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As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado – BANN (RBH)

BANN, Stephen. As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Villas-Boas. São Paulo: Editora da Unesp, 1994. 292p. Resenha de: SCHAPOCHNIK, Nelson. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.367-369, 1996.

Nelson Shapochnik – Universidade Estadual Paulista – Franca.

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O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito – LESSER (RBH)

LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito. Tradução de Marisa Sanematsu. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1995. P.372. Resenha de: IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.364-366, 1996.

Zilda Márcia Gricoli Iokoi – Universidade de São Paulo.

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Do amor e outros demônios – MARQUEZ (RBH)

MARQUEZ, Gabriel Garcia. Do amor e outros demônios. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994. 221p. Resenha de EUGÊNIO, Marcos Francisco Napolitano. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.370-374, 1996.

Marcos Francisco Napolitano Eugênio – Universidade Federal do Paraná.

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Canudos – O povo da terra – VILLA (RBH)

 

VILLA, Marco Antonio. Canudos – O povo da terra. São Paulo: Editora Ática, 1995. 155p. Resenha de SILVA, José Maria de Oliveira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.375-376, 1996.

José Maria de Oliveira – Universidade Federal de Sergipe.

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Didática da História – Patrimônio e História local – MANIQUE; PROENÇA

MANIQUE, Antonio Pedro; PROENÇA, Maria Cândida. Didática da História – Patrimônio e História local. Lisboa: Texto Editora, 1994. 104p. Resenha de: FONSECA, Selva Guimarães. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.377-379, 1996.

Selva Guimarães Fonseca – Universidade Federal de Uberlândia.

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O Estado Monárquico. França 1460-1610 – LE ROY LADURIE (RBH)

LE ROY LADURIE, Emmanuel. O Estado Monárquico. França 1460-1610. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 355p. Resenha de: FLORENZANO, Modesto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.15, n.29, p.221-231, 1995.

Modesto Florenzano – Professor da Universidade de São Paulo.

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Reminiscências – FREITAS (RBH)

FREITAS, Sônia Maria de. Reminiscências. [São Paulo]: Editora Maltese, 1994. Resenha de: ALAMBERT FILHO, Francisco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.15, n.30, p.171-173, 1995.

Francisco Alambert Filho – Universidade Federal Fluminense. Núcleo do Rio de Janeiro.

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A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822 – LYRA (RBH)[

LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Prefácio de Izabel Andrade Marson. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 256p. Resenha de: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.14, n.28, p.2268-270, 1994.

Cecília Helena de Salles Oliveira – Universidade de São Paulo.

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Caminhos da História Ensinada – FONSECA (RBH)

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papirus, 1993. Resenha de: VERÍSSIMO, Mara Rúbia A. M. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25/26, p.277-282, set.1992/ago.1993.

Mara Rúbia A. M. Veríssimo – Professora de Metodologia do Departamento de Princípios e Organização da Prática Pedagógica da UFU.

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Memória, história, historiografia: ensino de história / Revista Brasileira de História / 1992-1993

[Memória, história, historiografia: ensino de história]. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25-26, set 1992 / ago., 1993. Acessar dossiê [DR]

 

Decifra-me ou devoro-te: história de vida dos meninos de rua de Salvador – ATAÍDE (RBH)

ATAÍDE, Yara Dulce Bandeira de. Decifra-me ou devoro-te: história de vida dos meninos de rua de Salvador. São Paulo: Edições Loyola, 1993. 202p. Resenha de: REIS, João José. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.12, n.23/24, p.210-212, set.1991/ago.1992.

João José Reis – Professor da UFBA. Autor de Amorte é uma festa (Companhia das Letras, 1991) entre outros livros.

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O homem romano – GIARDINA (RBH)

GIARDINA, Andrea (Dir.). O homem romano. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1992. P.317. Resenha de: CORASSIN, Maria Luiza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.12, n.11/22, p.191-201, set.1991/ago.1992.

Maria Luiza Corassin – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo.

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Escravidão antiga e ideologia moderna – FINLEY (RBH)

FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moderna. Tradução de  Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Graal, 1991. 208p. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.12, n.23/24, p.197-198, set.1991/ago.1992.

Pedro Paulo A. Funari

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A crise da imigração japonesa no Brasil (1930-1934): Contornos diplomáticos – LEÃO (RBH)

LEÃO, Valdemar Carneiro. A crise da imigração japonesa no Brasil (1930-1934): Contornos diplomáticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 1990. 360p. Resenha de ALMEIDA, Paulo Roberto de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.197-213, mar.1991/ago.1991.

Paulo Roberto de Almeida

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Caminhada no chão da noite: Emancipação política e a libertação nos movimentos sociais no campo – MARTINS (RBH)

MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: Emancipação política e a libertação nos movimentos sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1909. Resenha de: IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.22, p.208-209, mar.1991/ago.1991.

Zilda Márcia Gricoli Iokoi – Professora do Departamento de História/USP.

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Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil – KOWARICK (RBH)

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987. Resenha de: SAMARA, Eni de Mesquita. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.22, p.204-207, mar.1991/ago.1991.

Eni de Mesquita Samara – Professora do Departamento de História/USP.

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Women of the French Revolution – KELLY (RBH)

KELLY, Linda. Women of the French Revolution. Londres: Hamisch Hamilton, 1987. Resenha de: ALGRANTI, Leila Mezan. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.10, n.18, n.20, p.261-264, mar.91/ago.91.

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República em migalhas: história regional e local – SILVA (RBH)

História regional e local, República, América/Brasil (L), Século 20 (P), SILVA Marcos Antônio (Org), República em migalhas: história regional e local (T), Marco Zero (E), Anpuh (E), GOMES Angela Maria de Castro (Res), Revista Brasileira de História (RBH)

SILVA, Marcos Antônio (Org). República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/Anpuh, 1990. Resenha de: GOMES, Angela Maria de Castro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.22, p.210-212, mar.1991/ago.1991.

Angela Maria de Castro Gomes – Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro e Professora da Universidade Federal Fluminense.

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A Pesquisa em História / Maria P. Vieira, Maria R. Peixoto e Yara A. Khoury

VIEIRA, Maria do Pilar; PEIXOTO, Maria do Rosário; KHOURY, Yara Aun. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1987. Resenha de: SILVA, Marcos Antônio da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.19, n.15, p.259-263, set.1989/fev.1990.

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Terra à vista: Discurso do confronto: velho e novo mundo – ORLANDI (RBH)

ORLANDI, Eni. Terra à vista: Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortex Editora, 1990. 255p. Resenha de: MICELLI, Paulo. Conhecer, nomear, governar… O Índio como se fosse o Ìndio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.21, p.241-254, set.1990/fev.1990.

Paulo Micelli – Professor da Universidade de Campinas.

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La guerre des images – de Cristophe Colomb à “Blade Runner” (1492-2019) – GRUZINSKI (RBH)

GRUZINSKI, Serge. La guerre des images – de Cristophe Colomb à “Blade Runner” (1492-2019). Paris: Librairie Arthème Fayard, 1990. Resenha de: KARNAL, Leandro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.21, p.244-245, set.1990/fev.1990.

Leandro Karnal – Pós-graduando do Departamento de História/USP.

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Paraguay y Europa, 1911-1870 – SCHMITT (RBH)

SCHMITT, Peter. Paraguay y Europa, 1911-1870. Assunção: sn., 1990. Resenha de: PETRONE, Maria Thereza Schorer. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.21, p.246-247, set.1990/fev.1990.

Maria Thereza Schorer Petrone – Professora do Departamento de História/USP.

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A questão nacional na primeira República – OLIVEIRA (RBH)

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na primeira República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. 208p. Resenha de: SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.21, p.248-254, set.1990/fev.1990.

Afonso Carlos Marques dos Santos – Professor Adjunto Doutor, IFCS-UFRJ. Coordenador do Setor de Teoria e Metodologia da História.

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Women and the public sphere in the age of the French Revolution – LANDES (RBH)

LANDES, Joan. Women and the public sphere in the age of the French Revolution. Ithaca: Cornell University Press, 1988. Resenha de: AGRANTI, Leila Mezan. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.18, n.15, p.259-263, ago.1988/set.1989.

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Arqueologia – FUNARI (RBH)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988. Resenha de: LÓPEZ, Marcelo Castro. Ampliando os Estudos Clássicos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.18, n.15, p.259-263, ago.1988/set.1989.

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História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem / Revista Brasileira de História / 1989-1990

SILVA, Marcos A. da. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.10, n.19, set. 1989 / fev., 1990. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Pensando a família no Brasil – ALMEIDA (RBH)

ALMEIDA, Angela Mendes de (Org.). Pensando a família no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; UFRRJ, 1987. Resenha de: INÁCIO, Inês da Conceição. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.17, n.15, p.209-218, set.1988/fev.1989.

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Work and struggle. The painter as witness – LUCIE-SMITH; DARS (RBH)

LUCIE-SMITH, Edward; DARS, Celestine. Work and struggle. The painter as witness. Sdt: Paddington Press, 1977. Resenha de: COLI, Jorge. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.189-210, set.1986/fev.1987.

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Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial – VAINFAS (RBH)

VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, 168p. Resenha de: MELLO e SOUZA, Laura. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.199-204, set.1986/fev.1987.

Laura de Melo e Souza – Departamento de História da FFLCH/USP.

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Crime e cotidiano – A criminalidade em São Paulo, 1880-1924 – FAUSTO (RBH)

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano – A criminalidade em São Paulo, 1880-1924. São Paulo: Brasiliense, 1984. Resenha de: LAPA, José Roberto do Amaral. Crime e cotidiano de Boris Fausto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8/9, p.213-215, set.1984/abr.1985.

José Roberto do Amaral Lapa – Departamento de Hhistória do IFCH/Unicamp.

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Bartleby, o escrivão – MELVILLE (RBH)

MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Rio de Janeiro: Editora Record, s.d, 99p. Prólogo de Jorge Luis Borges. Resenha de: TRONCA, Italo A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8/9, p.217-220, set.1984/abr.1985.

Italo A. Tronca – Departamento de História/Unicamp

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Slaveri in the Cities (1820-2860) – WADE (RBH)

WADE, Richard. Slaveri in the Cities (1820-2860). Sdt. Resenha de: ALGRANTI, Leila Mezan. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8/9, p.2017-211, set.1984/abr.1985.

Leila Mezan Algranti – Mestre em História Social pela USP.

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Cultura e cidades / Revista Brasileira de História / 1984-1985

DECCA, Edgar Salvadori de; ARRUDA, José Jobson de Andrade. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8-9, set. 1984 / abr., 1985. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Por que Lima Barreto – BEIGUELMAN (RBH)

BEIGUELMAN, Paula. Por que Lima Barreto. São Paulo: Brasiliense, 1981. Resenha de: SILVA, Marco Antonio da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.2, n.4, p.265-266, 1982

Marco Antonio da Silva – Mestre em História Social. FFLCH-USP.

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História | ANPUH-BR | 1981

Revista Brasileira de Historia ANPUH História

Revista Brasileira de História (São Paulo, 1981-) é o órgão oficial da Associação Nacional de História – ANPUH, publicada quadrimestralmente.

A ANPUH é uma associação científica fundada em 1961, que congrega professores e pesquisadores de História e tem por objetivos o aperfeiçoamento do ensino de História em seus diversos níveis; bem como o estudo, a pesquisa e a divulgação de assuntos de História e a defesa das fontes e manifestações culturais de interesse dos estudos históricos.

A ANPUH promove o intercâmbio de idéias entre seus associados, através da manutenção de publicações periódicas e da realização de simpósios nacionais, de encontros estaduais, de cursos de extensão e de outros eventos de interesse da área.

Podem ser associados da ANPUH: os graduados em História; os pós-graduados em História ou em cursos que tenham área de concentração em História e as pessoas que publicaram trabalhos em quaisquer ramos da História, desde que recomendados por um Núcleo e referendados pela Diretoria Nacional.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 0102-0188 (Impressa)

ISSN 1806-9347 (Online)

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