A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (RBH)
GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. 528p. Resenha de: LIMONCIC, Flávio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.
Nos últimos 70 anos, as vidas de milhões de mulheres e homens Brasil afora se cruzaram nas varas da Justiça do Trabalho. Nos próximos anos, outras tantas o farão. A Justiça do Trabalho é uma instituição central não apenas do aparato estatal que regula as relações de trabalho no Brasil, mas do próprio mundo do trabalho brasileiro. Por isso, causa estranheza o fato de que ela tenha sido tão pouco visitada pela historiografia e pela sociologia do trabalho no Brasil. A Justiça do Trabalho e sua história, volume organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, constitui importante contribuição para a superação de tal lacuna. E o faz segundo a melhor tradição historiográfica, com base em exaustiva pesquisa de fontes produzidas por esse ramo do Poder Judiciário ao longo de décadas e em diferentes cidades e regiões do Brasil, envolvendo tanto trabalhadores individuais quanto categorias profissionais.
O livro é estruturado em cinco partes, além de uma apresentação na qual os organizadores realizam um apanhado histórico da trajetória do tribunal. A começar pelos organizadores, os autores têm longa trajetória acadêmica ou profissional e larga produção na área de estudos do trabalho.
A primeira parte, com textos de Clarice Gontarski Speranza e Rinaldo José Varussa, trata da conciliação entre patrões e empregados em torno das condições de vida e trabalho. Speranza desenvolve suas reflexões a partir das relações entre mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul, entre 1946 e 1954, ao passo que Varussa o faz a partir dos trabalhadores de frigoríficos do Oeste do Paraná nas décadas de 1990 e 2000. A segunda parte discute a Justiça do Trabalho na arbitragem dos conflitos entre patrões e empregados. O texto de Antonio Luigi Negro e Edinaldo Antonio Oliveira Souza desenvolve uma reflexão sobre a Justiça do Trabalho na Bahia entre 1943 e 1948, ao passo que Benito Bisso Schmidt realiza sua análise a partir da ação de uma trabalhadora da indústria de sapatos em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, entre 1958 e 1961. Fernando Teixeira da Silva e Larissa Rosa Corrêa discutem a questão do poder normativo da Justiça do Trabalho na terceira parte, o primeiro em São Paulo às vésperas do golpe de 1964, a segunda tendo como tema a política salarial nos primeiros anos da ditadura civil-militar (1964-1968). A atuação da Justiça do Trabalho no mundo rural brasileiro é o tema da quarta parte. Antonio Torres Montenegro reflete sobre a ação de tal Justiça na ditadura civil-militar, ao passo que Frank Luce trata do estatuto do trabalhador rural na região do cacau. Por fim, na quinta e última parte se discute a Justiça do Trabalho diante das formas de contratação do trabalho oriundas de processos de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Vinícius de Rezende concentra suas reflexões na indústria do calçado de Franca entre 1940 e 1980, Magda Barros Biavaschi reflete sobre a terceirização a partir de processos judiciais, e Ângela de Castro Gomes discute a Justiça do Trabalho diante do trabalho análogo à escravidão.
Muito embora historiadores que atuam em diversas universidades brasileiras componham a maioria dos trabalhos referidos – como, aliás, seria de se esperar em um livro que traz a História em seu nome –, Frank Luce é advogado trabalhista e professor de estudos do trabalho na York University, Toronto, e Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul. A reflexões de ambos evidenciam a importância não só do diálogo com outras disciplinas – no caso da Justiça do Trabalho, o diálogo com a área de direito parece de evidente importância –, como, também, da incorporação de ângulos novos ao tema, como os estudos sobre o mundo rural.
Na Apresentação, os organizadores introduzem, ainda, uma questão fundamental, dessa vez relativa às fontes.
Ainda que a compreensão do que constitui fonte histórica tenha mudado desde que a disciplina histórica se constituiu como campo do saber, fontes continuam sendo imprescindíveis para o trabalho do historiador, e este volume anda de par em par com a literatura histórica e sociológica que, nas últimas décadas, tem utilizado fontes judiciais. No entanto, advertem os organizadores do volume, a documentação produzida pela Justiça do Trabalho tem sido sistematicamente eliminada graças à Lei 7627, de 10 de novembro de 1987 (coincidentemente, o 50º aniversário do Estado Novo). Somente no ano de 2005, quase 540 mil processos foram eliminados no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, localizado em São Paulo.
A Lei 7627 é apenas uma das ameaças às fontes judiciais brasileiras. Outras provêm de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e de Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, às quais vem somar-se a rápida e constante inovação tecnológica que torna obsoletos e, portanto, potencialmente inacessíveis, diversos suportes imateriais, como arquivos eletrônicos. Nesse sentido, o presente livro constitui, também, um alerta para o tipo de reflexão que pode ser perdido caso as fontes judiciais brasileiras em geral, e as da Justiça do Trabalho em particular, sejam efetivamente descartadas.
Suscitar questões, mais do que chegar a conclusões, parece ser a medida de um bom trabalho. E este o faz, ao sugerir ao menos duas, que são tratadas de passagem na “Apresentação”. Da longa manus do Estado de inspiração fascista a elemento do que Ângela de Castro Gomes chama, em outro trabalho, de pacto trabalhista, seria de grande interesse que a Justiça do Trabalho fosse pensada de forma mais sistemática na arquitetura institucional do corporativismo brasileiro. Seria de igual interesse, também, que o papel do Estado na mediação do conflito entre patrões e empregados fosse estudado num enfoque internacional comparativo. De fato, no contexto dos anos 1930 e 1940, vários países criaram agências estatais para a regulação de diferentes mercados, inclusive o de trabalho.
Ao sugerir tais questões, assim como ao reunir reflexões de tal qualidade, A Justiça do trabalho e sua história constitui contribuição fundamental não só para a compreensão da atuação da Justiça do Trabalho, como também para um melhor entendimento de como esta se enraizou nos corações e mentes de gerações de trabalhadores brasileiros.
Flávio Limoncic – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: limoncic@gmail.com.
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O governo local na fronteira Oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela no século XVIII – JESUS (RBH)
JESUS, Nauk Maria de. O governo local na fronteira Oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela no século XVIII. Dourados: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), 2011. 197p. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.
A pesquisa sobre o governo local das câmaras tem longa tradição na historiografia portuguesa, mas apenas no século XXI tornou-se objeto de interesse da historiografia brasileira. Nos anos 1940 Edmundo Zenha escreveu uma obra específica sobre o município e o poder municipal no Brasil colônia. Mas foi um historiador anglo-saxão, John Russell-Wood, que na década de 1970 realizou densa pesquisa sobre a câmara de Vila Rica.
Em 2001, em um contexto de forte mudança de rumo teórico-metodológico da historiografia no Brasil (Fragoso, 2001; Sousa, 2003; Comissoli, 2006; Souza, 2007; Borrego, 2010; Monteiro, 2010), Maria Fernanda Bicalho publicou um texto repleto de sugestões de pesquisa sobre o governo das câmaras (Cunha; Fonseca, 2005; Zenha, 1948; Russell-Wood, 1977; Bicalho, 2001) que estimulou uma série de outras pesquisas.
Uma delas é o livro O governo local na fronteira Oeste, originalmente tese de Doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2006, com o título Na trama dos conflitos: a administração na fronteira Oeste da América portuguesa (1719-1778). A autora, Nauk Maria de Jesus, é professora na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e especialista na História do Mato Grosso. Recentemente publicou também o Dicionário de História de Mato Grosso, com verbetes referentes ao período colonial.
O livro é uma versão resumida da volumosa tese e está formado por três capítulos distribuídos ao longo de 197 páginas que tratam de questões econômicas, políticas e administrativas das duas principais vilas situadas na fronteira oeste do Brasil: Vila Real do Cuiabá (fundada em 1727) e Vila Bela da Santíssima Trindade (de 1752).
Uma questão central da obra é a da disputa ocorrida essas duas câmaras, a partir de 1752, por privilégios e posições de precedência, algo que garantia status na estrutura administrativa e o acesso a melhores receitas orçamentárias. A criação da capitania de Mato Grosso, em 1748, é o pano de fundo dessa rivalidade.
O primeiro capítulo do livro disseca a estrutura humana e funcional das duas câmaras, identificando seu corpo de funcionários e fornecendo dados que permitem até mesmo medir a diferença com instituições camarárias de outras regiões.
Chamo atenção, por exemplo, para a constatação da autora de que existiu juiz de fora na Câmara de Vila Bela na época de sua fundação, o que significou a eliminação temporária da figura do juiz ordinário. Pesquisadores sobre o governo local das câmaras compreendem o quanto esse dado é importante por evidenciar as diferenciações regionais do poder do Império na América. Em São Paulo, por exemplo, há notícia de instalação de juiz de fora apenas em 1803.
Ou seja, nas regiões de fronteira com o Império hispânico, onde havia um ambiente bastante favorável para relações de interesses entre diferentes grupos étnico e sociais, a Coroa portuguesa pode ter tido maior zelo em manter a justiça nas mãos de funcionários régios, ao invés dos eleitos localmente, como acontecia com os juízes ordinários.
Como mostra a autora, em Vila Real ou em Vila Bela, assim como aconteceu em Vila Rica, não houve a formação de um corpo de funcionários oriundos e aparentados nas elites dos primeiros conquistadores. No caso das duas câmaras do Mato Grosso, esses funcionários foram comerciantes, também proprietários de terras e engenhos e criadores de gado, mas sem o verniz das linhagens. Alguns foram oficiais de ofício, sapateiros por exemplo, que com as oportunidades próprias de toda área fronteiriça e de ocupação tardia, ascenderam socialmente por serviços prestados à Coroa ou pela labuta cotidiana de mercador.
O capítulo 2 aborda o período de regência da câmara de Vila Real do Cuiabá e sua atuação. O Oeste do território do Brasil pertencia à capitania de São Paulo, e seu governador, Rodrigo César de Menezes, associado com a ordem municipal, trabalhou para a efetiva incorporação da região ao Império português. Essa iniciativa conjunta deu origem, em 1748, às capitanias de Goiás e Mato Grosso.
Nesse processo de reordenamento administrativo da região houve uma série de conflitos com a população indígena local, especialmente os Paiaguás, envolvidos em negócios de contrabando, extravios do ouro e comércio de mão de obra cativa indígena. Essas lutas contra o gentio, que na realidade significavam também o combate das próprias pretensões castelhanas na zona fronteiriça, marcaram a identidade de vassalos da câmara de Vila Real. Ao arriscar suas vidas nos confrontos com Paiaguás e espanhóis, esses vassalos se viam como executores de determinados serviços e, portanto, dotados de certos direitos.
O capítulo 3 focaliza a rivalidade que existiu entre as duas câmaras no processo de implantação da ordem administrativa na fronteira Oeste. Quando de sua fundação, Vila Bela alcançou uma série de honras e privilégios que na realidade Vila Real considerava como seus de direito, tendo em vista os vários serviços que havia prestado ao rei na ocasião do estabelecimento dos primeiros povoamentos, como o combate aos índios e aos espanhóis. Vila Bela foi agraciada com benefícios e isenções, status de “vila-capital”, tornando-se sede do aparato administrativo e fiscal da capitania e recebendo em seu território instituições como a Ouvidoria, a Intendência do ouro e a Provedoria da Real Fazenda.
Embora a historiografia sobre a ordem municipal viva atualmente um início de renovação, com o surgimento dos primeiros trabalhos que concentram suas investigações sobre um funcionário específico (Schmachtenberg, 2012), O governo local na fronteira Oeste, diferindo da tradição monográfica portuguesa e mesmo dos primeiros trabalhos concluídos no Brasil, focalizou relações intercamarárias, o que é um ponto de originalidade da obra.
Essas rivalidades entre câmaras não foram específicas do Mato Grosso. Uma série de outras do mesmo gênero aconteceram e podem ter sido um dos últimos esforços de reordenamento administrativo do Império português em seu período tardio (1790-1820). Desde 1768 a vila de Santos disputou precedência com a de São Paulo. O ilustrado Marcelino Pereira Cleto chegou a defender a ideia de que a vila de Santos fosse alçada à condição de sede administrativa da capitania.
Mesmo em 1812 a transferência da sede da comarca da vila de Paranaguá para a de Curitiba foi motivo de bastante mal-estar entre essas duas câmaras (Severino, 2009). Houve, portanto, um contexto de transferência de poderes municipais no período colonial tardio que ainda não foi suficientemente pesquisado.
O que faltou no livro, embora apareça na tese, foi a melhor explicitação da terminologia administrativa do período. Alguns pesquisadores vêm se dedicando a esse aspecto bastante revelador da lógica hierárquica do antigo regime (Damasceno, 2003), o que contribui para um maior rigor nas conclusões sobre a história administrativa da época moderna.
A expressão “vila-capital”, ao se referir à câmara principal ou à condição administrativa disputada por ambas as câmaras, poderia ter sido mais problematizada. Essa expressão parece não ter feito parte da terminologia administrativa oficial da época. Os dicionaristas Raphael Bluteau (1728) e Antonio de Morais Silva (1798) definem como unidades administrativas os julgados, vilas, cidades, comarcas e paróquias. Capital não é definida como unidade regional-administrativa. Neste caso, a expressão “capital” que aparece nas representações, ofícios e petições analisados pela autora não teria sido, talvez, uma invenção dos próprios habitantes das vilas em disputa? Ou seja: em que medida a escrita pública local não foi responsável por reelaborar a terminologia administrativa da época, criando novas expressões que atribuíam status a uma localidade?
Assim, do mesmo modo como os habitantes da colônia foram responsáveis por criar outras designações sociais, esse mesmo processo pode ter ocorrido nas designações urbano-administrativas, como o O governo local na fronteira Oeste sugere ao leitor, deixando ainda ao pesquisador em História administrativa uma questão nova para ser problematizada por meio dos escritos municipais.
Referências
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. História do Brasil. História Moderna, História do Poder e das ideias políticas. In: ARRUDA, J. J.; Fonseca, L. A. (Org.) Brasil-Portugal. História: Agenda para o milênio. Bauru, SP: Edusc; São Paulo: Fapesp; Portugal: ICCTI, 2001. p.143-166. [ Links ]
BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo (1711-1765). São Paulo: Alameda, 2010. [ Links ]
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006. [ Links ]
CUNHA, Mafalda Soares; FONSECA, Teresa (Org.) Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Évora: Colibri; Cidehus/EU, 2005. [ Links ]
DAMASCENO, Claudia. Funções, hierarquias e privilégios urbanos: as concessões dos títulos de vilas e cidades na capitania de Minas Gerais. Varia História, Belo Horizonte: UFMG, v.29, p.39-51, jan. 2003. [ Links ]
FRAGOSO, João et al. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. [ Links ]
MONTEIRO, Livia Nascimento. Administrando o bem comum: os “Homens bons” e a câmara de São João del Rey, 1730-1760. Dissertação (Mestrado em História Social) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010. [ Links ]
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SCHMACHTENBERG, Ricardo. “A arte de governar”: redes de poder e relações familiares entre os juízes almotacés na câmara municipal de Rio Pardo/RS, 1811-c.1830. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre, 2012. [ Links ]
SEVERINO, Caroline Silva. A dinâmica do poder e da autoridade na comarca de Paranaguá e Curitiba, 1765-1822. Dissertação (Mestrado em História) – Unesp. Franca, 2009. [ Links ]
SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII). Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003. [ Links ]
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ZENHA, Edmundo. O município no Brasil, 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. [ Links ]
Denise A. Soares de Moura – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus Franca. E-mail: dmsoa1@yahoo.com.br
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Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris – DARNTON (RBH)
DARNTON, Robert. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010. 209p. Resenha de: SOBRAL, Luís Felipe. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.
No momento em que o mundo encanta-se com os novos prodígios da comunicação, capazes de fazer crer que participamos de uma “sociedade da informação” absolutamente sem precedentes, o historiador cultural norte-americano Robert Darnton, especializado na chamada história dos livros e autor de um importante estudo sobre a publicação da Encyclopédie (Darnton, 1987), apresenta um caso desafiador que sublinha a importância da oralidade para a história da comunicação.
Em meados do século XVIII, a polícia parisiense prendeu o estudante de medicina François Bonis, acusado de redigir um poema contra Luís XV; no total, 14 pessoas foram encarceradas na Bastilha, conforme os investigadores seguiam o rastro de transmissão do poema. Ao longo desse percurso, o caso tornou-se complicado, pois surgiram outros cinco poemas sediciosos aos olhos policiais, cada um com seu próprio parâmetro de difusão: “eles eram copiados em pedaços de papel, trocados por pedaços similares, ditados a outros copistas, memorizados, declamados, impressos em folhetos clandestinos, adaptados em alguns casos a melodias populares e cantados” (p.11).1 A investigação não encontrou o autor do verso original provavelmente porque ele não existia: uma vez que os versos eram adicionados, subtraídos e transformados à medida que percorriam o circuito de comunicação, os poemas constituíam um caso de “criação coletiva” (p.11).
Registrada no dossiê policial como “L’Affaire des Quatorze”, a investigação produziu uma série de documentos (registros de interrogatórios, relatos de espiões, notas diversas) acessível na Bibliothèque de l’Arsenal, em Paris. Segundo Darnton, tal série “pode ser tomada como uma coleção de pistas para um mistério que chamamos ‘opinião pública'” (p.12);2 seu valor analítico repousa na capacidade de lançar luz sobre a importância da oralidade na história da comunicação, visto que o episódio indica a interpenetração entre oralidade e escrita em uma sociedade semiletrada.
Ao rejeitar definições apriorísticas de opinião pública (Michel Foucault e Jürgen Habermas), o autor envereda por 15 capítulos curtos que conferem a espessura histórica necessária para cada pista. O passo fundamental do livro é dado no momento em que se contrasta o teor político dos poemas à reação policial. Os 14 incluíam clérigos, burocratas e estudantes, isto é, pessoas oriundas dos estratos médios parisienses e provinciais, que “apreciavam trocar fofoca política em forma de rima” (p.22),3 uma atividade perigosa, porém distante de representar uma ameaça ideológica séria ao Antigo Regime; além disso, cantar músicas desrespeitosas e compor versos sarcásticos eram práticas comuns na Paris setecentista. A iniciativa da operação policial coube ao conde d’Argenson, “o homem mais poderoso do governo francês” (p.26),4 e foi realizada com muita competência: os suspeitos desapareciam das ruas da capital sem deixar rastros para não alertar o presumido autor do poema. Por que o Caso dos Quatorze provocou tamanha reação do aparato repressivo estatal? Tal questão não pode ser respondida pelos documentos produzidos pela Bastilha, pois o circuito de comunicação dos acusados carece de um vínculo tanto com a elite localizada acima da burguesia profissional como com os estratos populares alojados abaixo. Indícios presentes nos diários do marquês d’Argenson, irmão do conde, e de Charles Collé, poeta e dramaturgo da Opéra Comique, apontam a corte de Versalhes como fonte de alguns versos. Duas questões se apresentam: por que o conde tratou a investigação como um assunto da mais alta importância, e por que interessava a certos cortesãos que os versos fossem recitados pela população parisiense?
No final do livro, o leitor encontra seis apêndices: quatro fornecem detalhes sobre os poemas (letras, variações, popularidade), um transcreve um relatório policial, e o último, intitulado “Um cabaré eletrônico”, procura reconstruir, com a colaboração de músicos profissionais, 12 das inúmeras canções parisienses ouvidas em meados do Setecentos.5 Caracterizada pela transitoriedade, a prática musical impõe uma grande dificuldade ao historiador: o problema consiste na existência ou na ausência de uma ou mais fontes que ofereçam o repertório verbal e escrito do qual faziam parte as canções estudadas. Para reconstruir as canções, Darnton conta com cancioneiros, que fornecem as letras, e com outras fontes contemporâneas, que indicam a melodia, identificada pelas primeiras linhas ou títulos das canções. Se por um lado o esforço de reconstrução das canções implica levar a sério o desafio da história oral, por outro não se ilude com a falsa ideia de uma “réplica exata” (p.174).
Entre as canções do cabaré eletrônico distribuídas pelos 14, encontra-se “Qu’une bâtarde de catin”. Em uma de suas versões, ouve-se:
Qu’une bâtarde de catin
À la cour se voit avancée,
Que dans l’amour ou dans le vin
Louis cherche une gloire aisée,
Ah! le voilà, ah! le voici
Celui qui n’en a nul souci
Que uma puta bastarda
À corte se veja avançada,
Que no amor ou no vinho
Luís procure uma glória fácil,
Ah! lá está ele, ah! aqui está ele
Aquele que não tem nenhuma preocupação.6
Trata-se do poema mais simples e o que atingiu o público mais amplo entre os seis apreendidos pela polícia durante a investigação. Redigido para ser cantado ao som de uma melodia popular, identificada em algumas versões pelo refrão (“Ah! lá está ele, ah! aqui está ele”), esse poema apresenta a versificação mais comum das baladas francesas (ABABCC) e admitia inúmeras extensões, pois novos versos podiam ser facilmente incorporados. Cada um de seus versos atacava uma figura pública (a rainha, o delfim, o chanceler, os ministros), ao passo que o refrão denunciava os abusos do monarca, patético alvo do escárnio que se entregava aos prazeres mundanos enquanto o reino era ameaçado por vários problemas. Ao circular por Paris, a canção “tornou-se cada vez mais popular e cobriu um espectro cada vez mais amplo de questões contemporâneas conforme reunia versos” (p.68):7 as negociações de paz da Guerra da Sucessão Austríaca, a resistência ineficaz ao novo imposto denominado vingtième, as últimas disputas intelectuais de Voltaire. Em suma, observa-se a circulação de uma forma específica (as melodias) através das ruas e quais parisienses, processo pelo qual seu conteúdo (os poemas) é transformado pela população segundo os temas lançados em pauta pela conjuntura histórica: “Qu’une bâtarde de catin” tornou-se “um jornal cantado, cheio de comentários sobre os eventos contemporâneos e suficientemente cativante para um público amplo” (p.78).8
No exemplo transcrito, o alvo também era Madame de Pompadour, amante de Luís xv desde 1745. Compreende-se o ataque à Pompadour por sua origem plebeia; não apenas: na série de amantes reais, ela sucedeu às três filhas do marquês de Nesle, “o que era visto como adultério composto de incesto” (p.65).9 Do ponto de vista popular, tais escândalos ameaçavam o monarca e sua linhagem à ira divina; da perspectiva real, o ódio popular era uma manifestação da mão de Deus. Não se deve vislumbrar aí, explica o autor, uma possibilidade concreta de participação popular no mundo político, pois a França ainda está longe de 1789 assim como da Fronda, a revolta contra o governo do Cardeal Mazarino em meados do Seiscentos; no entanto, “uma população maior e mais alfabetizada exigia ser ouvida, e seus governantes a ouvia” (p.41).10 Luís xv era particularmente sensível ao que o povo dizia sobre ele, suas amantes e seus ministros, e monitorava a capital por meio da polícia e do ministro do Departamento de Paris, que detinha assim um imenso poder de manipular o rei. Há indícios de que o conde de Maurepas, hábil cortesão que ocupava tal cargo em 1749, distribuiu, encomendou ou escreveu versos satirizando Pompadour, aliada de seu rival, o conde d’Argenson; o objetivo era persuadir o rei da impopularidade de sua amante entre os súditos parisienses, porém seu plano não deu certo: Pompadour convenceu Luís xv a demitir Maurepas e d’Argenson tomou seu lugar.
A importância da circulação dos poemas, tendo eles origem na corte ou não, residia assim em sua capacidade de estabelecer uma rede de comunicação entre Versalhes e Paris: “um poema podia portanto funcionar simultaneamente como um elemento do jogo político cortesão e como uma expressão de outro tipo de poder: a autoridade indefinida mas inegavelmente influente conhecida como a ‘opinião pública'” (p.44).11 Tal argumento não apenas dispõe o autor contra o nominalismo que só permite falar em opinião pública após o primeiro uso documentado do termo, na segunda metade do século xix, como aponta uma conclusão mais abrangente. Ao argumentar, mediante o exame de um circuito de comunicação setecentista, que “a sociedade da informação existia muito antes da internet” (p.130),12 Darnton descreve, seja na corte de Versalhes seja nas ruas de Paris, as relações de força particulares que constrangiam tal circuito; esse procedimento serve assim para pensar todas as redes de comunicação, inclusive a internet, que não seria a materialização virtual de uma democracia sem limites, mas um instrumento submetido aos interesses específicos de cada um de seus usuários, cujo acesso e emprego de tal ferramenta ainda é mediado pela posição social.13
Após esse percurso tortuoso, lê-se na conclusão:
A pesquisa histórica assemelha-se ao trabalho de detetive em muitos aspectos. De R. G. Collingwood a Carlo Ginzburg, os teóricos não consideram a comparação convincente porque ela apresenta-os em um papel atraente como detetives, mas porque ela está relacionada ao problema de estabelecer a verdade – verdade com v minúsculo. Longe de tentar ler a mente de um suspeito ou resolver crimes exercendo a intuição, os detetives procedem de forma empírica e hermenêutica. Eles interpretam pistas, seguem informações e constroem um caso até chegarem a uma condenação – sua própria e frequentemente a de um júri. A história, como eu a entendo, envolve um processo similar ao de construir um argumento a partir da evidência; e no Caso dos Quatorze o historiador pode seguir os passos da polícia. (p.142)14
Não se deve ver nessas linhas o fantasma do positivismo, pois os arquivos policiais, considerados como fonte privilegiada da rede de comunicação estudada por Darnton, não são autônomos: os indícios que eles apontam devem ser necessariamente relacionados a outras fontes. Ao contrário dos detetives, o historiador precisa ultrapassar a dimensão circunscrita de um caso para entender seu significado mais amplo: o Caso dos Quatorze não é senão o meio de acesso à rede de comunicação que operava na Paris setecentista. Apartado da vivência social que lhe interessa compreender, o historiador encontra-se sempre diante de fragmentos por meio dos quais aquela vivência será reconstruída. Quais os limites dessa tarefa? Se a verdade deve ser estabelecida – pois os eventos históricos ocorrem de uma maneira específica e não de outra –, a interpretação está sujeita à coleção de pistas reunidas, que impõem um jogo complicado entre conjecturas e refutações: nenhuma interpretação é definitiva, nem toda interpretação é válida.
Referências
DARNTON, Robert. A Police Inspector Sorts His Files: The Anatomy of the Republic of Letters. In: _______. The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History. New York: Vintage Books, 1985. p.145-189. [ Links ]
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_______. A World Digital Library Is Coming True! The New York Review of Books, v.LXI, n.9, p.8, 10-11, 2014. [ Links ]
Notas
1 “They were copied on scraps of paper, traded for similar scraps, dictated to more copyists, memorized, declaimed, printed in underground tracts, adapted in some cases to popular tunes, and sung”. Todas as traduções são minhas.
2 “The box in the archives … can be taken as a collection of clues to a mystery that we call ‘public opinion'”.
3 “The dossiers evoke a milieu of worldly abbés, law clerks, and students, who played at being beaux-esprits and enjoyed exchanging political gossip set to rhyme”.
4 “The initiative came from the most powerful man in the French government, the comte d’Argenson, and the police executed their assignment with great care and secrecy”.
5 Elas podem ser ouvidas e baixadas livremente em www.hup.harvard.edu/features/darpoe.
6 Bibliothèque historique de la ville de Paris, ms. 580, fólio 248-249, out. 1747 (p.153). Darnton modernizou o francês nas transcrições dos poemas (p.148).
7 “it [a canção] became increasingly popular and covered an ever-broader spectrum of contemporary issues as it gathered verses”.
8 “It had become a sung newspaper, full of commentary on current events and catchy enough to appeal to a broad public”.
9 “the king’s love affairs with the three daughters of the marquis de Nesle, which were viewed as adultery compounded by incest”.
10 “A larger, more literate population clamored to be heard, and its rulers listened”.
11 “A poem could therefore function simultaneously as an element in a power play by courtiers and as an expression of another kind of power: the undefined but undeniably influential authority known as the ‘public voice'”.
12 “The information society existed long before the Internet”.
13 Como se sabe, o próprio Darnton tem sido bastante ativo na defesa do livre acesso digital ao patrimônio intelectual constituído pela cultura escrita, ocupando atualmente uma posição na diretoria da Digital Public Library of America (www.dp.la); sobre essa questão, ver especialmente DARNTON, 2014, p.8, 10-11.
14 “Historical research resembles detective work in many respects. Theorists from R. G. Collingwood to Carlo Ginzburg find the comparison convincing not because it casts them in an attractive role as sleuths, but because it bears on the problem of establishing truth – truth with a lowercase t. Far from attempting to read a suspect’s mind or to solve crimes by exercising intuition, detectives operate empirically and hermeneutically. They interpret clues, follow leads, and build up a case until they arrive at a conviction – their own and frequently that of a jury. History, as I understand it, involves a similar process of constructing an argument from evidence; and in the Affair of the Fourteen, the historian can follow the lead of the police”. Darnton já discutiu as fontes policiais em outras ocasiões: cf., em particular, DARNTON, 1985.
Luís Felipe Sobral – Doutorando em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Fapesp. E-mail: lf_sobral@yahoo.com.
[IF]A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história – RUST (RBH)
RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história. Cuiabá: Ed. UFMT, 2013. 246p. Resenha de: DUARTE, Magda Rita Ribeiro de Almeida. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, no.68, jul./dez. 2014.
O Papado Medieval continua sendo um tema que atrai atenções, principalmente em decorrência da redescoberta de antigos acervos e de novas interpretações que possibilitam a renovação historiográfica. O modelo político centralizador ao estilo do Estado Moderno atribuído àquela instituição por estudiosos oitocentistas e novecentistas tem sido questionado por pesquisadores que se dedicam a estudar as relações de poder no medievo.
Nos últimos 7 anos, mais precisamente a partir de 2011, com a publicação da tese Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central e de outros relevantes trabalhos como O sagrado Gregoriano: o político como religiosidade, Leandro Duarte Rust é reconhecidamente o historiador brasileiro que provocou uma reviravolta na história política do papado medieval. A proposta do autor reside em refletir acerca das já canonizadas fórmulas de compreensão do poder papal na Idade Média, notadamente dos séculos XI ao XIII, sob perspectivas diferentes. Conceitos como “monarquia pontifícia”, “Reforma Gregoriana” e “poder” são revisitados e tomados, muitas vezes, como fruto do tempo do historiador que os consagrou. O leitor desatento poderia até insinuar que os trabalhos de Rust invalidam a imensa historiografia consolidada sobre o tema, mas, ao contrário, o historiador maneja com grande traquejo seu método de análise, valorizando não só a documentação pertinente, mas também tomando esses antigos trabalhos como objeto de pesquisa, como instrumentos para apresentar ao leitor a construção daqueles conceitos, além dos problemas suscitados por essas interpretações. Entendemos que foi sobre essas bases que A Reforma Papal foi produzida: um exercício de construção histórica permeado pela historiografia (antiga e recente) e a (re)visita aos documentos.
A obra está dividida em seis bem elaborados capítulos. O liame que há entre eles é a construção da noção de “Reforma Papal” e os inúmeros pontos controversos que existem na compreensão desse conceito. Os dois primeiros capítulos refletem acerca de duas correntes historiográficas que atribuem à época entre 1050 e 1150 a ideia de Reforma Gregoriana ou de Revolução Papal. No primeiro caso, Rust destaca a obra de Augustin Fliche, La Réforme Grégorienne, como inauguradora da noção de Reforma, e considera a situação da Europa secularizada, belicamente marcada pela miséria e pelo descumprimento da promessa de prosperidade que o Estado laico fizera. Portanto, um cenário propício para o desenvolvimento de sínteses históricas como a desse católico que buscou resgatar na Idade Média a possibilidade de “salvação da ordem pública europeia”. A Sé Romana teria sido, durante os séculos XI e XII, na perspectiva de Fliche, a única instituição capaz de livrar os cristãos do precipício da anarquia e da desordem, e a figura estadualista de Gregório VII é o exemplo inspirador de liderança, soberania e autoridade, necessárias à dita ordem pública.
Acerca da segunda ideia, a de “Revolução Papal”, Rust apresenta uma vasta historiografia desde Eugene Rosenstock-Huessy, Norman Cantor, até trabalhos mais recentes como os de Karl Leyser e Timothy Reuter. As discussões sobre o conceito giram em torno da impressão de que os gregorianos estavam bem “à frente do seu tempo”, e que seu projeto de mudanças, bem como suas ações, resultaram em um processo revolucionário que podia ser comparado às revoluções liberais do Setecentos ou à revolução comunista do primeiro quartel do século XX. Um dos principais pontos controversos dessa corrente, na opinião de Leandro Rust, seria a negação, por parte dos “revolucionários”, das práticas sociais do mundo senhorial em que viviam, algo que se torna ainda mais complicado quando colocado na perspectiva dos ideais políticos da virada do século XIX para o XX, presentes na análise daqueles defensores da via revolucionária. Para o autor, “o conceito implica uma negação sociológica, pois induz à certeza de que uma sociedade dominada por elites senhoriais é incapaz de mover positivamente os equilíbrios internos de uma época” (p.64). A ideia de “revolução” ganhou inúmeros adeptos ao longo do século XX, e Rust assevera que apesar do antagonismo em relação à perspectiva de “Reforma”, os dois conceitos têm em comum características do Estado Moderno e que nenhuma das duas noções dá conta de explicar, de maneira satisfatória, as experiências do homem medieval no seu próprio tempo.
Nos capítulos seguintes, o autor mostra como os dois conceitos abrigam a noção do sagrado ligada à cultura e às práticas sociais daquele período. A visão religiosa dos curialistas encontrava respaldo na vivência social. Dessa maneira, os reformadores tentavam separar o sagrado do profano para “monopolizar” a “gestão do sagrado”. Nesse sentido, Leandro Rust destaca a fatídica saída de Gregório VII para o exílio, frente à invasão de Henrique IV a Roma. Os atos do papa, cuja memória seria retrabalhada mais tarde (no século XVI), deram-lhe uma aura sagrada, miraculosa e triunfal. Tal memória construída sobre o ataque germânico e, antes, pela desobediência do rei, foi a de que o papa estava alinhado aos desígnios celestes – que o próprio Deus abençoava aqueles que lutavam em favor do bispo de Roma. A estratégia que sacralizou essas ações do campo político baseou-se na tentativa de superar a fraqueza que supuseram as perdas materiais e políticas originadas do conflito com o rei germânico. O objetivo de Rust ao destacar o “sagrado gregoriano” é ressaltar as particularidades que fazem da Igreja Romana uma instituição descentrada que negociava, a todo tempo, as relações, os pactos e os desacordos entre clérigos e leigos. Portanto, noções generalizantes, como “Reforma” e “Revolução”, não ajudariam a entender essa “Era Gregoriana”.
Além disso, Rust desenvolve uma reflexão acerca das pesquisas que defendem o período em apreço como uma época de “ascensão de uma cultura jurídica definida pela descoberta da lei escrita”. Sua conclusão é que, apesar de a historiografia já consolidada insistir no contrário, não há uma significativa substituição da oralidade pelo direito escrito. Argumenta, por exemplo, que Gregório VII não usou da lei canônica para apoiar suas decisões por ocasião da excomunhão de Henrique IV, mas sim da tradição bíblica. De maneira envolvente, o autor entrelaça os argumentos à análise historiográfica e aos documentos cuidadosamente traduzidos do latim, formando uma grande teia, inclusive quando se refere à oralidade textual. Seguindo a sua argumentação, é possível perceber que o direito canônico não debilita o poder que a oralidade e a voz têm no âmbito da política; ao contrário, dá-lhes nova vitalidade.
Na penúltima parte, o autor mostra como a geografia papal é ampla, por meio de um exemplo que permite ver como os interesses vinculados à construção da identidade coletiva e do nacionalismo lusitano, marcados pela religiosidade católica, impediram que a história de Portugal desse destaque à atuação do antipapa Gregório VIII. O clérigo bracarense Maurício Burdino teria sido alijado da história lusitana a partir do momento em que se uniu ao rei Henrique V contra o papa Pascoal II, deixando, portanto, de “defender os interesses de Portugal”. Para compreender o que esse silêncio historiográfico representa, Rust recupera a obra de Pierre David, que considera Burdino como um elemento fundamental na reconciliação entre o regnum e o sacerdotium, em 1122, na célebre “Concordata de Worms”. Além de David, o autor analisa também o peso que a filosofia política hegeliana teve sobre a tradição historiográfica portuguesa, e que explicaria o apagamento de Burdino da História. Esse capítulo proporciona uma sugestiva reflexão sobre o próprio ofício do historiador e os preconceitos a que ele está sujeito.
Por fim, Leandro Rust analisa o sentido religioso da palavra “desejo”, transformada em conceito político, com base no pensamento de dois grandes personagens: Pedro Damião e Bernardo de Claraval. O “desejo” é visto inicialmente como sentimento menor, depreciativo, ilegítimo, que enaltece as vontades do indivíduo em detrimento da coletividade, do bem comum. Os conflitos que tiveram lugar nas últimas décadas do século XI e em meados do século XII, entre o Papado e o Império, teriam sido marcados por atos mesquinhos, causados pelo “desejo”. Desse modo, caberia à Sé Romana punir ou afastar aqueles que quisessem apenas realizar sua própria vontade, portanto, foi essa uma das justificativas da excomunhão de Henrique IV. O termo “desejo” era associado, pelos papistas, à desordem, à “negação da autoridade”. Entretanto, a palavra-conceito é apresentada por Rust de maneira a destacar a sua historicidade ao sabor da própria política. Nesse sentido, observa-se ainda que os integrantes da Cúria pontifícia eram envolvidos por um pensamento político marcado pela teologia, pelo que, em vez de se falar em teoria política para o período, seria melhor recorrer à noção de teologia política.
Além de propor novas reflexões sobre velhos acervos e sobre a historiografia, a obra de Rust oferece ao leitor a possibilidade de entrar em contato com o texto das fontes utilizadas – diga-se de passagem, com notável rigor – provenientes de respeitadas edições em latim. Dessa forma, a obra também pode ser tomada como norte para novas pesquisas, já que coloca à disposição um vultoso inventário de importantes acervos sobre o assunto. Além desses, há mais um ponto significativo: a redação do autor e sua maneira de mostrar a que veio não descuida da erudição necessária, mas sem recorrer a uma retórica carregada de modismos vocabulares que dificultariam a compreensão de um leitor pouco afinado ao tema. Por fim, o estudo crítico de Leandro Rust em A Reforma Papal (1050-1150) apresenta-se como um novo convite à renovação (ou, talvez, à reinvenção?) da História Política da Idade Média, sem desrespeitar a antiga e dominante interpretação da historiografia, mas propondo novos olhares sobre o papado medieval, mesmo que eles pareçam ao leitor uma transgressão ao que já se apresenta, há muito, com ares definitivos.
Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte – Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS), Universidade de Brasília (UnB). Bolsista CNPq. magdarita@hotmail.com.
O Brasil na História Global / Revista Brasileira de História / 2014
O polêmico e polissêmico conceito de globalização se impôs como a caracterização mais difundida das transformações mundiais ocorridas desde a última década do século XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a como um novo momento em um processo de longo prazo de expansão e aceleração dos múltiplos fluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva global tem gerado questionamentos e debates relevantes para o nosso ofício.
Sabe-se que a institucionalização da disciplina histórica transcorreu intimamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construção de suas bases simbólicas de legitimação. Até que ponto o enquadramento no espaço nacional limita a definição dos objetos e perspectivas de análise na pesquisa histórica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas à ideia de História Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recortados nos limites de fronteiras nacionais? A chamada História Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de diálogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo “espírito da época”? Até que ponto a História Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos históricos? Ou seria justamente a ênfase nas particularidades dos fenômenos históricos no interior de um Estado nacional pós-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas “mundiais” ou “globais”?
Essas foram algumas das indagações propostas aos autores que apresentaram artigos para integrar o dossiê temático “O Brasil na História Global”, contido neste número da Revista Brasileira de História. Os trabalhos selecionados oferecem um panorama significativo da diversidade de abordagens abarcadas sob o conceito de História Global.
Em “‘O maior incêndio do planeta’: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a transformar a Amazônia em uma arena política global”, Antoine Acker relata a surpreendente história da ascensão e queda do projeto que visava transformar o Brasil em exportador de carne bovina empregando as modernas técnicas de gestão da multinacional alemã. José Juan Pérez Meléndez, por sua vez, valendo-se de pesquisa inovadora, oferece novas perspectivas sobre um tema clássico da história brasileira do século XIX em “Reconsiderando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo”. Gênero, literatura e crítica à sociedade escravista são os temas que se conectam nos relatos analisados por Ludmila de Souza Maia em “Viajantes de saias: escritoras e ideias antiescravistas numa perspectiva transnacional (Brasil – século XIX)”.
Maria Verónica Secreto explora as possibilidades inovadoras abertas pelas correntes historiográficas que buscam transcender o recorte do espaço nacional para entender as relações entre nosso país e seu maior vizinho em “Histórias conectadas: histórias integradas. Brasil e Argentina em busca de um terceiro no século XIX”. Em “‘Como abelhas polinizando flores’: gerência e racionalização do trabalho no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP no século XX”, Vinícius de Rezende situa a experiência de um importante setor industrial brasileiro no quadro global do desenvolvimento das técnicas de gestão empresarial. Helenice Aparecida Bastos Rocha e Flávia Eloisa Caimi, por sua vez, levam a temática do nosso dossiê à sala de aula, com “A(s) história(s) contada(s) no livro didático hoje: entre o nacional e o mundial”.
Completando esse quadro, publicamos entrevista inédita com Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, pesquisador consagrado e pioneiro no estudo da diáspora africana e dos fluxos migratórios globais na perspectiva da História Mundial. O professor Manning tem se destacado ao longo das últimas décadas na articulação de redes continentais de pesquisadores interessados em explorar os potenciais da História Global.
A seção de avulsos também traz um conjunto de trabalhos marcados por grande diversidade, tanto do ponto de vista da temática quanto no escopo cronológico.
Ela se abre com “Descontruindo mapas, revelando espacializações: reflexões sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial”, de Tiago Kramer de Oliveira. Victor Melo apresenta uma abordagem original sobre a história africana do século XX em “O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949)”. A história política britânica do século XVI é o campo de análise de Eoin O’Neill em “A inglória ilha de Gloriana: Elizabeth I, responsabilidade e honra na Guerra dos Nove Anos na Irlanda”.
Temas clássicos nos estudos sobre economia e da política no Brasil colonial são reexaminados por Thiago Alves Dias em “O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio: mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte”. As linhas de continuidade e ruptura na história do trabalho no Brasil entre os séculos XIX e XX são abordadas em “Greve como luta por direitos: as paralisações dos cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906)” de Paulo Cruz Terra.
Já Bruno Bontempi Jr. e Carlota Boto oferecem uma contribuição original para a reflexão sobre a relação entre políticas educacionais, identidade nacional e construção do Estado brasileiro em “O ensino público como projeto de nação: A ‘Memória’ de Martim Francisco (1816-1823)”. Finalmente, trazemos um trabalho sobre história política nacional no período recente: “Informação, política e fé: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratização do Brasil (1980-1990)”, de André Dioney Fonseca.
O volume se conclui com quatro resenhas. Flávio Limoncic comenta A Justiça do Trabalho e sua história, organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva. Denise Soares de Moura analisa Governabilidade nas fronteiras da América portuguesa, de Nauk Maria de Jesus. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, de Robert Darnton, é a obra examinada por Luís Felipe Sobral. Por fim, Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte apresenta A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história, de Leandro Duarte Rust.
Alexandre Fortes
FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – MARCEL (RBH)
MARCEL, Linden Van Der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2013. 520p. Resenha de: SILVA, Fernando Teixeira da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.
No Congo belga do final do século XIX, em sua viagem pelo coração das trevas do “homem moderno”, Joseph Conrad encontrou bacongos mortos de tanto trabalhar no assentamento dos trilhos da ferrovia do rei Leopoldo, assim como assistiu à fuga dos que se recusavam a ser recrutados. Em pleno século XXI, na República Democrática do Congo, uma matéria do New York Times constata que 90% dos mineiros trabalham em condições análogas à de escravo, para extrair tungstênio e estanho usados em aparelhos eletrônicos consumidos em diferentes partes do globo. Lamentavelmente, eles não constituem exceção. Min Min, pseudônimo usado para evitar retaliações, foi recrutado aos 19 anos em sua terra natal, Miamar, para trabalhar em barcos pesqueiros na vizinha Tailândia, na esperança de encontrar dias melhores, conforme seu “agenciador” lhe havia prometido. Ao chegar às docas, ele lhe disse: “sou seu dono”. Min Min se viu forçado a trabalhar até 20 horas por dia, de domingo a domingo, sem receber qualquer remuneração. Ao tentar fugir, foi capturado e torturado com anzóis. A boa notícia é que, após 9 anos de pesadelos, Min Min conseguiu escapar e retornar para sua casa. “Eu me senti livre”, disse ele (Potenza, 2014). Não teve a mesma sorte a maioria dos cerca de 30 milhões de trabalhadores submetidos à “escravidão contemporânea” em mais de 160 países, segundo levantamento de um relatório sobre trabalho compulsório no mundo atual (Global Slavery Index, s.d., p.7).
Bem sabemos que, do Congo da época de Conrad aos barcos de pesca da Tailândia de nossos dias, a escravidão “moderna”, que vicejou das Grandes Navegações ao século XIX, tornou-se proibida por lei. Mais do que isso, qualquer trabalho que não seja considerado “livre” é moralmente censurável. Entretanto, a escravidão continua presente. É como se algo tivesse saído diferente do combinado, mas essa impressão logo se desfaz quando percebemos que a história do capitalismo, desde a expansão do mercado mundial no século XIV, foi sempre a história do trabalho compulsório, por compulsão tanto física quanto econômica. Tal constatação constitui a essência de Trabalhadores do mundo, livro que Marcel van der Linden publicou originalmente em inglês, em 2008, e que acaba de ser lançado em português pela Editora da Unicamp.
Dono de extraordinária erudição, diretor por vários anos do prestigioso Instituto Internacional de História Social (IIHS), de Amsterdã, e conhecedor de diversas línguas, o autor encontra-se muito bem posicionado para propor uma “história global do trabalho”, termo que, segundo ele, foi cunhado pelo próprio IIHS. Van der Linden logo alerta que não se trata de um novo paradigma, uma escola historiográfica ou outra Grande Teoria. Em termos concisos, tal história é uma “área de interesse”. Em primeiro lugar, está o interesse em produzir uma história transnacional e transcontinental, que seja capaz de romper as barreiras historiográficas confortavelmente fincadas nas fronteiras dos Estados-nação, muitas vezes naturalizadas. Em um contexto expandido de processos históricos, podem-se examinar combinações e fluxos materiais e simbólicos que atravessam diferentes dimensões geográficas, bem como elaborar comparações para testar hipóteses antes elaboradas no interior dos quadros nacionais.
Igualmente importante é o interesse em desafiar definições reducionistas de “classe trabalhadora”, tão ao gosto das perspectivas deterministas e evolucionistas de estudos empreendidos no chamado Atlântico Norte, para os quais os países periféricos acompanhariam os “estágios” de desenvolvimento do centro do capitalismo, onde teriam predominado os trabalhadores assalariados em estado “puro”. Um arraigado pensamento teleológico crê que a escravidão, a servidão por contrato, o trabalho autônomo, doméstico, infantil e de subsistência seriam formas residuais de exploração do trabalhador, não subordinadas à lógica da mercantilização capitalista e, portanto, fadadas ao desaparecimento. Se o campo de visão se amplia para uma escala global, pode-se observar que todas essas formas de trabalho são coexistentes e, muitas vezes, complementares. Para van der Linden, “a base de classe comum a todos os trabalhadores subalternos é a mercantilização coagida de sua força de trabalho” (p.41, grifo do autor). Por isso, importa inventariar os motivos que levam ao uso desta ou daquela modalidade de exploração da força de trabalho, ou o impedem. Seria o trabalho escravo menos eficiente porque “uma pessoa incapaz de adquirir propriedades não pode ter outro interesse que não comer o máximo possível e trabalhar o mínimo possível”, como pontificava Adam Smith (p.75)? São questões como esta que o autor busca deslindar, não apenas do ponto de vista dos cálculos econômicos, mas também a partir de considerações sobre normas comportamentais, legais, políticas e morais.
Essa síntese recobre a primeira e mais instigante parte do livro. Em seguida, pouco mais da metade do estudo é dedicado a analisar as expressões de ação coletiva dos “trabalhadores subalternos” contra a dominação do capital. Num verdadeiro tour de force, com exemplos extraídos sobretudo de vastíssima literatura secundária produzida nos cinco continentes, van der Linden apresenta, na segunda parte da obra, extensa taxonomia de organizações de trabalhadores (sociedades de auxílio mútuo e cooperativas) e, na terceira, formas de resistência, como greves e internacionalismo operário (os sindicatos curiosamente integram esta última parte, talvez reproduzindo teses que demarcam e hierarquizam as fronteiras entre mutualismo e sindicalismo, embora os limites entre ambos sejam muitas vezes fluidos e mal definidos). Por meio de descrições infatigáveis, o afã tipológico da obra ordena, categoriza e define fenômenos comuns, ao mesmo tempo em que estabelece semelhanças e diferenças entre eles. As mais de duas centenas de páginas que catalogam espécimes extraídos de distintos tempos e lugares buscam regularidades, tendências, frequências e comparações que colocam à prova e controlam generalizações tentadoras. O leitor pode se servir de diversas formas desse impulso classificatório, como ler os capítulos separadamente, conforme interesses específicos (como o próprio autor sugere na Introdução), e utilizar as informações de fôlego enciclopédico como referência para eventuais consultas.
A última parte é um apelo ao diálogo interdisciplinar, em particular com a economia, a sociologia e a antropologia. Merece destaque o capítulo sobre a teoria do sistema-mundo, em grande parte inspirado em Immanuel Wallerstein e nas reações às suas reflexões. Tal teoria considera que, desde o século XVI, o capitalismo expandiu-se mundialmente, configurando um sistema que se caracteriza “por uma única divisão internacional do trabalho e múltiplos territórios políticos (Estados) organizados numa totalidade interdependente formada por um centro de trocas desiguais no comércio internacional, e por uma semiperiferia economicamente situada a meio caminho entre o centro e a periferia” (p.320, grifos do autor). Van der Linden reconhece que o conceito apresenta limites, embora possa contribuir para a construção de uma história global do trabalho, o que o leva a retomar as questões centrais da primeira parte do livro. Reexamina agora os variados e, via de regra, simultâneos “modos de controle do trabalho”, assim como as estratégias de resistência das classes subalternas na medida em que o conflito capital-trabalho encontra-se no centro do desenvolvimento do sistema-mundo. De especial interesse são os capítulos 13 e 14, respectivamente dedicados ao estudo da interdependência entre trabalho de subsistência e de produção de mercadorias e ao impacto da incorporação de uma etnia de Papua-Nova Guiné, na Oceania, ao capitalismo e, em particular, ao trabalho assalariado.
Os grandes contornos que Marcel van der Linden oferece para a configuração de uma história global do trabalho revelam as muitas potencialidades dessa “área de interesse”, mas também convidam a refletir sobre seus riscos e desafios. Trabalhadores do mundo se encerra com uma observação de E. P Thompson: “cada acontecimento histórico é único. Mas muitos acontecimentos, separados entre si por vastas distâncias de tempo e espaço, revelam, quando colocados em relação mútua, regularidades de processos” (citado na p.413). A assertiva justifica muito do que van der Linden desenvolveu durante a maior parte do livro, mas também chama a atenção para a própria noção de processo que uma descrição tipológica pode colocar à deriva. A justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica. Riscos como esses são, felizmente, evitados no sugestivo capítulo sobre “internacionalismo operário”.
Assim como a ampliação do conceito de classe trabalhadora deve estar no cerne de qualquer história global do trabalho, parece fundamental alargar também o que se entende por formas de ação e organização coletivas dos trabalhadores. Elas, certamente, não se reduzem às instituições formais. Celebrações, rituais, lazer, esporte e “pequenas lutas” nos locais de trabalho são fenômenos que também podem ser examinados em escala global, pois constituem expressões culturais e políticas que, em diversos momentos, se interconectam em âmbito transnacional, o que obviamente van der Linden não ignora, embora tenha escolhido tratar, sobretudo, de um universo institucional mais conhecido e documentado.
Como “globalizar” a história do trabalho sem desconsiderar devidamente as características dos Estados-nação? Para lidar com essa questão, é elucidativo o estudo de Leon Fink sobre os marinheiros ingleses e norte-americanos dos séculos XIX e XX. Talvez não haja categoria de trabalhadores mais “propícia” a estudos transnacionais que os marítimos, envolvidos diretamente na “economia-mundo” e exercendo papel de relevo no transporte e no mercado global de mercadorias. Eles singram mares e oceanos que perpassam os mais diferentes territórios nacionais e trabalham em uma indústria altamente competitiva que desafia nações e impérios inteiros que queiram regular em escala internacional seus negócios e, principalmente, as relações de trabalho. Esforços regulatórios via de regra fracassaram, e os trabalhadores permaneceram por longo período submetidos a maus-tratos físicos e impedidos de abandonar o trabalho, sob o risco de condenação por deserção, motivo pelo qual foram frequentemente comparados a escravos. Fink acompanha os debates parlamentares, as disputas políticas, a legislação, os embates coletivos e os sindicatos empenhados, entre outros aspectos, em criar um mercado mundial de trabalho mais uniforme e, assim, capaz de equalizar salários e condições de trabalho assentadas em divisões étnicas e raciais. Para dar conta de uma história da luta pela regulamentação do trabalho dos marinheiros na “longa duração” e nos dois lados do Atlântico, o autor precisou contextualizar justamente a “cultura política” dos dois países nos mais diversos períodos abarcados pela obra, assim como as diferentes tradições políticas, institucionais e legais de ambos os Estados-nação (Fink, 2011). Em suma, descrições taxonômicas podem transformar as especificidades dos Estados nacionais em epifenômenos.
Por outro lado, a depender do problema, do objeto de estudo e da abordagem, principalmente quando o intento é analisar longos processos históricos, como o da regulação internacional do trabalho, o que se perde é a “experiência vivida” dos trabalhadores. Importa, então, perguntar se é da “natureza” da história global do trabalho, ocupada com teorias como a de “sistema-mundo”, enfatizar os aspectos “estruturais” em detrimento da história “vista de baixo”. Como van der Linden assinalou, não foram poucos os que viram aquela teoria como determinista, eurocêntrica, fechada e avessa a incorporar os trabalhadores, assim como muitos que a abraçaram defendem que as ações coletivas dos subalternos se interconectam em escala planetária em razão da divisão internacional do trabalho, cabendo aos trabalhadores o papel de protagonistas (capítulo 12).
Estamos diante do complexo problema dos “jogos de escala”. Seja como for, há bons exemplos que mostram a possibilidade de se articular as dimensões, por assim dizer, “macro e micro”, sem que se caia nas falsas dicotomias ainda em voga entre “totalização” e “fragmentação”, “estrutura” e “agência”, “poder” e “resistência”. Mais uma vez, histórias de marinheiros podem ser invocadas em nosso auxílio. Para Peter Linebaugh e Marcus Rediker, em estudo já consagrado (2008), os navios, nos séculos XVII e XVIII, foram tanto um espaço de dominação, tirania, insegurança e monotonia, quanto um meio de produção e ponto de convergência do radicalismo proletário do Atlântico Norte durante a formação do capitalismo. Náufragos, escravos, servos irlandeses, piratas, marinheiros, assalariados, quilombolas, ameríndios e plebeus de toda ordem interconectaram-se (para usar expressão cara a van der Linden) e fizeram circular experiências transcontinentais. Eles protagonizaram motins, revoltas e ondas revolucionárias, como foi o caso da revolução de São Domingos, cujo impacto, por razões que não cabem aqui elucidar, resultou na “nacionalização” dos grupos que formavam aquela “multidão” atlântica (“o que daí resultou foi nacional e parcial: a classe trabalhadora inglesa, os negros haitianos e a diáspora irlandesa“, p.300). Nessa obra merecidamente incensada, a abrangência do conceito de “classe trabalhadora” é ainda mais expandida, os processos transnacionais são historicamente contextualizados, a periodização acompanha grandes mudanças do capitalismo e do Estado marítimo britânico – tudo isso sem perder de vista a perspectiva dos “de baixo”.
Por fim, é preciso levar em conta que uma história global, sobretudo esta que se propõe a combater o eurocentrismo, requer também o desenvolvimento da internacionalização da história do trabalho em todos os quadrantes. Por um lado, muito já se tem feito nessa perspectiva, a começar pelos frequentes congressos internacionais para debater e publicar pesquisas afinadas com a proposta, tendo Marcel van der Linden e o IIHS como uns de seus principais animadores. Por outro, parafraseando o subtítulo de um texto influente de Carlo Ginzburg, as trocas são desiguais no mercado historiográfico. Nem sempre os protagonistas da história global conhecem o que está sendo realizado em todos os lugares. É evidente que se esforçam para isso, mas há limitações de ordem orçamentária, como as impostas até mesmo pelos Estados-nação do Atlântico Norte após a crise de 2008, os quais cortaram recursos para programas e instituições dos países do “capitalismo central” e limitaram ou mesmo inviabilizaram projetos em parceria entre Norte e Sul.
O mais importante, contudo, é ter em mente que, como bem observou van der Linden ao se referir ao idioma alemão, há línguas “ilegíveis”. Não seria o caso de reivindicar aqui pioneirismos nacionalistas nem listar com imodéstia as numerosas pesquisas – diversas em escala transnacional – que ampliaram o conceito de classe trabalhadora, rompendo, por exemplo, com as tradicionais narrativas da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil. Pretendo apenas assinalar que é muito oportuna a publicação do livro em português, não apenas por suas propostas, mas igualmente pelo debate que pode provocar, de modo a levar os historiadores no Brasil a pensar sobre o quanto já foi feito e ainda pode ser percorrido na direção de uma história global do trabalho, mesmo que nem sempre com esse rótulo.
Referências
FINK, Leon. Sweatshops at Sea: Merchant Seamen in the World’s First Globalized Industry, from 1812 to the Present. Chapel Hill: The University of North Carolina, 2011. [ Links ]
GLOBAL SLAVERY INDEX. Walk Free Fondation, p.7. Disponível em: www.globalslaveryindex.org/report/; Acesso em: 22 abr. 2014. [ Links ]
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Peter. A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [ Links ]
POTENZA, Alessandra. “21st Century Slavery”. The New York Times, Mar. 17, 2014 (“Upfront Magazine”, v.146, n.10, p.8-11). [ Links ]
Fernando Teixeira da Silva – Departamento de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: ftdsilva@gmail.com.
[IF]O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – PINTO; MARTINHO (RBH)
PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: WASSERMAN, Claudia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.
O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo.
Alexandra Baharona de Brito e Mario Snajder
A historiografia sul-americana tem se dedicado ao tema das ditaduras de segurança nacional desde a sua implantação, em meados dos anos 1960, e o tema continua tendo desdobramentos importantes. A caracterização dos regimes – fascistas, burocrático-autoritários, civil-militares, ditatoriais, totalitários etc. –, a diferenciação com as ditaduras pregressas, o papel dos militares na política, os atores, o contexto nacional e internacional, a influência e participação dos Estados Unidos, o papel desempenhado pela Doutrina de Segurança Nacional (DSN), o esgotamento de um modelo de acumulação capitalista, o papel dos empresários nos golpes, o estudo sobre a resistência aos golpes, a guerrilha, as organizações de esquerda e as memórias de militantes foram objeto de pesquisa dos historiadores e mereceram atenção em livros e coletâneas. Nos primeiros anos do século XXI, o tema das ditaduras latino-americanas entrou definitivamente em outro campo referente ao debate sobre as políticas de memória instituídas ou não pelos governos pós-ditatoriais. Em 2014 o golpe de 1964 no Brasil completa 50 anos, data “redonda” consagrada para discussão e reflexão a respeito do legado autoritário, ou do quanto “restou” de resíduos na nossa sociedade brasileira do regime implantado a partir do golpe.
O livro organizado por Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, está dedicado justamente a essa temática. Composto de dez capítulos que discutem temas fundamentais do legado autoritário em vários países na Europa e da América do Sul, o livro trata do ressurgimento e interpretação do passado autoritário durante as transições democráticas na Itália, Espanha, Portugal, Grécia e Brasil. Os casos são debatidos em um duplo sentido: as formas através das quais as elites políticas se apropriaram do acontecido e com ele lidaram, e a presença do passado no seio da sociedade.
O eixo que organiza a obra é a atitude perante o passado autoritário, notadamente as questões relacionadas à justiça de transição. Os capítulos estão embasados em forte teorização a respeito da transição democrática e de suas condicionalidades. O livro procura debater a hipótese de que a qualidade das democracias contemporâneas está fortemente influenciada pelo modo como as sociedades em transição lidaram com o seu passado autoritário. Punição das elites autoritárias, dissolução das instituições correspondentes, responsabilização dos indivíduos e do Estado pela violação dos direitos humanos são aspectos possíveis no cenário da justiça de transição ou do estabelecimento de uma “política do passado”.
Segundo a introdução de Costa Pinto, o volume está estruturado sobre três eixos, a saber: legados autoritários, justiça de transição e políticas do passado (p.19). No texto, um dos dois organizadores do volume procura esclarecer e estabelecer limites entre as definições de conceitos associados uns aos outros.
Por legado autoritário entendem-se “todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas, normas, procedimentos e instituições, quer introduzidos quer claramente reforçados pelo regime autoritário imediatamente anterior, que sobrevivem a mudança de regime…” (p.20). Os capítulos referem-se particularmente a dois legados: a permanência das elites políticas que apoiaram os regimes autoritários e a conservação de instituições repressivas.
Por justiça de transição entende-se toda “uma série de medidas tomadas durante o processo de democratização, as quais vão além da mera criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores e agentes repressivos e implicam igualmente uma grande diversidade de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do anterior poder repressivo, tais como investigações históricas oficiais sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos, reparações, dissolução de instituições, comissões da verdade e outras medidas que se tomam durante um processo de transição democrática” (apud Cesarini, p.22), ou “a justiça de transição é componente de um processo de mudança de regime, cujas diferentes facetas são uma parte integrante desse processo incerto e excepcional que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia” (p.23). Significa dizer que as decisões tomadas no âmbito da justiça de transição não são necessariamente punitivas. Podem ensejar a reconciliação ou combinar ambas as coisas. Ressaltam, pois, a forma como ocorrem as transições e a qualidade da democracia que está sendo proposta e instaurada.
Finalmente, por política do passado entende-se “um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem em relação ao significado do passado autoritário e das injustiças passadas, em termos daquilo que esperam alcançar na qualidade presente e futura das suas democracias” (p.24). A política do passado envolve a forma como o passado é trazido à tona nos novos regimes democráticos, e a qualidade da democracia vai depender dessas atitudes, condenatórias ou sutilmente críticas. Ao longo dos capítulos do livro percebe-se que com respeito à política do passado, a ruptura foi menos frequente do que a convivência com os resíduos do autoritarismo, e que o tempo transcorrido entre a redemocratização e o estabelecimento de uma política do passado também deve ser considerado para comparar os diversos casos. A existência de múltiplos passados confrontados em sociedades recém-democratizadas conduz a uma diversidade de formas de lidar com o passado autoritário que vão desde a conciliação (transição pactuada ou negociada), com o estabelecimento de medidas de reconciliação em relação aos crimes cometidos pelo Estado, até a instauração de uma justiça de saneamento (transição por ruptura) com medidas punitivas.
Ao longo dos capítulos instauraram-se, portanto, as seguintes questões: nos casos estudados tratou-se de “esquecer ou reavivar o passado?”, “ocultar ou trazer à tona a memória do autoritarismo e/ou da resistência?”, “enfrentar ou não o passado autoritário?” e, finalmente, “é possível optar entre confrontar o passado ou esquecê-lo?”. Costa Pinto observa que mesmo diante da consolidação da democracia “as velhas clivagens da transição não desaparecem como por milagre: podem reemergir em conjunturas específicas” (p.29), e é isso que nos leva a compreender a frase que serviu de epígrafe à resenha: “O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo” (p.300), aplicada aqui à realidade espanhola.
A instauração de uma política do passado depende de circunstâncias relacionadas com a força dos partidos políticos; os agentes que conduzem a transição; os traços singulares de cada ditadura (relativos à memória coletiva e ao terror instaurado no seio da sociedade); ao tempo de duração de cada ditadura; à qualidade da democracia anterior (cultura política); à autocrítica dos atores (políticos e intelectuais); o rompimento súbito ou prolongado com o regime autoritário; a capacidade dos atores políticos, intelectuais e midiáticos em incluir ou retirar os temas “política de memória, justiça de transição e avaliação do legado autoritário” da agenda a ser debatida pela sociedade como um todo, entre outros fatores mencionados ao longo dos capítulos.
No capítulo introdutório, Costa Pinto compara os casos de Itália, Espanha, Portugal e Grécia, sendo os três primeiros exemplos de ditaduras duradouras, com lideranças personalizadas e alto grau de inovação institucional, enquanto a Grécia assemelhou-se a um regime de exceção. As definições conceituais e a tentativa de comparação entre as quatro transições que aparecem no capítulo compensam a ausência de profundidade de cada um dos casos.
Marco Tarchi se debruça sobre “O passado fascista e a democracia na Itália”. Trata da queda do regime autoritário, do regresso da classe dirigente anterior ao fascismo, das diferenças entre o Sul e o Norte do país, dos matizes ideológicos de cada partido antifascista (dos mais moderados aos mais radicais) e, por consequência, das diferentes visões sobre a justiça de transição ou dos métodos para “desfascistizar o país” (p.51). Ainda se refere aos detalhes que envolveram o “ajuste de contas” – os ataques aos símbolos do regime, a dissolução das instituições do regime – e à política de saneamentos que vigorou na administração pública. No caso italiano, também se observa a pressão exercida pelos Aliados no sentido de garantir o julgamento dos que haviam colaborado com os alemães. A condenação pública do regime de Mussolini e atos de extrema violência verificados no processo transicional podem ser explicados também com base nessas pressões.
O capítulo sobre a justiça de transição em Portugal, escrito por Filipa Raimundo, trata da criminalização dos antigos membros da polícia política do Estado Novo. Aborda especialmente o papel dos partidos políticos no processo procurando elucidar como se constituiu o sistema partidário, quando a questão da justiça de transição entrou na agenda dos políticos e como os partidos se posicionaram a respeito das medidas punitivas. Através de quadros sintéticos, a autora verifica avanços e retrocessos nas medidas punitivas e, simultaneamente, aborda os reflexos na legislação que regulou o processo. Apresenta uma análise da imprensa diária e semanal, dos programas eleitorais e da imprensa partidária para avaliar a importância do tema.
Francisco Carlos Palomanes Martinho aborda “As elites políticas do Estado Novo e o 25 de abril”, através da memória construída em torno do último presidente do Conselho dos Ministros do Estado Novo, Marcello Caetano, em dois períodos: 1980, o ano de sua morte, e 2006, no ano do centenário de nascimento. Os dois períodos são contextualizados e ajudam a explicar a “batalha de memórias” (apud Pollak, p.128). O texto está apoiado em ampla bibliografia a respeito do político e verifica a ambivalência de sua trajetória, bem como questiona sobre o possível “encapsulamento” da memória no final do seu governo, o que reduziria, segundo Martinho, injustamente o papel dessa personagem. O capítulo não reabilita Caetano ou o Estado Novo, mas contribui para entender os objetivos do regime e as “artimanhas da memória” (p.155).
O caso da Espanha é abordado pelo capítulo de Carsten Humlebaek como um caso de transição negociada, em que a forte polarização da sociedade no período da ditadura resultou na necessidade de reconciliação na época da queda do franquismo. Segundo o autor: “A combinação da necessidade de reconciliar a nação com o medo de conflito traduziu-se numa procura obsessiva de consenso como um princípio indispensável para a mudança política depois de Franco, mas também fez os principais atores absterem-se de qualquer tipo de mudança abrupta que pudesse ser interpretada como revolucionária” (p.161). Humlebaek contextualiza o reaparecimento do tema na virada do século XXI, sobretudo na esfera pública, e descreve as organizações que surgiram em torno do tema.
Dimitri Sotiropoulos trata do caso grego e compara-o às transições na Espanha e em Portugal. O capítulo aborda o regime dos coronéis, a sua derrocada e a aplicação muito severa da justiça de transição que promoveu saneamento das instituições, inclusive das Forças Armadas. Revela igualmente, mediante pesquisa de opinião pública, que a sociedade grega não tem uma memória precisa de rejeição ao regime ditatorial. Segundo sua visão, o modelo grego de justiça de transição teve caráter “rápido e comedido” (p.212), o que ajuda a explicar o apagamento ou atenuação da memória a respeito do regime.
O capítulo dedicado ao Brasil, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, debate a lei da anistia, aprovada no país em 1979, no que se refere aos “silêncios” que a legislação ajudou a produzir (p.217), quais sejam, dos torturados e torturadores, das propostas revolucionárias de esquerda e do apoio da sociedade à ditadura. Em seguida, o autor considera a possibilidade de revisão da Lei da Anistia e observa que a chegada de antigos militantes de esquerda ao poder impulsionou “questionamento aos silêncios pactados em 1979” (p.224). Finalmente, Reis Filho se pergunta se é positivo ou não para a sociedade brasileira discutir esses silêncios. Segundo sua visão, debater o passado é a “melhor forma de pensar o presente e preparar o futuro” (p.225).
Alexandra Barahona de Brito também aborda o caso brasileiro, considerando-o como uma das transições mais longas da América Latina, onde supostamente “a duração e o ritmo da transição se deram mais pela ação dos militares do que pela pressão da sociedade civil” (p.236). Ao descrever a forma como os militares tutelaram o processo e menosprezar a resistência e a pressão da sociedade no final dos anos 1970, Brito contribui para mais um silêncio, dos tantos referidos por Reis Filho. O capítulo, ao contrário dos demais, expressou opiniões sem a devida comprovação, bem como procedeu à caracterização de processos com utilização de adjetivos não muito esclarecedores, como aquele que qualifica a política de Lula e Fernando Henrique Cardoso em relação ao passado de “esquizofrênica” (p.244 e 246). Ainda assim, o capítulo mostra os avanços na direção do estabelecimento de uma política de memória. Finalmente, as explicações sobre os motivos que tornaram tão lento, no Brasil, o ritmo da “justiça de transição”, enunciadas na página 253, parecem mais uma vez fruto de opinião e não de um estudo de fontes históricas e da cultura política do país.
O capítulo 9, de Leonardo Morlino, propõe uma análise comparada dos “Legados autoritários, das políticas do passado e da qualidade da democracia na Europa do Sul”. Retoma conceitos e teorias formulados e apresentados ao longo de todo o volume e sugere uma relação entre “inovação dos regimes, duração e tipo de transição” (p.271). Seu texto apresenta dados de pesquisas de opinião pública nos países da Europa do Sul a respeito das atitudes da sociedade em relação ao passado autoritário e reflete sobre a qualidade da democracia em cada país.
Finalmente, no último capítulo Alexandra Baharona de Brito e Mario Sznajder refletem sobre a “Política do passado na América Latina e Europa do Sul em perspectiva comparada”. Completam assim um volume que pretendeu a cada passo comparar os casos e tirar experiências comuns e singulares para explicar as transições democráticas no final do século XX. Grécia, Portugal e Espanha, além de Argentina, Uruguai e Chile, são examinados no capítulo. A abordagem central é a respeito da transição e da instauração de mecanismos de acionamento do passado. Reflete igualmente sobre os legados da ditadura em cada país e como esse legado interfere na implementação da justiça de transição.
Diante de um “passado que não passa” e de resíduos autoritários que permanecem latentes em todas as sociedades estudadas, a leitura do livro nos faz pensar muito sobre as políticas de passado instauradas pelos Estados democráticos e sobre o papel do historiador de ofício nesse processo. Visto que as políticas de memória instauradas pelos Estados vão se modificando com o tempo porque respondem às preocupações do presente e são emolduradas pelo contexto histórico-social concreto, o livro nos induz a refletir sobre o ofício e a responsabilidade do historiador diante dessas políticas de memória instauradas pelos Estados e acerca dos processos traumáticos vividos pelas sociedades. As dimensões problemáticas do passado são a matéria-prima do historiador. Por isso, consolidada a democracia, cada nova geração de historiadores vai debruçar-se sobre o tema do autoritarismo e da ditadura e procurar incrementar o acervo de informações sobre o período. Com base nesse acervo de informações, caberá aos historiadores refletir a respeito das políticas de memória e estabelecer com a maior precisão possível a diferença entre o passado que emana dos interesses rememorativos dos Estados e os prováveis esquecimentos, omissões e artimanhas da memória que possam se contrapor às informações levantadas pelo historiador a partir das fontes e da pesquisa científica.
Claudia Wasserman – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do CNPq. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.
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From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (RBH)
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830. Cambridge (U.K.): Cambridge University Press, 2010. 254p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.
Entre os povos do litoral da Alta Guiné, quando alguém cai doente ou morre, considera-se necessária a presença de um jambacous – palavra em crioulo para designar adivinhadores, curadores, médiuns e outras figuras sociais participantes do mundo do sagrado – capaz de curar o doente ou pelo menos restaurar o equilíbrio social perdido como consequência da ação maléfica de feiticeiros, causadores do mal. Utilizando-se de poções, amuletos ou grisgris, assoprando, declinando palavras sagradas e realizando outras performances, o jambacous, muitos deles mandinkas, assumia um importante papel na restauração do equilíbrio social das famílias, linhagens e comunidades. Nos séculos XVIII e inícios do XIX, para essas comunidades costeiras, era medida de grande importância detectar os feiticeiros maléficos para retirá-los da sociedade por meio da pena de morte ou da venda do indivíduo no circuito do tráfico transatlântico de escravos.
No Pará da década de 1760, o escravo mandinka José foi chamado para curar a escrava bijagó, Maria, que estava gravemente doente. Para tal, José preparou uma mistura de plantas e a administrou pronunciando palavras incompreensíveis, como parte de um ritual complexo que incluía tanto o conhecimento herbalista quanto o contato com o invisível. Nada sabemos da história pessoal de José. O fato, porém, de o tráfico entre a Alta Guiné e a Amazônia – como bem mostra o livro From Africa to Brazil – ter colocado em circulação um grande número de feiticeiros, pode lançar luz sobre aspectos ainda desconhecidos e insuspeitados da rica história atlântica que entrelaçou as sociedades costeiras e das terras altas da Alta Guiné com as da Amazônia colonial, mais particularmente o Maranhão da segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do XIX.
Sintetizado em enxutas 254 páginas, o livro escrito por um dos maiores especialistas na história da Guiné, Walter Hawthorne, lança luz agora sobre diferentes aspectos que condicionaram a história da montagem de uma economia escravista atlântica no Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Como mostra o autor, foi a dinâmica do tráfico transatlântico que promoveu a recuperação da economia da Amazônia, ocorrida a partir da fundação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, e até as primeiras décadas do século XIX. Analisando temas amplos e variados, o livro aborda a montagem e declínio de uma economia escravista amazônica baseada na mão de obra indígena, a estruturação do tráfico transatlântico – que permitiu a concretização das políticas reformistas pombalinas relativa ao desenvolvimento da cultura do arroz, principalmente no Maranhão da segunda metade do XVIII – e, finalmente, a estruturação de uma economia e uma sociedade escravistas na Amazônia.
A economia da Amazônia baseava-se, sobretudo, no labor que os trabalhadores escravizados da Alta Guiné desenvolviam no cultivo do arroz, trabalhando de sol a sol no inclemente clima tropical da região, em uma agricultura que sugava gigantesco volume de trabalho escravo, da etapa de derrubada da floresta à incessante capinação, colheita e beneficiamento do arroz carolina, o qual, muito apreciado pelos portugueses, encontrava um mercado consumidor voraz no ultramar. Assim, insisto, os escravos oriundos da Alta Guiné tornaram-se a base da economia e sociedade amazônicas do período. Os dados e análises dispostos nesse livro são ricos e variados, salvo engano o mais completo estudo a respeito da constituição da sociedade escravista transatlântica na Amazônia.
Entre a miríade de assuntos abordados por Hawthorne, dois aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, ressalto a análise a respeito do tráfico de escravos, por meio da qual o autor corrige os dados disponíveis no The Transatlantic Slave Trade Database (www.slavevoyages.org). Utilizando-se de variados documentos – relatórios sobre tráfico de escravos, cartas, inventários de proprietários de fazendas e documentos eclesiásticos, entre outros, provenientes de ambas as regiões ligadas pelo tráfico transatlântico – Hawthorne mostra que o tráfico de escravos entre a Alta Guiné e a Amazônia, da segunda metade do século XVIII até meados do XIX, se desenvolveu principalmente à custa das sociedades costeiras e não das localizadas nas terras altas. Se, de fato, o tráfico engolia tanto populações de terras altas como costeiras – mandinkas, bijagós, papeis, balantas etc. – circunstâncias ligadas ao sistema social que produzia cativos acabaram por sugar majoritariamente grupos litorâneos. De fato, o livro discute como as sociedades costeiras da Alta Guiné se achavam particularmente sensíveis ao tráfico devido tanto à necessidade de consumo de instrumentos de ferro para a manutenção dos sistemas de irrigação e drenagem de águas nas áreas produtoras de arroz, quanto à dinâmica do sistema social de sequestro de indivíduos de etnias vizinhas e de perseguição de feiticeiros. As vítimas, vendidas aos agentes do tráfico local, a maioria destes “lançados”. Assim, From Africa to Brazil comprova que eram as sociedades costeiras que, subjugadas por suas próprias dinâmicas e demandas, se tornaram as mais fragilizadas frente ao tráfico.
Seguindo a interpretação proposta por Sidney Mintz e Richard Price, o autor argumenta que, mais do que o pertencimento a grupos étnicos específicos, a travessia do Atlântico produzia uma identidade pan-regional, estabelecendo profundos laços entre pessoas que usufruíam do mesmo universo cultural mais amplo, mas que, em suas sociedades originais, haviam permanecido separadas por pertencimentos étnicos específicos.
O segundo aspecto especialmente rico desse trabalho se materializa na discussão do sistema de produção de arroz e, neste, o papel desempenhado pelo trabalhador escravizado da Alta Guiné. Opondo-se à tese do “arroz negro”, desenvolvida por Judith Carney no livro Black Rice, cujo argumento central gira em torno da continuidade dos métodos e técnicas da produção desse cereal entre a África e as colônias das Américas, este livro documenta a descontinuidade entre o tipo de cultivo de arroz praticado nas terras alagadas da região costeira da Alta Guiné, que exigia um importante conjunto de saberes detidos pelos homens, e a agricultura de queimada e derrubada – a coivara –, dominante no espaço colonial amazônico dedicado à rizicultura. O que sugere este livro é que o sistema de plantio de arroz desenvolvido na Amazônia seria fruto da conjugação de saberes variados, provenientes dos indígenas, portugueses e, certamente, também dos trabalhadores provenientes da Alta Guiné– sendo, por seu caráter multicultural, mais bem conceituado como “brown rice”, algo como “arroz pardo”, que em inglês produz um trocadilho com o termo usado para definir arroz integral.
Se os homens teriam seus saberes tradicionais quase excluídos do sistema de produção colonial, teria cabido às mulheres a tarefa de manter e transmitir conjuntos de práticas e saberes ligados aos hábitos de vida e costumes alimentares originários das terras costeiras da Alta Guiné, permitindo a manutenção de fortes laços entre as populações escravizadas na Amazônia e o pan-regionalismo das sociedades étnicas de Cacheu e Bissau.
Finalmente, em seus últimos capítulos, Hawthorne se volta para a discussão do cotidiano do escravo na sociedade maranhense, marcado por crenças e práticas espirituais originárias da Alta Guiné. Aqui o autor se dedica a traçar as continuidades e permanências de práticas, ritos e crenças que permitem o rastreamento das íntimas conexões existentes entre a Alta Guiné e a Amazônia, de ontem e de hoje. Embora, sem dúvida, ele aí apresente instigantes dados e análises, essa é a parte menos aprofundada do livro. Resumida em capítulos curtos e carecendo de um maior diálogo com a história social da escravidão na Amazônia e em outras regiões do Brasil, essa parte do livro contrasta com a riqueza encontrada nas outras, embora ofereça dados raramente encontrados em estudos nacionais sobre a região.
Em suma, o livro como um todo apresenta ampla e aprofundada análise de aspectos cruciais da montagem, desenvolvimento e declínio do sistema de escravidão africana na Amazônia e de suas conexões com povos, práticas e ritos de povos variados, mas sobretudo costeiros, da Alta Guiné. Por isso, From Africa to Brazil é um livro que merece ser lido por todos os interessados na história da África, do tráfico transatlântico, do sistema escravista e dos povos da Amazônia. Um livro que devia também ser traduzido para divulgar a história da escravidão numa região em que ela é ainda pouco desenvolvida.
Maria Helena P. T. Machado – Departamento de História, Universidade de São Paulo. E-mail: hmachado@usp.br.
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In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region – GARFIELD (RBH)
GARFIELD, Seth. In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region. Durham: Duke University Press, 2014. 343p. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.
Nas primeiras páginas de seu livro In Search of the Amazon, Seth Garfield evoca os antigos relatos de exploradores – narrativas emocionantes de jornadas hercúleas – para apresentar sua própria empreitada de anos de investigação sobre a Amazônia. As narrativas antigas de viagens às quais o autor alude, entretanto, representavam o meio tropical por meio de identidades bem estabelecidas e contrapostas ao mundo europeu, fundando mitos e firmando preconceitos. Diferentemente, estamos agora diante de uma refinada reflexão histórica que nos incita a questionar o que sabemos sobre a Amazônia. Com ele palmilhamos – página a página – as trilhas construídas no passado por diversos atores históricos, continuamente refeitas e redirecionadas no jogo dos enfrentamentos sociais e políticos. Munido de minuciosa pesquisa documental e disposto a trilhar territórios inexplorados, Garfield desmonta armadilhas de pretensas identidades, conceitos e representações arraigadas. Demonstra como a busca bem-sucedida de uma essência da Amazônia implica a conclusão de que ela não tem essência alguma, pois é lugar historicamente produzido em intricadas relações sociais de escalas locais, regionais, nacionais e globais. Com guia tão perspicaz, torna-se uma aventura intelectual estimulante adentrar a floresta. Garfield integra a melhor estirpe de historiadores, pois, como disse Marc Bloch (s.d., p.28), “onde fareja a carne humana, sabe que ali está sua caça”.
O tema da exploração da borracha na Amazônia brasileira no período do Estado Novo conduz o livro. A despeito de referenciar continuamente os tempos áureos dessa commodity no Brasil entre 1870 e 1910, e dedicar o epílogo às representações e práticas que delineiam a Amazônia desde os anos 1970 até os dias de hoje, o foco principal concentra-se nos anos da Segunda Guerra Mundial. O contrabando de sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira, para o sudeste da Ásia, em 1876, e o sucesso das novas plantações nas primeiras décadas do século XX estabeleceram uma competição internacional na qual o Brasil saiu derrotado: no início dos anos 1930, a Amazônia produzia menos de 1% da borracha consumida no mundo.
Entretanto, com o lançamento da Marcha para o Oeste como projeto de integração nacional por Vargas e o avanço da conquista japonesa sobre o sudeste asiático em 1941, a Amazônia emergiu como local estratégico para o fornecimento dessa matéria-prima. In Search of the Amazon concentra-se na análise política, cultural e ambiental da região, acompanhando a produção de múltiplos sentidos para a Amazônia, no entrecruzamento de práticas sociais e disputas de poder.
A Amazônia é analisada como lugar instituído na temporalidade histórica por uma miríade de sujeitos que, por sua vez, enfrentam as condições do meio físico. Para tanto, Garfield dialoga com o geógrafo David Harvey, para quem os lugares são artefatos materiais e ecológicos construídos e experimentados no seio de intricadas redes de relações sociais, repletos de significados simbólicos e representações, produtos sociais de poderes políticos e econômicos. Com Bruno Latour, o autor argumenta que a “natureza” é inseparável das representações sociais, e que a sociedade resulta também de elementos não humanos. Com Roger Chartier, considera os conflitos sociais à luz das tensões entre a inventividade de indivíduos e as condições delineadas pelas normas e convenções de seu próprio tempo. Esses horizontes precisam ser avaliados na investigação do que homens e mulheres pensaram, fizeram e expressaram.
Garfield escarafunchou arquivos em Belém, Fortaleza, Manaus, Porto Velho, Rio Branco e Rio de Janeiro, como também nos Estados Unidos. Enfrentou condições diversas de conservação, organização e acesso aos acervos, nos quais encontrou jornais da época publicados em várias cidades, boletins e revistas de serviços ligados à borracha, programas de rádio, cinejornais, trabalhos científicos de diversas áreas do conhecimento, entrevistas com migrantes nordestinos, processos criminais e civis, relatórios diversos, correspondências pessoais de homens e mulheres envolvidos na saga dos “soldados da borracha” nos anos 1940, romances sobre a Amazônia, literatura de cordel e fotografias. As imagens são pedra de toque na caprichosa edição do livro. Vinte e oito fotografias – além de figuras e mapas – privilegiam aspectos urbanos de Ma-naus e Belém, cenas de trabalho e vida cotidiana, poses de autoridades políticas e técnicos, acampamentos de migrantes. O diálogo entre as análises do autor e as imagens é extremamente rico, mesmo que o leitor permaneça curioso sobre as condições de produção de algumas fotografias.
Desde a decadência da borracha em 1910, ruínas invadiram a paisagem amazônica, com cidades fantasmagóricas, retração demográfica e um rastro de miséria e doenças tropicais. Os ideólogos do Estado Novo elegeram a Amazônia como imperativo nacional, investindo-a de muitos significados: interior a ser desenvolvido pelo Estado centralizado, fronteira a ser delimitada e protegida, terra de promissão para os migrantes nordestinos, torrão natal e metonímia da nação. Vargas visitou Manaus em 1940, discursou, lançou financiamentos para migrantes, inaugurou serviços para incrementar o comércio da borracha, o abastecimento, condições sanitárias e transporte. Mas a invenção da Amazônia não seria urdida apenas “de cima”. Contou com outros atores e interesses: elites regionais, militares, médicos e sanitaristas, engenheiros, botânicos, agrônomos, geógrafos, literatos, cordelistas e migrantes.
A despeito do caráter espasmódico das articulações entre a Amazônia e o mercado internacional, a história investigada no livro é sobretudo uma história de conexões globais. As transformações tecnológicas colocavam a borracha – isolante, flexível, resistente e impermeável – entre os materiais mais estratégicos para as nações. Em 1931, Harvey Firestone Jr. gabou-se de como as coisas feitas de borracha se haviam tornado indispensáveis para o ser humano civilizado, desde o primeiro choro do recém-nascido até a lenta marcha para o túmulo. A borracha alimentou a cultura do automóvel na sociedade norte-americana e o crescimento da aviação por todo o mundo. Presente em milhares de produtos (como luvas cirúrgicas, sapatos, preservativos e pneus), a borracha revolucionou o cotidiano dos civis e a fabricação de artefatos militares. Evitando interpretações deterministas, o autor alerta para o fato de que as inovações tecnológicas e aplicações da borracha na indústria eram produtoras e produtos das mudanças políticas, econômicas e culturais resultantes de práticas dos agentes sociais (p.55).
Quando o ataque japonês à Malásia suspendeu o fornecimento de borracha, a atenção norte-americana se voltou para a Amazônia. Delinearam-se profundas divergências entre membros do governo de Franklin D. Roosevelt. Alguns, como o empresário e político Jesse Jones, viam a Amazônia como inferno verde e inelutavelmente bárbaro: uma vez que nenhuma ação poderia transformá-la, tratava-se de explorar a borracha da forma mais prática possível. Outros, como o vice-presidente Henry Wallace, apostaram na Amazônia como terra promissora, pedra fundamental da integração interamericana, defendendo projetos de saúde, melhorias e integração social. Ao delinear a ação norte-americana na Amazônia, o autor argumenta a multiplicidade de intenções e práticas dos Estados Unidos na região – resultantes paradoxais de enfrentamentos na política interna desse país – traçando uma análise complexa e original das relações entre o Brasil e os Estados Unidos naqueles anos.
O diálogo entre os norte-americanos defensores de projetos sociais paralelos à exploração da borracha e as autoridades nacionalistas do governo Vargas foi profícuo e gerou iniciativas conjuntas de formalização do trabalho e estabelecimento de condições mínimas de higiene, saúde e alimentação. Autoridades brasileiras e representantes norte-americanos se esforçaram pela presença efetiva do Estado brasileiro na Amazônia, com ações e estratégias para formação e controle da mão de obra. Todas essas práticas eram informadas por projetos políticos críticos da mera exploração descompromissada e inconsequente, embalados tanto pelos sonhos brasileiros de construção nacional como pelas aspirações dos Estados Unidos no sentido de estabelecer conexões interamericanas sob sua égide.
Os seringueiros, por sua vez, surgem nas páginas do livro como sujeitos sociais ativos. Garfield critica sua representação recorrente como vítimas passivas, fáceis de manipular, meros joguetes de campanhas pela borracha. Relatos orais transmitidos entre gerações acenavam com histórias pessoais de enriquecimento com a borracha. Signos de masculinidade abrilhantavam a aventura de partir para a Amazônia. O caráter sazonal, móvel e independente da atividade atraía muito mais que a perspectiva do trabalho nas fazendas de café do Sudeste. A informalidade e a mobilidade combatidas pelo Estado seduziram homens em busca de trabalho e com ganas de enriquecimento. A decisão de migrar foi fruto da seca e da falta de perspectivas nos locais de origem, mas também se baseou em cálculos informados por relações de parentesco, gênero e valores culturais.
Analisando as relações entre Brasil e Estados Unidos em torno da Amazônia em termos de interesses recíprocos, o autor afasta-se das interpretações do Brasil como país subdesenvolvido e vitimado pelo Tio Sam. Nem por isso desconsidera o legado impactante das políticas norte-americanas de guerra, que acirraram a competição em torno do acesso e uso dos recursos, representações divergentes da natureza e disputas pelo exercício do poder.
In Search of the Amazon encontrou também todos os indícios do sofrimento e miséria dos trabalhadores da borracha, e das tragédias de isolamento e abandono após o final da guerra. Entretanto, mostra como os seringueiros foram capazes de se reinventar nas décadas que se seguiram. Passaram de aventureiros desavisados a populações tradicionais e detentoras de saberes, de “soldados da borracha” a ambientalistas. Obtiveram apoio internacional para suas lutas e interesses na conservação da floresta. Investiram a Amazônia de novas significações e desafios. Explorando conexões regionais, nacionais e globais da saga da borracha no período da Segunda Guerra Mundial, Garfield problematiza a natureza da região, apresenta ao seu leitor um panorama instigante da Amazônia como lugar produzido socialmente, arena contínua de conflitos e lutas no jogo da história contemporânea, cenário de controvérsias garantidas dos tempos que virão.
Referências
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4.ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. [ Links ]
DUARTE, Regina Horta.- Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora CNPq. reginahorta duarte@gmail.com.
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Golpes e Ditaduras / Revista Brasileira de História / 2014
O ano de 2014 transcorre sob o signo dos debates acadêmicos e políticos relacionados ao cinquentenário do Golpe de 1964. O dossiê “Golpes e Ditaduras“, contido neste número 67, traz a contribuição da Revista Brasileira de História a esse processo de reflexão. Os seis artigos contidos no dossiê, cinco deles enfocando o Brasil e um Portugal, exploram diferentes dimensões da experiência de supressão da democracia por meio da força, assim como as formas pelas quais as sociedades contemporâneas enfrentam os desafios colocados por essas circunstâncias históricas.
Em “Os ‘inimigos da pátria’: repressão e luta dos trabalhadores do Sindicato dos Químicos de São Paulo (1964-1979)”, Larissa Rosa Corrêa detalha os impactos da violência exercida sobre os trabalhadores urbanos organizados em associações de classe, tomando como caso de estudo uma das maiores organizações operárias do país, em um trabalho que enfatiza a dimensão classista do autoritarismo instalado a partir de 1964. Já o provocativo artigo de Bryan Pitts intitulado “‘O sangue da mocidade está correndo’: a classe política e seus filhos enfrentam os militares em 1968” examina as reações dos congressistas brasileiros à repressão desencadeada contra o movimento estudantil em 1968. Chamando a atenção para os vínculos de sangue e de classe entre líderes universitários e políticos profissionais, Pitts oferece novas perspectivas para a compreensão da mudança da natureza do regime a partir da promulgação do AI-5 e para o debate sobre a relação entre seus componentes civis e militares. Carla Simone Rodeghero, no artigo “Pela ‘pacificação da família brasileira’: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979”, proporciona ao leitor uma reflexão sobre as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos de “transição democrática” vividos pelo Brasil. Examinando como a concepção do significado da anistia desloca-se da mera “conciliação” para a de “ferramenta para a conquista de direitos”, Rodeghero agrega importantes elementos para um debate de renovada atualidade.
As dimensões culturais da busca de construção de legitimidade dos regimes ditatoriais, bem como da resistência a eles, estão no foco dos três artigos que fecham o dossiê. Em “Os usos do civismo em tempos autoritários: as comemorações e ações do Conselho Federal de Cultura (1966-1975)”, Tatyana de Amaral Maia examina um dos principais mecanismos institucionais por meio do qual o regime exercia sua política cultural, voltada a “valorizar os elementos cívicos” como parte de um processo de “regeneração” da vida social e política do país. Já Francisco Régis Lopes Ramos, em “O Calendário e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da história e hagiografia”, analisa a atualização da tradição católica de associação entre o registro da passagem do tempo e a memória do sacrifício dos mártires como parte da resistência às ditaduras latino-americanas, a partir do exemplo de como obras de caráter hagiográfico vinculadas à Teologia da Libertação trataram a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima. Por fim, Edwar de Alencar Castelo Branco reflete sobre a relação entre experimentalismo estético e resistência política em “PO-EX: A poética como acontecimento sob a noite que o fascismo salazarista impôs a Portugal”.
A seção de artigos avulsos contém sete trabalhos. Dois deles analisam personagens relevantes da história da ciência nos séculos XIX e XX e seus vínculos com o Brasil. Trata-se de “Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à Teoria da Evolução”, de Nelson Papavero e Christian Fausto Moraes dos Santos, e de “Diplomacia e ciência no contexto da Segunda Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941”, de Olival Freire Junior e Indianara Silva. A dimensão cultural das relações entre o Brasil e o restante do mundo continua em foco no trabalho de Anaïs Fléchet e Juliette Dumont, intitulado “‘Pelo que é nosso!’ A diplomacia cultural brasileira no século XX”.
Os quatro trabalhos seguintes analisam temas e objetos diversos no campo da história social. Márcia C. O. Cury oferece uma importante contribuição para o estudo dos movimentos sociais no Cone Sul em “Ocupando espaços, construindo identidades: a importância do movimento de pobladores para a história política e social do Chile (1950-1970)”. “Cidadania por um fio: o associativismo negro no Rio de Janeiro (1888-1930)”, de Petrônio Domingues, traz novos elementos para o debate de um dos aspectos cruciais do período pós-emancipação no Brasil. Paulo Cesar Gonçalves oferece uma nova abordagem para um tema clássico da história do trabalho no Brasil em “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”. A seção de avulsos se encerra com um trabalho focado na temática de gênero: “Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)”, de Raquel Discini de Campos.
Este número traz de volta a seção Memória, publicando a conferência “Conhecimento histórico e diálogo social”, proferida pelo ex-presidente nacional da Anpuh, Benito Bisso Schmidt, na abertura do XXVII Simpósio Nacional de História (julho de 2013, Natal, RN).
O volume encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas relaciona-se diretamente ao dossiê temático desta edição: Claudia Wasserman analisa a coletânea O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, organizada por Francisco C. Palomanes Martinho e António C. Pinto. Fernando Teixeira da Silva apresenta aos leitores brasileiros Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho, tradução do livro do historiador holandês Marcel van der Linden. Por fim, trazemos duas resenhas dedicadas a obras sobre aspectos da história brasileira recentemente publicadas em inglês. Maria Helena P. T. Machado comenta From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830, de Walter Hawthorne; e Regina Horta Duarte analisa In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region, de Seth Garfield.
Alexandre Fortes
FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]
Racecraft: the soul of inequality in American Life – FIELDS; FIELDS (RBH)
FIELDS, Karen E.; FIELDS, Barbara J. Racecraft: the soul of inequality in American Life. London and New York: Verso, 2012. 302p. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013.
Karen e Barbara Fields são irmãs e, seguindo um gesto conforme à convenção racial norte-americana – principal objeto de análise deste livro, do seu fim abertamente iconoclasta e da indignação das autoras –, ‘afro-americanas’ por definição. Elas, no entanto, não pretendem disputar, nesta obra, o uso de outros termos nas terminologias raciais e de origem. Muito pelo contrário. Preferem tornar claro que, como projeto intelectual, mais que a liberdade de escolha entre tipologias, elas defendem o desenraizamento da ideologia da ‘construção social da raça’ (racecraft) do discurso político e de propostas de ordem social e convívio humano. Assim, em análises que pretendem iluminar como essa ideologia se atualiza e mantém-se contemporânea desde a Revolução Americana, as autoras buscam enfaticamente demonstrar por que elas a consideram, ao mesmo tempo, uma irracionalidade, uma fraude intelectual, uma evasão historiográfica, um crime político e um problema ético.
Naturais de uma centenária família da Carolina do Sul, radicada em Charleston – cidade tornada emblemática no memorialismo sulista, graças à importância de ilustres nativos na Confederação e na defesa do escravismo –, elas problematizam seu aprendizado intelectual e memórias familiares para expor que a manipulação da classificação racial tem limites estratégicos e éticos. Herdeiras de uma tradição praticamente defunta, o antirracismo com programa e raízes na Nova Esquerda, em uma era de agendas liberais e multiculturalismos, elas falam do interior dessa frente que as alcançou nos anos 1960 entre a longa história de luta e desobediência civil contra o Jim Crow 1 e o racismo reproduzido na ideologia da ‘construção social da raça’.
Publicado pela Verso – órgão da New Left Books, famoso por publicar a New Left Review nos anos 1960 –, o livro é composto de dez capítulos, entre textos inéditos e reeditados, e corresponde a uma trajetória intelectual que se iniciou, nos anos 1980, na investigação das formas populares das ideologias raciais, para alcançar, nos anos 2000, sua produção no universo acadêmico. Karen, socióloga e africanista, atualmente radicada na Duke University, é estudiosa das religiões e responsável pela nova tradução inglesa (1995) do clássico As formas elementares da vida religiosa, de Émile Durkheim. Barbara, historiadora da Columbia University, realizou vários trabalhos premiados sobre a história norte-americana e da escravidão, dentre os quais Slavery and freedom on the Middle Ground: Maryland during the Nineteenth Century (1985); The destruction of slavery (1985); Slaves no more: three essays on emancipation and the Civil War (1992), e Free at last: a documentary History of slavery, freedom, and the Civil War (1992), em coautoria.
Contra as expectativas e intenções de Barbara J. Fields, todavia, nenhum dos seus trabalhos se tornou tão influente quanto o ensaio de 1982, Ideology and Race in American History. Desde então, ela tem lutado contra a celebridade desse texto e a avaliação de que ele ofereceria suporte às visões sobre a história norte-americana como trajetória de caldeamentos e construção de distintos arranjos de ‘relações raciais’. Racecraft, pode-se dizer, é sua mais recente tentativa de explicar, aos expoentes dessas leituras, que estudar o Jim Crow não corresponde a aceitar sua fundamentação no truísmo da ‘construção social da raça’ como pressuposto analítico. Encerra-se no livro o argumento de que a ‘raça’ é sempre um predicado do racismo, e que a historiografia, contra o anacronismo, deve levar em conta que raça e racismo pertencem a modalidades diferentes de ‘construção social’.
O que as irmãs Fields propõem amiúde é a análise do lugar-comum da ‘raça’ como algo ‘socialmente construído’, resultado da produtividade ideológica do racismo. Tornando claro que não entendem por ideologia ideias como doutrina, dogma, propaganda, conjunto de atitudes ou crenças, e sim o “vocabulário descritivo da existência cotidiana, através da qual as pessoas estabelecem o sentido da realidade social na qual vivem e cuja materialidade criam e recriam dia a dia” (p.134), elas inventariam o modo como opera essa narrativa, definidora do laço social nas unidades humanas, sociais e políticas nas suas leituras da história norte-americana. O racismo se realizaria como uma atividade de duplo padrão – em sociabilidade, estratificação social, parentesco e percepção da alteridade –, na qual se confere a sujeitos atributos de objetos. Transforma-se, em ato, a ação do racista (aquele que reconhece na noção de ‘raça’ um princípio de realidade) em atributo racial. A dinâmica da ‘construção social da raça’ seria estruturada por esse hábito fundamental. Sua principal operação ideológica, a transformação de predicados em objetos de ação, cerca-se de um procedimento fundamental, o da obsessiva classificação, e encerra, segunda as autoras, dois resultados importantes: tornar relações humanas ‘relações raciais’ e distinguir o racismo (quando tomado como problema) de outras formas de desigualdade.
Essa evasão, do racismo transformado em raça, para elas central na história dos Estados Unidos desde a guerra de independência, teria apoiado a consolidação da anômala posição de classe dos escravos e, posteriormente, trabalhadores ‘afro-americanos’, em uma sociedade constitucional e militantemente democrática, como para sancionar, com o veto do racismo, as pressões por alterações nesse posicionamento. A linha predominante da historiografia norte-americana, ao registrar essa experiência no rol de ‘minorias’ – um eufemismo racial – teria, segundo elas, construído uma narrativa característica, que buscou (e ainda encontra) amparo em quatro posições principais:
- a) na limitação ao Sul, e à vida dos negros, das experiências de subordinação, divisão e convívio racial;
- b) na desconsideração da escravidão como dinâmica importante para a vida nas demais regiões do país, e na negação de que há um legado da escravidão, partilhado pelos norte-americanos;
- c) na redução analítica, mediante a oposição ‘segregação-integração’, do complexo universo de estratégias de ordenamento social produzidas e vividas nos Estados Unidos;
- d) na negação de qualquer legitimidade às agendas políticas que se expressam em ressentimentos e projetos de classe, sobretudo os levantados pelos ‘brancos’, supostamente do outro lado da ‘linha de cor’.
O nó-cego dessa narrativa histórica está, dizem as autoras, na pretensão em provar que a segregação, uma marca da vida norte-americana, gerou o que o Sul (mas não apenas) conheceu por Jim Crow. Para elas, “a escravidão era um sistema de expropriação do trabalho e não de administração das relações raciais” (p.161), explicando que o racismo, diversamente ao que se sustenta, inventou a separação de ‘grupos raciais’, e não o contrário. Na datação proposta, a formação dessa ideologia racial teria correspondido ao projeto revolucionário de defesa às liberdades dos homens livres, se atualizado como sustentáculo do escravismo e, em nova volta do parafuso, no estabelecimento, no plano político e intelectual, de eixo permanente de conversão de ressentimentos de classe em raciais, verdadeiro dilema dos Estados Unidos, concluem elas – ter múltiplos ressentimentos de classe, mas nenhuma linguagem para expressá-los.
Para as irmãs Fields, aqueles que tratam descendentes de africanos ou outras ancestralidades como raça – atualmente, menos sob organizações como a KKK que sob o discurso acadêmico das ‘identidades’ ou da ‘agência’ – realizam um ato de exclusão da História e da política. Com esse impulso, a preeminência da raça na linguagem pública sobre as desigualdades nos Estados Unidos reforçaria outro fenômeno norte-americano, talvez mais importante: a recusa em aceitar a problemática de classe como presença legítima na esfera pública, tornando ‘raças’ grupos cuja exclusão é pretendida.
Nesse registro, a posição das autoras diante da importância das cotas raciais nas agendas de políticas sociais segue a mesma avaliação: seriam incapazes de sustentar qualquer sentido de justiça que não represente concessão de prestígio à raça. A ‘tolerância racial’, corolário dessa agenda de ‘inclusão’, é igualmente execrada. Dizem, acompanhando argumento exposto por Richard Sennett em Respect in a world of inequality (2004), que ela seria inútil à democracia: como não se dirige às desigualdades e à exclusão que assolam a vida social e política norte-americana, a tolerância serviria à divisão da sociedade entre os que alegam respeito como direito e os que solicitam tolerância como expressão de boa vontade.
Em meio às expectativas de que a presidência de Obama e a reforma das categorias do censo norte-americano prenunciariam uma era ‘pós-racial’, o que Karen e Barbara Fields apontam é a renovada credibilidade da ciência e do folclore racial na inscrição de noções populares e velhas metáforas do sangue (parentesco e descendência) na ciência genética e do genoma, e delas, seu contrabando para a História e a Etnologia. Assistiríamos, no fascínio por tudo aquilo que pareça designar-se multirracial/multicultural, à atualização do debate novecentista sobre ‘variedades de mistura’ (miscigenação) – como hibridação e mesmo como poligenia – e à intrusão de noções racistas populares e eruditas, renovadas formas de afirmação da ‘pureza racial’.
Para quem o “conceito de raça pertence à mesma categoria do geocentrismo e da bruxaria” (p.100), o trabalho fundamental está em desenraizar a enorme produtividade terminológica e o potencial de ordenamento social do racismo com o seu legado de irracionalidade. Essa atividade de livramento da ‘superstição’ do racismo, essa amarra do passado, como acreditam, tem potencial para estimular a imaginação de novas linguagens políticas.
Notas
1 Por Jim Crow designavam-se todas as medidas de segregação e subordinação racial aplicadas nos Estados Unidos desde, aproximadamente, a década de 1870. O termo começou a circular no país nos anos 1830, em esquetes teatrais nas quais homens, pintados de preto, satirizavam o escravo como criatura bestial, ou degradada. A partir dos anos 1840, o termo passou a ser associado às medidas legais e consuetudinárias destinadas a estabelecer o lugar social e a forma de tratamento a ser devida à população branca pela população negra. A plena consolidação do Jim Crow, como categoria política e jurídica, foi alcançada após o período da chamada Reconstrução Sulista (1865-1877).
Wanderson da Silva Chaves – Pós-doutorando. Universidade de São Paulo (USP), Departamento de História. Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil. E-mail: wanderson_schaves@yahoo.com.br.
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A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar – FERREIRA (RBH)
FERREIRA, Marieta de Moraes. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. 464p. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane S. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.
É na ponta de lança da pesquisa atual em história da historiografia que se localiza o livro de Marieta de Moraes Ferreira, recém-lançado pela editora da Fundação Getulio Vargas. Não o afirmo com favor, tampouco por protocolo do gênero resenha.
Qualquer observador sagaz da área nota que o crescimento de pesquisas em seu interior deu-se priorizando ‘grandes homens’ ou ‘grandes obras’, especialmente no que diga respeito aos tempos mais recentes e ao Brasil. Desde os estudos de Manoel Salgado Guimarães, o século XIX ganhou análises que se debruçaram sobre os nexos entre as instituições, sua sociabilidade e as concepções de história nelas correntes e delas decorrentes (Guimarães, 2011). Aos autores do século XX ficou reservado certo enlevo, como se fossem ‘intelectuais flutuantes’ – especialmente aos ensaístas anteriores à virada que deu origem às instituições universitárias que a partir dos anos 1930-1940 concentraram o ensino, e gradativamente a pesquisa, em história.1
Ultrapassamos lentamente tal fase, e A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar parece, a um só tempo, colaborar nessa direção e ser sinal dela. O livro está dividido em três partes – a saber: “A História da História no Rio de Janeiro: da UDF à UFRJ”; “Perfis e trajetórias”; “Entrevistas com alunos e professores da UDF, da FNFI e do IFCS”.
Na primeira parte, encontra-se uma minuciosa reconstituição das vicissitudes que atravessaram o estabelecimento do primeiro curso de história no Rio de Janeiro, por meio de um conjunto de fontes diversificado e de uma quantidade considerável de informações: perfil social e intelectual dos professores, grade curricular, programas de curso, decretos federais, textos programáticos.
Na segunda parte, a escala muda, indo do quadro mais amplo de referência apresentado na primeira ao foco mais concentrado nas trajetórias de Henri Hauser, Delgado de Carvalho e Luiz Camillo, assim como da primeira geração propriamente ‘profissional’ do Rio de Janeiro. Vale assinalar a atenção cuidadosa da autora para a figura de Hauser, ligada à preocupação em esquadrinhar os caminhos da memória institucional que foi sobrevalorizando a presença das missões francesas em São Paulo, em detrimento da presença delas na capital (p.86 e 217). São cabíveis, de passagem, duas observações a respeito disso, aliás: Marieta de Moraes Ferreira foi aos arquivos do Ministério dos Assuntos Estrangeiro (MAE), em Nantes, auscultar redes envolvidas no recrutamento de quadros e no interesse da França pelo ensino no Brasil. Para os que não se satisfazem com uma história da historiografia que esconde os bastidores por que passaram os praticantes do ofício antes de brilharem em cena ou durante o espetáculo, a atitude é entusiasmante e abre um leque considerável para novas pesquisas.
Esta observação leva à segunda. Na qualidade de pesquisadora das missões francesas no curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo (USP) em seus anos iniciais, encontrei na advertência de que as análises têm “supervalorizado o papel de Fernand Braudel e a influência dos Annales como elementos centrais na formação dos cursos de História” (p.92) a perspectiva aliada, que eu buscava há tempos. Pude, em outra oportunidade, assinalar, como o ‘historiador missionário’ manteve-se sob as rédeas dos laços de amizade mantidos e serviços prestados à sua clientela – a elite mentora da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, por sua vez em peleja constante com o governo federal. Eram limitadas as possibilidades que tinha de não reproduzir uma ‘historia historicizante’, contra a qual sua obra já vinha sendo elaborada. Padecerá minguando de lastro empírico aquele que ligar imediatamente a recepção dos Annales à presença de Braudel entre 1935 e 1937, e mesmo posteriormente em passagens breves, na USP (Rodrigues, 2012, p.256-276).
A terceira parte, em que são transcritas entrevistas, parece se revestir de especial interesse, lidas à luz da composição do livro. É como se nelas fosse possível encontrar versões alternativas aos conflitos que animam a narrativa da autora e vislumbrar quais foram as saídas que construiu para, simultaneamente, considerar o que escutava enquanto ia colocando, tête-à-tête, versões orais e documentação escrita.
Seria o caso de se assinalar, por fim, um traço peculiar do livro. É sem grandes alardes teórico-metodológicos que ele se apresenta, na contramão da tendência que se dedica a longos introitos e citações de autores momentosos, cujo nexo com a pesquisa desenvolvida, por vezes, fica a desejar. Lidando todo o tempo com noções de institucionalização e autonomização das práticas científicas, que remetem no limite ao conceito de campo, de Pierre Bourdieu, estas são reconstituídas em seu processo de constituição. Dito de outro modo, ganham destaque tanto avanços quanto recuos no percurso de separação entre poderes político e eclesiástico e instituições de saber – daí, para além da óbvia atenção dirigida às intervenções do governo federal no estabelecimento/fechamento das instituições, a atenção ao perfil dos docentes católicos e sua orientação de ensino (notavelmente, p.38-40). Concomitantemente, são objeto de atenção os processos de divisão do trabalho internos a esse mesmo espaço – não exatamente autônomo, mas em constante conflito por autonomia, a certa altura da rotação dos perfis docente e discente (notavelmente, a divisão em dois cursos separados, Geografia e História, e o estabelecimento da disciplina “Introdução aos Estudos Históricos”). Livro com o qual se aprende, livro para se devorar.
Referências
GUIMARÃES, Maria Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Geográfico Brasileiro (1838-1889). [1995]. São Paulo: Annablume, 2011. [ Links ]
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. [ Links ]
RODRIGUES, Lidiane S. A produção social do marxismo universitário em São Paulo (1958-1978). Tese (Doutorado) – FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. [ Links ]
Nota
1 Talvez por isso cause algum furor ainda o esquema analítico nem de longe incorporado para o entendimento desses “intelectuais/historiadores desvinculados de instituições” que oferece Miceli, 2001.
Lidiane S. Rodrigues – Centro Universitário Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado). E-mail: lidiane.rodrigues@fecap.br.
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A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro – FISCHER (RBH)
FISCHER, Brodwyn. A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro. Stanford, California: Stanford University Press, 2008. 488p. Resenha de: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.
O livro A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro é o resultado da tese defendida por Brodwyn Fischer, em 1999, na Universidade Harvard. A autora analisa o processo de formação dos direitos na organização do Estado e da sociedade brasileira e os conflitos de classe, raça e gênero que permearam a constituição do espaço urbano carioca.
Por eleger como cerne de sua análise os embates estruturados no cotidiano dos pobres do Rio de Janeiro, A Poverty of Rights é uma contribuição original à história social da pobreza urbana. O trabalho relaciona-se à renovação da historiografia em tempos recentes, dando destaque ao tema das favelas. Como observou Brum,
se a história urbana e, em especial, a história da cidade do Rio de Janeiro se consolidaram como campo de pesquisa institucionalizado de historiadores a partir da década de 1980, será apenas na primeira do século XXI que começou a tomar corpo uma produção dos programas de pós-graduação em história em que a favela é tomada como objeto de estudos históricos. (Brum, 2012, p.121)
Junto aos livros Um século de Favela (2001), organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito, Favelas Cariocas (2005), de Maria Lais Pereira da Silva, A invenção da favela (2005), de Lícia do Prado Valladares, e Favelas cariocas: ontem e hoje (2012), organizado por Marco Antônio da Silva Mello, Luiz Antônio Machado da Silva, Letícia de Luna Freire e Soraya Silveira Simões, a obra de Fischer inscreve-se na renovação dos estudos históricos sobre a cidade do Rio de Janeiro, tendo como eixo a problematização das práticas e representações da pobreza e do espaço urbano.
O diferencial da pesquisa de Fischer é o recorte temporal, o escopo de fontes que utiliza e a maneira como enfoca o tema da cidadania. Ao enfrentar uma questão de ampla tradição na História e nas Ciências Sociais que tratam do Brasil e da América Latina – a relação entre desigualdade, direito e espaço urbano –, Fischer desenvolve um argumento centrado em processos que transcorreram entre a década de 1920 e o início da década de 1960. Esse foi o período de rápida urbanização, industrialização e expansão dos subúrbios, favelas e outras formas urbanas. O corte temporal também se justifica em vista da estrutura de poder que presidiu o campo político carioca. Desde a primeira Constituição republicana (1891) até 1960, o Rio de Janeiro tinha um prefeito indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado, elegia vereadores para o legislativo municipal e deputados e senadores para o legislativo federal. Sendo a capital da República, as reformas no sistema político encontravam ampla repercussão e expressão na vida política e cultural da cidade. Além disso, o governo de Lacerda (1961-1965) foi um marco para os estudos sobre a pobreza urbana no Rio de Janeiro: ao iniciar uma política de remoção que culminaria no despejo parcial ou completo de cinquenta a sessenta favelas (atingindo cerca de 100 mil pessoas), alterou profundamente a rotina e a conformação do espaço urbano carioca.
Além do recorte temporal, a autora usa diversos tipos de documentos para desenvolver o seu argumento. Uma vez que as classes subalternas não deixam arquivos organizados que informem sobre suas práticas, justifica-se o uso de sambas, jornais, fotografias, discursos políticos, relatórios de agências do poder público, projetos de lei, legislação, cartas e processos de justiça, entre outros documentos, para compreender as estratégias dos pobres na conquista da cidadania. O material acumulado pela autora é eclético, encontra-se disperso numa miríade de lugares e instituições, e estabelece vários filtros culturais para representar a pobreza urbana. Somente com a leitura de um caleidoscópio de registros, somada à análise da bibliografia específica sobre a relação entre direito e cidadania, consegue-se colocar em pauta problemas relevantes na análise da sociabilidade e das práticas dos grupos subalternos.
Para analisar o corpus documental heterogêneo que acumulou, a autora organizou a análise em quatro partes que possuem certa autonomia, cada uma das quais é constituída por dois capítulos. Na primeira parte, intitulada “Direitos na Cidade Maravilhosa”, analisa o processo de formação do espaço urbano do Rio de Janeiro e a classificação das formas de habitar da população pobre. Interessa à autora salientar como a construção do status de ilegalidade para as formas de habitar e viver na cidade, a restrição do espaço político dominado pela interferência do governo federal e as legislações restritivas ao crescimento das favelas contribuíram para a reprodução de uma incorporação clientelista dos pobres na política urbana. Na segunda parte, intitulada “Trabalho, Direito e Justiça Social no Rio de Vargas”, Fischer tem como principal material de análise as cartas enviadas para o presidente Getúlio Vargas. A promulgação da legislação trabalhista, o discurso varguista incorporando o trabalhador na comunidade política nacional, e as estratégias dos grupos populares para conquistar direitos sociais são o eixo de sua análise. Na terceira parte, intitulada “Direito dos pobres na Justiça Criminal”, a autora analisa a forma como o crime era definido por critérios do sistema jurídico e de uma moralidade popular, e como esse jogo de força foi alterado pela reforma do Código Penal na década de 1940, com o surgimento da noção de ‘vida pregressa’. Na última parte, intitulada “Donos da Cidade Ilegal”, Fischer analisa os conflitos pela terra e pelo direito à moradia travados na zona rural e nas favelas do Rio de Janeiro.
A “Era Vargas” (1930-1945) foi um período de grandes transformações no que toca o direito da classe trabalhadora. Esse fato político e social já foi analisado por diferentes autores, constituindo-se em uma questão clássica para a historiografia brasileira. Fischer consegue trazer uma novidade para o tema, pois não restringe a análise ao direito social e político, mas aborda como as reformas penal e urbanística do Rio de Janeiro também afetaram a cidadania dos grupos populares. Destarte, a política de massa e o Código Eleitoral de 1932, o direito à cidade e o Código de Obras de 1937 do Rio de Janeiro, o direito civil e o Código Penal de 1940, e o direito social e a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943) são os eixos de sua análise, como fica evidenciado na divisão das partes do livro.
A autora mostra que a conquista de direitos para os ‘pobres’, para os trabalhadores informais e parcela significativa da população brasileira sem registro civil delineou-se em situações de grande ambiguidade. Longe de desenvolver uma narrativa linear da evolução do Estado e da sociedade na sedimentação dos direitos, como na análise clássica de T. H. Marshall em Cidadania, classe social e status, ou de incorporar o discurso das ideologias políticas que transformaram Vargas em um mito, a autora apresenta a contingência das situações vivenciadas pelos ‘pobres’. Preocupa-se com a forma pela qual as pessoas com baixa educação formal e com pouco poder econômico e político construíram várias estratégias para lutar por direitos, sempre marcadas pela contingência de suas vidas e experiências sociais.
Ao sublinhar o processo de formação dos direitos e da cidadania, Fischer enfatiza que os pobres “formam a maioria numérica em várias cidades brasileiras, e eles compartilham experiências de poucas conquistas, exclusão política, discriminação social e segregação residencial”, conformando “uma identidade e em alguns momentos uma agenda comum” (Fischer, 2008, p.4). Ela compreende que esse grupo não tem sido pesquisado de forma verticalizada, visto que a história social do período posterior à década de 1930 tem privilegiado a análise da consciência da classe trabalhadora, dos afrodescendentes, dos imigrantes estrangeiros e das mulheres. Segundo a autora,
a verdade é que no Rio – como em outros lugares, da Cidade do México a Caracas, a Lima ou Salvador – nem raça, nem gênero, nem classe trabalhadora foram identidades generalizadas e poderosas o suficiente para definir a relação entre a população urbana pobre e sua sociedade circundante, durante a maior parte do século XX. Muito poucas pessoas realmente pertenciam à classe trabalhadora organizada; muitas identidades raciais e regionais competiram umas com as outras em muitos planos; muitos laços culturais, econômicos e pessoais vinculavam os mais pobres aos clientes, empregadores e protetores de outras categorias sociais; também muitos migrantes foram para a cidade para alimentar suas esperanças. O povo pobre no Rio compreendeu a si mesmo, em parte, como mulheres e homens, em parte como brancos e negros, nativos ou estrangeiros, classe trabalhadora ou não. Mas eles também se entenderam como um segmento específico, simplesmente como pessoas pobres tentando sobreviver na cidade. (Fischer, 2008, p.3, tradução nossa)
Nesse sentido, Fischer também enfatiza que a experiência da pobreza urbana não pode ser reduzida à definição de classe trabalhadora no sentido clássico do marxismo. Ao reduzir a experiência da pobreza urbana a uma situação de classe, corre-se o risco de perder as dimensões étnicas, raciais e de gênero que moldam as identidades e as relações tecidas com as variadas instâncias sociopolíticas. A desigualdade social foi tomada no livro como uma condição que atravessa diversos tipos de situações e que perpassa transversalmente as relações tecidas na sociedade e no Estado brasileiros.
Por tudo isso, A Poverty of Rights constitui um importante trabalho para a renovação dos estudos sobre a cidadania no período posterior à década de 1930 e da história social da pobreza urbana no Rio de Janeiro.
Referências
ALVITO, M.; ZALUAR, A. (Org.) Um século de favela. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. [ Links ]
BRUM, Mario Sergio Ignácio. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. (Prefácio de Paulo Knauss). Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. [ Links ]
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. [ Links ]
MELLO, M. A. da Silva; MACHADO DA SILVA, L. A.; FREIRE, L. L.; SIMÕES, S. S. (Org.) Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. [ Links ]
SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas Ccariocas (1930-1964). Rio de Janeiro: Contratempo, 2005. [ Links ]
VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. [ Links ]
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira – Doutorando, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV). Bolsista Faperj. E-mail: samu_oliveira@yahoo.com.br.
[IF]Cash for your trash: Scrap recycling in America – ZIMRING (RBH)
ZIMRING, Carl A. Cash for your trash: Scrap recycling in America. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 2009. 221p. Resenha de: BOSI, Antonio de Pádua. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.
Publicado em 2009, Cash for your trash foi originalmente escrito como tese de doutorado na área de História na Carnegie Mellon University (Pennsylvania, EUA), em 2002. Embora seja um dos primeiros estudos especializados sobre a reciclagem de sucata nos Estados Unidos, seu alcance abriga fontes e reflexões que possibilitam rastrear algumas mudanças nas práticas sociais, desde o século XIX, relacionadas ao desperdício e à reutilização de todo tipo de materiais descartados. Este último aspecto é a característica mais relevante do livro.
Inicialmente, Carl Zimring propõe um difícil problema: qual é o significado da reciclagem? Por meio de uma rudimentar escala histórica o autor afirma que essa atividade é bastante antiga, e encontra registros desde os séculos VIII e VII a.C., quando Isaías e Miqueias profetizaram que Deus converteria os povos de tal modo que “das suas espadas forjariam relhas de arados, e das suas lanças, foices” (Zimring, 2009, p.13). Sua evidência seguinte aponta para a Europa medieval do século XII e para técnicas de produção de papel a partir de restos de pano. Deste ponto ele se aproxima rapidamente dos séculos XVIII e XIX, e identifica a presença de um incipiente mercado para a compra e venda de trapos e ferro-velho, cujos desdobramentos teriam causado forte impacto econômico e social no século XX, tornando-se um importante, lucrativo e monopolizado empreendimento:
Lidar com o lixo tornou-se um grande negócio na década de 1990. Diversas cidades privatizaram seus sistemas de recolhimento e processamento de lixo, estabelecendo contratos com empresas gigantes que passaram a dar um destino para o desperdício da sociedade. Firmas privadas estabeleceram contratos com cidades durante décadas, mas onde operavam 10 ou 20 mil companhias passou a haver lugar para apenas quatro corporações nacionais que agora dominam esse mercado. (Zimring, 2009, p.155, tradução nossa)
Na percepção do autor, a sobrevivência humana baseada no lixo surgiu como uma alternativa para pessoas pobres e sem repertório para entrarem no mercado de trabalho. Apoiado no estudo do sociólogo Stewart Perry (1998), sua caracterização acerca dessa atividade indicou um tipo de trabalho “sujo, perigoso e de baixo status“. Tratou-se, no início, de uma atividade restrita a imigrantes europeus pobres, principalmente italianos com pouco domínio da língua inglesa. A desconfiança tida contra tais imigrantes esteve aliada a uma percepção negativa sobre lidar com o lixo dos outros, produzindo uma sensibilidade generalizada de que essa atividade era mesmo suja e repulsiva – a razão fundamental da falta de prestígio que marcou homens e mulheres que se ocuparam com esse trabalho. Mesmo quando a sucata foi transformada em mercadoria e passou a ser vista também como um vantajoso negócio, o status daqueles que viviam desse comércio não mudou.
Zimring confirma que desde o século XIX diversos materiais foram sistematicamente recolhidos e negociados em muitas cidades. Borracha, panos velhos, garrafas, estanho, ferro, aço e até ossos (transformados em fertilizantes) constituíram a renda de muitos trabalhadores que, a serviço de negociantes (que atuavam como atacadistas dessas mercadorias), cruzavam grandes centros urbanos em carroças coletando ou comprando essas sobras. Contudo, sobre isso, suas reflexões e as fontes pesquisadas não ultrapassaram a contribuição de Susan Strasser (2000) acerca da realidade das pessoas que sobreviveram dessa atividade até a primeira metade do século XX.
A atenção de Zimring dirigiu-se predominantemente ao comércio de materiais descartados e à sensibilidade frente ao desperdício. Centrado na questão do comércio de materiais recicláveis, o autor oferece um retrato estatístico da conversão do lixo em negócio. Na segunda metade do século XIX, o crescimento das transações envolvendo sucata ao longo do século XIX nos Estados Unidos (especialmente restos de ferro e aço) foi bastante visível. Se em 1884 registrou-se a importação de 733 mil toneladas de ferro e aço, em 1887 o volume importado saltou para quase 2 milhões de toneladas. Tal crescimento tornou-se evidente desde as primeiras décadas do século XIX, quando o Estado taxou esse tipo de importação e arbitrou um sistema de classificação a fim de estipular a qualidade do material negociado. Entretanto, o comércio de materiais recicláveis, que aumentou continuamente no século XIX, não era motivado por nenhum tipo de preocupação centrada no desperdício ou na higiene.
Para Zimring, a preocupação com a preservação do meio ambiente surgida no início do século XX (particularmente as florestas e os recursos naturais ameaçados pela sociedade industrial e de consumo) esteve associada à estratégia de negócios da National Association of Waste Material Dealers (NAWMD). A utilização do sentimento preservacionista (aparentemente disseminado nos Estados Unidos desde o início do século XX) para legitimar o negócio de materiais recicláveis tornou-se uma prática publicitária recorrente e um poderoso argumento político para reconhecer e valorizar a função social dos empresários desse setor. Zimring identifica como esses empresários começaram a expressar repetidamente essa visão desde 1913, quando foi criada a NAWMD. Naquele ano, o presidente da entidade tentava afirmar a função social de seus pares e associados dizendo que “os negociantes de resíduos são os verdadeiros preservacionistas. Eles têm conseguido retirar milhões de dólares do lixo” (Zimring, 2009, p.73). Contudo, embora a referência ao sentimento preservacionista fosse clara por parte dos negociantes de sucata, o mesmo não acontecia com a população e com o Estado. Os programas públicos que estimularam a reciclagem só apareceram na década de 1940 em função, prioritariamente, da necessidade de fornecer metal e borracha para a indústria num contexto de guerra. O principal slogan do governo repercutia os efeitos de Pearl Harbor, e não uma preocupação ambientalista: “recolher sucata para explodir os japoneses!”.
De qualquer modo, a disseminação da prática da reciclagem parece ter sido estimulada pelo Estado, o que certamente fortaleceu os negociantes de sucata. Mas isso foi feito inicialmente sem recorrer a argumentos ambientalistas. A primeira grande intervenção estatal aconteceu em razão do esforço de guerra que envolveu a reutilização de materiais empregados na indústria bélica. Sobre isso, Zimring identificou o surgimento de propaganda governamental sistemática que buscava mobilizar a população para recolher itens como metais e borracha. Contudo, foi um esforço nitidamente datado, pois o final da Segunda Guerra Mundial encerrou também a cruzada moral da reciclagem. O Estado só voltaria a promover a reciclagem uma década depois, pressionado pelo resultado de um consumismo sem antecedentes nos Estados Unidos.
Sobre isso Zimring destaca o que uma abundante literatura já havia evidenciado, que ao longo dos anos 1940 e 1950 os estadunidenses foram encorajados a consumir numa escala crescente, de modo a converter esse comportamento em uma prática social rotinizada e exponencialmente poluidora. O rápido descarte de mercadorias envelhecidas ‘precocemente’ tornou-se um fenômeno social novo e surpreendente. Apenas no ano de 1951, aproximadamente 25 mil automóveis descartados estavam espalhados em diversos ‘cemitérios’ pelo país. Esse número cresceria para 8 milhões durante a década de 1960. Tal quadro parece ter justificado um novo esforço dirigido para o recolhimento e reaproveitamento dessa sucata, apelando para uma visão higienista centrada na limpeza e estetização de margens de estradas e terrenos urbanos que assustavam em razão da quantidade de entulhos, principalmente as carcaças de automóveis.
Zimring aponta ainda que seguidos governos investiram nesse sentido ao longo das décadas de 1960 e 1970, desenvolvendo um aparato institucional que buscou regulamentar as áreas para o depósito de sucata sem, contudo, garantir ou facilitar meios para a reutilização desse material. As inovações tecnológicas que possibilitavam a separação e transformação de ferro, aço, borracha e plástico, por exemplo, apresentaram outros ritmos, e o seu emprego logicamente dependia de mostrar-se mais barato que a produção de tais itens in natura.
O livro se torna mais interessante à medida que se aproxima do tempo presente e passa a abordar a articulação entre a reciclagem e o ambientalismo (datando e explicando o surgimento dessas duas éticas), mostrando, mesmo que brevemente, de que modo isso favoreceu a constituição de uma poderosa indústria da reciclagem. Além disso, a abordagem tentada por Zimring sugere e anima uma perspectiva sobre esse tema em que a escrita do historiador assume a força de uma intervenção política, uma vez que o autor conduz algumas de suas reflexões até a atualidade. Mas é também a parte mais curta e menos explorada do livro, permanecendo como um desafio para futuros estudos. Sua visão sobre o modo como se generalizou a percepção de que “reciclar é ecologicamente correto” é pouco precisa. Por um lado, tal inexatidão deve-se ao fato de que essa é uma questão recente, com desdobramentos ainda inacabados. Por outro lado, a sondagem do autor acerca desse problema é pouco profunda porque, em grande medida, maneja um volume tímido de fontes primárias e secundárias. Mas não se deve considerar isso um defeito do livro, pois, como observei, o capítulo final sugere importantes desafios para a pesquisa histórica e, também por este motivo, merece ser lido.
Uma última palavra sobre a importância das fontes referidas ao objeto histórico que o autor se propôs a discutir. Sua pesquisa reuniu um conjunto numeroso de fontes primárias e secundárias, indicadas no livro, que ainda podem e devem ser investigadas por pesquisadores que tenham interesse no tema. Isso pode ser mais claramente visualizado no que diz respeito à hipótese, apresentada por ele, sobre a mudança da sensibilidade diante do lixo, do desperdício e da prática do reaproveitamento. Nesse sentido, considerando que suas reflexões se basearam nos Estados Unidos, deveríamos manter aberta a indagação acerca dos percursos históricos da relação com o lixo – e com a produção do lixo – construídos em diferentes lugares. Lançar tal abordagem sobre países da América Latina seguramente ampliaria nossa compreensão acerca de valores e práticas sociais ligadas à relação homem-natureza, atualmente muito em voga. Nunca é demais lembrar que abaixo do equador a reciclagem é um evento histórico que envolve dezenas de milhares de pessoas que vivem do lixo.
Finalmente, a contribuição de Carl Zimring para esse tema tem sido enriquecida com a divulgação de reflexões iniciadas em Cash for your trash. É o caso de The Complex Environmental Legacy of the Automobile Shredder, de 2011, e The Encyclopedia of Consumption and Waste: The Social Science of Garbage, de 2012, onde Zimring aprofunda discussões sobre as tecnologias recentes de produção de lixo e o impacto no meio ambiente. Essa produção se beneficiou de sua trajetória intelectual, marcada por uma formação centrada na História, mas interdisciplinar. Sua atuação profissional na docência, por exemplo, diferentemente de nossa experiência que exige um envolvimento com o núcleo duro da História, caracterizou-se pelo ensino de conteúdos interdisciplinares ligados, sobretudo, ao tema História e Meio Ambiente. Enfim, os historiadores e demais pesquisadores interessados no tema certamente não se decepcionarão com tais leituras.
Referências
PERRY, Stewart E. Collecting Garbage: dirty work, clean jobs, proud people. New Brunswick (NJ): Transaction Publishers, 1998. [ Links ]
STRASSER, Susan. Waste and Want. A Social History of Trash. New York: Metropolitan Books, 2000. [ Links ]
Antonio de Pádua Bosi – Pós-doutorado em História Econômica (Universidade de São Paulo). Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Bolsista do CNPq. E-mail: antonio_bosi@hotmail.com.
[IF]Inclusões e Exclusões / Revista Brasileira de História / 2013
Este número 66 da Revista Brasileira de História traz aos nossos leitores um dossiê que representa uma amostra do modo como a produção historiográfica nacional e internacional tem analisado a temática “Inclusões e Exclusões”. Tratando de contextos espaciais e temporais diversos, os artigos exploram os modos como sociedades, Estados, movimentos sociais e correntes políticas definem os limites de pertencimento a determinadas comunidades simbólicas: ‘povo’, ‘nação’, ‘raça’ e ‘classe’, entre outras. Nesses processos, as linhas divisórias entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’ afetam decisivamente as bases de titularidade a direitos numa determinada ordem e o reconhecimento de determinados grupos sociais como sujeitos históricos coletivos. ‘Inclusão’ e ‘Exclusão’, portanto, são frequentemente polos opostos de um mesmo processo, no qual as definições sobre a legitimidade das estruturas de poder e de desigualdade existentes ou da luta pela sua superação são tensionadas por conflitos. Construção de identidades, participação política, tolerância e respeito à diversidade, são algumas das questões que derivam dessa problemática geral e ganham lugar de destaque nos diversos trabalhos aqui reunidos.
O primeiro texto do dossiê é “Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do império, 1896-1914”, de Marion Brepohl. Analisando o impacto do pensamento racista nas políticas de expropriação territorial praticadas por alemães contra nativos na antiga África Alemã do Sudoeste (atual Namíbia), Brepohl argumenta que esse processo foi legitimado pela estigmatização dos negros em geral e, de forma mais específica, pela manipulação do mito dos bushmen, uma tribo nômade local descrita por pioneiros da antropologia do século XIX como uma espécie de sub-raça, “um corpo entre o macaco e o homem”.
Em “O conceito político de povo no período da Independência: história e tempo no debate político (1820-1823)”, Luisa Rauter Pereira demonstra como os principais grupos políticos atuantes no Brasil no período digladiaram-se em torno das definições de quem constituía o ‘povo’, articulando argumentos científicos, jurídicos e sociológicos para sustentar visões mais inclusivas ou mais restritivas de cidadania.
Renata Figueiredo Moraes, em “Uma pena de ouro para a Abolição – A lei do 13 de maio e a participação popular”, analisa o movimento coletivo objetivando incorporar simbolicamente um amplo número de cidadãos comuns como participantes ativos de um ato visto como inaugurador de um novo momento histórico no Brasil. Mapeando um conjunto mais amplo de manifestações, a autora se concentra na campanha de arrecadação de doações financeiras levada a cabo por um periódico com vistas à aquisição de uma pena de ouro a ser utilizada pela princesa regente no momento da assinatura da lei.
Em “Trabalhadores e associativismo urbano no governo Jânio Quadros em São Paulo (1953-1954)”, Paulo Fontes apresenta os resultados preliminares de pesquisa sobre petições apresentadas por organizações populares com base territorial ao gabinete da prefeitura paulistana. O artigo reconstitui o complexo jogo que conecta a organização e a luta dos habitantes da periferia por suas reivindicações no pós-guerra à trajetória meteórica de Jânio Quadros, cujos dotes de tribuno popular ecoavam a presença política dos trabalhadores no espaço da política institucional. Os contornos do ‘sistema político populista’ que emergem do trabalho de Fontes são muito distintos das imagens de massas amorfas manipuladas por líderes carismáticos que povoaram o imaginário acadêmico e político do país por várias décadas.
Lourival Andrade Júnior, em “Os ciganos e os processos de exclusão”, examina as perseguições sofridas por um povo marcado por sua condição nômade e pela ausência de um Estado nacional próprio. Lançando mão de um conjunto diversificado de fontes, Andrade examina como a caracterização negativa dos ciganos realimenta o preconceito no qual se baseia o cerceamento dos seus direitos.
Em “O Partido Comunista Brasileiro e o governo João Goulart”, Jorge Ferreira examina a evolução do posicionamento da principal força política da esquerda brasileira durante um conturbado período caracterizado, de um lado, por mobilizações de massas em defesas de reformas e, de outro, pela desestabilização da ordem democrática. Distanciando-se dos rótulos simplificadores que pretendem desqualificar a atuação dos comunistas com bases no pré-julgamento sobre suas opções estratégicas e táticas, o autor busca reconstituir o contexto de atuação dos atores diante dos desafios e possibilidades colocados. Como mostra Ferreira, o anti-imperialismo, a defesa da democracia e das reformas de base, que sintetizavam a linha política dos comunistas no período, não se traduziam automaticamente em posicionamentos predefinidos diante dos desafios da conjuntura. Ao contrário, demandavam o exercício permanente da decifração de um cenário dinâmico e repleto de incertezas.
O dossiê se conclui com “Adeus à classe trabalhadora?”, de Geoff Eley e Keith Nield. A versão original deste artigo, publicada na International Labor and Working-Class History em 2000, desencadeou um grande debate, em função do provocativo balanço apresentado pelos autores. Eley e Nield reconhecem a contribuição das novas abordagens teóricas que, desde os anos 1960, abalaram muitas das convicções presentes nas origens da história social marxista. Destacam, igualmente, como a emergência dos novos movimentos sociais e do feminismo vieram a exigir uma renovação da agenda historiográfica. Longe de defenderem o abandono do conceito de classe, porém, oferecem uma sofisticada justificativa da sua atualidade, indissociável do imperativo de atualização teórico-metodológica no reexame das temáticas tradicionais da história social.
A seção de avulsos contém sete artigos. Abrangendo a história brasileira de meados do século XVII ao início do XVIII temos “Carreira e trajetória social na monarquia e no império ultramarino português, governadores gerais do Estado do Brasil (1640-1702)”, de Francisco Carlos Cosentino, e “Um espelho possível de santidade na Bahia colonial: madre Vitória da Encarnação (1661-1715)”, de William de Souza Martins. Em “As Câmaras e o Ensino Régio na América Portuguesa”, Thais Nivia de Lima e Fonseca examina um período imediatamente posterior, que se estende de meados do século XVIII às primeiras décadas do XIX. Libertad Borges Bittencourt, por sua vez, trata de um personagem chave do processo de independência da Colômbia em “Escrever, contar, guardar: o diário de Santander no exílio europeu (1829-1832)”. Três artigos tratam de vertentes políticas do Brasil do século XX: “O pensamento corporativo em Miguel Reale: leituras do fascismo italiano no integralismo brasileiro”, de João Fábio Bertonha; “Cruzada pela democracia: militantes católicos no Brasil republicano”, de Ana Maria Koch; e “Os petistas e a crise do socialismo real: os desafios da renovação e as heranças das esquerdas tradicionais”, de Izabel Cristina Gomes da Costa.
O número encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas, escrita por Samuel Silva R. de Oliveira, analisa uma obra cujo foco relaciona-se diretamente à temática do nosso dossiê: A poverty of rights: Citizenship and inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro, de Brodwyn Fischer. Antonio de Pádua Bosi examina Cash for your trash: Scrap recycling in America, de Carl A. Zimring. O pequeno x: biografia e historiografia no século XIX, de Sabina Loriga, foi resenhado por Douglas Pavoni Arienti. Por fim, Lidiane S. Rodrigues comenta A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar, de Marieta de Moraes Ferreira.
Alexandre Fortes
FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]
En el combate por la historia: la República, la guerra civil, el franquismo – VIÑAS (RBH)
VIÑAS, Ángel (Ed.). En el combate por la historia: la República, la guerra civil, el franquismo. Barcelona: Pasado & Presente, 2012. 978p. Resenha de: MANSAN, Jaime Valim. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013.
Em meados de 2011 vieram a lume na Espanha os primeiros 25 volumes do Diccionario Biográfico Español, cujo projeto prevê cinquenta volumes, cada um com 850 páginas. Até agora foram concluídos 36 volumes. Segundo o sítio da Real Academia de la Historia (RAH), organizadora da obra, deverão ser abordados mais de 40 mil “personajes destacados en todos los ámbitos del desarollo humano y en todas las épocas de la historia hispana”. Para viabilizar a publicação, o erário público espanhol já pagou 6,4 milhões de euros (El país, 27 maio 2011). Como comparação, estimou-se em 3 milhões de euros a construção de um bairro popular, com cem casas, destinado aos moradores despejados no início de outubro de 2012 de El Gallinero, a parte mais pobre de um dos maiores poblados chabolistas da Espanha, na periferia de Madrid (20 minutos, 9 out. 2012).
O Diccionario teve, portanto, um custo muito elevado, sobretudo considerando a conjuntura econômica pela qual o país tem passado nos últimos anos. No mínimo, teria um conteúdo de altíssimo nível. Contudo, a obra tem sido alvo de severas críticas, oriundas de diversos segmentos sociais. Na imprensa, pouco depois do lançamento, um dos principais questionamentos referia-se à ausência de referências à repressão franquista (Público, 28 maio 2011). Isso e a qualificação da guerra civil como cruzada ou guerra de liberación, dentre outros aspectos, constituem fortes indícios da pertinência das críticas ao dicionário (Público, 2 jun. 2011).
Ainda em meados de 2011, o Senado solicitou à RAH que paralisasse a distribuição, enquanto o Congresso decidia o congelamento das verbas destinadas à academia até que o dicionário sofresse correções, situação posteriormente revertida pelo governo (El País, 12 jul. 2011). Desde então, muito se discutiu a respeito da polêmica obra, que conta com irrestrito apoio do presidente espanhol Mariano Rajoy e de seu partido, o conservador Partido Popular.
No meio acadêmico, a reação mais notável foi a publicação de En el combate por la historia, no início de 2012. Organizado por Ángel Viñas, renomado historiador espanhol especialista nos estudos sobre a guerra civil e o franquismo, o livro foi elaborado com a assumida intenção de ser um contradiccionario. De fato o é, mas adota outra forma narrativa e restringe sua análise ao período 1931-1975, enquanto o Diccionario ambiciosamente busca abranger do século III a.C. aos dias atuais. Na visão dos autores de En el combate, a maioria dos biografados mais desfigurados pela obra da RAH vinculava-se ao período compreendido entre o surgimento da Segunda República e a morte de Franco, daí a escolha do recorte temporal.
Obra coletiva, En el combate por la historia contou com a participação de vários especialistas no estudo daqueles períodos da história da Espanha. Como escreve Viñas na apresentação, mobilizando conhecido ditado espanhol, “si bien no están todos los que son, sí son todos los que están”. Nomes internacionalmente conhecidos, como Josep Fontana, Julio Aróstegui, Paul Preston, Julián Casanova e o próprio Viñas, entre outros, assim como jovens investigadores cujos trabalhos já alcançaram reconhecimento entre pesquisadores europeus da área. É o caso, por exemplo, de Gutmaro Gómez Bravo e Jorge Marco. Alguns de seus livros, como El exílio interior, de Gómez Bravo, e Hijos de una guerra, de Marco, são hoje referências obrigatórias sobre o franquismo. 1
Com um título que faz clara referência ao clássico de Lucien Febvre, En el combate por la historia inicia com apresentação de Viñas explicando o sentido da obra e as condições de sua produção. Na sequência, há um texto de José-Carlos Mainer, historiador especialista na “edad de plata de la literatura española”. Voltado para a longa duração, oferece uma reflexão sobre rupturas e continuidades nas relações entre cultura e política na Espanha do século XX.
O livro foi organizado em quatro partes. Três delas são indicadas no subtítulo: República, guerra civil e franquismo.
O primeiro texto sobre a República é chave para sua compreensão. Nele, Preston aborda as transformações nas relações de força estabelecidas naquele período. Os capítulos seguintes aprofundam a análise de alguns dos principais grupos envolvidos naquelas conflituosas relações: Frente Popular, direitas, socialistas e anarquistas. Robledo trata da reforma agrária, “una de las señas de identidad del nuevo régimen”.
A segunda parte da obra, voltada para a guerra civil, é a maior em número de capítulos (vinte). São abordados temas como a sublevação militar de 1936, a atuação das Brigadas Internacionais e da Igreja Católica e os exílios de republicanos, entre outros. Destacam-se as sínteses das atuações do Exército Franquista e do Exército Popular apresentadas, respectivamente, por Losada e Rojo. Aróstegui e Casanova retomam a análise do socialismo e do anarquismo, temas tratados por eles na primeira parte do livro, enquanto Hernández Sánchez faz reflexão semelhante sobre os comunistas.
O terceiro conjunto de textos destina-se à análise do franquismo. Sánchez Recio faz uma discussão fundamental sobre o processo de institucionalização do regime. Vários outros temas são abordados: nacional-catolicismo, Falange, política repressiva, política exterior, o apoio da División Azul à luta nazista contra os soviéticos, a resistência armada ao franquismo, as transformações econômicas, o desarrollismo. A reflexão sobre o tardofranquismo, feita por Isàs, lança valiosas luzes sobre a história da transição.
A quarta parte, “Los grandes actores”, é o ponto em que a proposta de ser um contradiccionario se torna mais evidente. “Un contrapunto al Diccionario Biográfico Español”, nas palavras de Viñas. Mais uma vez, o organizador refere-se ao ditado espanhol anteriormente citado, desta vez para aclarar o critério de seleção dos treze grandes actores: José Antonio Aguirre Lekube, lendário dirigente basco; Manuel Azaña, líder republicano, presidente da República de 1936 a 1939; Ramón Serrano Suñer, falangista, cunhado de Franco, figura de destaque da direita desde a República até o primeiro franquismo e principal interlocutor com Hitler e Mussolini até 1942; Lluís Companys i Jover, importante dirigente catalão; Dolores Ibárruri (Pasionaria) e Santiago Carrillo, dois dos maiores nomes do comunismo espanhol; Francisco Largo Caballero, dirigente socialista vinculado à central sindical UGT (Unión General de Trabajadores) e ao Partido Obrero (depois PSOE, Partido Socialista Obrero Español) desde fins do século XIX; Emilio Moral, militar conspirador que, segundo Losada, foi el gran urdidor, artífice y organizador do fracassado golpe de 1936; Juan Negrín, importante liderança socialista, chefe de governo da República durante a maior parte da guerra civil e figura extremamente controvertida, expulso do PSOE em 1946 sob a injusta acusação de ter sido el instrumento de Stalin en España; Indalecio Prieto, outro nome de peso do socialismo espanhol; Vicente Rojo Lluch, militar republicano que liderou a defesa de Madri durante a guerra civil; José Antonio Primo de Rivera, um dos fundadores da Falange Española, filho do general que havia sido ditador entre 1923 e 1930; e, é claro, Francisco Franco, cuja trajetória é por Preston sintetizada com maestria.
O capítulo sobre Rojo, escrito por um neto do general, o sociólogo e jornalista José Andrés Rojo, é uma exceção dentre os textos que compõem o livro, não pela formação do autor, mas por seu vínculo familiar. A escolha de José Rojo provavelmente deveu-se não ao parentesco, mas ao fato de ter publicado diversos estudos sobre o tema desde 1974, particularmente Vicente Rojo: retrato de um general republicano (Barcelona: Tusquets, 2006). É plausível o questionamento sobre até que ponto escrever sobre o próprio avô não levaria a um abrandamento da crítica e a uma ênfase no elogio. A leitura dos apontamentos biográficos sobre o general Rojo mostra que seu neto conseguiu evitar tais armadilhas.
Fecha o livro um epílogo composto por um texto de Reig Tapia e outro dele com Viñas, ambos voltados para as permanências, para os ‘resíduos’ e ‘derivações’ do franquismo.
Como observa Viñas, o livro privilegia os “aspectos políticos, institucionales, culturales y militares”. Tratava-se de constituir um contradiccionario e, para os autores, naqueles aspectos “las controversias públicas son más intensas y muchas de las entradas del diccionario de la RAH más sesgadas o erróneas”.
Entre historiadores, definir uma obra como ‘revisionista’ é uma forma de desqualificá-la. Se há abusos no uso do termo, isso não significa que deva ser abandonado. Poder-se-ia argumentar que, por ser a revisão inerente ao ofício do historiador, toda história seria revisionista. O erro aqui estaria em definir o revisionismo pela revisão, pura e simples. Revisionismo é um tipo de revisão, aquela que se faz sem bases documentais consistentes, sem levar em conta princípios historiográficos básicos, escolhendo estudos e fontes convenientes à sustentação de um argumento e desconsiderando os demais. O revisionismo é uma falsificação da história. Faurisson é um de seus representantes mais conhecidos, e o dicionário da RAH, ao que tudo indica, é o mais recente exemplar dessa literatura.
En el combate por la historia surge como demonstração de que é possível enfrentar os revisionismos de maneira consistente, com argumentos sólidos e ampla documentação. Seus autores são exemplos do que Bedáridá definiu como ‘historiador expert‘, um tipo de profissional tão raro quanto necessário nos dias atuais.
Notas
1 Lista completa dos autores: ARÓSTEGUI, Julio; BARCIELA, Carlos; CASANOVA, Julián; COLLADO SEIDEL, Carlos; EIROA, Matilde; ELORZA, Antonio; ESPINOSA, Francisco; FONTANA LÁZARO, Josep; GALLEGO, Ferran; GÓMES BRAVO, Gutmato; GONZÁLEZ CALLEJA, Eduardo; HERNÁNDEZ SÁNCHEZ, Fernando; LEDESMA, José Luis; LOSADA MALVARÉZ, Juan Carlos; MAINER, José-Carlos; MARCO, Jorge; MARTÍN, José Luis; MEES, Ludger; MIRALLES, Ricardo; MORADIELLOS, Enrique; MORENO JULIÀ, Xavier; PEREIRA, Juan Carlos; PRESTON, Paul; PUELL DE LA VILLA, Fernando; PUIGSECH FARRÀS, Josep; RAGUER I SUÑER, Hilari; REIG TAPIA, Alberto; ROBLEDO, Ricardo; ROJO, José Andrés; SÁNCHEZ CERVELLÓ, Josep; SÁNCHEZ RECIO, Glicerio; THOMÀS, Joan Maria; VIÑAS, Ángel, e YSÀS, Pere.
Jaime Valim Mansan – Doutorando, bolsista Capes. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Av. Ipiranga, 6681, Partenon. 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: jaimemansan@gmail.com.
[IF]O que é um autor? Revisão de uma genealogia – CHARTIER (RBH)
CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos (SP): Ed. UFScar, 2012. 90p. Resenha de: MORAES, Kleiton de Sousa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013.
Retornar aos clássicos é sempre um risco, ainda mais quando se pretende fazer uma revisão crítica do clássico. Lançar-se a essa árdua tarefa é colocar-se diante de um desafio que pode resultar, não raras vezes, frustrante. Assumindo esse risco o historiador francês Roger Chartier, professor da cátedra Écrit et cultures dans l’Europe Moderne no Collège de France desde 2007, retorna à clássica conferência do filósofo Michel Foucault, pronunciada em fevereiro de 1969 sob o título “O que é um autor?”. Na esteira dela, Roger Chartier propõe-se em O que é um autor? Revisão de uma genealogia a revisitar as reflexões do filósofo na sua análise do funcionamento do que ele chamara de ‘função autor’ no mundo da escrita ocidental.
Fruto de uma conferência realizada na Sorbonne no ano 2000, e apresentada para a mesma Société Française de Philosophie que promoveu a conferência homônima de Foucault, O que é um autor? é o desdobramento de um diálogo profícuo do historiador com o filósofo esboçado já há alguns anos. Historiador especialista na cultura escrita, Chartier, em A Ordem dos livros (publicado em 1994), já havia visitado a famosa conferência de Foucault para analisar as representações dadas à figura do autor e fazer uma primeira correção nas reflexões do filósofo francês. Já naquela ocasião, Chartier buscava dialogar com Foucault, fundamentalmente no que tange à periodicidade do aparecimento do autor em textos ‘científicos’ e ‘literários’, tema que retomará neste novo livro.
Aqui, Chartier reitera a originalidade do filósofo ao chamar atenção para a pertinência de seu questionamento sobre o funcionamento do mecanismo segundo o qual um texto ou uma obra são identificados a um nome próprio. Reafirmando a tese central da conferência de Foucault, Chartier desenvolve uma análise histórica das distintas maneiras pelas quais foi acionada a ‘função autor’ no tempo. Para tanto, inicia com uma revisão da cronologia esboçada pelo filósofo francês a fim de corrigir algumas imprecisões em suas assertivas, renovando, assim, sua força interpretativa.
Nesse empreendimento, Chartier evoca outro frequente interlocutor em seus livros, o escritor argentino Jorge Luís Borges. No conto Borges e eu, que faz parte do volume O Fazedor, Borges conta, mediante um humor profundo, da não identidade entre o indivíduo que escreve e o autor, embora reitere a complementaridade fenomenológica inescapável entre ambos: “Seria exagerado afirmar que nossas relações são hostis. Eu vivo e deixo-me viver, para que Borges possa urdir sua literatura, e essa literatura justifica-me” (p.32-33).
A citação do conto borgiano não é gratuita. Trata-se de afirmar, com Foucault, que o funcionamento da ‘função autor’ não se inscreve no momento de uma prática de escrita, mas se insere dentro de uma ordem do discurso específica que a engloba. É essa adesão à tese foucaultiana o ponto de partida do qual Chartier empreende sua revisão crítica, evocando daí a vaga cronologia em três tempos esboçada por Michel Foucault na famosa conferência.
A primeira seria a do nascimento da concepção burguesa da propriedade literária, que Foucault localiza entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Embora reafirme a importância desse momento como fundamental na construção de uma ‘função autor’, Chartier chama atenção para o fato de que a propriedade literária do autor nasce na Inglaterra não tanto no interesse do autor, mas do livreiro-editor londrino que, na iminência de perder seus direitos sobre determinada obra – direito exclusivo de reprodução adquirido pelos velhos estatutos e revogado por nova lei –, em inícios do século XVII e não no final, cria, ou faz criar, a propriedade do autor sobre seu texto. Chartier afirma que essa conquista do autor encobriria o verdadeiro objetivo que seria dar ao autor o direito de, ao repassar sua propriedade para determinado livreiro-editor, também transmitir os mesmos direitos de perpetuidade e imprescritibilidade da obra.
Avançando na reflexão, o historiador observa que a justificativa para a criação do copyright ainda nesse período fundou-se tanto no direito natural – segundo o qual o homem é proprietário de seu corpo e dos produtos do seu trabalho – quanto numa justificativa estética, fundada na originalidade daquele que produz, gerando, nessa esteira, a figura do indivíduo criador único e original. Isso significa, nos alerta Chartier, não só uma reivindicação econômica do direito do autor, mas a existência de uma antiga reivindicação que se baseava numa propriedade moral, segundo a qual o controle de uma obra poderia ser pedido em nome da honra de um autor.
A outra cronologia, aquela em que o historiador segue mais de perto Foucault, relaciona-se à distinção do processo de anonimato que caracterizaria os textos literários e científicos entre os séculos XVII e XVIII. Pensa Chartier que talvez a aporia existente nas reflexões de Foucault seria resultado de três problemas: o primeiro, uma inércia linguística, criada pela impossibilidade de definir-se prudentemente uma divisão entre ciência e literatura em períodos específicos; o segundo se referia à necessidade de se pensar a evocação de autoridades (Hipócrates, Plínio etc.), procedimentos comum antes dos séculos XVII ou XVIII, e essa relação com os autores de determinada época; e o terceiro, a ausência da ‘função autor’ em textos literários anteriores ao século XVII ou XVIII e a mesma ausência para enunciados científicos após essa mesma data, hipótese que Chartier rejeita.
Embora concorde em parte com Foucault, quando este salienta a necessidade da referência a um autor bem antes do século XVII para textos identificados como ‘científicos’, Roger Chartier não concorda quando nessa distinção acusa o anonimato em textos literários. Para Foucault, entre os séculos XVII ou XVIII, há uma mudança entre o aparecimento da figura do autor em textos literários e, inversamente, o seu desaparecimento em textos científicos. Para o historiador, mesmo depois do século XVII, uma descoberta ou um enunciado científico só tinham validação pela evocação de um nome próprio, não necessariamente o erudito, técnico ou profissional. Chartier identifica esse procedimento como um método de validação aristocrático, em que vale mais, para aceitação de um enunciado, aquele que tem o poder de dizer uma verdade – um poderoso, um príncipe ou um ministro. Em contrapartida, o desinteresse de um autor, representado pela não relação de propriedade por seus enunciados, é fundamental para que o erudito seja reconhecido como o autor ou autoridade nesse regime. Tal procedimento, ao contrário do que pensava Foucault, encontrava-se presente até mesmo nos textos literários posteriores a esse momento de ruptura que teria sido o século XVII, no qual, em prólogos, prefácios ou dedicatórias, o desinteresse do autor é evocado como fator de credibilidade para textos. Por fim, Chartier afirma, diferentemente do que Foucault pensava, que alguns textos com valor de verdade circulavam em anonimato desde a Idade Média, sem necessidade da referência a uma autoridade – os livros de segredos e os manuais técnicos, por exemplo.
Se o século XVIII revela a construção do autor-proprietário, a figura do autor é bem anterior a ela. A última cronologia esboçada por Foucault remete à ligação do autor a uma função ligada à identificação de um indivíduo com determinado texto para fins punitivos, notadamente os de censura. Chartier concorda com essa proposição citando fontes inquisitoriais do século XVII, onde o anonimato de um texto impresso já era motivo de sua censura, sendo os títulos de obras vinculadas a um nome próprio uma fórmula essencial de melhor vigilância para as autoridades.
Essa investigação levou alguns historiadores a concluir que a ‘função autor’ nasce com o livro impresso, a partir do aparecimento do nome de um indivíduo no impresso, com os processos acionados por escritores que tiveram seus textos publicados sem seu consentimento desde inícios do século XVI e com o aparecimento de um retrato do indivíduo autor. Mas Chartier julga errônea essa precipitação. Em primeiro lugar, seguindo a mudança lexical que se dá com os termos auctor e actor quando ainda o regime de circulação de textos era fundamentalmente manuscrito, no século XIV e no começo do século XV, com o primeiro designando uma autoridade e o segundo um compilador. Chartier aponta a conquista progressiva da autoridade dos auctores pelos actores e, já no final do século XIV e em inícios do XV, a existência da designação acteur valendo tanto para autoridades quanto para certos textos publicados em língua vulgar, nascendo daí a figura do escritor, não apenas como aquele que copia, mas aquele que compõe e inventa.
Essa forte presença da representação – palavra-chave em Chartier – do autor como criador em contraste com o decifrador, glosador ou compilador, impõe uma reflexão em torno da historicidade da identificação do nome à obra e à própria materialidade do objeto. Para Chartier, se desde a alta Idade Média a forma mais conhecida do livro era aquela da miscelânea, ou seja, de diferentes textos reunidos num objeto-livro, o que parece existir é uma suposta ‘função leitor’ – aquele que desejou que fossem reunidos textos distintos em um só objeto – e uma ‘função copista’ – o que copiou o texto num único livro. Mas, se a miscelânea é a característica desse tipo de livro, já no século XIV, quando a circulação de textos ainda se fazia em livros manuscritos, é possível identificar a ‘função autor’ a um indivíduo, ligando-o a uma obra ou livro. Aí reside para Roger Chartier a incontornável recomendação de que à genealogia da ‘função autor’ imersa na ordem do discurso deve-se acrescentar, concomitantemente, uma ordem dos livros. A consequência disso residiria na maneira de tratamento dada à investigação dos impressos, que não poderia prescindir também da investigação dos suportes que veiculam os textos como forma de identificar os seus sentidos.
Ao corrigir algumas imprecisões expostas na famosa conferência de Michel Foucault, Roger Chartier em O que é um autor? enfatiza a força interpretativa do filósofo francês incorporando alguns questionamentos advindos das pesquisas recentes sobre impressos, notadamente oriundos da História Cultural. Essa démarche não o conduz à negação da questão proposta por Foucault. O retorno visa reforçar o quanto sua reflexão crítica continua expressa em questionamentos atuais sobre o funcionamento de um determinado mecanismo de autoridade sobre os textos. Essa reflexão não finda na investigação da ordem do discurso, mas incorpora, de maneira fundamental, a dimensão da materialidade desse mesmo discurso. E isso porque, respondendo às questões ao final do livro, Chartier afirma que um leitor nunca encontra um texto a não ser por meio de uma forma específica, sendo a ordem do discurso sempre uma ordem de materialidade.
Por fim, cabe reiterar que tal visita a Michel Foucault como parte de um movimento que busca dialogar com um clássico se funda num espaço de tensão em que o interlocutor se apropria das ideias de outrem contribuindo de forma a torná-las vivas. Chartier não parece em seu O que é um autor querer cair nas armadilhas que pudessem confrontá-lo com o filósofo. Ele vai ao encontro do risco inevitável de, ao se apropriar das ideias de Foucault, tornar-se também ele um autor dessas ideias, aprofundado-as de forma crítica. Mas os sentidos que os leitores vão dar a essa apropriação respeitosa podem não ser tão compatíveis com os desejos do historiador. Esta última proposição Chartier assume como parte incontornável de uma prática de leitura que é também, sabe ele, espaço de imprevisíveis criações.
Kleiton de Sousa Moraes – Doutorando em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), IFCS – Programa de Pós-Graduação em História Social. Largo de São Francisco, 1, sala 205, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: kleiton_angra@yahoo.com.br
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Qual o valor da história hoje? – Marcia A. Conçalves, Helenice B. Rocha, Luís Resnik e Ana M. Monteiro
A inquietação que toma a forma de uma questão – Qual o valor da história hoje? – incomoda a todos os profissionais que têm como ofício escrever livros de história ou ensiná-la na educação básica. O Grupo de Pesquisa Oficinas da História colocou esta mesma pergunta aos seus próprios membros e a pesquisadores convidados para o Seminário Nacional O Valor da História Hoje, realizado em maio de 2010 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Seu objetivo foi problematizar a própria interrogação e pensar respostas múltiplas e provisórias. As instigantes apresentações, enriquecidas pelas profícuas discussões realizadas, deram origem ao livro que transformou o título do Seminário numa pergunta – “Qual o valor da história hoje?” – de maneira a potencializar ainda mais a inquietação que o inspirou. Mas, para entender essa publicação, é preciso contextualizá-la no grupo de pesquisa que a produziu e articulá-la com as contribuições anteriores do Grupo Oficinas.
O Grupo de Pesquisa Oficinas da História dedica-se a pesquisas na área do ensino de história e vem produzindo contribuições importantes para as reflexões acerca desde campo de pesquisa desde a sua fundação, em setembro de 2004. O grupo apresenta um perfil interinstitucional e é composto por vinte pesquisadores que atuam ministrando aulas na graduação e pós-graduação em cursos de educação e de história. O Grupo Oficinas está sediado na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e a maioria dos seus membros está situada em instituições universitárias desse estado, apesar de alguns deles atuarem em instituições de outros estados. O livro Qual o valor da história hoje? é a terceira publicação organizada por membros do grupo desde a sua criação. A primeira foi o livro A história na escola: autores, livros e leituras, 1 resultado do projeto desenvolvido entre 2005 e 2007 pelo Oficinas intitulado O Livro Didático como Discurso Historiográfico. A segunda publicação foi o livro A escrita da história escolar: memória e historiografia, 2 resultado de um projeto mais amplo intitulado Culturas Políticas e Usos do Passado – Memória, Historiografia e Ensino de História, que contou com a participação de alguns membros do grupo Oficinas.
O livro Qual o valor da história hoje?, organizado por Marcia Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, reúne 16 textos apresentados no seminário nacional realizado em 2010. Entre 2009 e 2011, o Grupo Oficinas desenvolveu o projeto Ensino de História e Historiografia que, entre outras iniciativas, organizou o Seminário Nacional O valor da história hoje. Os textos das apresentações no seminário foram reorganizados no livro em três partes: “Formas de escrever e ensinar história”, “Memória e identidade” e “Tempo e alteridade”. Os temas que organizam essas partes são escolhidos em função de sua forma de aproximação de respostas possíveis à questão proposta no título.
O capítulo inicial da primeira parte nos ajuda a situar a questão de acordo com as diversas perspectivas acerca da história. O texto de Durval Albuquerque Junior – “Fazer defeitos na memória: para que servem o ensino e a escrita da história” – faz uma revisão sintética sobre os diferentes regimes historiográficos e a maneira como cada um deles pensou os usos e a função da história na sua dimensão formativa das subjetividades. Revisão audaciosa, que não se limita a resumir, mas interpreta e apresenta uma leitura da possível função do ensino de história hoje, historicizando o tempo presente e utilizando a compreensão da alteridade numa dimensão diacrônica para preparar os contemporâneos para a valorização da diversidade.
Os outros três capítulos que compõem essa parte também investem em reflexões teóricas sobre a escrita da história e o seu ensino. Márcia de Almeida Gonçalves, no texto “O valor da vida dos outros…”, aceita o desafio de pensar a questão título da obra pelo viés que a relaciona ao problema da consciência histórica, discutindo as concepções de sujeito e a produção biográfica. Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral, no texto “Ciências do espírito: relações entre história e educação”, recupera a concepção de pedagogia defendida por Dilthey, na qual esta é pensada como uma tarefa filosófica e elevada à categoria de ciência do espírito. Por fim, Valdei Lopes de Araujo, no texto “A aula como desafio à experiência da história”, propõe-se a pensar os desafios pedagógicos para o enfrentamento, em sala de aula, da temporalidade em geral, através do diálogo com as contribuições filosóficas de Husserl e Heidegger.
A segunda parte do livro traz seis textos sobre a temática da “Memória e identidade” sob diferentes abordagens e utilizando diferentes referenciais teóricos. Eunícia Barros Barcelos Fernandes, no texto “Do dever de memória ao dever de história: um exercício de deslocamento”, discute os usos da memória frente às inquietações surgidas com a legislação que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, a Lei 11.1645/2008, recorrendo ao conceito de consciência histórica. Luciana Heymann e José Maurício Arruti, no texto “Memória e reconhecimento: notas sobre as disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil”, traçam alguns paralelos entre as controvérsias públicas que envolvem o tema da memória nos contextos francês e brasileiro. Margarida de Souza Neves, no texto “Cartografias da memória: história, memória e ensino da história”, propõe um exercício de interpretação do mapa de Lopo Homem-Reinéis do século XVI como uma maneira metafórica de cartografar o continente da memória de forma a assinalar nesse mapa o lugar das disputas que lhe conferem relevo. Rui Aniceto Nascimento Fernandes, no texto “Uma província na disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920”, discute as disputas em torno da memória imperial frente aos embates políticos da década de 1920, problematizando o impacto destas no campo das políticas públicas educacionais.
Os dois últimos capítulos da segunda parte enfrentam mais especificamente a temática da identidade. No texto “A história é uma escola: o paradigma do nacional na literatura didática de Viriato Correa”, José Ricardo Oriá Fernandes, utilizando uma concepção ampliada do conceito de livro didático, analisa a presença do nacionalismo nos livros escolares de Viriato Correa, com destaque para a História do Brasil para crianças (1934). Luís Fernando Cerri, no texto “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, discute e apresenta alguns resultados do projeto de pesquisa internacional “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, que, inspirado nas potencialidades do projeto europeu “Youth and history”, aplicou questionários aos jovens do Brasil, Argentina e Uruguai. Esses dois textos que concluem a segunda parte podem ser articulados com alguns dos textos da terceira parte que tratam do tema da alteridade. Cecilia Goulart, em “Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos”, vai discutir o conceito de alteridade no contexto dos estudos da linguagem em perspectiva bakhtiniana, ilustrando-o com situações pedagógicas de diversas origens para, por fim, analisar situações de aulas de história. No texto “A leitura na aula de história como experiência de alteridade”, Helenice Rocha vai discutir a leitura comentada, uma prática comum no ensino de história, mediante a análise de aulas observadas na sua pesquisa. No capítulo intitulado “Do colorido à cor: o complexo identitário na prática educativa”, Júnia Sales Pereira busca discutir as polêmicas e disputas em torno das relações raciais no Brasil e os seus impactos na prática docente daqueles que se veem confrontados com essas questões em sala de aula.
Outra temática especialmente cara ao ensino de história é o objeto de três textos dessa última parte: o tempo. Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, no texto “Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão”, aborda a questão do presente no ensino de história, recorrendo aos conceitos de regimes de historicidade e de acronia para lançar uma nova luz sobre esse problema. Em “Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?”, Carmen Teresa Gabriel aposta na análise de temporalidades recontextua–lizadas no ensino de história apropriando-se especialmente das reflexões teóricas de Paul Ricoeur sobre o tempo e a narrativa. “Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incertezas: reflexões e desafios para o professor de história”, de Sonia Regina Miranda, aponta alguns desafios contemporâneos enfrentados pelos professores de História ao lidar com a complexa questão do tempo histórico através da análise das representações do tempo encontradas em livros didáticos.
Esta breve apresentação das temáticas de cada uma das três partes do livro e um breve panorama dos objetos e objetivos de cada um dos seus capítulos serve apenas como um convite para aqueles que se interessam pelo ensino de história. O que constitui o maior mérito do livro é a maneira coerente como os diversos capítulos convergem de diferentes maneiras no enfrentamento da inquietação presente em seu título e a atualidade das discussões e referenciais teóricos utilizados. Mas o livro traz outra marca, além da inquietação com relação ao valor da história hoje: a tentativa de lidar com a perda do professor Manuel Salgado Guimarães, citado e mencionado em diversos textos que fazem parte desta coletânea. Os capítulos da obra reconhecem e valorizam a importância das obras de Guimarães para o estudo da historiografia, do ensino de história e da relação entre esses dois campos de pesquisa. O livro Qual o valor da história hoje? acaba por constituir uma bela homenagem à herança intelectual de um colega que fará tanta falta nas oficinas da História e de seu ensino.
Notas
1. ROCHA, H.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M. (Org.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. [ Links ]
2. ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, R. (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. [ Links ]
Fernando de Araujo Penna – Doutor em Educação (UFRJ), professor de história do Colégio Santo Inácio. R. São Clemente, 226, Botafogo. 22260-000 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: f_penna@yahoo.com.
GONÇALVES, Marcia de A.; ROCHA, Helenice Ap. de B.; RESNIK, Luís; MONTEIRO, Ana M. F. da C. (Org.) Qual o valor da história hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. 328p. Resenha de: PENNA, Fernando de Araujo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013. Acessar publicação original [IF]
História e Demandas Sociais / Revista Brasileira de História / 2013
Neste número 65 da Revista Brasileira de História estamos completando 4 anos à frente de sua editoria e totalizando a coordenação da edição de oito números, com a publicação de 140 artigos. Durante esse período a RBH, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, vivenciou significativas transformações, passando a ser exclusivamente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações têm ampliado o escopo de sua circulação, permitindo o acesso à nossa produção por um público não conhecedor da língua portuguesa e agilizando a consulta dos volumes novos e antigos.
Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “História e Demandas Sociais” para o dossiê que, seguindo a trilha do anterior, também está sofrendo uma ampliação no que diz respeito ao número de artigos publicados. Como já dissemos, o interesse em publicar na RBH tem sido crescente na comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Pode-se destacar, por exemplo, o aumento de 226% no volume de textos recebidos do ano de 2009 para 2010, quando a revista se tornou exclusivamente digital. Paralelamente, observa-se um crescimento de 227% no volume de acessos à RBH no –SciELO, comparando-se o período em que a publicação era impressa e digital e o atual, desde dezembro de 2009, em que ela é exclusivamente eletrônica. Essa nova busca da produção historiográfica brasileira por canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de adotarmos uma maior periodicidade. Este número conta com 14 artigos.
O Dossiê “História e Demandas Sociais”, sintonizado com a temática do Simpósio Nacional, tem o objetivo de contribuir para os debates acerca dos usos da história e do papel do historiador. A noção de demanda social da história permanece ainda vaga, é usada em contextos de análise muito diferentes e abrange fenômenos muito diversos; as demandas memoriais e as demandas midiáticas e editoriais são alguns exemplos. O boom de memórias e o interesse crescente dos diferentes grupos sociais pelo passado têm ampliado o espaço dos historiadores nos meios de comunicação e nas publicações para o grande público, mas ao mesmo tempo colocam para eles o desafio de transpor e adequar seus conhecimentos em busca de comunicação com um público não especializado. Muitas vezes, isso leva o historiador à tentação de recorrer a fórmulas simplistas e a respostas ambíguas às demandas vindas da sociedade e do Estado. Além disso, podemos mencionar os riscos de interferências externas que podem colocar em questão a autonomia da história como disciplina científica e contaminar o julgamento científico pelo juízo midiático. Nesse quadro é preciso estar atento à instrumentalização da história pela demanda social e repensar o vínculo entre função do conhecimento e função social da história, sobretudo quando se trata da análise de passados sensíveis, tais como o holocausto e as ditaduras na América Latina.
Se os pontos levantados são ameaças para os historiadores, a omissão ou o isolamento também podem acarretar consequências graves. Inúmeras vezes essas demandas sociais veiculadas não sensibilizam os historiadores que não conseguem transpor as novas contribuições acadêmicas para o leitor não especializado. Por sua vez, essa postura acarreta que os livros de vulgarização e os manuais produzidos por jornalistas ou autores não especializados preencham esse vazio e acabem sendo privilegiados pelo mercado editorial.
Diante do conjunto de textos recebidos e selecionados podemos dizer que essa área apresenta-se agora como um grande desafio para os historiadores. Para o Dossiê foram selecionados sete artigos, cinco dos quais focados na realidade brasileira, e dois tomando como referência o México e a Europa. No que diz respeito aos recortes temporais, foram privilegiados textos que abordavam temas relacionados com a História do Tempo Presente. Quanto às formas de abordagem, são apresentados trabalhos que adotaram como estratégia a discussão teórica e metodológica de pesquisas sobre os chamados temas traumáticos, como o estudo da repressão e do trabalho análogo a de escravo no Brasil e os usos políticos do passado, em especial quando se trata dos livros didáticos.
Iniciamos com o artigo de Antoon De Baets “Uma teoria do abuso da História”, que pretende esboçar uma teoria voltada a controlar o uso irresponsável da história. O abuso da história é definido como a utilização de maneira não científica do conhecimento histórico com o intuito de ludibriar e enganar a sociedade acerca de eventos traumáticos e polêmicos. Joana Maria Pedro e Anamaria Marcon Venson, no texto “Tráfico de pessoas: uma história do conceito”, tratam da discussão sobre o tráfico de pessoas focalizando a questão específica da prostituição. Alberto del Castillo Troncoso em “Memória e representações: a fotografia e o movimento estudantil de 1968 no México” focaliza a história desse movimento e as complexas relações entre a imprensa e o poder político da época, privilegiando a análise dos usos político e cultural das fotografias por parte das diferentes facções. Américo Oscar Guichard Freire em “Intelectuais, democratização e combate à pobreza no Brasil Contemporâneo” aborda o tema da participação de intelectuais em projetos e programas de inclusão social no país tomando como objeto de análise a trajetória político-intelectual de Herbert de Souza, o Betinho, e Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. Ernesta Zamboni e Cristiani Bereta da Silva no texto “Cultura política e políticas para o ensino de história em Santa Catarina no início do século XX” apresentam análises das relações estabelecidas entre a produção historiográfica e a produção de uma história de Santa Catarina para o uso escolar, com vistas a enfrentar o desafio de desenvolver uma educação cívico-patriótica voltada para projeções simbólicas sobre o futuro do Brasil. Maria Aparecida Leopoldino Tursi Toledo em “Os lugares da produção do saber histórico escolar no Brasil: compêndios de história e narrativas conciliadoras no Paraná (1876-1905)” discute o papel dos livros didáticos na construção do Estado nacional e no sentido de nação, destacando, no caso do Paraná, como a História nacional teve dificuldades em se firmar como disciplina autônoma até os anos iniciais da República brasileira. Por fim, Alexandre Veiga trabalha com “Acervos da Justiça do Trabalho como fonte de pesquisa”. O artigo descreve a trajetória do Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul, relatando suas experiências de atuação na área da preservação e divulgação do patrimônio documental e museológico da Justiça do Trabalho no Estado.
A seção de avulsos apresenta sete artigos. Andréa Lisly Gonçalves reconstitui no artigo “A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto” alguns aspectos da resistência ao regime implantado pelo rei d. Miguel (1828-1834) no intuito de esclarecer o trânsito de pessoas e de ideias no império português, permitindo até mesmo o estabelecimento de contrastes entre o contexto americano e o europeu. Jaime Rodrigues em “Um mundo novo no Atlântico: marinheiros e ritos de passagem na linha do equador, séculos XV-XX” analisa as origens, a disseminação e a transformação desses rituais na cultura marítima. Giselle Martins Venâncio em “Comemorar Camões e repensar a nação: o discurso de Joaquim Nabuco na festa do tricentenário de morte de Camões no Rio de Janeiro (1880)” analisa os eventos realizados durante essa comemoração com objetivo de destacar um ideal de identidade nacional brasileira definida como fundamentalmente lusitana. Jeffrey D. Needell no texto “O chamado às armas: o abolicionismo radical de Joaquim Nabuco (1885-1886)” trata do papel de Nabuco no movimento abolicionista e das transformações das suas próprias visões políticas no contexto da trajetória histórica do movimento. Juliana Miranda Filgueiras no texto “A produção de materiais didáticos pelo MEC: da Campanha Nacional de Material de Ensino à Fundação Nacional de Material Escolar” analisa a constituição e as principais realizações da CNME e da Fename e como essa produção evidenciou a atuação do Ministério da Educação em uma área dominada pelo mercado privado, sobretudo pela indústria editorial de didáticos. Cristiane Hengler Corrêa Bernardo e Inara Barbosa Leão no artigo “Formação do jornalista contemporâneo: a história de um trabalhador sem diploma” objetivam analisar o contexto em que a profissão de jornalista se desenvolveu no Brasil, as influências que sofreu, bem como as mudanças técnicas que alteraram a sua base material de produção. Por fim, João Márcio Mendes Pereira no artigo “O Banco Mundial e a construção política dos programas de ajustamento estrutural nos anos 1980” discute a gestação e operacionalização dos programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial ao longo da década de 1980.
Neste número temos dois textos que destacam momentos e personagens importantes da história da Anpuh. A conferência proferida pelo então presidente da Anpuh, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da memória”, por ocasião do aniversário de 50 anos na nossa entidade, em julho de 2011, e uma homenagem ao professor John Monteiro, figura de grande relevância acadêmica, falecido recentemente, escrita pela professora Regina Celestino.
Temos ainda duas entrevistas com os historiadores Jean-François Sirinelli, da França, e Eugenia Meyer, do México, e publicamos quatro resenhas: Jaime Valim Mansan analisa En el combate por la historia: la República, la guerra civil, el franquismo, organizado por Ángel Viñas; Wanderson da Silva Chaves apresenta Racecraft: the soul of inequality in American Life, de Karen E. Fields e Barbara J. Fields; Kleiton de Sousa Moraes resenha O que é um autor? Revisão de uma genealogia, de Roger Chartier, e Fernando de Araujo Penna analisa Qual o valor da história hoje?, organizado por Marcia de Almeida Gonçalves, Helenice Aparecida de Bastos Rocha, Luís Monteiro Resnik e Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro.
Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar os sites da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.
Marieta de Moraes Ferreira
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013. Acessar publicação original [DR]
História e documentário – MORETTIN (RBH)
MORETTIN, Eduardo; Napolitano, Marcos; Kornis, Mônica Almeida (Org.). História e documentário. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012. 324p. Resenha de: MALAFAIA, Wolney Vianna. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.64, p.365-367, dez. 2012.
Nos últimos 15 anos, o audiovisual vem ocupando um espaço privilegiado na produção historiográfica, como objeto ou como fonte, principalmente na sua forma mais envolvente e instigadora: o cinema. E, dentro dessa forma, um gênero, por assim dizer, suscita preocupações no que diz respeito à sua análise, justamente por compartilhar com a história o tratamento dado às noções de verdade e realidade: o documentário.
Procurando enriquecer o debate instaurado em torno do uso do audiovisual, mais especificamente do documentário, como objeto ou fonte da história, Eduardo Morettin e Marcos Napolitano, professores da USP, e Mônica Almeida Kornis, da Fundação Getulio Vargas, organizaram História e documentário, contendo textos que, em seu conjunto, representam o resultado de pesquisas realizadas pelo grupo constituído junto ao CNPq e denominado “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”, coordenado pelos dois primeiros.
Salientam os organizadores, em sua apresentação, dois aspectos que justificariam a edição dessa obra coletiva: primeiramente, como já foi dito, a expansão da pesquisa histórica que privilegia o cinema como fonte e objeto, importando para o campo teórico dessa análise as preocupações concernentes à narrativa e à estética cinematográficas; em segundo lugar, o papel de protagonista que o documentário vem ocupando na produção cinematográfica nacional e, consequentemente, na pesquisa e na reflexão crítica acadêmicas, a partir de meados da década de 1990. Os trabalhos aqui apresentados refletem estas preocupações: a articulação da narrativa histórica com as peculiaridades da narrativa fílmica, e a representação do passado, trabalhando os conceitos de verdade e realidade, o que diz respeito à preocupação tanto do pesquisador quanto do documentarista.
Por causa dessa articulação geral, os textos formam um conjunto harmonioso, destacando-se afinidades entre alguns, no que diz respeito à fonte pesquisada ou ao tratamento teórico utilizado. Assim, os textos de Eduardo Morettin (“Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso”), e de Ismail Xavier (“Progresso, disciplina fabril e descontração operária: retóricas do documentário brasileiro silencioso”), ao abordar os primórdios da produção cinematográfica de caráter documental, lançam luzes sobre as diversas formas de utilização das imagens produzidas naquela época e a sua própria historicidade. Nesses dois textos encontramos uma análise que se preocupa com a distância entre o objetivo original da produção e os possíveis usos das imagens produzidas; essa distância é reveladora e possibilita a construção de variadas relações, que acabam por enriquecer o sentido dessas mesmas imagens.
Num segundo grupo, analisando documentários inspirados pela experiência imagética do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, temos os textos de Mônica Almeida Kornis (“Imagens do autoritarismo em tempos de democracia: estratégias de propaganda na campanha presidencial de Vargas de 1950”), Rodrigo Archangelo (“O Bandeirante da Tela: cenas políticas do adhemarismo em São Paulo – 1947-1956”), e Reinaldo Cardenuto (“O golpe no cinema: Jean Manzon à sombra do Ipês”). Nesses textos, destaca-se a preocupação com a articulação entre a propaganda política e uma determinada estética própria de cinema documentário inaugurada pelo DIP, mas enriquecida com a expansão dos meios de comunicação, como o rádio, e do próprio mercado exibidor cinematográfico, com um maior número de salas de cinema e o apogeu das comédias musicais populares, as chanchadas. Se, num primeiro momento, quando da campanha presidencial de Getúlio Vargas, encontramos uma estética ainda presa às propostas do DIP, num segundo momento, quando das campanhas de Adhemar de Barros, já verificamos uma sensível transição e, num terceiro momento, quando das produções de Jean Manzon, já percebemos a incorporação de recursos estilísticos próprios do cinema ficcional norte-americano e mesmo das chanchadas brasileiras.
Um terceiro grupo seria constituído pelos textos que trabalham imagens de arquivos. Marcos Napolitano (“Nunca é cedo para se fazer história: o documentário Jango, de Silvio Tendler – 1984″) e Rosane Kaminski (“Yndio do Brasil, de Silvio Back: história de imagens, história com imagens”) trabalham com produções nacionais, analisando filmes de dois profícuos cineastas: Silvio Tendler e Silvio Back; nos dois textos, a análise da narrativa cinematográfica é intermediada pela análise da narrativa histórica, pois os cineastas se preocupam em apresentar suas versões e conclusões, articulando imagens e discursos. Em outro texto, Henri Arraes Gervaiseau (“Imagens do passado: noções e usos contemporâneos”) analisa o documentário Videogramas de uma revolução, de Harun Farocki e Andrei Ujica, sobre a deposição do regime ditatorial de Nicolae Ceausescu, produzido em 1992, utilizando-se para tal das formulações teóricas de Georges Didi-Huberman, que privilegiam o momento da produção da imagem, a experiência de quem produz e sua relação com a imagem produzida, consagrando, assim, a noção de contemporaneidade, externa ao filme, mas cuja compreensão torna-se necessária para um melhor entendimento.
Ainda nesse terceiro grupo, os textos de Mariana Martins Villaça (“O ‘cine de combate’ da Cinemateca del Tercer Mundo – 1969-1973”) e Vicente Sanchez-Biosca (“A história e a providência: cinema e carisma na representação de Franco e José Antonio Primo de Rivera”) trabalham propostas antagônicas: a produção uruguaia voltada à revolução terceiro-mundista e a produção espanhola enaltecedora do fascismo ibérico; cada qual, falando do seu lugar, revela não só as opções ideológicas como as opções estilísticas que procuram apresentar suas propostas da forma mais convincente possível.
Por último, o texto de Fernando Seliprandy (“Instruções documentarizantes no filme O que é isso, companheiro?“), no qual o autor utiliza o conceito de ‘instruções documentarizantes’, formulado por Roger Odin, para analisar a produção de Bruno Barreto e o debate que a cercou. Aqui, mais uma vez, a noção de verdade, presente na narrativa fílmica e na narrativa histórica, é colocada em questão: a indução do espectador, levado a entender o filme como uma representação da realidade, é confrontada pela indução produzida por textos e análises críticas ao mesmo filme, os quais também se apresentam como reveladores daquilo que realmente teria acontecido.
Esse trabalho coletivo recusa a ambição de se constituir como uma referência de perspectivas rígidas sobre o papel dos documentários e cinejornais para os estudos históricos, propondo-se iniciar um debate sobre a rica relação desse gênero de cinema com a história. Considerando que esse debate há muito já foi iniciado, entendemos que História e documentário tem a função de enriquecê-lo e, mais do que isso, serve, sim, a despeito da modéstia de seus organizadores, como uma importante referência para aqueles que se interessam pela relação da história com o cinema, quer sejam pesquisadores ou não, mas, com certeza, todos que sejam encantados pela imagem em movimento.
Wolney Vianna Malafaia – Doutor em História, professor do Colégio Pedro II. Rua Piraúba, s/n – São Cristóvão. 20940-250 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: wolneymalafaia@ig.com.br
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Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX – GALVÃO; LOPES (RBH)
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; LOPES, Eliane Marta Teixeira (Org.). Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 146p. Resenha de: LEON, Adriana Duarte. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.64, dez. 2012
O livro Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX, organizado por Ana Maria de Oliveira Galvão e Eliane Marta Teixeira Lopes, foi lançado recentemente e reúne cinco textos de pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da UFMG, produzidos especialmente para compor a reflexão apresentada na obra. Os capítulos são diferentes abordagens sobre o mesmo objeto, o Boletim Vida Escolar, que circulou na cidade de Lavras (MG) entre maio de 1907 e novembro de 1908.
Os estudos sobre impressos educacionais são recorrentes no campo da História da Educação, pois possibilitam emergir detalhes das tensões presentes no debate educacional. A imprensa educacional foi produzida de forma mais intensa a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo como material de formação para os professores, considerando a quantidade limitada de compêndios para essa função. No século XX a imprensa educacional amplia sua abordagem e observa-se a criação de impressos vinculados a diferentes instituições.
O Boletim Vida Escolar se encaixa nessa lógica, pois era uma publicação do Grupo Escolar de Lavras, inaugurado no dia 13 de maio de 1907. Seu diretor, Firmino Costa, era também o editor do Boletim. O impresso compunha-se de quatro páginas e tinha periodicidade quinzenal, e foram publicados ao todo 34 números. Os textos apresentados no impresso eram didáticos ou pedagógicos, e alguns tinham caráter informativo. Observa-se que o impresso circulou em diversos locais do município e do estado, o que indica ampla divulgação das ideias ali publicadas.
A fim de precisar quem eram os leitores visados pelo editor do Boletim Vida Escolar, Ana Maria de Oliveira Galvão e Mônica Yumi Jinzenji realizaram a análise do impresso sob três ângulos: estudaram as matérias direcionadas para um leitor específico, o conteúdo das temáticas abordadas e, por último, as estratégias discursivas utilizadas pelo editor.
Como estratégia metodológica as autoras categorizam o conteúdo do Boletim de acordo com as três abordagens destacadas, para posteriormente estabelecerem uma interpretação dessa categorização. Sob inspiração de Umberto Eco buscaram identificar os leitores presentes no impresso e concluíram que esse público era masculino e inserido no mundo da escrita, o que transparece, respectivamente, na identificação de formas de tratamento (caríssimos, prezados, conterrâneos e amigos) e no vocabulário utilizado.
Sobre os temas mais tratados no impresso observa-se que o próprio Grupo Escolar recebe o maior destaque, assim como seu diretor. Na construção discursiva, ou nas estratégias discursivas adotadas pelo impresso, percebem-se a valorização de Firmino Costa e o destaque às atividades por ele desenvolvidas em prol do Grupo. Firmino Costa busca convencer o leitor de que está colaborando para o êxito da reforma da instrução no estado, e que os grupos escolares são uma opção moderna e de acordo com o período.
Tratando das construções discursivas presentes no Boletim e buscando identificar o que constitui o bem viver no Grupo Escolar de Lavras, Eliane Marta Teixeira Lopes e Andrea Moreno indicam que parece emergir a valorização da educação na cidade. Acompanhando as preocupações da época, Firmino Costa anuncia o bom trato da saúde e o estímulo a bons hábitos de higiene como característica positiva da escola. Tal ênfase poderia estar relacionada à preocupação da escola em promover uma imagem moderna e atual, e diversos artigos tratam desse tema no Boletim Vida Escolar. Pode-se inferir que a divulgação dessa característica no veículo do Grupo Escolar segue o pensamento higienista da época.
Além disso, o Grupo Escolar anuncia nos seus princípios e métodos uma comparação entre a velha e a nova educação, e chama a atenção para algumas qualidades dessa nova escola: deve ser polida, justa, carinhosa, animada, atraente e prática. Pela análise de tais afirmações pode-se inferir que o Grupo Escolar integra a modernidade urbana como instituição educacional adequada à urbanização do país.
No final do século XIX e no início do século XX o urbano assume características de civilidade acentuada, em oposição ao rural que predominava anteriormente. Cynthia Greive Veiga aponta profundas mudanças nas formas de tratamento entre alunos e professores, pois os castigos e as imposições se tornam menos aceitos na lógica da civilidade. A necessidade de produção de uma matriz urbana de comportamento social está atrelada ao crescimento das cidades. A autora afirma que a escola sempre foi parte da história das cidades, e que o crescimento destas torna necessário reorganizar a vida social.
Considerando a necessidade de regrar a vida urbana e implementar/internalizar os códigos de postura, a “escola estatal pública se desenvolve como fator de alteração da própria rotina das cidades”. Esse é o caso do Grupo Escolar de Lavras, um dos primeiros grupos de Minas a proporem diversas mudanças, até mesmo nas relações entre alunos e professores. No Boletim Vida Escolar Firmino Costa estimula as manifestações de carinho e delicadeza como formas de relacionamento no ambiente escolar. Há uma demarcação das diferenças geracionais, especialmente entre adulto e criança, com destaque para o papel relevante da mãe como responsável pelo cuidado da criança. Enfim, são diversos movimentos que indicam um novo trato do indivíduo e uma atenção à constituição de suas sensibilidades. O Boletim advoga a construção desse novo indivíduo sociável, de acordo com os tempos de civilidade.
É interessante que o repertório pedagógico de Firmino Costa foi construído com base nas ideias circulantes em um espaço de ambiência cultural, mas não se tratava de uma apropriação passiva, era um processo de apropriação e reelaboração, como bem destacam Juliana Cesário Hamdan e Luciano Mendes Faria Filho.
Por intermédio do Boletim, Firmino consegue propiciar visibilidade e circulação às ideias por ele defendidas, dentre as quais destacam-se a defesa do regime republicano, do ensino mútuo e do ensino profissional e a valorização da criança e das relações estabelecidas no interior do Grupo Escolar, enfim, diversas questões que se relacionavam com o período e anunciavam o seu repertório pedagógico.
No primeiro relatório que enviou às autoridades mineiras como diretor, Firmino relata que inaugurou o grupo em 13 de maio e logo publicou o primeiro número do Boletim. Ressalta que no impresso deveriam ser tratados assuntos relativos à instrução e à história do município. Dentre os temas educativos, o ensino profissional é o que mais povoa os textos de Firmino Costa no Boletim. A ideia predominante era de que a educação deveria aproximar o sujeito do trabalho, e que por meio do ensino profissional o governo poderia resolver o problema da educação do povo.
A ideia de que a escola deveria educar para o trabalho começou, lentamente, a ganhar espaço no século XIX, via escolarização dos ofícios manuais, dos Liceus de Artes e Ofícios, das escolas particulares e das instituições filantrópicas. Carla Simone Chamon, Irlen Antônio Gonçalves e Bernardo Jefferson de Oliveira analisam as proposições para o ensino profissional presentes no Boletim Vida Escolar. O processo de escolarização do trabalho ocorre concomitantemente às transformações das relações de trabalho em curso em Minas Gerais e em vários outros estados do país. Com o processo de industrialização, na virada do século XIX para o XX, ocorre um movimento de criação de escolas profissionais que visava alcançar os trabalhadores livres.
O ensino profissional foi incluído na reforma da instrução pública nacional em 1906, e um ano após já se percebem nas páginas do Boletim Vida Escolar estratégias discursivas que buscam convencer os leitores sobre a importância do trabalho e da escola. Nesse caso, preparar para o trabalho podia ser uma estratégia de convencer as famílias a manterem os filhos na escola, pois os índices de evasão eram consideravelmente altos no período.
Nas falas de Firmino Costa transcritas para o Boletim o ensino profissional na escola primária se relaciona à ideia da formação de um sujeito útil a si e à sociedade. Embora se perceba certo destaque no ensino técnico para as classes populares, há também notas que buscam desconstruir essa ideia: “nunca é demais saber um ofício”, afirmava Firmino Costa.
O Boletim Vida Escolar é uma possibilidade de investigação sobre diversos aspectos do processo de implementação e operacionalização dos grupos escolares em Lavras e em Minas Gerais. E ler o livro recém-lançado que analisa essa publicação é visitar, por meio do impresso, parte importante da história da escolarização no Brasil, considerando que a criação dos grupos escolares, no início do século XX, marca a ampliação e a complexificação da estrutura da escola pública brasileira..
Adriana Duarte Leon – Doutoranda, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: adriana.adrileon@gmail.com.
[IF]Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central – RUST (RBH)
RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central. São Paulo: Annablume, 2011. 569p. Resenha de: COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.
Leandro Rust é um historiador que, como poucos, enfrentou o desafio de Walter Benjamin: escovar a história a contrapelo. Tarefa difícil, sobretudo, se o objeto de estudo escolhido pertence à categoria dos grandes monumentos historiográficos, como é o caso do papado. Em termos políticos, sua história configura um modelo referencial que transcende as estruturas religiosas, para chegar a significar a fonte de inspiração e de experiência do Estado laico no Ocidente. Nesse sentido, a história do papado na Idade Média, principalmente entre os séculos XI e XIII, tem sido entendida como fundamental para a compreensão das origens do processo de fortalecimento/centralização do Estado. Mais concretamente, a historiografia chegou mesmo a criar um momento gerador, que ficou conhecido como Reforma Gregoriana.
A interpretação histórica que deu sustentação ao longo dos últimos dois séculos à matriz política e institucional do Ocidente vem sofrendo críticas e há uma série de trabalhos historiográficos que já se transformaram em referência obrigatória, oriundos de diferentes quadrantes (historiografia anglo-saxã, italiana, francesa e ibérica – esta em menor medida). Entretanto, esse fenômeno restringe-se basicamente às realidades políticas do poder laico. Há uma profusão de grupos de pesquisa dedicados a revisitar os documentos/monumentos que fundaram a história do poder e das instituições e a promover um debate intenso sobre a tradição explicativa que, sobretudo a partir do século XIX, apresenta o Poder sob uma única forma e fonte, derivativo, de cima para baixo e, comumente, agindo contra a sociedade para controlá-la e dominá-la desde fora. Os resultados dessas pesquisas e debates são evidentes e abrem novas possibilidades para se contar a história do Estado no Ocidente. Mas não deixa de chamar atenção que a Igreja, como objeto de estudo, tenha ficado de fora dessa renovação, a ponto de muitas vezes se achar que ela, como instituição do tipo estatal, foi a única a realmente entender e experimentar a essência daquele modelo político. As explicações para essa ausência/presença são variadas, e o livro de Leandro Rust é de grande ajuda para refletirmos sobre isso, pois desvela a construção da imagem de uma instituição que enfrentou grandes desafios políticos no século XIX e início do XX, e que se colocou como a guardiã e precursora dos melhores valores políticos do Ocidente, cujas fundações remontariam à Reforma Gregoriana.
Mas Leandro Rust não caiu na armadilha pueril de querer apresentar uma nova interpretação que desacreditasse a velha historiografia. Sua proposta denota outro sentido, totalmente afinado com o que deve ser o ofício do historiador, qual seja o de explicar por que, em determinados momentos da história, o passado é explicado de certa maneira. Sua reflexão desdobra-se em várias direções e cronologias. Interessam-lhe, evidentemente, os documentos da época a estudar, mas também a historiografia que deu sentido a esses registros. Assim, o livro Colunas de São Pedro reafirma a máxima de que a história se faz com documentos, claro, mas também com historiografia.
Colunas de São Pedro divide-se em duas partes que, de acordo com o título, dão sustentação à própria instituição da ecclesia: territorialidade do poder e o poder sobre o tempo. Embora essas duas colunas de sustentação sejam aparentemente familiares àqueles mais versados na historiografia da Igreja medieval, o fato é que reside justamente nelas o grande desafio que o autor propõe: perceber esses sustentáculos de forma diferente. Não se trata de diminuir sua força, mas de mostrar que o material de sua composição é outro.
Para tanto, foi necessário partir de uma profunda análise da historiografia – sem dúvida, um dos pontos altos do livro. A forma como os historiadores da Igreja e do político foram solidificando explicações e conceitos, a ponto de naturalizá-los, requer do pesquisador um refinado trabalho de crítica, permanente. Entre os muitos exemplos que vão surgindo ao longo do livro, destacamos o problema do conceito ‘instituição’, o qual Leandro Rust teve de enfrentar logo no início de seu trabalho. Se, por um lado, o conceito poderia adquirir uma feição explicitamente anacrônica, por outro, havia a dificuldade de definir seu conteúdo, uma vez que na experiência da pesquisa cabia quase tudo. O autor deixa entrever ao longo do livro os caminhos escolhidos – o método – para desentranhar o conceito às fontes. Um belo exercício de história que nos permite entender a instituição papal na Idade Média como ‘poder decisório dos papas’, por meio de registros já sobejamente conhecidos: sínodos e concílios. A pedra basilar, entretanto, assenta-se na maneira como o historiador olha para esses documentos/monumentos. Não como instituições ‘já prontas’, universais, mas com a curiosidade daquele que quer entender como é que se chegou à redação desse texto e o que ele quer dizer no momento da sua produção. A política que pulsa nas instituições.
Uma das colunas da tradição historiográfica da Igreja é a lei positivada. Nas palavras de Rust, uma “imagem, amplamente veiculada, dos integrantes do poder pontifício agindo sob cerrada obediência a regras textuais e coleções canônicas … a Sé Romana como um espaço social diferenciado no medievo, burocratizado e dominado por uma lógica de juristas” (p.27). Ao considerar a própria historiografia como parte integral do objeto de estudo, foi possível chegar à compreensão de que a imagem citada estava profundamente vinculada a outro problema historiográfico: o da ideia de Reforma. Uma ideia que se materializa e se ‘repete’ na história e que adquire na contemporaneidade a incontornável força de ‘um projeto político’. A esse respeito, os documentos escolhidos pelo autor – também usados por essa mesma historiografia – possibilitam outra interpretação. Os textos legais, quando interpretados em seu contexto, revelam-se não como fruto da vontade autocrática de um papa-monarca, mas como resultado de intensas negociações e pactos complexos que integram a voz do pontífice à dos mais diversos grupos de poder da cristandade, por toda a Europa. Uma territorialidade do poder que está longe de se centrar exclusivamente em Roma, que adquire conotações regionalizadas, e que só pode ser configurada graças às lógicas das redes pessoais, das quais o papado tenta participar ativamente. No mesmo sentido, a coluna do tempo não está feita de eternidade, mas de finitude; o papado recorre ao tempo dos homens para dar voz às suas decisões, mas, no mesmo espírito da maleabilidade e da pessoalidade jurídica, também o tempo é móvel e mutável. Assim, será possível, quando necessário e conveniente, inventar permanências e continuidades, legitimar causas e reestruturar a voz da autoridade.
Para Leandro Rust, as práticas reformadoras não são a chave explicativa para a compreensão da política do papado de 1040 a 1210. Ao propor que se entenda a ascensão do papado como um fenômeno político – e não cultural, social, ou econômico – há um deslocamento importante: não era a ‘reforma’ que conferia sentido histórico a essa ascensão. Então, deixar de falar em Reforma Gregoriana – como propõem alguns autores – para adotar expressões como Reforma Papal ou Reforma Eclesiástica não é uma saída para o problema historiográfico. O protagonismo da ‘reforma’ remete diretamente para o discurso reformista do catolicismo de fins do século XIX e do Concílio Vaticano II. A análise cuidadosa que Rust faz da documentação permite compreender que embora a questão moral e a espiritualidade fossem importantes, não eram estes aspectos que delineavam o curso da política.
A conclusão de Leandro Rust é historiograficamente contundente:
O século XI assinala a ascensão política da Sé de Roma, não como a precursora de uma centralização do tipo moderno e burocrático, mas como uma Igreja forçada a superar fraquezas excepcionais. Entre as décadas de 1040 e 1130, o exercício do poder pontifício seguiu à risca a mesma lógica delineada pelas experiências de tempo que pouco nos lembra a “construção de um Estado moderno”. Ele contou com uma disposição regular, perpetuada por gerações de modo constante, interpessoal, estabelecida como modalidade de integração decisória de grande abrangência social e prolongada permanência. Esta disposição estável e coletiva do modo de tomar decisões constitui o que entendemos por institucionalidade papal … As instituições pontifícias com as quais nos deparamos eram ações sociais dotadas de um sentido particular, elas tinham, de fato, finalidades específicas, que não eram alheias à sociedade senhorial, mas tampouco eram “criações” do papado … As instituições pontifícias, portanto, não podem ser definidas no ponto de partida de uma pesquisa histórica. Elas não podem ser previamente classificadas e categorizadas para que o investigador possa, só então, sondar o que a documentação tem a dizer sobre elas.
O capítulo 6, sobre o Cisma de 1130, merece um comentário destacado. Sem dúvida, é nele que o leitor consegue ver com mais clareza o descentramento da política papal, a sua natureza polinuclear, ou seja, como ela era sustentada por várias colunas senhoriais, ao ponto de o centro político do Cisma ter sido a Gália, e não Roma. Muito antes do século XIV, e de Avignon, a política papal já primava pelo deslocamento e pela mobilidade – não pela centralização e fixação.
Por último, não se pode deixar de destacar o exaustivo trabalho com as fontes. Leandro Rust encara o desafio de reler com cuidado uma documentação sobejamente conhecida para desvendar outros significados. O resultado desse esforço denota, apesar de sua juventude, grande conhecimento e erudição, o que lhe permite reconstruir intrincadas redes políticas e desvendar as tramas do discurso jurídico-institucional.
Maria Filomena Pinto da Costa Coelho – Programa de Pós-graduação em História (PPGHIS) e Departamento de História, Universidade de Brasília (UnB). Instituto de Ciências Humanas, Campus Universitário Darcy Ribeiro – ICC Norte. 70910-900 Brasília – DF – Brasil. E-mail: filo-coelho@hotmail.com.
Viagem ao cinema silencioso do Brasil.
PAIVA, Samuel; SCHVARZMAN, Sheila (Org.) Viagem ao cinema silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Azougue, 2011. 310p. Resenha de: SCHIAVINATTO, Iara Lis Franco. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.
É bem-vinda esta obra escrita por pesquisadores do cinema que, desde 2002, se reúnem amiúde para ver filmes silenciosos na Cinemateca Brasileira. De partida, há uma lição de método: a escrita nasce da experiência de vê-los e da necessidade de melhor compreendê-los, considerando os sentidos da imagem e suas relações com o real. Desta maneira, reordena-se sua memória, atualizando-a. O livro inicia-se com um estudo sobre o estado atual da prospecção, restauração e preservação desses filmes no Brasil, dos catálogos à crítica, passando pela materialidade e pelo acesso. O acervo é concebido como uma coleção catalogada e mutável, pois pode se expandir e redimensionar. No âmbito da memória, a documentarista Guiomar Ramos retomou com d. Guiomar Rocha Álvares suas impressões ao assistir Voyage de nos souverains au Brésil (1920), isso porque d. Guiomar testemunhou, quando jovem, essa real visita. O filme dispara a memória, vindo à baila a cultura política da época. Já Mauro Alice descreveu seu interesse em usar o mesmo filme e Lembranças de velhos1 na elaboração de um roteiro cinematográfico. O livro apresenta um mapeamento comentado das Atualidades Gaúchas, o importante catálogo dos filmes disponíveis nesta Cinemateca, e o notável Relatório, escrito pelo major Reis sobre sua viagem a Nova York, extraído do acervo da Embrafilme – hoje, na Cinemateca. Major Reis explicitou as negociações e estratégias para exibir nos Estados Unidos Os sertões, produzido nas expedições do coronel Rondon. Dizia haver lá “quase uma prevenção” contra filmes estrangeiros. “Reduzidos aos assuntos não teatrais”, entravam como educational films. Exibiu seu filme, pioneiramente etnográfico, num circuito culto e científico, intermediado pelo coronel Theodore Roosevelt. No texto, transparecem tensões do mundo vincado pelo colonialismo. Pesa na memória o repúdio da Cinearte aos naturaes e cavadores. Cinearte condenou a presença de negros, índios, caboclos, traços de Congo nos filmes, numa “postura racista”, e buscou a imagem do Brasil moderno, depois vislumbrada na Cinédia. Ato contínuo, desmereceu uma gama de profissionais e procedimentos. A rememoração e a visibilidade desses filmes são temas correlatos e fortes no livro; seja ao recuperar sua constituição histórica entre 1896 e 1934, no momento da consolidação do cinema como meio de comunicação de massa e entretenimento, seja ao nuançar as perspectivas dos sujeitos sociais aí enredados.
O livro enfrenta algumas questões fundamentais do assunto, com discrepâncias e discordâncias. Dialoga com os críticos Paulo Emilio Salles Gomes, Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, e com a noção de primeiro cinema no viés de Tom Gunning e Charles Musser. Seria um cinema fascinado pela sua própria atração e capacidade expositiva, embebido na representação do cotidiano e encantado por ela. Releva-se, nele, o processo de cosmopolitização das imagens e práticas expositivas. Contudo, não são réguas da sua inteligibilidade: a ausência de uma linguagem cinematográfica sistematizada e acabada, o progresso técnico ou o recorte nacional. Daí, o valor, para esses pesquisadores, em indicar a materialidade do filme e em situar os lugares, os circuitos, os momentos de exibição. Há diferença entre exibir No Paiz das Amazonas (1922) no Odeon ou no Palais e exibi-lo no espaço da Exposição Internacional de 1922, sempre no Rio de Janeiro. Porém, a maior parte dos filmes vistos no Brasil, principalmente a partir de 1912, era estrangeira. Da produção aqui realizada, preponderava o natural ao posado, para ficar no vocabulário dos profissionais de então. Em várias passagens, os autores distinguem natural, atualidade, cavação, travelogue e posado nos termos e implicações da época, explorando especificidades e ambiguidades.
Alguns autores debatem o gênero fílmico. Em parte, exploram a recepção e elaboração de gêneros, incorporando modelos cinematográficos, sem cair na cópia. Alfredo Supia aborda a ficção científica e flagra a recepção da sua iconografia e do seu imaginário em filmes posados e naturais – estes últimos reforçariam a verossimilhança científica. Luciana Araújo questiona a virada da figura dramatúrgica do herói, do mocinho em galã, ao comparar o norte-americano Tol’able David (1921) e Tesouro perdido (1927) de Humberto Mauro, observando essa mudança em filmes feitos em São Paulo e Pernambuco. Em suas tramas, importaria menos a construção do herói e mais a reafirmação da figura do senhor – entendido, pela autora, na esteira de Joaquim Nabuco. As relações sociais ditadas pela dialética do senhor-escravo explicariam essa dissociação entre herói e galã. Sheila Schvarzman mapeia a produção de travelogue em Cornélio Pires na condição de imagens também negociadas, onde se evidenciam a continuidade de certos tipos sociais e a grandeza do paulista. No plano das representações sociais, Luciene Pizoqueiro trabalha a figura feminina em três filmes paulistas centrados na sociabilidade burguesa e familiar. Eles mostram o papel da elite na cidade de São Paulo ao designar hábitos e emoldurar gestos e formas, bem como suas estratégias para cristalizar sua identidade.
Os filmes, além disso, funcionam como um elemento constitutivo da geografia imaginária da nação. Eduardo Morettin trata da geração de riqueza e do lugar da natureza em No País das Amazonas, Terra Encantada e No Rastro do Eldorado, de Silvino Santos, esmiuçando os significados da sua produção e exibição durante o ciclo comemorativo do centenário da Independência do Brasil, em 1922. Essa geografia imaginária ressurge em Ana Lobato e Paulo Menezes, ao exporem a montagem de uma cartografia que designa interior/litoral, campo/cidade, as fronteiras do país e, simultaneamente, insere o Brasil, como nação e simbolicamente, no contexto mundial. As irmãs Fabri desmontam os liames entre A Real Nave Itália no Rio Grande do Sul de Benjamin Camozato e a exposição itinerante levada pelo navio Regia Nave Italia por vários portos brasileiros, propagando uma iconografia fascista, o imaginário político do fascismo, o discurso eugenista e o entusiasmo da imprensa brasileira. O filme, hoje aos pedaços, dirigia-se preferencialmente ao público italiano. Alguns artigos, pontualmente, nomeiam os sentimentos de pertencimento e seus mecanismos, a exemplo do sentimento patriótico em Fabris ou o respeito cerimonioso de Cornélio Pires pela grande propriedade.
Em escalas distintas, alguns artigos problematizam as relações entre filmes vistos, de imagens precárias, e o real. Apontam a força da performance nessa filmografia, como no caso do major Reis a tomar posse, através da imagem, da fronteira, capturando-a com suas gentes para o Estado nacional. O assunto é menos a “autenticidade da imagem”, argumenta Flavia Cesarino Costa, mas o “relato acontecendo visualmente” na frente da câmera. Nessa condição, situações involuntárias, até mesmo indesejadas, vazavam. As imagens expunham o tal “atraso brasileiro” combatido pela Cinearte, que propunha a criação da filmografia de fato moderna. Por sua vez, as mediações com o real implicavam o diálogo com imagens oitocentistas, fotografias brasileiras ou não, denotando a frequência ao mundo das imagens que precede a emergência do cinema. Esse repertório imagético oitocentista, no geral, imbricou-se à viagem, na medida em que dela resulta e representa sítios visitados, inscrevendo-se muitas vezes na lógica colonial de reconhecimento do mundo e sua posse, ajudando a estabelecer o tráfego contínuo, rápido, simultâneo, em massa das imagens em ordem planetária. O fotográfico concorreu para o estabelecimento de uma percepção do lá e do aqui, do local e do global, da imagem que documenta e do objeto. Foi em si mesmo um mediador. Aí, a noção de viagem adquire, ao longo da leitura, sentidos entrecruzados: a captura da imagem na viagem, o gênero travelogue, o tema da viagem nos filmes, o alto trânsito das imagens a tecer entre si relações variadas em sua exibição. Alude às condições da e à própria experiência de ver os filmes naquelas circunstâncias e hoje. A viagem, ademais, revela a atitude por parte dos pesquisadores ao embarcar nessa experiência estética, acadêmica e cinematográfica.
Com base nesse livro, é possível refletir sobre o lugar que o corpo ocupa nessas relações entre imagem e real a considerar as conclusões de Luciana Araújo, sobre a centralidade do corpo nos filmes de major Reis e naqueles comentados por Pizoqueiro. Ou sobre a potência do ritual do poder, dizia Paulo Emílio, para gerar imagens capazes de representá-lo em celebrações de grandeza variada, do funeral de Rio Branco ao Centenário da Independência. No todo, o leitor é surpreendido pelo matiz político conservador desses filmes no temário, no tratamento das imagens, na narrativização, na recepção, nas negociações entabuladas, porque, no limite e no pinga-pinga, representavam do cotidiano a desigualdade social e espraiavam, no senso comum, uma percepção modulada pela noção de raça – expediente a justificar tal desigualdade. Ficam em mim perguntas: filmes como São Paulo: sinfonia da metrópole (1929) soaram mais arrojados do que pareciam até agora? Não caberia precisar mais os liames entre a geração de cavadores e da Cinearte? Há mais pistas no inteligente Baile perfumado (1997) para compreender essa produção tanto na fatura da imagem, no instante em que é feita, quanto sua transformação em moeda de poder e na sua rememoração?
Nota
1 Trata-se de BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Iara Lis Franco Schiavinatto – Instituto de Artes, Departamento de Multimeios, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Elis Regina, 50. Cidade Universitária Zeferino Vaz. 13083-970 Campinas – SP – Brasil. iara.schio@gmail.com.
Trabalho e Trabalhadores / Revista Brasileira de História / 2012
A Revista Brasileira de História, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, está lançando seu 64º número. Com periodicidade semestral, a partir do número 59 a RBH iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam agilizar a consulta dos volumes novos e antigos, bem como ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo que um público não conhecedor da língua portuguesa possa acessar nossa produção.
Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “Trabalho e Trabalhadores” para o Dossiê que, seguindo a trilha do anterior, também está sofrendo uma ampliação no que diz respeito ao número de artigos publicados. Como já dissemos, o interesse em publicar na RBH tem sido crescente na comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Neste número, recebemos cerca de cem artigos apenas para o Dossiê, dos quais um montante expressivo foi aprovado pelos nossos pareceristas, sem que tenhamos condições de publicar todos. Essa nova demanda da produção historiográfica brasileira em busca de canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de repensarmos sua periodicidade. Este número conta com 15 artigos.
Para o Dossiê “Trabalho e Trabalhadores” foram selecionados nove artigos focados essencialmente na realidade brasileira, com apenas dois dedicados aos Estados Unidos e a Portugal. No que diz respeito aos recortes temporais, pudemos selecionar textos que abordavam diferentes conjunturas, contemplando desde as relações de trabalho no final do século XIX até a problemática do trabalho análogo ao escravo, já no século XXI. Quanto às formas de abordagem, são apresentados trabalhos que adotaram como estratégia de pesquisa o estudo de trajetórias de lideranças, assim como análises de movimentos sociais como greves e lutas contra a repressão. Do conjunto de textos recebidos e selecionados podemos dizer que essa área de trabalho, que por um expressivo período se mostrou em declínio, apresenta-se agora com grande dinamismo e de maneira renovada. Assim, do ponto de vista historiográfico é possível detectar que esse campo de investigação sobre o trabalho dá indicações de voltar a ser alvo de grande interesse dos pesquisadores, conquistando um novo espaço entre os objetos nobres de pesquisa. Iniciamos com um artigo de Leon Fink que apresenta análise historiográfica com foco especial nos Estados Unidos sobre a renovação dos estudos na área de trabalhadores. Joana Vidal de Azevedo Dias Pereira estuda espaços industriais e comunidades operárias na periferia de Lisboa, na virada para o século XX. Joseli Maria Nunes Mendonça no artigo “Sobre cadeias e coerção: experiências de trabalho no Centro-Sul do Brasil do século XIX” trabalha com a história de uma imigrante portuguesa estabelecida no Centro-Sul cafeeiro de meados do século XIX, com o objetivo de recuperar aspectos das experiências vivenciadas por trabalhadores juridicamente livres; Endrica Geraldo com “Os prisioneiros do Benevente” discute a repercussão pública da deportação, no ano de 1919, de 23 imigrantes, incluindo o militante Everardo Dias, episódio que revela aspectos importantes da repressão contra o movimento operário no Brasil. Aldrin Armstrong Silva Castellucci com o texto “Agripino Nazareth e o movimento operário da Primeira República” analisa a atuação dessa liderança socialista no movimento operário brasileiro. Antonio Luigi Negro em “Não trabalhou porque não quis” examina como a Justiça do Trabalho tratou uma greve no ramo têxtil baiano em 1948, procurando aplacar temores e tensões do sistema político e sindical brasileiro. Clarice Gontarski Speranza em “Os mineiros de carvão, seus patrões e as leis sobre trabalho: conflitos e estratégias durante a Segunda Guerra Mundial” estuda uma série de conflitos ocorridos nas minas de carvão no Rio Grande do Sul em 1943, com foco nas lutas pelo cumprimento de leis trabalhistas. Cristiana Costa da Rocha com “Os Retornados: reflexões sobre condições sociais e sobrevivência de trabalhadores rurais migrantes escravizados no tempo presente” dedica-se ao estudo de trabalhadores rurais de Barras, Piauí, que migram repetidas vezes para os estados do Pará, Mato Grosso e Goiás e vivenciam formas de trabalho análogo à escravidão. Fechando o dossiê, Ângela de Castro Gomes no texto “Repressão e mudanças no trabalho análogo a de escravo no Brasil: tempo presente e usos do passado” analisa a ação dos Grupos de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, e da Igreja católica, pela Comissão Pastoral da Terra, na apuração e punição das denúncias da utilização do denominado trabalho escravo.
A seção de avulsos apresenta seis artigos. Carmen Teresa Gabriel Anhorn em “Teoria da História, Didática da História e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur” tem por objetivo discutir a potencialidade analítica da categoria ‘narrativa’ na reflexão sobre produção, distribuição e consumo do conhecimento histórico. Muryatan Santana Barbosa com “A construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (Unesco)” analisa a construção dessa grande obra focando o período entre 1965 e 1979; Patricia Santos Hansen com o texto “Território em disputa: a escola na luta entre o republicanismo e a Igreja em Portugal (séculos XIX e XX)” discute conceitos centrais aos processos de secularização e laicização do ensino em Portugal desde a Monarquia Constitucional até o início da Primeira República. Luís Miguel Carolino em “Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX” analisa a atuação de um professor de astronomia na Academia Real Militar do Rio de Janeiro que produziu um dos primeiros manuais de astronomia esférica, um gênero maior da literatura científica do século XIX. Luiz Alberto Grijó com “Soldados de Deus: religião e política na Faculdade de Direito de Porto Alegre na primeira metade do século XX” aborda as ideias e concepções filosóficas que predominaram nessa Faculdade, focalizando as disputas entre os católicos e os chamados positivistas. Mara Rúbia Sant’Anna em “De perfumes aos pós: a publicidade como objeto histórico” trata dos anúncios de cosméticos publicados na revista Fon-Fon! de 1911 a 1934, com o objetivo de destacar as rupturas e continuidades.
Este número apresenta ainda entrevistas com os historiadores franceses Christian Delacroix e François Dosse e publica quatro resenhas: Adriana Duarte Leon analisa Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX, organizado por Ana Maria de Oliveira Galvão e Eliane Marta Teixeira Lopes; Iara Lis Franco Schiavinatto apresenta Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil, organizado por Samuel Paiva e Scheila Schvarzman; Maria Filomena Pinto da Costa Coelho analisa Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central, de Leandro Duarte Rust, e, por último, Wolney Vianna Malafaia resenha História e documentário, organizado por Eduardo Morettin, Mônica Kornis e Marcos Napolitano.
Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.
Marieta de Moraes Ferreira
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.32, n.64, dez, 2012. Acessar publicação original [DR]
The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780-1867 – SILVA (RBH)
SILVA, Daniel Domingues da. The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780-1867. New York: Cambridge University Press, 2017. 232p. Resenha de: ALFAGALI, Crislayne Marão Gloss. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.79, set./dez. 2018.
The Atlantic Slave Trade from West Central Africa conta em minúcia a história do comércio das gentes no auge de seu funcionamento, na principal região de procedência dos escravizados que foram deportados para as Américas, em especial para o Brasil. Esse fato, por si só, torna o livro imprescindível tanto para a compreensão das dinâmicas do tráfico e da escravização na África, quanto para a história dos africanos e seus descendentes na diáspora.
Os primeiros parágrafos escritos por Daniel Domingues dizem muito sobre suas escolhas teóricas e seu objetivo de unir métodos quantitativo e qualitativo. Na introdução narra-se a trajetória de Nanga, que foi penhorado por sua mãe para libertar um de seus tios, o qual, por sua vez, foi escravizado e vendido por adultério, uma ofensa que poderia ser punida com escravização, banimento e morte. Uma história repleta de reviravoltas que nos conta as experiências de escravidão e liberdade vivenciadas por Nanga e suas conexões com a era da abolição e a supressão do tráfico no Atlântico Norte. Acontecimentos concomitantes ao aumento da demanda por mercadorias primárias na Europa em franca industrialização e, consequentemente, à intensificação do comércio das almas da África Centro-Ocidental para as plantações nas Américas.
Nesse breve introito, delineiam-se alguns dos mais importantes diálogos historiográficos atuais sobre: os processos e critérios de captura e escravização; as origens dos escravizados que foram forçados a deixar a África Centro-Ocidental; o impacto do tráfico nas sociedades africanas e suas relações com a política interna dos Estados africanos; quais foram as motivações dos centro-africanos que participavam do tráfico; e as dificuldades e agruras enfrentadas por aqueles que foram atingidos pela maior migração forçada à longa distância da história.
Dessa forma, a fim de unir análises de cunho qualitativo com fontes seriais, o autor lança mão do cruzamento de informações fruto de seu trabalho como colaborador da maior base de dados sobre viagens escravistas “Voyages: The Trans-Atlantic Slave Database” (Eltis et al., s.d.) com as obtidas em variado conjunto documental. O livro traz listas e registros de escravizados e libertos produzidos pelas comissões mistas para a supressão do tráfico e pelas autoridades coloniais em Angola, arrolamentos de mercadorias que circulavam no comércio atlântico, relatos de viajantes, testemunhos de escravizados e libertos e toda sorte de documentos oficiais presentes em arquivos brasileiros, norte-americanos, portugueses, angolanos e britânicos.
Os dois primeiros capítulos esboçam o panorama geral das flutuações do comércio das almas de 1780 a 1867, bem como sua organização e agentes envolvidos desde a captura, escravização e transporte até a venda. Uma das conclusões apresentadas é a de que o número de escravizados dependeu mais de eventos relacionados à demanda da economia atlântica e a eventos como a rebelião de São Domingos e a abolição do tráfico inglês, que promoveram a expansão do comércio ibérico e brasileiro, que à oferta de cativos desencadeada por guerras provocadas pela expansão Lunda. A ênfase passa para o papel central desempenhado pelos comerciantes, intermediários e traficantes. Pessoas de variada procedência e condição social com ambições econômicas, políticas e de ascensão social, que não deixaram de influenciar diretamente a oferta e a demanda de cativos.
Domingues questiona a historiografia que associa as dinâmicas do trato dos viventes com processos de formação estatal no interior do continente africano. Especificamente para a historiografia sobre a África Centro-Ocidental, o volume e a origem dos escravizados que abasteciam o tráfico foram associados à expansão do Império Lunda e à formação do Reino Imbangala Kasanje.1 Tal como outros estudos (Ferreira, 2012; Ferreira, 2012a; Candido, 2013) permitem entrever, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa relativiza a tese de Miller (1988) segundo a qual a fronteira da escravidão se moveria cronológica e progressivamente para o interior do continente africano. Isso porque o processo de escravização abrangeu também as populações costeiras, mesmo em áreas de ocupação portuguesa, que não estavam imunes ao sequestro, razias e outras formas de escravização (p.7).
Por isso, o Capítulo 3 traz uma das contribuições mais relevantes do livro, um estudo minucioso das origens dos escravizados que partiam da África Centro-Ocidental no século XIX. Há registros detalhados para 11.264 indivíduos, de 21 grupos linguísticos e 116 etnias, em sua maioria de regiões costeiras, de algumas áreas específicas próximas a portos de embarque, aspecto que ressalta as novas interpretações historiográficas acima citadas.
Ao estudar os etnômios predominantes, Domingues constata que escravizadores e escravizados frequentemente falavam a mesma língua e compartilhavam valores culturais similares. Contudo, salienta que esse processo respondia a pressões impostas pelo mundo atlântico. Por conseguinte, não é possível dissociar esse processo da crescente e complexa rede mercantil relacionada à demanda atlântica de produção de cativos para abastecer os portos das Américas.
Tampouco pode-se presumir que comerciantes e escravizados compartilhavam uma identidade única como o vocabulário africano erroneamente pode induzir; pelo contrário, não viam a si próprios com base em uma consciência comum de irmandade. “Eles [os escravizados] podiam falar a mesma língua que seus captores, viver próximo a eles, adorar as mesmas divindades, mas eles ainda assim poderiam ser considerados ‘de fora’ (outsiders)” (p.99, trad. nossa). Para o autor, esse “senso localizado e restrito de identidade” teve consequências desastrosas sobre algumas sociedades, como no caso do impacto demográfico do tráfico no Ndongo. Algo diferente do que foi visto para as populações Umbundu. Isso mostra que as consequências do tráfico foram desiguais nas diferentes sociedades africanas.
As tabelas, mapas e anexos que trazem a descrição dos etnômios dos escravizados são recursos fundamentais para composição mais abrangente da presença e das contribuições dos falantes de línguas bantu na constituição das sociedades americanas.
Os Capítulos 4, 5 e 6 buscam o ponto de vista africano do tráfico de escravizados. Em outras palavras, analisam como as concepções das sociedades africanas de gênero e idade, por exemplo, tiveram peso relevante na determinação do perfil demográfico dos escravizados que eram vendidos na costa. Havia relutância em vender mulheres adultas para a travessia atlântica em razão de sua importância para as sociedades locais.
Ademais, o autor analisa as mudanças nos padrões de consumo das sociedades africanas relacionadas à adição de uma variedade de itens, como os tecidos asiáticos e europeus, a suas produções locais. Africanos de diversa condição social e econômica, e não apenas líderes políticos, engajaram-se no tráfico, motivados principalmente pelas recompensas materiais. Contudo, em termos gerais, os escravizados pertenciam às camadas sociais inferiores, incluindo prisioneiros de guerra, vítimas de rapto ou trapaça e aqueles escravizados por ofensas como roubo e adultério. Enfim, eram várias as formas legais e ilegais de escravização.
Neste ponto, uma maior aproximação dos estudos sobre as mudanças nas políticas internas dos sobados e de seus padrões culturais possibilitaria outras interpretações. Jan Vansina, por exemplo, associa a intensificação da prática do penhor em meados do século XVIII à concentração de poder em “matrilinhagens corporativas”, governadas pelos “mais velhos” da linhagem que passaram a dispor de seus dependentes como forma de eles próprios escaparem da escravidão (entregando o penhorado em seu lugar) ou para pagar dívidas e obter bens e riquezas (Vansina, 2005, p.18).
Por fim, as análises de Domingues se sustentam em amplo lastreamento empírico e profícuo diálogo historiográfico. Ao enfatizar a agência africana e seus meandros não deixa de lembrar como o legado do trato das gentes é um obstáculo na formação de nações como Angola e outros países que hoje se localizam na África Centro-Ocidental (p.15).
Referências
BIRMINGHAM, David. The Date and Significance of the Imbangala Invasion of Angola. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.6, n.2, p.143-152, 1965. [ Links ]
CANDIDO, Mariana P. An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its Hinterland. New York: Cambridge University Press, 2013. [ Links ]
ELTIS, David et al. Voyages: The Trans-Atlantic Slave Database. [ base de dados on-line]. s.d. Disponível em: Disponível em: www.slavevoyages.org/ ; acesso em: 12 set. 2018. [ Links ]
FERREIRA, Roquinaldo A. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil During the Era of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. [ Links ]
_______. Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830-1860. Luanda: Kilombelombe, 2012a. [ Links ]
MILLER, Joseph. The Imbangala and the Chronology of Early Central African History. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.13, n.4, p.549-574, 1972. [ Links ]
_______. Way of death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988. [ Links ]
VANSINA, Jan. The Foundation of the Kingdom of Kasanje. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.4, n.3, p.355-374, 1963. [ Links ]
_______. Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.46, n.1, p.1-27, 2005. [ Links ]
1Esse assunto foi mote de amplo debate representado sobretudo por VANSINA (1963), BIRMINGHAM (1965) e MILLER (1972).
Crislayne Marão Gloss Alfagali – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Departamento de História. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: crisalfagali@puc-rio.br.
[IF]
Igreja e Estado / Revista Brasileira de História / 2012
A Revista Brasileira de História, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, está lançando seu 63º número. Com periodicidade semestral, a partir do número 59 a RBH iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos dez últimos números da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web. A quantidade de acessos por mês a esses dez números foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da Revista e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil.
Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “Igreja e Estado” para o dossiê, que está sendo ampliado de forma significativa. Usualmente, a RBH tem formado um dossiê com cerca de cinco ou seis artigos e selecionado para a seção de avulsos um número semelhante. No entanto, o interesse em publicar na Revista tem sido crescente pela comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Nestes dois últimos números, recebemos mais de duzentos artigos, tendo sido aprovados por pareceristas um montante expressivo, o que nos levou a ampliar não só o dossiê, mas também a quantidade de avulsos. Essa nova demanda da produção historiográfica brasileira em busca de canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de adotarmos uma maior periodicidade. Por esses motivos este número conta com 18 artigos.
Para este Dossiê foram selecionados dez artigos, sendo objeto principal de atenção as temáticas voltadas para as questões religiosas na América portuguesa. Foram apresentados também três artigos localizados no Brasil Independente (Império e República) e artigos centrados em discussões conceituais e historiográficas. Iniciamos com o texto de Vinicius Miranda Cardoso, “Cidade de São Sebastião: o Rio de Janeiro e a comemoração de seu santo patrono nos escritos e ritos jesuíticos”, que analisa os usos e discursos jesuíticos relacionados com o cerimonial de recebimento de uma relíquia de São Sebastião no Rio de Janeiro no contexto de uma visitação inaciana ocorrida entre 1584 e 1585. Com base em diferentes fontes também focalizou-se a rememoração coletiva e sacramental da proteção de São Sebastião aos fundadores do Rio de Janeiro e a consagração do santo flechado como padroeiro da cidade. Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz em “Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial” trata dos conflitos entre as jurisdições da Igreja e do Estado, com foco no século XVIII, quando ascendeu ao poder o marquês de Pombal com sua política regalista que tentava cada dia mais secularizar o Estado português. A autora objetiva acompanhar os conflitos e os motivos dessa disputa de jurisdição e analisar o desrespeito às imunidades eclesiásticas no Maranhão. Fernando Lobo Lemes em “Na arena do sagrado: poder político e vida religiosa nas minas de Goiás” tem como objeto a análise os conflitos e embates entre o poder secular e as autoridades eclesiásticas naquela região. Eliane Cristina Deckmann Fleck e Mauro Dillmann no texto “‘A Vossa graça nos nossos sentimentos’: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII” analisam o manual Mestre da Vida que ensina a viver e morrer santamente, publicado na primeira metade do século XVIII. O eixo central é o estudo das representações da Virgem, das orientações que os fiéis deveriam seguir no culto e nas práticas devocionais. Tal análise insere-se nas recentes discussões historiográficas acerca das práticas de leitura, considerando as formas plurais de apropriação e de recepção de textos, inseridas em seus contextos de produção e circulação. Ana Rosa Cloclet da Silva em “Padres políticos e suas redes de solidariedade: uma análise da atuação sacerdotal no sertão de Minas Gerais (1822 e 1831)” estuda o perfil de clérigos brasileiros que aliaram de modo peculiar a formação pastoral e intelectual à atuação política, em favor de seus interesses privados, buscando usufruir de suas redes de sociabilidade para resistir às normatizações encaminhadas pelo Estado nacional, pós-Independência. O artigo seguinte, de Maurício de Aquino, “Modernidade republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: as relações entre Estado e Igreja na Primeira República”, trata dos reflexos da proclamação da Republica e do fim do regime do padroado, que levaram à implementação de um processo de reforma e reorganização eclesiástica cujo fulcro consistiu na criação de dioceses e jurisdições similares – ao qual se pode denominar diocesanização. Christiane Jalles de Paula no artigo “Gustavo Corção: apóstolo da ‘linha-dura'” tem como objetivo analisar a participação de setores do laicato católico na legitimação do golpe militar de 1964. Partindo da atuação de Gustavo Corção, a autora procura demonstrar como os argumentos desse personagem buscaram legitimar as bases antidemocráticas da chamada ‘democracia’ do regime militar defendida por esses setores.
O segundo bloco de artigos que integram o Dossiê “Igreja e Estado” apresenta reflexões sobre conceitos de santidade e de realeza cristã na Idade Média e um balanço das relações entre essas duas esferas. Igor Salomão Teixeira em “O tempo da santidade: reflexões sobre um conceito” apresenta e analisa o processo de canonização de Tomás de Aquino (1323-1274). A proposta do autor é destacar que o conceito de santidade, tal como apresentado, torna-se um fenômeno social construído coletivamente. André Luis Pereira Miatello no artigo “O rei e o reino sob o olhar do pregador: Vicente de Beauvais e o conceito de realeza no século XIII” discute, com base no De morali principis institutione, do religioso francês, os critérios, a instituição e a função social da realeza cristã no século XIII. O propósito é perscrutar a imagem antiga do pastorado régio por oposição à ideia de razão de Estado. Escrevendo para o rei capetíngio, Luís IX, Vicente de Beauvais contrapõe a situação ordinária em que o governo político se apresenta, no plano histórico, ao modelo social visível em uma realidade sobrenatural, chamada ecclesia. Finalmente, Olivier Abel em “Igrejas e Estado” fornece ao leitor um balanço bibliográfico que percorre diferentes conjunturas e diferentes autores acerca das relações entre esses dois poderes.
A seção de avulsos apresenta oito artigos. Clara Maria Laranjeira Sarmento e Santos em “A Correspondência Luso-Brasileira: narrativa de um trânsito intercultural” explora a experiência entre Portugal e o Brasil, no início do século XIX, de duas famílias oriundas da pequena nobreza rural do Norte de Portugal, com especial atenção ao percurso intercultural feminino. O trabalho articula os contextos concretos e situados do seu objeto de estudo, com o propósito de construir o conhecimento de diferentes momentos históricos, racionalidades e mundividências. Eduardo Munhoz Svartman em “Formação profissional e formação política na Escola Militar do Realengo” aborda a primeira etapa do processo de formação profissional de oficiais do Exército Brasileiro que iniciaram suas carreiras no decorrer da década de 1920. Com foco numa instituição que pretendia formar oficiais ‘apolíticos’, o autor chama atenção para a criação de um espaço de politização desenvolvido nessa escola. Fernando Vale Castro em “Um projeto de diplomacia cultural para a República: a Revista Americana e a construção de uma nova visão continental” tem como objetivo analisar esse periódico como um instrumento da estratégia do Itamaraty para pensar uma aproximação entre o Brasil e o restante da América do Sul, destacando o papel a ser exercido pela diplomacia na República recém-proclamada. Cleber Santos Vieira em “Civismo, República e manuais escolares” analisa aspectos do civismo no alvorecer da República brasileira, com ênfase na pesquisa sobre dois livros escolares: História do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, de Silvio Romero (1890), e A História de São Paulo pela biografia de seus nomes mais notáveis (1895), publicado por Tancredo Amaral. Por um lado, trata-se de apresentar nuanças da Historia Magistra Vitae presentes nesses objetos da cultura material; por outro, de destacar em que medida suas histórias foram pontuadas por divergências em torno da questão educação ou instrução cívica pela afirmação de um civismo de coloração regional, bem como palco de conflitos entre protagonistas do republicanismo paulista. Lucília Siqueira em “Os hotéis na cidade de São Paulo na primeira década do século XX: diversidade no tamanho, na localização e nos serviços” analisa três estabelecimentos de hospedagem de dimensões distintas, ressaltando sua heterogeneidade. Seguindo os inventários post mortem de proprietários de hotéis, o artigo possibilita apreender a variedade dos equipamentos e serviços existentes, bem como a diversidade dos grupos aos quais pertenciam os donos desses estabelecimentos. Maria Bernardete Ramos Flores no texto “Quando o dragão assume o lugar do cavalo: um caráter pós-colonialista na obra criolla de Xul Solar” analisa como esse artista, representante da vanguarda argentina, desenvolve a proposta de que a América, com seus sistemas de mitos e crenças, revelava um espaço espiritual no qual se desenvolveria a nova humanidade, e toma o dragão para subverter os fluxos da colonização do Mundo Novo. Antonio Maurício Dias da Costa em “Festa e espaço urbano: meios de sonorização e bailes dançantes na Belém dos anos 1950” discute o uso de referências simbólicas de origem memorialística e jornalística atribuídas ao contexto socioespacial dos bailes dançantes de orquestras e ‘sonoros’ em Belém, nos assim chamados ‘clubes sociais’ e ‘clubes suburbanos’. Raquel Varela em “‘Um, dois, três MFA’: o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos – do prestígio à crise” analisa o golpe militar de 25 de abril de 1974 que põe fim aos 48 anos de ditadura do Estado Novo em Portugal. Busca explicar a ascensão e queda desse movimento de oficiais, a forma como ganhou apoio popular e as razões do seu desmoronamento.
Este número apresenta ainda quatro resenhas. Rodrigo Patto Sá Motta analisa João Goulart: uma biografia, de Jorge Ferreira; Livia Lopes Neves fala de Leituras, projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944), de Tania Regina de Luca; Cristina Ferreira resenha Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido, de Laura de Mello e Souza, e Luciana Fernandes Boeira analisa Présent, nation, mémoire, de Pierre Nora.
Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultarem o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos do seu interesse.
Marieta de Moraes Ferreira
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.32, n.63, 2012. Acessar publicação original [DR]
Présent, nation, mémoire – NORA (RBH)
NORA, Pierre. Présent, nation, mémoire. Paris: Gallimard, 2011. 432p. Resenha de: BOEIRA, Luciana Fernandes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.
No dia 6 de outubro de 2011 o historiador e editor francês Pierre Nora lançou, simultaneamente, dois livros: Historien public e Présent, nation, mémoire, ambos publicados pela prestigiada Gallimard, editora por ele dirigida desde 1965. As duas obras reúnem artigos escritos por Nora ao longo de sua extensa carreira. Nas mais de quinhentas páginas do primeiro livro, o autor apresenta inúmeros manifestos, intervenções públicas e tomadas de posição por ele sustentados nos seus mais de cinquenta anos de vida pública. Entre vários assuntos, Nora expõe considerações sobre o fazer editorial e tece observações sobre a história contemporânea e a nação francesa. Fala, ainda, sobre a Guerra da Argélia e a respeito da importante revista Le Débat, fundada por ele e por Marcel Gauchet em 1980 e que alcança, até hoje, grande êxito no mundo intelectual.
Présent, nation, mémoire integra a Coleção Bibliothèque des Histoires e reúne mais de trinta artigos do historiador, todos girando em torno das mutações entre história e memória. Essa volumosa gama de artigos é resultado das reflexões que precederam, acompanharam e sucederam a publicação de Les lieux de mémoire, a monumental obra coletiva em sete volumes escrita entre 1984 e 1992 e que constituiu o empreendimento editorial mais importante que Nora dirigiu em sua carreira, na qual soma-se, também, Faire de l’Histoire (organizado em parceria com Jacques Le Goff, em 1974), outro estrondoso sucesso da Coleção Bibliothèque des Histoires, composto por três volumes e no qual inúmeros historiadores franceses apresentavam suas reflexões sobre a nova história da década de 1970.
Tudo em Présent, nation, mémoire se relaciona com Les lieux de mémoire e, portanto, é inseparável da obra. Assim, o que dá uma unidade aos seus 32 artigos, alocados em três partes distintas – Presente, Nação e Memória (que são, também, os três eixos centrais através dos quais os artigos se relacionam e, como afirma Nora, constituem os três polos da consciência histórica contemporânea) –, é a pretensão de representarem uma introdução aos lieux de mémoire. Embora os assuntos de cada um dos artigos sejam bastante diversos (Nora explora desde a questão do patrimônio até referências a Michelet e Lavisse como modelos de história nacional, passando por temas como o fim do gaullo-comunismo na França, a aparição do best-seller no mercado editorial ou o trauma causado pela lembrança de Vichy), os três eixos sob os quais se dividem acabam por orientar a leitura do material. Um material que o próprio autor admite estar apresentado de maneira inabitual, tanto pelo assunto que o título da obra anuncia, quanto pelo conteúdo, que foge aos cânones eruditos da disciplina histórica. Porém, como ele mesmo sublinha, sua intenção, ao propor a coletânea, não foi a de fazer uma reflexão teórica sobre a história, e sim expor uma reflexão que brotou de sua prática enquanto historiador.
E é justamente essa prática historiadora e os eventos que a compuseram que Nora mostra, fazendo uma retrospectiva dos momentos mais importantes vividos pela disciplina histórica durante o século XX, particularmente a partir do advento dos Annales e que culminariam, nos anos 1970 e 1980, com a eclosão do que ele chama de uma ‘onda de memória’ que varreu não só a França, mas o mundo ocidental como um todo e do qual o momento presentista e dominado pela patrimonialização seria herdeiro.
Pensar o advento dessa onda memorialística generalizada e, com ele, o movimento de aceleração da história, que condenou o presente à memória, é a intenção maior do livro. Mesmo propósito, diz Nora, que ele e mais de cem historiadores tiveram quando lançaram Les lieux de mémoire, tentando entender quais foram os principais lugares, sejam eles materiais ou abstratos, em que a memória da França se encarnou.
Em fins da década de 1970 e no início dos anos 1980, os ‘lugares de memória’ de Nora constatavam o desaparecimento rápido da memória nacional francesa, e, naquele momento, inventariar os lugares em que ela efetivamente havia se encarnado e que ainda restavam como brilhantes símbolos (festas, emblemas, monumentos, comemorações, elogios fúnebres, dicionários e museus) era uma forma de destrinchar, de dissecar a memória nacional, a nação e suas relações. Em 2011, Présent, nation, mémoire, a reunião de artigos escritos ao longo de toda uma vida, apresenta uma dupla função: servir de base para Les lieux de mémoire, mas, independentemente disso, mostrar ao público como Nora constituiu seu próprio percurso enquanto pesquisador e, concomitantemente, como foi construindo um novo campo de estudos. Um campo, diz ele, delimitado por estas três palavras: presente, nação e memória. Termos que, para Nora, condicionam a forma da consciência histórica contemporânea e palavras que lhe permitiram, além disso, reagrupar os artigos que compõem o volume segundo uma lógica que ele chama ‘retrospectiva’ e que, para ele, teria um ‘sentido pedagógico’ eficaz em sua intenção de demonstrar como ele formou esse campo de estudos que envolve a memória e a história no tempo presente.
No livro, Nora não atualiza os artigos. No máximo, muda sutilmente alguns dos títulos. Também não apresenta-os de maneira cronológica, mas de acordo com o assunto que está tratando em cada parte, de forma que podemos ter um texto escrito em 1968 após outro escrito em 1973, ou um assunto trabalhado em 2007 colocado imediatamente após outro artigo, relacionado àquele, mas escrito em 1993. Esse recurso é bastante interessante, pois possibilita ao leitor perceber uma coerência no percurso do autor no que toca aos temas levantados e há quanto tempo estes fazem parte de seu universo de preocupações.
Nesse olhar retrospectivo acerca de sua própria obra enquanto escritor, Nora admite que cada um dos textos que formam a coletânea poderia ter sido objeto de um desenvolvimento maior e quem sabe, até mesmo gerado livros específicos, o que de fato não aconteceu. Isso porque, embora o volume de artigos que Nora publicou até hoje seja bastante grande, sua dedicação, como historiador, à escrita de obras próprias, é muito pequena. Antes da publicação desses dois volumes que reúnem alguns de seus muitos textos dispersos, Nora havia participado apenas de empreendimentos coletivos e publicado um único livro: Les Français d’Algérie, em 1961.
Seu interesse em dar a conhecer esses tão variados textos no volume que denominou Présent, nation, mémoire residiria, segundo Nora, tão somente em reconstituir um percurso intelectual e mostrar como ele formou, durante sua trajetória, um canteiro de obras composto por vários estratos historiográficos que esquadrinhou enquanto historiador.
Porém, pelo teor dos artigos que costuram o volume, o que se percebe é que Pierre Nora faz questão de pontuar o significado que sua própria obra teve na renovação dos estudos históricos na França. Somente para citar um exemplo, no artigo “Une autre histoire de France”, originalmente publicado no Diccionnaire des sciences historiques, de André Burguière (1986), sob o título de “Histoire national”, Nora destaca que o momento em questão era aquele da renovação historiográfica da história nacional, no qual os historiadores estavam interessados em dissecar a herança do passado. Para ele, Les lieux de mémoire se inseriam perfeitamente nessa perspectiva: apreendendo as tradições nas suas expressões mais significativas e mais simbólicas, os ‘lugares de memória’ souberam fazer uma história crítica da história-memória e produziram uma vasta topologia do simbólico francês. Aqui, uma forma até certo ponto sutil de Nora reverenciar seu empreendimento como uma contribuição singular para a renovação historiográfica contemporânea. No artigo seguinte, “Les lieux de mémoire, mode d’emploi”, um prefácio escrito pelo autor para a edição norte-americana da obra, publicada entre 1996 e 1998, Nora é muito mais enfático ao situar seu trabalho e, também, muito mais direto em reafirmar a importância que Les lieux de mémoire tiveram na ‘era da descontinuidade historiográfica’ da nova historiografia francesa.
E se Nora é mestre em pontuar a importância de sua obra, ele também sabe defendê-la. O texto por ele escolhido para fechar o volume, “L’histoire au second degré”, publicado em sua revista Le Débat em 2002, é uma resposta do autor às críticas que Paul Ricoeur fez aos “insólitos lieux de mémoire“, em A memória, a história, o esquecimento, publicado naquele mesmo ano. No artigo, Nora, mais uma vez, denuncia a atual invasão do campo da história pela memória ao ponto de estarmos mergulhados em um mundo do ‘tudo patrimônio’ e da história como comemoração. Diz ele partilhar das mesmas análises de Ricoeur sobre a comemoração e de suas irritações a respeito do ‘dever de memória’, mas com uma única diferença: para ele, não há a possibilidade de se escapar dessa situação, como acreditava o filósofo. Segundo Nora, a melhor forma de lidar com a tirania da memória seria apreendê-la e percebê-la em seu interior, como propõem, ao fim e ao cabo, seus lieux de mémoire.
Luciana Fernandes Boeira
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João Goulart: uma biografia – FERREIRA (RBH)
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.
João Goulart, ou Jango, é um dos personagens mais controvertidos da história brasileira e, por que não dizer, dos mais trágicos também. Presidiu a um governo que mobilizou as esperanças de milhares de pessoas sob a promessa de reformar o Brasil e atenuar suas mazelas sociais, projetos que provocaram medo e insegurança em outros grupos sociais, os mesmos que o derrubaram do poder em 1964. Dono de imagem inevitavelmente polêmica, a suscitar tanto admiração quanto desprezo, a importância de Goulart no contexto que levaria ao golpe é inquestionável, pois suas ações e projetos, mas sobretudo a maneira como foram interpretados, desempenharam papel chave no processo.
O livro João Goulart: uma biografia, de autoria do professor Jorge Ferreira, constitui extensa e cuidadosa análise sobre o ex-presidente e traz contribuição inestimável ao estudo do controverso líder, bem como do contexto político em que atuou. Trata-se de trabalho de grande fôlego, com base em pesquisa abrangente que inclui entrevistas, memórias, documentos pessoais, registros da imprensa e consulta a numerosa bibliografia, resultando em obra de mais de setecentas páginas. Dado o escopo do trabalho, resenhá-lo adequadamente em poucas linhas torna-se um desafio. Adotando postura realista, preferiu-se aqui apontar alguns traços fortes da obra, como um convite ao leitor para ler o trabalho e formular seu próprio juízo.
Motivado pela percepção de que a memória sobre Jango está presa aos eventos de 1964, Ferreira procurou lançar luz sobre outros pontos da trajetória política do ex-presidente, de modo a permitir visão mais ampla. Moveu o autor, também, o desejo de ir além das apreciações críticas ao político gaúcho, dominantes na literatura e na memória, e revelar as qualidades positivas do líder que, aliás, explicam sua ascensão. A intenção foi produzir análise mais equilibrada sobre Jango, fugindo das críticas que o rotulam de populista e fraco e o acusam de responsável pela crise que levou ao golpe. Isso não significa que o autor tenha escamoteado as críticas a Goulart, pois, no seu texto, aparecem referências aos erros cometidos pelo ex-presidente, principalmente em 1964; mas ele tende a destacar mais traços positivos como lealdade (ao varguismo, em especial), talento para a negociação e sensibilidade social. Goulart foi de fato político hábil, fiel ao estilo de seu mestre, e por isso mesmo conseguiu fazer carreira rápida no campo varguista e trabalhista, com o detalhe de defender projeto social bastante mais avançado em comparação às ações adotadas por Getúlio. A obra oferece excelente análise da trajetória inicial de Goulart, justamente a fase menos conhecida da sua vida, começando pelos primeiros contatos com Vargas, de quem era vizinho em São Borja, e prosseguindo pelos laços construídos por Jango com os sindicatos e a esquerda. Merece destaque a análise sobre a construção do relacionamento entre Goulart e os sindicalistas, no início dos anos 1950, graças à sua atuação como ministro do Trabalho na tormentosa segunda metade do mandato constitucional de Vargas, bem como a análise de suas atividades como presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo período, as quais forneceram os pilares para toda sua carreira política.
Naturalmente, a biografia apresenta dados sobre a vida pessoal do político, como a explicação para o defeito na perna de Goulart, assim como suas aventuras amorosas com as mulheres. A propósito, os dois fatos tinham relação, as aventuras sexuais e o problema físico. Porém, Ferreira não se deixou levar pela atração fácil do escândalo e do espetáculo e, ainda que não tenha omitido informações úteis para o entendimento do personagem, tratou sua vida privada com sobriedade. Outro aspecto da vida privada de Jango analisado com propriedade pelo autor foi o talento empresarial do político gaúcho. Goulart herdou os negócios rurais do pai, mas ampliou consideravelmente a fortuna da família ao desenvolver notável faro para ganhar dinheiro, característica que seria muito útil na sua futura vida de exilado. Mas a biografia se concentra mais nos aspectos públicos da vida de Goulart, a sua atuação como líder que começou como afilhado político de Vargas e terminou no exílio, onde encontrou a morte, após tumultuado e inconcluso período como presidente.
Nesse percurso, Ferreira analisou os grandes eventos e processos políticos vivenciados por Jango nos anos 1950 e 1960, fase decisiva na história brasileira. No livro encontramos narrativas cuidadosas de alguns momentos importantes, como a passagem de Goulart pelo Ministério do Trabalho, a crise do governo Vargas e seu suicídio, a renúncia de Jânio Quadros e o movimento pela ‘legalidade’ (ou seja, pela posse do vice-presidente João Goulart), o comício de 13 de março de 1964 e outros acontecimentos às vésperas do golpe. O livro oferece informações e análises imprescindíveis ao conhecimento da nossa história política recente, aliás, pouco conhecida pelo grande público. Do período pós-1964 até a morte de Goulart, em fins de 1976, a biografia nos mostra os padecimentos da vida no exílio, dele e dos familiares, que viram as amarguras do desterro se associarem à angústia da insegurança, pois Uruguai e Argentina, países escolhidos por Goulart por sua proximidade com o Brasil, logo seriam convulsionados por episódios de violência política semelhantes aos experimentados no Brasil.
O autor demonstra certa simpatia/empatia pelo biografado, o que lhe permite analisar os objetivos políticos de Jango de maneira compreensiva, embora não indulgente. Mesmo que aponte algumas atitudes autoritárias do presidente, principalmente no controle do PTB, e não deixe de considerar o projeto pessoal de poder do político gaúcho, Jorge Ferreira nos mostra um Goulart sinceramente empenhado nas causas anunciadas em seus discursos. Ele desejava melhorar a vida dos mais pobres e reduzir a dependência externa (ou emancipar a nação, nos termos da época), e pretendia consegui-lo por meio de negociações e acordos, que evitassem rupturas revolucionárias. Não desejava questionar as bases do sistema capitalista, afinal era grande fazendeiro e negociante, mas queria construir modelo econômico menos injusto e mais ‘nacional’.
A análise do autor é convincente ao mostrar que o principal impulso do projeto político de Goulart era realizar reformas, e não utilizá-las para tornar-se ditador ou golpear as instituições. De fato, há poucos indícios de que Jango desejasse ou tenha planejado instituir um regime autoritário. Não obstante, o presidente aceitou e adotou uma estratégia de pressionar o Congresso Nacional para obter as reformas, fazendo uso de comícios e outros meios de pressão que deixaram no ar a dúvida sobre suas reais intenções e semearam confusão e intranquilidade no campo político. Os aliados de esquerda do ex-presidente fizeram movimentos mais agudos nessa direção, principalmente Leonel Brizola, com discursos agressivos dirigidos ao Congresso que podiam ser interpretados como ameaça às instituições liberais. Pessoalmente, Goulart repeliu sugestões de fechar o Congresso, porém, entre seus aliados nem todos pensavam assim.
Na correta avaliação de Jorge Ferreira, os principais erros de Goulart foram cometidos no front militar, e esses foram decisivos para sua queda. Ele confiou em oficiais pouco capazes que trouxe para seu círculo íntimo, e, no episódio da revolta dos marinheiros (março de 1964), chancelou uma solução para a crise totalmente favorável aos rebeldes, decisão considerada equivocada até por oficiais comunistas ligados ao governo. Com a libertação dos marinheiros, o presidente permitiu que a oficialidade o imaginasse favorável à quebra da hierarquia militar, e isso jogou contra o governo a maioria da corporação militar, até então neutra e na expectativa. Outro erro grave do presidente no campo militar e político foi sua atitude no episódio do pedido de estado de sítio, em outubro de 1963. Ele aceitou a sugestão dos ministros militares para solicitar ao Congresso a medida extrema, decisão incompreensível ainda hoje e surpreendente em vista da esperteza política do presidente. Como concordou com medida que não tinha apoio de nenhuma força política significativa, e que o deixou isolado tanto à esquerda quanto à direita, lançando insegurança e ansiedade em todos os quadrantes?
Por fim, vale destacar a análise de Jorge Ferreira sobre as razões para Goulart ter abdicado de resistência armada ao golpe, o que rendeu muitas acusações e críticas ao ex-presidente. Ao contrário de fraqueza, o autor viu no episódio a manifestação do cuidado de Jango em preservar o país de guerra civil, que possivelmente teria resultado em intervenção dos Estados Unidos. O desmoronamento do apoio militar ao governo e a fraca capacidade dos grupos de esquerda para arregimentar-se contra o golpe, apesar de honrosas e corajosas exceções, demonstram que as chances de vitória em caso de guerra civil eram poucas, e a decisão de Goulart bem pode ter poupado o país de violências ainda maiores. Mas é possível, também, que, além da violência da guerra civil, o presidente desejasse evitar outro desdobramento: a resistência armada poderia gerar radicalização esquerdista muito além do seu projeto político.
Enfim, trata-se de obra escudada em sólida pesquisa e análises consistentes, que se constitui em texto indispensável para os pesquisadores do tema e também para o público mais amplo. É produto maduro de historiador experiente, que passa a integrar o rol de leituras obrigatórias sobre a história política recente do Brasil.
Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil, E-mail: rodrigosamotta@yahoo.com.br
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Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944) – De LUCA (RBH)
De LUCA, Tania R. Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 357p. Resenha de: NEVES, Livia Lopes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.63, 2012.
A autora Tania Regina de Luca, que é pesquisadora reconhecida no campo intelectual nacional e internacional, graduou-se em História na Universidade de São Paulo, instituição na qual obteve o título de mestre e doutora em História Social. Sua trajetória afina-se com as discussões relativas à História do Brasil República, e sua atuação profissional envolve principalmente os seguintes temas: Historiografia, História da Imprensa, História Social da Cultura e História dos Intelectuais. A imprensa na Era Vargas tem sido seu foco de pesquisa atualmente, tema esse contemplado em parte por seu livro recém-lançado e objeto da presente resenha. Se seus estudos muitas vezes fizeram referência à Revista do Brasil, como em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil, a autora não deixou de dar continuidade a seus trabalhos anteriores de forte teor metodológico acerca do trato com o periodismo cultural brasileiro, e o que de fato se agregou ao debate foi o estudo de outras publicações de cunho cultural, o que proporcionou uma visão ampla acerca da produção intelectual do período veiculada por esse suporte. Tal acréscimo permite também a discussão sobre as leituras e os projetos do e para o Brasil, tanto políticos como culturais, que agregaram parte dessa intelectualidade envolvida com tais empreendimentos editoriais.
Ao longo do texto a autora frisa a importância de atentarmos para o percurso metodológico que orientou sua análise, o qual, segundo ela, representa uma colaboração para a construção de uma forma específica de abordagem dos impressos. As contribuições, dessa maneira, seriam dadas por conta de alguns aportes metodológicos, como por exemplo, atentar para a dinâmica dos grupos intelectuais, para os aspectos relativos ao suporte, e também para as apresentações de ordem material e tipográfica (capa, papel, ilustração, propaganda, paginação). Todos esses elementos, de maneira geral, já haviam sido objeto de reflexão da autora, figurando entre as importantes contribuições para estudos dessa natureza no campo da história. Além dos citados, ganharam destaque em sua análise fontes que colaboraram para a apreensão das relações e atuações dos editores e mentores das publicações: as correspondências, as memórias e as produções autobiográficas.
A soma dessas frentes de pesquisa, anunciada na introdução do livro, demonstra de antemão a amplitude da proposta da autora, que estabeleceu diálogo profícuo com autores que se propuseram a discutir as sociabilidades intelectuais, o campo intelectual (brasileiro ou não) e as relações que aproximaram ou distanciaram os intelectuais e o Estado, como Sirinelli (1990), Pluet-Despatin (1992), Bomeny (2001), Miceli (2001) e Candido (2001), ou com autores que, assim como ela, ofereceram aportes para a análise de jornais e revistas, como Doyle (1976), Prado e Capelato (1980), e mesmo com os que se debruçaram sobre publicações específicas, como Boaventura (1975), Caccese (1971), Guelfi (1987), Lara (1972), Leonel (1976), Napoli (1970) e Romanelli (1981), entre outros.
Estruturado em quatro capítulos que seguem cronologicamente as fases mais expressivas de sua publicação o livro confronta a Revista do Brasil às demais revistas coetâneas. Pareceu ser essa uma boa forma de se aproximar de um panorama editorial – ainda que sobremaneira calcado na retomada das mais destacadas revistas da época, certamente as mais estudadas atualmente – que consistiu em uma grande revisão bibliográfica sobre cada uma dessas publicações e na consulta a diversas fontes periódicas orientada por um olhar mergulhado em novas preocupações. Ao somar os estudos das fontes aqui citadas, De Luca nos apresenta uma obra enriquecida e madura, que evidencia a importância de se atentar para as redes de sociabilidade intelectuais e para a fluidez do campo intelectual, bem como para o impacto de um elemento sobre o outro.
No primeiro capítulo, “A Revista do Brasil (primeira e segunda fases) e os periódicos modernistas”, a autora procurou articular as fases iniciais da revista com as publicações modernistas fundadas a partir de Klaxon, realizando a análise com dupla perspectiva: da sincronia e da diacronia, sendo a primeira responsável por dar conta do momento da publicação de cada fase da Revista do Brasil e do diálogo com as congêneres contemporâneas. A segunda perspectiva ocupou-se das diferentes fases e de suas possíveis articulações. Para tanto, a autora elaborou um gráfico (reproduzido no livro entre as páginas 69 e 70), no qual apresenta uma seleção das revistas literárias e culturais em circulação entre o lançamento da Revista do Brasil, em janeiro de 1916, e meados da década de 1940, quando do encerramento de sua quarta fase. Nesse capítulo ganham destaque: Novíssima, Estética, A Revista e Terra Roxa e outras terras.
Já no segundo capítulo, nomeado “Revistas literárias e culturais (1927-1938)”, a autora nos traz uma visão panorâmica percebendo que em termos de longevidade, até o início da década de 1930 continuaram a ser fundadas revistas de breve duração – à exceção da Revista Nova, que circulou durante mais de um ano –, Verde, Festa, Revista da Antropofagia, Movimento Brasileiro, Boletim de Ariel, Revista Acadêmica, Lanterna Verde, Dom Casmurro, Diretrizes, Cultura Política e Movimento Brasileiro recebem uma análise não muito minuciosa, conforme previamente anunciado pela autora ainda no título. Nesse capítulo foram discutidos, do mesmo modo, aspectos como o alinhamento de projetos editoriais a tendências políticas e a elementos do mundo editorial na conjuntura do pós-1930, encerrando discussões sobre as condições do exercício da atividade intelectual e a proliferação de editoras no Brasil. A autora promove, de forma bastante pertinente, o debate sobre a censura à imprensa e o alinhamento de periódicos à plataforma governista durante o Estado Novo e defende uma análise historiográfica que priorize a dinâmica de posicionamentos em detrimento de rótulos unidimensionais, o que, via de regra, anula uma série de complexidades que envolvem os empreendimentos editoriais.
“Revista do Brasil (3ª fase): inserção no mundo letrado, objetivos, características e conteúdo” é o título do terceiro capítulo, que trata da retomada da publicação da Revista do Brasil em julho de 1938, com sua diversidade de assuntos e a preocupação com problemas nacionais, ainda que se explicitasse como um projeto cultural de corte elitista.
No quarto e último capítulo, intitulado “A Revista do Brasil e a defesa do espírito”, é retratado o momento em que a publicação voltou a circular, período marcado pela ascensão das forças autoritárias na Europa e do Estado Novo no Brasil, o que gerou limitações impostas à liberdade de expressão por parte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ao atentar para o fato de que as práticas liberais, o individualismo e a democracia eram aspectos defendidos por vários articulistas da revista, De Luca destaca a especificidade da publicação em questão frente a algumas coetâneas, quadro que se alterou após 1942 com a adesão brasileira à política pan-americana.
O que se apresenta em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil é um método de análise novo e frutífero, capaz de esclarecer o lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, especialmente com base em alguns diálogos com as congêneres contemporâneas, o que demandou, segundo De Luca, que se aliassem sistemáticas consultas às coleções citadas à leitura e ao estudo de outras fontes, sobretudo as advindas do que se convencionou chamar de ‘escritas de si’.
Sentiu-se certamente a ausência de imagens relacionadas ao tema e aos periódicos recorrentemente citados, o que enriqueceria a obra e poderia angariar, talvez, um público leitor mais amplo que o acadêmico. A iniciativa de dinamizar a leitura disponibilizando no site da Editora uma série de tabelas produzidas ao longo da pesquisa, conforme consta na nota dos editores presente no livro, mostrou-se pouco eficiente tendo em vista a dificuldade em encontrá-las de fato. Mais interessante seria que essas tabelas constassem na obra e acompanhassem a linha de pensamento desenvolvida, clarificando muitos dos nós relacionados ao objeto de estudo do livro.
Destarte, a contribuição que pode ser apreendida a partir desse trabalho reside, a meu ver, na aplicação metodológica plural que propôs a agregação de aportes que tratam do estudo de periódicos como objeto e fonte, desde os primeiros estudos gerais sobre periódicos – empreendidos sob a coordenação do professor José Aderaldo Castello, que estribou sua pesquisa preferencialmente nos acervos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) – aos obtidos a partir da renovação das práticas historiográficas, que vislumbram a importância do estudo do periodismo cultural cotejado com outras fontes, como as iconográficas, epistolares, os relatos memorialísticos e autobiográficos.
NEVES, Livia Lopes.- Mestranda do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. [endereço] livialneves@hotmail.com.
Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido – MELLO E SOUZA (RBH)
MELLO e SOUZA, Laura de. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 240p. FERREIRA, Cristina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.63, 2012.
A biografia de Cláudio Manuel da Costa, escrita pela historiadora Laura de Mello e Souza, integra a Coleção “Perfis Brasileiros”, editada pela Companhia das Letras sob a coordenação do jornalista Elio Gaspari e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, portanto, cabe pensá-la no âmbito desses pressupostos editoriais, do contrário, correria o risco de praticar um equivocado isolamento e ignorar a simbiose entre o perfil editorial e as escolhas metodológicas feitas pela autora. A coleção destina-se tanto aos leitores em geral quanto aos especialistas no assunto, e contempla a vida de personalidades brasileiras, com destaque para estadistas, artistas e intelectuais. Os biógrafos, em sua maioria, são historiadores ou profissionais ligados às Ciências Humanas e se dedicam a trabalhar a história de personagens por meio de um texto conciso e pesquisa documental diversificada.
Esses parâmetros definem a linha editorial, o formato da obra e a opção da historiadora em escrever um texto com o mínimo possível de interrupções e citações. Laura de Mello e Souza faz um trabalho pautado em uma vasta bibliografia e alguns dados documentais inéditos. A citação das fontes de pesquisa consta em um dos itens finais da obra, sob a denominação “Indicações e comentários sobre bibliografia e fontes primárias”, com uma breve descrição da aplicabilidade e do uso das fontes, sistematizadas por temáticas no decorrer da obra. A obra contém imagens que retratam lugares – Rio de Janeiro e interior de Minas Gerais – e retratos atribuídos ao biografado, bem como personagens ‘ilustres’ contemporâneas a ele, sua assinatura e reproduções de trechos do principal documento original utilizado pela autora – o inventário de João Gonçalves da Costa, pai de Cláudio Manuel da Costa. Todas as imagens estão legendadas e referenciadas quanto aos acervos de origem, mas reunidas no centro do livro, característica editorial que não permite a sua integração com o texto.
Cláudio Manuel da Costa, poeta e advogado, homem de grande prestígio, viveu entre 1729 e 1789, a maior parte do tempo em Ouro Preto, na época Vila Rica, a capital das Minas Gerais. Sua educação formal aconteceu no colégio jesuíta do Rio de Janeiro, e a formação de bacharel foi obtida na Universidade de Coimbra. Morreu solteiro, mas viveu por trinta anos com Francisca Arcângela de Sousa, nascida escrava e alforriada quando deu à luz o primeiro filho de Cláudio. Foi a companheira de sua vida toda e mãe de seus cinco filhos, um indelével indicativo de que o costume suplantou a legislação, mas não na íntegra, porque segundo a letra da lei, os bacharéis a serviço do Império não podiam casar-se com mulheres ‘da terra’. Cláudio Manuel da Costa não era português, mas sim luso-brasileiro, e não conseguiu superar sua formação jesuítica e escolástica, que de certo modo o aprisionava às leis, para de fato desenvolver coragem suficiente e assumir publicamente sua relação com uma negra.
A dupla atuação como homem de lei e de governo permitiu a Cláudio Manuel da Costa tornar-se um exemplo típico do que foi a promoção social em Minas, passados entre 25 e 30 anos do início da mineração, porque diferentemente das regiões do litoral, Minas era uma região nova, aberta no final do século XVII, e a consolidação das elites locais acontece apenas ao longo do século XVIII. A poesia fez dele um homem de letras, que “nunca abandonou os livros e as musas da história”, mas seus conflitos internos o dilaceravam e dividiam entre direitos políticos e comércio ilícito, liberdade e valores do Antigo Regime, corroído pela delação que fez de seus amigos e envolto em uma morte conflituosa e controversa.
Laura de Mello e Souza faz uso da personagem para definir vários elementos que compõem a biografia, desde temas e periodização até a definição dos espaços de análise. Um aspecto evidente na obra é a opção da autora em deixar a personagem garantir o tom de originalidade à pesquisa, situação que se exemplifica por meio da divisão dos capítulos em temas como: significado do nome, pais, infância, formação, poesia, profissão, amizades, prisão e morte. Ainda assim, a autora não cai na armadilha de se deixar enredar por privilegiar a temática da Inconfidência, sua firme decisão de historiadora-biógrafa está originalmente pautada na personagem, em seus conflitos, sua poesia e os sentidos de sua vida. Laura de Mello e Souza dialoga, de fato, com a vasta tradição historiográfica sobre a Inconfidência Mineira, amplia o debate sobre as incongruências e conflitos dos indivíduos envolvidos nesse processo histórico e investiga também os problemas relacionados à documentação e aos laudos inconsistentes que constituem os autos da Devassa.
A concepção de tempo adotada na obra remete a uma espécie de fluidez, pois as fases da vida do biografado não estão encerradas em si mesmas, muito menos aparecem como rígidas e imóveis, portanto, há constantes retomadas a diferentes momentos, seja no passado ou no futuro de Cláudio Manuel da Costa. É nítida a recusa da historiadora à forma tradicional, linear e factual na composição biográfica, pois o tempo comporta rupturas e não há como conceber a constituição de modelos de racionalidade que estabeleçam personalidades estáveis ou coerentes aos seres humanos. A autora demonstra que a vida do biografado não cessa com sua morte, o que leva a um ponto de vista interessante: escrever a vida é um trabalho inacabado e infindável, porque sempre se abrem pistas novas que podem arrebatar o pesquisador para outros caminhos epistemológicos, com uma única certeza: dificilmente o biógrafo ficará livre das incertezas, por mais que circunscreva sua pesquisa em fontes e documentos.
A autora não cita as leituras específicas que realizou sobre os ‘usos da biografia’, porém, faz referência aos importantes textos sobre o assunto cedidos pela historiadora Vavy Pacheco Borges, a quem a biógrafa dedica o livro. Arrisco dizer que sua escolha metodológica remete à proposta de Giovanni Levi, que relaciona Biografia e Contexto também no sentido de preencher lacunas documentais em relação ao biografado, por intermédio de comparações com outras personagens com as quais ele conviveu.
Cláudio Manuel da Costa é dado a conhecer, em geral, por meio do contexto que, por sua vez, elucida aspectos relacionados à Minas Gerais setecentista. A autora utiliza a biografia para se aproximar do contexto, não com o propósito de reconstituí-lo, mas com a intenção de estabelecer uma relação de reciprocidade entre a personagem e seu campo de atuação. A historiografia brasileira acerca do período colonial em Minas Gerais, consolidada e em constante renovação, é o alicerce da autora e gera uma combinação que demonstra sua familiaridade com as fontes e arquivos relacionados às temáticas e ao período histórico analisado.
O problema mais emblemático com o qual a biógrafa lida na pesquisa é a escassez de documentos que relacionem, em um sentido direto, o biografado. A estratégia de Laura de Mello e Souza para apresentar novidades em torno da vida de ‘seu’ biografado consiste na valorização do Inventário de João Gonçalves da Costa (pai de Cláudio); dos processos de habilitação para o hábito de Cristo de dois de seus irmãos e, em especial, alguns documentos autógrafos de Cláudio Manuel da Costa. Mas, parte do ofício de historiador consiste em viver “às voltas com os limites fluidos entre a verdade e a mentira, o fato e a ficção, a narrativa e a ciência” (p.190) e deixar-se dominar pela vontade de compreender a personagem em seus aspectos conflitantes e notáveis.
O poeta foi biografado por conta de algumas inquietações da autora em relação a aspectos de sua vida que se relacionam diretamente com o espaço e lugar do vivido. Cláudio era considerado um poeta obsessivo, um cultor da forma perfeita, mas um dado instigante é o fato de que sua poesia conquista pouco espaço na lírica brasileira e, embora seus sonetos sejam belíssimos, não têm uma característica de universalidade, pelo contrário, apresentam uma linguagem muito marcada por sua época.
Toda a vida do poeta foi estigmatizada pela ambiguidade e pela contradição, e sua morte permanece até hoje sob o signo da incerteza, tendo se tornado um dos objetos mais controvertidos da historiografia brasileira, criando-se verdadeiras facções que, ou defendem o assassinato, ou sustentam o suicídio. Laura de Mello e Souza, ao referendar os riscos e necessidades que a compreensão impõe ao historiador, não se esquiva em se posicionar: “se entendi o homem que foi Cláudio Manuel da Costa, sou levada a afirmar que decidiu pôr um termo a sua vida. Nunca se saberá se o fez por desespero ou excesso de razão. Se porque viveu dividido e nunca se encontrou, ou porque, dividido que era, resolveu, afinal, juntar os pedaços. A seu modo” (p.190).
Essa é uma clara indicação de que a biógrafa não está obcecada por uma ‘verdade histórica’ irrevogável sobre sua personagem, mas sim em busca de uma concebível integração entre realidade e possibilidade, plausível ou verossímil. Os impedimentos naturais para recorrer a uma vasta documentação ‘direta’ permitiram à autora a legitimação do uso de conjecturas e inferências. Em vários momentos a biógrafa faz um exercício de imaginação histórica e aplica, na dosagem certa, uma espécie de imaginação ‘controlada’, amplamente referenciada nas fontes. Essa opção metodológica é garantia de uma narrativa elegante e instigante, por isso, a obra merece ser lida e relida por todos que se interessam em descobrir as sutilezas e incongruências da vida humana.
Cristina Ferreira – Doutoranda em História Social na Unicamp. Departamento de História – Universidade Regional de Blumenau. Rua Antônio da Veiga, 140. 89012-900 Blumenau – SC – Brasil, E-mail: cris@furb.br.
O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil – SANTOS (RBH)
SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2010. 278p. Resenha de: DULCI, Tereza Maria Spyer. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, São Paulo, dez. 2011.
O livro de Luís Cláudio Villafañe G. Santos impressiona desde o começo, pelo título, que relaciona a festa popular do carnaval à política externa, e também pela capa, uma imagem do vitral da Catedral Nacional de Washington retratando o barão do Rio Branco. Imediatamente somos levados a perceber que o livro tem como ponto de partida José Maria Paranhos da Silva Júnior, o barão do Rio Branco, responsável pela consolidação do território brasileiro, que figura naquele conjunto de vitrais, com Bolívar e San Martín, entre os heróis da América do Sul.
O autor, diplomata de carreira, mestre e doutor em História pela Universidade de Brasília, desenvolveu neste livro, O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil, publicado pela Editora Unesp, um excelente estudo sobre as relações entre nacionalismo, identidade e política externa. Partindo de Rio Branco, Villafañe percorre o panorama histórico do país, do século XIX até os dias atuais, para investigar como foi construída a ‘consciência nacional’, a ‘ideia de raça brasileira’, a ‘consciência do atraso nacional’ e a ‘liderança natural’ do Brasil na América Latina.
O adiamento das festividades populares de 1912 em razão da morte do barão do Rio Branco, ocorrida na véspera do carnaval, demonstra o prestígio e o poder do diplomata não só diante das autoridades, mas também perante a população. Este seria, para Villafañe, um caso único na história, no qual a figura de um diplomata torna-se referência para a construção da nação ao obter importantes vitórias nas disputas de fronteiras.
Embora não sejam contemporâneos, Bolívar, San Martín e Rio Branco teriam sido, cada um a seu modo, responsáveis pela consolidação das nacionalidades na América do Sul. O que salta aos olhos é que, no caso do Brasil, uma figura da República, e não do Império, foi protagonista desse processo de construção da nação brasileira. Mas como explicar o lugar ocupado por Rio Branco na memória e no imaginário da nação brasileira, quase um século depois do processo de independência?
Villafañe afirma que a independência brasileira se fez sem a presença dos famosos ‘libertadores’ dos demais países americanos, e que o Império teria criado um sentimento de pátria comum ainda atrelado à legitimidade dinástica, nos moldes dos Estados europeus do Antigo Regime, o que explica a pequena adesão da sociedade ao sentimento de identidade nacional. Isso teria mudado com a República, momento em que se buscou desenvolver um sentimento nacional brasileiro vinculado à ‘comunidade imaginada’, conceito de Benedict Anderson, do qual o autor se vale muitas vezes ao longo do livro.
Ao argumentar que a política externa é um dos aspectos mais característicos da ação do Estado na construção do nacionalismo, Villafañe destaca que a questão do território conformou o ‘interesse nacional’ brasileiro, já que é um dos elementos essenciais daquilo que o autor denomina “santíssima trindade do nacionalismo”, composta por “Estado, Povo e Território”.
Por sua vez, a identidade de um Estado, auxiliada pela política externa, se constrói muitas vezes a partir de sua relação com os demais Estados, daí a importância do conceito de ‘alteridade’, que leva o pesquisador a investigar, não apenas quais foram os ‘outros’ externos, mas também os ‘outros’ internos. Segundo Villafañe, na tentativa de criar uma ‘comunidade imaginada’ brasileira, o “outro pode assumir várias formas: brasileiros versus portugueses, brasileiros versus africanos, América versus Europa, império versus república, civilização versus barbárie, americanismo continental versus nacionalismos particulares”.
Sendo assim, o objetivo central das primeiras gerações de intelectuais da República foi reinserir o Brasil na América e superar o ‘atraso’ gerado pela colonização e pela monarquia portuguesa. O autor identifica, nesse contexto, duas vertentes de debate sobre a identidade brasileira, as quais engendraram as ideias do ‘atraso nacional’: uma baseada nas relações entre o meio e a raça (que valorizava a mestiçagem) e outra assentada numa visão antilusitana e antiafricana (que valorizava o americanismo).
O historiador afirma que, com o advento da República, transformou-se o lugar do Brasil no continente, especialmente a partir da incorporação das premissas do pan-americanismo, caras à política externa brasileira, principalmente durante a gestão de Rio Branco como chanceler, entre 1902 e 1912.
Segundo o autor, a diplomacia de Rio Branco é paradigmática para compreender a relação entre nacionalismo e territorialidade, pois buscava definir as fronteiras, aumentar o prestígio internacional do Brasil e afirmar a liderança ‘natural’ de nosso país na América do Sul, deixando como herança um ‘evangelho’ que descrevia o Brasil como “um país pacífico, com fronteiras definidas, satisfeito territorialmente”. Um exemplo interessante, analisado pelo historiador, foi a presença do Brasil nos trabalhos da Liga das Nações, participação que tinha como meta aumentar o prestígio internacional do país, mas que contribuiu, ao mesmo tempo, para a sustentação política do governo e para fortalecer as rivalidades entre Brasil e Argentina na disputa pela preponderância política e militar no Cone Sul.
Villafañe destaca ainda o Estado Novo como forte instrumentalizador da identidade nacional, já que nesse período ocorreu o processo de consolidação dos dois símbolos culturais da identidade brasileira atual: o carnaval e o futebol. Através do Departamento de Imprensa e Propaganda – órgão responsável por auxiliar as “festas populares com intuito patriótico, educativo ou de propaganda turística” – Getúlio Vargas institucionalizou o carnaval, tornando-o oficialmente símbolo da nacionalidade brasileira, e profissionalizou o futebol, com o intuito de difundir um conjunto de valores supostamente pertencentes a um caráter nacional, “produto de uma alma brasileira”.
Também a partir da Era Vargas, o nacionalismo teria se vinculado à ideia de desenvolvimento econômico e social, o que, segundo o autor, teria “acrescentado um novo elemento ao evangelho do Barão”. O desenvolvimento patrocinado pelo Estado levaria à superação do atraso e projetaria o Brasil para o futuro, ao desenvolver uma ‘autonomia da dependência’, componente ausente da política externa, tanto do Império, quanto da República Velha.
É nesse momento que, segundo Villafañe, a retórica diplomática brasileira incorpora de fato o pertencimento à América Latina, ao se perceber membro do grupo de países menos desenvolvidos e buscar a superação do ‘atraso nacional’. Dessa fase, o historiador destaca o nacional-desenvolvimentismo, característico dos governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart; analisa a teoria da modernização, criada pela academia norte-americana no pós-Segunda Guerra Mundial (que contrapõe as sociedades ‘modernas’ às ‘tradicionais’) e explica por que os Estados Unidos se tornaram o ‘outro’, em contraste com a identidade latino-americana.
A partir da Política Externa Independente, do início da década de 1960, o Brasil abandonou a ‘aliança não escrita’ com os Estados Unidos, reforçou a identidade latino-americana e desenvolveu as afinidades com a África e com a Ásia, que viviam o processo da descolonização. O autor ressalta esse período, sem deixar de considerar o fato de a identidade continental americana ter sido utilizada pelos Estados Unidos como forma de controle, ao excluir Cuba do sistema interamericano em função de seu sistema político, ‘incompatível’ com os demais países da América.
Por fim, ao analisar a Ditadura Militar, o historiador realça a posição de alinhamento do Brasil com os Estados Unidos (uma volta aos velhos padrões da política externa) e enfatiza o discurso anticomunista e nacionalista dos militares (que percebem o Brasil como ‘potência regional’). Além disso, Villafañe destaca o retorno e o fortalecimento da identidade latino-americana entre o final do século XX e o princípio do século XXI, discutindo como as nações são inventadas e reatualizadas de acordo com os diferentes contextos históricos.
O autor termina o livro em tom levemente provocativo, questionando se houve ou não um rompimento com o ‘evangelho’ de Rio Branco. O grande panorama apresentado cuidadosamente por Villafañe nos permite comparar os variados períodos da nossa história, levando-nos a entender as complexas relações de poder dos diferentes projetos identitários e da ‘comunidade imaginada’ que é o Brasil. Mesmo para aqueles que discordem das premissas e das teses do autor, esta obra lúcida e instigante aponta novos caminhos de reflexão sobre a imbricada relação entre a política externa e a longa e incessante ‘construção’ do Brasil.
DULCI, Tereza Maria Spyer.- Doutoranda, Departamento de História, FFLCH/USP; bolsista Fapesp, Av. Prof. Dr. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: terezaspyer@hotmail.com.
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[IF]Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição – NOGUEIRA; ZERNER (RBH)
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo; ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2009. 304p. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, dez. 2011.
Após mais de 30 anos de estudos sobre o aparecimento de seitas de ‘adoradores do Diabo’, que constituíram o tormento e a preocupação da Igreja ao longo do período medieval e que foram metodicamente mapeadas e perseguidas com rigor cada vez maior até culminarem na caça às bruxas da Europa moderna, uma questão foi se tornando cada vez mais clara: na construção dessas seitas existia uma combinação trágica, porém eficaz do ponto de vista repressivo, o amálgama da alteridade com uma enorme carga de erudição.
Daí, então, tornava-se cada vez mais óbvio para nós que, igualmente, não haveria um estranhamento, uma ‘estrangeirice’ nas seitas heréticas. Não eram crenças que migraram e se instalaram no seio da boa coletividade cristã, tampouco ‘sobrevivências de um paganismo’ há muito perdido e do qual restavam símbolos fragmentados e desenraizados ou vestígios de uma gestualidade claramente cristianizada. Tratava-se, sim, do produto dos intentos de uma ortodoxia de impor a outros a existência de outras interpretações do que era viver (espiritual e materialmente) a religião cristã.
O cristianismo nasce como uma religião que se propõe universal em um mundo de particularismos, em especial, particularismos religiosos. Para levar a Boa Nova a todos os homens, o cristianismo precisava se impor a partir do Outro.
Assim é construída a ecclesia, antes de tudo se apartando do judaísmo, o primeiro e mais incômodo ‘outro’, pela proximidade e pela responsabilidade de haver gestado a nova religiosidade.
Eliminados os ‘assassinos de Cristo’, os discordantes e opositores – em suma, os heterodoxos – são calados ou perseguidos, objetos de uma retomada erudita que mergulha na Antiguidade Clássica para buscar identidades, estabelecer ligações para garantir a credibilidade e legitimar a repressão.
Dessa maneira a ‘reação folclórica’, a sobrevivência pagã, criadora da heresia, muda de significado. O paganismo ganha o direito de existir por intermédio da ação de uma ortodoxia em busca de uma tradição que lhe permita estabelecer paralelismos e impor rótulos aos seus opositores.
Assim, é com grata surpresa que vemos aparecer no mercado editorial brasileiro o livro Inventar a heresia?, organizado por Monique Zerner.
Obra plural, mas com uma coesão interna bastante singular: a análise de tratados que constroem a heresia e ‘identificam’ o herege. Produto de investigações produzidas e discutidas em seminários, retoma, a nosso ver com grande acerto, os textos escritos antes da constituição dos Tribunais da Inquisição. Postura acertada, pois se o objetivo era confrontar os documentos com a ‘realidade’ das heresias, o período de ação inquisitorial traz enormes problemas, uma vez que a perseguição acaba consagrando a heresia ipso facto, tornando-a uma realidade irreversível, cuja punição traz aos olhos da comunidade a sua materialização objetiva e inquestionável. Realidade viciada que levou muitos historiadores a acreditarem na realidade das heresias, ou mesmo imaginá-la como outra religião, como no caso do Catarismo.
Inventar a heresia? percorre uma larga trajetória temporal, começando por santo Agostinho e o seu procedimento na polêmica contra o maniqueísmo que o havia desencantado, e se estende até um caso de não-heresia na Gasconha dos inícios do século XII.
E por que um intervalo de tempo tão alargado? A resposta está na perspectiva dos autores. Sabemos que no princípio do cristianismo a tônica é a persuasão. No entanto, no Contra Faustum Agostinho já prefigura a atitude que virá depois: se não persuadidos, os adversários serão por fim condenados.
De maniqueístas e exegetas gregos da Bíblia, a obra saltará para o século XI, o período de emergência das heresias, momento que Jacques Le Goff leu equivocadamente como um ressurgimento folclórico, o que justificava o aparecimento dos movimentos heréticos.
A obra que examinamos inverte a questão, buscando a ‘confecção’ dos hereges no interior dos embates de uma Igreja que tenta impor a sua hegemonia reformista. A heresia é esgrimida por Gerardo, no sínodo de Arras, como resposta à sua tentativa de manter sob controle um domínio que escapa por entre as suas mãos, pois remete a um sistema carolíngio antiquado, que não dá conta da nova ordem social.
Contudo, ainda com Pedro, o Venerável, e seu Contra Petrobrusianos, persiste a argumentação. No entanto é singular que esse abade de Cluny invista contra os hereges, contra os judeus e contra os sarracenos. O século XI, e fundamentalmente Cluny, preparam as armas para defender a Igreja. A argumentação ‘defensiva’ de nosso abade não resiste a uma política de hegemonia da religiosidade. Ao final do século XI, está aberto o caminho para a ausência de diálogo com a heresia, substituído pelo procedimento judiciário de fazer aqueles que a Igreja condena, confessarem a verdade.
E a ofensiva se intensifica. O front cada vez mais ampliado, o inimigo cada vez mais irredutível. A heresia com a incorporação do Direito Romano ao Direito canônico, tornada crime de lesa-majestade no século XIII, acaba necessariamente no apelo às armas contras os hereges, cujo exemplo emblemático foi a Cruzada Albigense.
“Mas quem são os hereges?”, pergunta-se Michel Lauwers, buscando os hereges nas tensões sociais (as contestações aos privilégios e às determinações eclesiásticas) e analisa como exemplo o tema “Os sufrágios dos vivos beneficiam os mortos?”, demonstrando como os polemistas passaram da recusa das práticas impostas pela instituição à doutrina, fazendo dela um instrumento de julgamento da recusa: a heresia.
“Albigenses: observações sobre uma denominação”, cujo título despretensioso oculta o seu verdadeiro teor, é de longe o ponto alto da coletânea. Nele Jean-Louis Biget identifica a origem e analisa a história do nome ‘albigenses’, protagonistas de uma história que começa em 1209, mas que bruscamente foram ‘esquecidos’ após 1960, sendo substituídos pelos ‘cátaros’. Para isso retoma o papel da ordem de Cister como construtora da heresia. Empenhada em consolidar a reforma da Igreja, traduz os conflitos internos e regionais que comprometem a tão almejada unidade, como as expressões de divergências doutrinárias. Ou seja: a invenção de um nome para batizar os desvios da verdadeira unidade até designar todos os dissidentes religiosos do Midi.
Como lembra Dominique Iogna-Prat, a escassez de análises de discursos anti-heréticos é marcante até nossos dias. Os trabalhos sobre heresia analisam os documentos como fontes que expressam a realidade herética e não como um discurso construído com base na ótica constitucional.
Assim, este livro nos ensina um princípio fundamental. Frente aos documentos que tratam da heresia deve-se, em primeiro lugar, duvidar da realidade dos fatos descritos pelos textos produzidos pelo meio eclesiástico ou por autores a ele vinculados. R. I. Moore em seu posfácio vai além: “nem mesmo de um movimento não enquadrado e relativamente inocente de entusiasmo pela vita apostolica entre rustici“. A acusação de heresia tornou-se a principal ferramenta de construção da unidade, revestindo de uma ‘aura sagrada’ a tarefa bem menos momentosa aos olhos da comunidade cristã de eliminar desvios e manter o rebanho cristão dentro da ortodoxia proclamada como religiosa, mas cuja real ameaça não está no plano do sagrado, mas nas divergências políticas e sociais que ameaçam a instituição eclesiástica.
Apenas um senão que não compromete fundamentalmente a qualidade da obra. A tradução dos capítulos, ainda que feita de maneira correta, ressente-se do fato de ter sido executada por diversos colaboradores, o que leva o texto a variar seu estilo, ora mais fluido ora mais ‘trancado’. Mas repetimos: isso afeta a estética, não o conteúdo dos capítulos.
Não poderíamos terminar sem tratar de um pequeno, mas não menos importante capítulo (altamente esclarecedor do caráter rigoroso dessa coletânea) que estabelece ao final da obra um precioso contraponto: “Um caso de não-heresia na Gasconha do ano de 1208”. Frente a uma ‘revolução’ dos leigos dependentes de Saint Sever, na Gasconha, o legado papal reinverte os papéis, ignora práticas e faz dos episódios uma leitura não-herética – extremamente necessária em razão da crise que se estabeleceu entre Inocêncio III e João I da Inglaterra, o qual detinha os domínios das terras insurgentes. Estamos diante de uma boa demonstração da exceção que confirma e elucida a regra!
Enfim, o livro reúne artigos instigantes, que abrem as portas à dúvida e ao questionamento da construção da heresia. O que nos leva a terminar esta resenha assumindo como nossas as palavras do autor Benoît Cursente, que resume a perspectiva de todos os demais: “E nessa circunstância, para que a heresia não existisse, era necessário e suficiente não nomeá-la”.
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Professor Titular, Universidade de São Paulo. Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: crfnogue@usp.br.
[IF]Festas / Revista Brasileira de História / 2011
Neste ano de 2011 a Revista Brasileira de História completou 30 anos. Criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, teve o intuito inicial de suprir o vazio deixado pelo fim da publicação dos Anais dos Simpósios da Anpuh, em 1978, e veio ao encontro das conquistas no campo científico e da necessidade de sua divulgação. De acordo com a apresentação da professora Alice Canabrava, sua primeira editora, uma parte do periódico deveria dar publicidade a artigos originais sobre pesquisas de História ou de seu interesse. A atualização permanente com respeito à bibliografia histórica seria objeto de outra seção. Foi considerada, de início, especialmente a produção dos periódicos consagrados à História, nacionais e estrangeiros, no sentido de proporcionar aos professores e pesquisadores uma contribuição que viesse suprir a carência das bibliotecas universitárias. Essa informação bibliográfica deveria ser ampliada para divulgar também comentários de obras históricas. Finalmente, o “Noticiário” deveria tornar mais conhecida a atividade dos Núcleos Regionais, “dar maior publicidade aos conclaves de História realizados no país e no exterior e a outros assuntos de interesse para os que militam no campo da História” (RBH, v.1, n.1, 1981, p.9).
Com periodicidade semestral, a RBH já alcançou a publicação de 62 números. A partir do número 59, a Revista iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos números mais recentes da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web. Nos últimos dez números, a quantidade de acessos por mês foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da Revista e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil.
No segundo semestre de 2011 atingimos um novo marco importante. Com o objetivo de ampliar a internacionalização da produção acadêmica brasileira, a Capes decidiu apoiar dois periódicos por área, ao longo de cinco anos, com a intenção de convertê-los em referências. Em nossa área optou-se por edital interno em que poderiam concorrer todas as revistas classificadas entre Qualis A1 e B2. Responderam ao convite 12 revistas, então avaliadas por um comitê escolhido especificamente para esse fim. Entre as duas selecionadas, a Revista Brasileira de História foi escolhida por unanimidade. Essa aprovação não só representa o reconhecimento da importância do papel da RBH e da Anpuh, mas também nos permitirá alcançar um novo patamar, podendo ampliar o número de artigos publicados, produzir a edição trilíngue – em espanhol e inglês – e alcançar uma maior interação com a comunidade internacional de historiadores.
Neste número elegemos para o dossiê o tema “Festas”, que surgiu sem anúncio prévio e como resultado do grande interesse despertado para o número anterior, “Comemorações”. Em verdade, a grande oferta de mais de 110 textos focalizando celebrações, festejos e eventos vinculados à construção de memórias e identidades, já aprovados por pareceristas, nos levou a optar por abrir um novo dossiê. Como historiadores, sabemos que comemorar não é um ato sem maiores implicações, pois envolve escolhas e projetos e funciona para estabelecer laços identitários entre diferentes grupos sociais. E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as celebrações públicas ocupam um lugar central no universo contemporâneo.
Para este dossiê foram selecionados cinco artigos. Iniciamos com o texto de Petrônio José Domingues, “‘A redempção de nossa raça’: as comemorações da abolição da escravatura no Brasil”, que focaliza em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, como estratos da população negra saíam às ruas todo ano para comemorar o 13 de Maio – data da abolição –, por meio de romarias, missas, conferências cívicas, discursos solenes, festivais artístico-culturais, bailes, música, dança e teatro, quase sempre embalados por um clima de emoção e alegria. O segundo artigo, de Jocelito Zalla a Carla Menegat, trata da “História e Memória da Revolução Farroupilha” com o objetivo de apresentar um panorama das manifestações em torno dessa revolução, desde o próprio episódio até sua consolidação como mito fundador da identidade regional no Rio Grande do Sul. Isabel Bilhão, em “‘Trabalhadores do Brasil’: as comemorações do Primeiro de Maio em tempos de Estado Novo varguista”, analisa as mudanças e permanências em seus rituais comemorativos, bem como as estratégias de preparação, apresentação e legitimação de suas comemorações por parte do governo. Crislane Barbosa Azevedo no trabalho “Celebração do civismo e promoção da educação: o cotidiano ritualizado dos Grupos Escolares de Sergipe no início do século XX” busca compreender o funcionamento cotidiano de tais instituições por meio da identificação e análise dos diferentes eventos de caráter escolar e cívico. Lucileide Costa Cardoso em “Os discursos de celebração da ‘Revolução de 1964′” aborda aspectos desses discursos construídos pelos militares entre os anos de 1964 e 1999, através dos quais buscaram explicitar as motivações da articulação do Golpe de Estado, a estruturação do regime e o seu desfecho em 1985. O objetivo, portanto, é analisar as concepções de história, o sentido e o caráter das comemorações, estabelecendo regularidades que possam elucidar a estruturação do pensamento anticomunista e autoritário em disputa no campo da memória por uma determinada apropriação do passado.
A seção se avulsos apresenta sete artigos: Andre de Lemos Freixo, em “Um ‘arquiteto’ da historiografia brasileira: história e historiadores em José Honório Rodrigues”, analisa a história da historiografia brasileira segundo a perspectiva de José Honório Rodrigues (1913-1987), como parte dos esforços que na década de 1930 começaram a investir nos aspectos profissionais da História como disciplina no Brasil – enfatizando, por exemplo, a função central da metodologia histórica como diferencial frente às escritas amadoras. Juliana Pirola da Conceição e Maria de Fátima Sabino Dias no artigo “Ensino de História e consciência histórica latino-americana” apresentam a pesquisa desenvolvida sobre a contribuição dos conteúdos latino-americanos na grade curricular de ensino para a formação histórica dos jovens na escola. Letícia Borges Nedel em seu texto “Entre a beleza do morto e os excessos dos vivos: folclore e tradicionalismo no Brasil meridional” examina a participação gaúcha no autodenominado Movimento Folclórico Brasileiro, entre as décadas de 1940 e 1960. Cássia Rita Louro Palha em “Televisão e política: o mito Tancredo Neves entre a morte, o legado e a redenção” aborda a produção cultural da televisão brasileira, em especial da Rede Globo de Televisão e de seu telejornalístico Globo Repórter no desaguar da chamada ‘abertura política’, tendo como mote a veiculação da imagem política de Tancredo de Almeida Neves e os processos de construção simbólica que envolveram a sua mitificação. Carolina Amaral de Aguiar no artigo “Cinema e História: documentário de arquivo como lugar de memória” analisa o filme A espiral (1975), um documentário que focaliza a Unidade Popular no Chile com base em materiais pesquisados em arquivos. José Iran Ribeiro em “O fortalecimento do Estado Imperial através do recrutamento militar no contexto da Guerra dos Farrapos” analisa o significativo crescimento e atuação do Exército Imperial brasileiro e a capacidade das autoridades em recrutar efetivos necessários para o fortalecimento da autoridade imperial. Jorge Pimentel Cintra e Júnia Ferreira Furtado no texto “A Carte de l’Amérique Méridionale de Bourguignon d’Anville: eixo perspectivo de uma cartografia amazônica comparada” analisam do ponto de vista da cartografia alguns mapas da região amazônica de meados do século XVIII que visavam à produção de um documento que servisse de base para as negociações do Tratado de Madri.
Neste número publicamos também uma entrevista com Bartolomé Clavero, catedrático da Universidad de Sevilla com vasta obra na área de história do direito e das instituições. A entrevista foi coordenada por Ivan de Andrade Vellasco e realizada em abril de 2011.
Este número apresenta ainda duas resenhas. Tereza Maria Spyer Dulci escreve sobre o livro O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil (Ed. Unesp, 2010), de Luís Cláudio Villafañe Santos, e Carlos Roberto Figueiredo Nogueira analisa Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição (Ed. Unicamp, 2009), organizado por Monique Zerner.
Completam esta apresentação textos em homenagem a Maria Yedda Leite Linhares (titular da UFRJ) e Eni de Mesquita Samara (titular da USP), ambas destacadas professoras e historiadoras brasileiras, falecidas neste ano.
Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.
Marieta de Moraes Ferreira
dezembro de 2011
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.62, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]
O pequeno x: da biografia à história – LORIGA (RBH)
LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 231p. Resenha de: ARIENTI, Douglas Pavoni. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, no.66, JUL./DEZ. 2013.
Em obra publicada na França sob o título de Le Petit x: de la biographie à l’histoire, que foi recentemente traduzida e publicada no Brasil pela Editora Autêntica, integrando a coleção “História e historiografia”, sob o título de O Pequeno x: da biografia à história, a historiadora e professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, Sabina Loriga revisita a historiografia do século XIX e nos brinda com um trabalho que discute o espaço destinado ao indivíduo no Século da História. Retomando a discussão sobre biografia, já trabalhada no capítulo “A biografia como problema”, publicado no livro organizado por Jacques Revel e traduzido no Brasil como Jogos de escala, a autora se aprofunda e nos oferece uma análise acerca da atualidade de obras soterradas em nome de uma história mais científica.
Com uma produção acadêmica conhecida no Brasil, seu primeiro trabalho traduzido foi “A experiência militar”, publicado no livro História dos Jovens, organizado por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt. Destaquemos aqui também o capítulo “A tarefa do historiador”, do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas; o artigo “A imagem do historiador, entre erudição e impostura”, da coletânea Imagens na história: objetos de história cultural; o artigo intitulado Ser historiador hoje, publicado pela revista História: debates e tendências, e duas entrevistas: para a revista Métis: história e cultura, realizada por Benito Schmidt e intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a História Biográfica”, e outra mais recente, realizada por Adriana Barreto de Souza e Fábio Henrique Lopes, professores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e disponível na Revista História da Historiografia, intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a biografia como problema”.
Profissional atenta ao estado atual do debate historiográfico, a autora tem se dedicado a compreender os desafios e os limites do trabalho historiográfico e as tarefas da história nos aspectos epistemológicos e teóricos, a relação entre história e biografia, memória e história e construção do tempo histórico. Assim, O Pequeno x se junta a outros trabalhos que se dedicam a discutir a tão em voga relação entre história e biografia, como, por exemplo, o trabalho de François Dosse, publicado no Brasil em 2009 sob o título de O desafio biográfico. Embora tanto Dosse como Loriga centrem suas discussões na relação biografia-história ou indivíduo-coletivo, as duas obras se distinguem principalmente pelo foco: a autora opta pelo século XIX, ao passo que o historiador francês passa pelo gênero biográfico de maneira mais geral, dos gregos à publicação de sua obra. Com o objetivo de discutir do ponto de vista teórico o que é escrever uma vida, o autor identifica três tipologias que, apesar de não serem estanques, permitem localizarmos temporalmente os diferentes gêneros de narrativas biográficas: os modelos heroico, modal e hermenêutico. Segundo Dosse, a biografia modal “consiste em descentralizar o interesse pela singularidade do percurso recuperado a fim de visualizá-lo como representativo de uma perspectiva mais ampla … O indivíduo, então, só tem valor na medida em que ilustra o coletivo” (Dosse, 2009, p.195).
Esse momento que o autor intitula de “eclipse da biografia”, localizado no século XIX, período em que a disciplina se aproxima das outras ciências sociais ávidas por cientificidade, principalmente da sociologia durkheimiana, contribui para o desdém dos historiadores (mas não só destes) em relação à biografia. É exatamente esse o período em que se centra a obra de Sabina Loriga. Ao recuperar autores como Carlyle, Humboldt, Meinecke, Burckhardt, Dilthey e Tolstoi, ela nada contra a corrente e busca perceber a importância das individualidades em um período marcado por explicações totalizantes, cujas preocupações obscureciam os sujeitos históricos ou até os excluíam das narrativas.
Tomando o indivíduo como mote do seu trabalho, embora não se restrinja a discutir somente aspectos referentes à biografia, Loriga escreve uma história da historiografia em um período posterior aos abalos provocados pelo linguistic turn na História, e chega a ser bastante ácida nas suas críticas aos relativismos da pós-modernidade. Assumindo explicitamente que não se trata de um “retorno à ordem”, acredita ter encontrado no século XIX trabalhos heurísticos ainda úteis aos historiadores contemporâneos, obras essas que a autora analisa de uma perspectiva hermenêutica.
Pouco contextualizados, por vezes lançados num vazio, segundo a visão dos menos íntimos da historiografia europeia do século XIX, tais autores aparecem como figuras valorizadas sob uma análise interpretativa crítica. A autora dá voz à imaginação ao aproximá-los às preocupações atuais dos historiadores – são obras do seu tempo lidas por um olhar do século XXI. Além do trabalho de transposição temporal e de inserção desses autores em um debate contemporâneo, Loriga aproxima-os dos problemas enfrentados atualmente na escrita da história, sem deixar de nos apresentar os limites, contradições e paradoxos presentes em suas obras. Todavia, inegavelmente, advoga em favor deles com base em fontes convencionais para quem trabalha com historiografia, principalmente livros e conferência, por vezes cruzados a missivas. Dessa forma, a autora lê e interpreta, mergulha nas obras e proporciona um debate entre autores em que ela atua como árbitro, selecionando e orientando as falas, criando coesões e dando sentido aos textos, pinçando os pontos positivos aos olhares do historiador contemporâneo e elucidando projetos distintos daqueles vencedores, ou cristalizados como vencedores, que expulsaram os indivíduos das narrativas históricas no século XIX.
Apresentando-nos esses velhos historiadores como sábios anciãos, Loriga demonstra que muitas críticas e preocupações consideradas pós-estruturalistas já estariam presentes nesses autores do século XIX: como as críticas de Droysen à ideia de origem, comungada por Tolstoi, e a assumida perspectiva hermenêutica do autor, assim como o posicionamento acerca da impossibilidade de reconstrução do passado, apregoada pelo autor a partir da metáfora de que a justaposição de todos os cacos de um prédio não o recriaria. Também nos expõe as denúncias de Hintze às naturalizações e de Meyer às generalizações, além da valorização da subjetividade do historiador como fonte de conhecimento por parte de Meinecke. O assumido posicionamento de Dilthey acerca da impossibilidade da racionalidade humana pura e da sua perspectiva analítica que considerava a dinamicidade da vida, e que por isso não deveria ser fragmentada na escrita da história, também entra na pauta da historiadora. Já para Carlyle, como a vida não era coesa, não era função dos historiadores atribuírem sentido a ela.
Humboldt, por sua vez, valorizava a imaginação do historiador, mas se afastava da ficção, o que, para a autora, pressupõe o dever do historiador. Loriga também analisa Dilthey com base na assumida postura do autor diante da relação entre indivíduo, meio e temporalidade, suas relações estabelecidas com as expectativas do futuro, suas memórias e seu presente. O historiador da arte Burckhardt também nos é apresentado com base em sua relação com o tempo, ou melhor, em seu problema com o próprio tempo. Além da valorização dos mitos por parte do autor suíço, suas críticas à ideia de progresso – uma vez que para ele o único ponto positivo da modernidade seria a consciência histórica –, a autora mobiliza fragmentos da sua obra que ilustram a sua descrença na existência de um método universal para a história e destaca a importância da imaginação do historiador, ideia comungada por Humboldt quando este se refere aos preenchimentos lacunares.
Em O Pequeno x, a perspectiva multicausal de Tolstoi também é valorizada. Ademais, as diferenças existentes entre a realidade e a narração histórica, o passado compreendido como inacessível e as causas dos fenômenos inalcançáveis à razão, as relações do autor com a memória e o testemunho, a possibilidade de alcançar a liberdade apenas como experiência interior e suas estratégias narrativas, possibilitam uma leitura heurística das obras de Tolstoi. A lucidez desses autores, ou a lucidez dos desenhos criados por Loriga desses intelectuais é surpreendente.
Partindo desses autores, Sabina Loriga retorna ao século XIX e, longe de propor uma análise acusatória contra historiadores que excluíram os sujeitos da história, pinça os que atuaram na valorização das individualidades e escreveram histórias que se aproximavam do que a autora aprecia atualmente no fazer historiográfico, sobretudo com base na atual importância adquirida pelas biografias. Por mais que existam silenciamentos, recortes e por vezes uma demasiada valorização dessas obras, o livro de Loriga possibilita questionarmos a pretensa hegemonia das explicações que excluíam as atuações individualizadas dos sujeitos no século XIX e problematizarmos a construção e valorização de uma memória científica da História. Além disso, sua leitura proporciona o debate sobre as atuais análises críticas ao modelo científico de história que tem proliferado nos trabalhos que discutem historiografia e que excluem de suas narrativas obras que fogem aos modelos que buscavam bases científicas, estáveis e objetivas para a história, seus alvos principais.
Douglas Pavoni Arienti– Mestrando, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. douglasarienti@gmail.com.
Comemorações / Revista Brasileira de História / 2011
Neste ano de 2011 a Anpuh está completando meio século, e a Revista Brasileira de História, 30 anos. Criada em 1961, por ocasião da realização do I Encontro de Professores Universitários de História, em Marília, com o objetivo de promover um intercâmbio entre os professores e as universidades, desde as sua origens a Anpuh se constituiu em um padrão para os seus congêneres nas demais faculdades de filosofia que estavam sendo criadas no país. Igualmente importantes para serem lembradas foram as lutas travadas no âmbito da Anpuh pela melhoria da qualidade do ensino e da pesquisa histórica, bem como pela defesa dos princípios democráticos e contra o arbítrio e a repressão ao longo das décadas de 1960 e 1970. A recuperação de sua trajetória é uma contribuição importante para a compreensão da formação do campo da História como disciplina universitária e para a própria história das instituições de ensino e pesquisa no Brasil.
Em 1981 foi lançado o primeiro número da Revista Brasileira de História, com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros. Criada com o intuito inicial de suprir o vazio deixado pelo fim da publicação dos Anais dos Simpósios da Anpuh, que até 1978 divulgaram os trabalhos ali apresentados, a Revista Brasileira de História veio ao encontro das conquistas no campo científico e da necessidade de sua divulgação. De acordo com a apresentação da professora Alice Canabrava, sua primeira editora, uma parte do periódico deveria dar publicidade a artigos originais sobre pesquisas de História ou de seu interesse. A atualização permanente com respeito à bibliografia histórica seria objeto de outra seção. Foi considerada, de início, especialmente a produção dos periódicos consagrados à História, nacionais e estrangeiros, no sentido de proporcionar aos professores e pesquisadores uma contribuição que viesse suprir a carência das bibliotecas universitárias. Essa informação bibliográfica deveria ser ampliada para divulgar também comentários de obras históricas. Finalmente, o “Noticiário” deveria tornar mais conhecida a atividade dos Núcleos Regionais, “dar maior publicidade aos conclaves de História realizados no país e no exterior e a outros assuntos de interesse para os que militavam no campo da História” (RBH, v.1, n.1, 1981, p.9).
Com periodicidade semestral, a RBH já publicou 61 números e um total de 764 textos, sendo 598 artigos e 166 demais contribuições (resenhas, entrevistas, apresentações etc.), atingindo mais de 4 milhões e 700 mil acessos no site SciELO (contabilizados de 1998 até a atualidade). Aproveitando a comemoração dos 30 anos da RBH, acompanha esta edição um índice completo dos textos publicados entre 1981 e 2010.
A partir do número 59, a RBH iniciou uma nova etapa, tornou-se somente digital e passou a oferecer uma versão completa em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos textos da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web.
Nos últimos dez números, a quantidade de acessos por mês foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da RBH e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil. O sucesso desse empreendimento, resultado do esforço coletivo da comunidade dos profissionais de História, merece ser festejado, e por isso elegemos como tema deste dossiê as “Comemorações”.
Esse duplo aniversário, da Anpuh e da RBH, constitui um momento importante de comemoração. Como historiadores, sabemos que comemorar não é um ato sem maiores implicações, pois envolve escolhas e projetos. Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de pessoas ou eventos, algo que indica a ideia de ligação entre os homens, fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de identidade. E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as comemorações públicas ocupam um lugar central no universo contemporâneo.
As sociedades contemporâneas, preocupadas com a aceleração do tempo e com o aumento da capacidade de esquecer, têm demonstrado grande interesse em retomar o estudo da memória e de sua própria história. Assim, emerge a necessidade permanente de constituir novas formas de preservação, de memorização, de arquivamento. As modalidades de comemorações assumem formas diversificadas de acordo com os objetivos a alcançar: o sentido de muitas delas é o de reforçar concepções e valores, promover o consenso, a harmonia entre os grupos ou atores sociais, mas podem também desencadear conflitos ou tensões. Nesta virada do milênio, grandes desafios se colocam para a sociedade brasileira, especialmente para nós, professores de História e historiadores. Olhar para trás parece ser útil para melhor descortinar o caminho à frente. Assim, ao recuperarmos aspectos da nossa história comemorando os aniversários da Anpuh e da RBH por meio deste número, temos como intenção transmitir para a comunidade de professores e historiadores um pouco do que fomos, o que somos e o que queremos ser.
Neste número, o dossiê “Comemorações” traz nove artigos: Hendrik Kraay em seu texto, “Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independência do Império, 1869-1889”, apresenta o estudo das festas da Independência brasileira promovidas por essa Sociedade no Rio de Janeiro e revela um significativo engajamento popular com o Estado imperial; Jaime de Almeida, em “Um lugar de memória e de esquecimento: Santa Librada, padroeira da Independência da Colômbia”, analisa como uma imagem religiosa de obscuras origens medievais tornou-se casualmente objeto de um culto cívico religioso voltado para a construção da memória da independência daquele país; Silvia Capanema Almeida, autora do texto “Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária”, discute a consolidação da Revolta da Chibata (Rio de Janeiro, 1910) como um tema da memória nacional brasileira, mediante a análise de diferentes momentos e tentativas de recuperação, apropriação e comemoração do levante; Sílvio Correa no artigo “História, memória e comemorações: em torno do genocídio e do passado colonial no sudoeste africano” trata de algumas formas de compartilhar a experiência, do dever da memória e do reescrever da História no que tange ao genocídio durante a guerra colonial (1904-1907) no sudoeste africano; Marcelo Abreu no trabalho “Luto e culto cívico dos mortos: as tensões da memória pública da Revolução Constitucionalista de 1932 (São Paulo, 1932-1937)” analisa as tensões da memória pública desse movimento, baseando-se no estudo da invenção do culto cívico dos mortos em combate; Douglas Marcelino em “Os funerais como liturgias cívicas: notas sobre um campo de pesquisas” apresenta o processo de constituição de funerais em liturgias cívicas, destacando sua relação com outros fenômenos históricos, como a conformação dos imaginários nacionais, o processo de individualização moderno e as mudanças nas formas de lidar com a morte; Rodrigo Christofoletti no texto “Rapsódia verde: as comemorações do jubileu de prata integralista e a manutenção de seu passado / presente (1957-1958)” apresenta a série de eventos promovida em comemoração à trajetória do movimento fundado em 1932; Angélica Müller em “‘Você me prende vivo, eu escapo morto’: a comemoração da morte de estudantes na resistência contra o regime militar” analisa os ‘usos políticos do passado’ feitos pelos militantes do movimento estudantil na década de 1970, no intuito de reforçar a identidade associativa e legitimar a resistência contra a ditadura militar; finalizando o Dossiê, Marta Mega de Andrade no texto “O espaço funerário: comemorações privadas e exposição pública das mulheres em Atenas (séculos VI-IV a.C.)” estuda a comemoração funerária das mulheres em Atenas a partir dos epigramas. Trata-se de explorar a hipótese de que os contextos funerários, como espaços de ‘publicização’ e de exposição, mostram uma relação positiva da comunidade políade com as mulheres, através da valorização de temas como o das relações de philia e da recorrência de elogios derivados da tradição épica, em épocas anteriores destinados apenas aos elogios fúnebres masculinos.
A seção de avulsos apresenta seis artigos: Alexander Von Plato em seu texto “Mídia e Memória: apresentação e ‘uso’ de testemunhos em som e imagem” trata do registro de testemunhos, bem como dos efeitos desse registro e das mídias, em geral, sobre as pessoas entrevistadas; Eduardo Morettin no artigo “As exposições universais e o cinema: história e cultura” tem por objetivo examinar a presença do cinema nessas exposições entre 1893 e 1939; integrante de uma cultura visual construída por esses espaços dedicados a celebrar o capitalismo, o cinema tem sua trajetória identificada à das diferentes feiras mundiais pela sua capacidade de entreter e, ao mesmo tempo, educar; Diego Santos Vieira de Jesus e Verônica Fernandes, em “Do ‘terror suicida’ ao ‘bárbaro’: mídia e exclusão na política externa brasileira – o 11 de setembro segundo O Globo e a Folha de S. Paulo“, examinam a cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001 pelos jornais impressos de maior circulação no Brasil, no dia seguinte aos ataques, mostrando que a atuação de tais meios de comunicação foi fundamental na definição de práticas de exclusão no nível internacional; Tania de Luca no texto “A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos norte-americanos: estudo de caso” analisa a ação do DIP como editor e financiador de obras favoráveis ao regime, e a sua presença no exterior indicando os esforços do regime para atingir uma audiência internacional; Eugênio Rezende de Carvalho no texto “A dupla dimensão do movimento latino-americano de história das ideias” tem como propósito oferecer uma análise sobre a dupla dimensão do movimento intelectual de história das ideias, organizado na América Latina por volta da década de 1940, sob a liderança destacada do filósofo mexicano Leopoldo Zea (1912-2004); completando o conjunto, Alírio Carvalho Cardoso em “A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626)” discute os projetos existentes para a ocupação ou exploração econômica do antigo Maranhão, antes de 1625. Tais projetos – francês, inglês e holandês – concorrem com o plano luso-espanhol de ocupação da fronteira entre o Norte do Brasil e as Índias de Castela entre os séculos XVI e XVII.
Este número apresenta ainda quatro resenhas: Weder Ferreira da Silva analisa a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas (organizada por Gomes & Schmidt); Diogo da Silva Roiz escreve sobre O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853) (Reis; Gomes & Carvalho); Maria de Fátima Fontes Piazza focaliza O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro (de Luciene Lehmkuhl), e Helenice Rodrigues da Silva escreve sobre Pierre Nora – homo historicus (de François Dosse).
Acreditamos que os escritos aqui divulgados podem ser um estímulo para novas pesquisas e debates com vistas a fortalecer o campo de trabalho do profissional de história. Assim, convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos seus computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse. Ainda que a publicação em papel possa fazer falta para alguns (e eu me incluo entre eles), o mundo digital cada vez mais abre novas portas e possibilidades.
Marieta de Moraes Ferreira
julho de 2011
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31 n.61, 2011. Acessar publicação original [DR]
O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853) | João Rosé Reis e Flávio dos Santos Gomes
A história de Rufino … não foi de maneira alguma típica. O interesse em narrá-la decorre de que a história não é somente feita do que é norma, e esta pode amiúde ser mais bem assimilada em combinação e em contraste com o que é pouco comum. Foi, aliás, o que buscamos aqui fazer: nosso personagem nos serviu de guia para uma história bem maior do que caberia na sua experiência pessoal. Ele foge com enorme regularidade de nosso campo de visão para dar lugar ao drama colossal da escravidão no mundo atlântico no qual desempenhou seu pequeno mas interessante, às vezes nefasto, papel. (p.360)
Ao estudarem a trajetória de Rufino José Maria, João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho nos oferecem um extraordinário painel, no espaço micro e macrossocial, do que foi o tráfico transatlântico de cativos africanos para o império do Brasil no século XIX. Por certo o tema não é novo, mas a maneira como foi abordado, sem dúvida é muito inovador. Se houve, realmente, um considerável aumento no número de pesquisas sobre o assunto desde o final da década de 1980, que culminou com o primeiro centenário da Lei Áurea, além de se terem firmado novos marcos para a análise do sistema escravista e das políticas inclusivas no país, o tema do tráfico de escravos também recebeu revisão significativa, como indicam trabalhos como Em costas negras, de Manolo Florentino.
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil e no Caribe, o tema do tráfico de escravos e do sistema escravista tem sido repensado, como indica Gerald Horne em O sul mais distante. Destoando dos estudos indicados, os autores deste O alufá Rufino deixam os dados quantitativos apenas como complemento, para abordarem a trajetória de um desses africanos que se tornou cativo nas Américas, onde alcançaria a alforria. Rufino tornou-se também traficante e dono de escravos, e nesse percurso transatlântico aprendeu a ler e escrever e cultivou a religião segundos as regras do Alcorão, praticando-a no Império do Brasil, motivo pelo qual foi preso. É bem presumível que a escolha do objeto deva-se não apenas à sua riqueza documental e exemplaridade, mas também às evidências que João José Reis trouxe com Domingos Sodré, um sacerdote africano. Contudo, diferentemente desse livro, em O alufá Rufino os autores aproveitam-se mais do que o personagem oferece para, a partir dele, reconstituírem certos nexos entre atores sociais que povoaram o mundo do tráfico de escravos. Circunstanciam os grandes comerciantes do período, descrevem suas principais embarcações e expõem como burlavam o bloqueio inglês nas costas do continente africano, como agiam quando eram capturados e que tipo de mercadorias levavam das Américas, para tornarem o negócio ainda mais lucrativo. Nesse ponto, habilmente os autores demonstram que quase toda a tripulação das embarcações fazia parte desse comércio, com caixas e rubricas próprias, como foi o caso de Rufino – embora até onde o acompanharam não tenham encontrado suas iniciais entre as mercadorias. Como cozinheiro, Rufino aproveitava o ensejo para comerciar doces – e até, provavelmente, comprar escravos – na África. Outra diferença entre os dois livros é que neste as afirmações seriam mais pautadas em suposições do que em comprovação documental.
Como mostram os autores, a “história dos africanos no Brasil do tempo da escravidão”, assim como a de Rufino, “em grande parte, é escrita a partir de documentos policiais” (p.9), que têm sido vasculhados de modo mais sistemático nas últimas décadas pelos pesquisadores brasileiros. Assim, com a história de Rufino os autores nos apresentam o perfil de alguns dos compradores de escravos no Império do Brasil, como João Gomes da Silva, homem pardo que exercia o ofício de boticário. Provavelmente, Rufino foi seu aprendiz por certo período, antes de seguir para Porto Alegre e lá ser vendido, porque é “possível que suas habilidades na cozinha viessem a ter alguma valia na preparação de remédios de origem animal e mineral” (p.31). No início da década de 1830, Rufino desce para o Rio Grande do Sul em companhia de seu senhor-moço, Francisco Gomes, que algum tempo depois o venderá para José Pereira Jardim, comerciante em Porto Alegre, onde “Rufino encontrou … alguma gente de sua terra escravizada ou já alforriada” (p.52). Em 1835, alguns meses após o levante dos malês na Bahia, ironicamente, Rufino alcançaria sua alforria pagando a quantia de 600 mil-réis.
Com a liberdade, Rufino passaria a figurar de volta na documentação, meses depois seguindo para o Rio Grande, “onde funcionava o governo legal antifarroupilha, talvez na companhia de seu ex-senhor, o desembargador José Maria Peçanha”, e lá “ficou … envolvendo-se com a comunidade muçulmana local até que, no final de 1838, teve lugar a ação policial em Porto Alegre contra aquela escola muçulmana” (p.69). Com isso, como sugerem os parcos documentos sobre ele, provavelmente seguiu para o Rio de Janeiro, entre o final de 1838 e o início de 1839, “e não três anos antes, como deixou transparecer no Recife em 1853, quando tinha boas razões para omitir a verdadeira história de sua saída do Rio Grande do Sul: preso por suspeita de conspiração, ele não podia revelar que suspeita semelhante já havia pairado sobre ele quinze anos antes” (p.70).
No Rio de Janeiro, “Rufino teria percebido que podia conseguir proteção e boa vida – além de dinheiro – alistando-se como trabalhador do tráfico” (p.81). Aqui, os autores demonstram como Rufino participará do comércio transatlântico de escravos, além de pormenorizarem o perfil de tripulantes dos navios negreiros e suas mercadorias (além das quantidades médias de escravos transportados na viagem de volta), e também circunstanciarem os principais organizadores desse mercado arriscado, em função da proibição inglesa, desde o início da década de 1830, mas, ainda assim, incomparavelmente lucrativo.
Nesse percurso, os autores nos apresentaram as histórias de vários personagens do tráfico da época, dos tripulantes aos chefes do comércio. Ao lado da Ermelinda, embarcação na qual Rufino trabalhou, eles indicam os destinos da escuna Paula, do patacho São José e da União (embarcação em que Rufino esteve antes de ir para a Ermelinda), quando estas foram confiscadas e julgadas pelos ingleses em Serra Leoa, juntamente com outras embarcações. Destaque-se ainda que havia muitas evidências, apesar da fiscalização inglesa, de que “traficantes e ingleses se irmanavam nos entrepostos do trato de gente”, pois “os verdadeiros ‘irmãos’ dos ingleses no terreno eram outros brancos, mesmo se traficantes, e não os negros traficados, de quem se diziam ‘irmãos’ os abolicionistas na distante Inglaterra” (p.157).
Embora não tenha sido condenada, apesar das tentativas na reunião de indícios que a apontassem como embarcação de tráfico negreiro – o que de fato era -, os prejuízos foram evidentes para a Ermelinda, sua tripulação e seus donos. Ainda que extraordinariamente rica a exposição dos autores, não há como em tão poucas linhas circunstanciarmos todas as ramificações e detalhes desse empreendimento e suas consequências, ao serem capturadas as embarcações e levadas até Serra Leoa, onde foram julgadas.
De Serra Leoa para o Recife, Rufino, como toda a tripulação e os comerciantes do trato de gente, teve de computar os prejuízos do empreendimento, não levado a cabo em função da captura inglesa nas costas do continente africano. Em Recife, Rufino se fixaria na rua da Senzala Velha, nome representativo para um ex-cativo e traficante, como ele. Os autores fazem uma primorosa análise do perfil e das características das práticas religiosas na Recife do século XIX, onde Rufino não estaria sozinho, haja vista a pluralidade étnica, cultural e religiosa ali presente. Como alufá, Rufino conhecia os meandros de sua religião, e a sua prática o ajudou a ultrapassar aquele período conturbado. Quando foi detido em meados de 1853 pela prática de rituais religiosos, Rufino manteve uma atitude serena, apesar de a “preocupação das autoridades pernambucanas” ter sido “atiçada não só porque sabiam que na Bahia os rebeldes possuíam papéis escritos em árabe como aqueles encontrados com Rufino, mas também porque, segundo as notícias que circularam o país, muitos dos rebeldes malês eram africanos libertos e nagôs como ele” (p.331). Dito isso, vale destacar ainda que “Rufino certamente desenvolveu uma visão cosmopolita de um mundo dificilmente alcançada pela maioria dos africanos e, menos ainda, dos brasileiros seus contemporâneos” (p.355), o que torna mais representativa sua trajetória.
Portanto, os autores nos oferecem a interpretação de um personagem rico e complexo, inserido no próprio núcleo do movimento dinâmico do tráfico de cativos do século XIX. Desse modo, tracejando pela microanálise (com a trajetória de Rufino) e pela macroanálise (com o estudo pormenorizado do tráfico de escravos), o texto também sugere avanços e traz inovações sobre o uso desses instrumentais metodológicos de análise das fontes e apresentação dos dados.
Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História (UFPR), bolsista do CNPq. Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) – Campus Amambai. Cidade Universitária de Dourados. Caixa Postal 351. 79804-970 Dourados – MS – Brasil. E-mail: diogosr@yahoo.com.br.
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 481p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011. Acessar publicação original
[IF]
O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro – LEHMKUHL (RBH)
LEHMKUHL, Luciene. O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro. Uberlândia: Edufu, 2011. 268p. il. Resenha de: PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.
O livro O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro, da historiadora Luciene Lehmkuhl, docente na Universidade Federal de Uberlândia, foi originalmente tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e está inserido metodologicamente nas fileiras da História Cultural, que com rara sensibilidade adentra na chamada ‘virada pictórica’ (pictural turn).
Café (1935),1 óleo sobre tela do pintor de Brodósqui, é visto como um ícone da história cultural brasileira. Pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, e com esse quadro Portinari ganhou a segunda menção honrosa do Carnegie Institute, em Pittsburgh, no ano de 1935, distinção obtida por Salvador Dalí e Kokoschka. Da tela despontam trabalhadores braçais negros colhendo café e carregando sacos do produto, na época o principal item de exportação do Brasil e símbolo da pujança nacional.
Essa tela é simbólica das contradições inerentes à sociedade brasileira egressa de séculos de escravidão, mas dela também emergem representações que irão povoar a obra portinariana com suas colonas, com seus lavradores, com seus negros e mestiços, com suas culturas agrícolas – como a cafeicultura – que integram o universo da sua produção pictórica.
Café foi a “nota dissonante à harmonia estética” – na feliz expressão da prefaciadora da obra, professora Maria Bernardete Ramos Flores – no conjunto de obras brasileiras que integraram o “Stand de Arte” do Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português, que se realizou em Lisboa, em 1940, comemorativa aos centenários portugueses. As obras expostas são egressas do Museu Nacional de Belas Artes e estão em consonância com a hierarquia de gêneros, como a pintura de história, a pintura de retrato, a pintura de gênero, a pintura de paisagem e a pintura de natureza-morta. Essas obras transitam entre o realismo, o impressionismo, o simbolismo e o naturalismo.
Nesse conjunto pictórico de 24 óleos, Café não está em consonância com o conjunto apresentado de características ‘acadêmicas’ ou da arte tradicional. Além disso, o “Stand de Arte” não é representativo da produção artística brasileira da década de 1930, pois ignora Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, entre outros. O que mostra que a estética modernista em ebulição no Brasil não era unanimidade no campo cultural e nas hostes estado-novistas.
Com base nesses dados a autora propõe várias questões, entre as quais: por que Café integrou essa exposição do Estado Novo português, uma pintura modernista num lugar dedicado à tradição? Por que a comissão organizadora do “Stand de Arte” do Brasil selecionou Café entre tantas obras representativas da estética modernista? Por que Café mereceu tanta visibilidade naquela exposição? Que imagem o Brasil estado-novista levou para as comemorações nacionalistas da sua ex-metrópole?
Para respondê-las, a autora com argúcia se debruçou sobre arquivos e bibliotecas do Brasil e de Portugal e perquiriu cuidadosamente o acervo dessas instituições, sem descuidar do cotejo entre as obras do Museu Nacional de Belas Artes que atravessaram o Atlântico e foram expostas no Pavilhão do Brasil. O que denota o trabalho criterioso de Luciene Lehmkuhl, quanto ao métier do historiador.
A escolha de Café para integrar o “Stand de Arte” do Pavilhão do Brasil deve-se, entre outros motivos, ao capital simbólico da obra que tinha sido premiada pela prestigiada instituição estadunidense e ao fato de ser considerada um símbolo da arte moderna brasileira pela crítica nacional e internacional. Também, Portinari integrava uma importante rede de sociabilidade intelectual que abrangia até mesmo a burocracia estatal, o que permitiu encomendas oficiais (as obras para o Ministério da Educação e Saúde Pública) e a realização da Exposição Portinari no Museu Nacional de Belas Artes, em 1939.
A autora chama atenção para a magnitude do Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português às margens do Tejo, o qual é emblemático da “coroação da campanha da formação da intimidade luso-brasileira”. No bojo da política nacionalista, o Estado Novo português queria mostrar ao mundo o Brasil com uma “imagem forte”, ao passo que Portugal potencializava sua imagem virtual de “berço de descobridores e de criadores de nações”.
Se o conjunto pictórico apresentado pretendia mostrar a autoimagem do Brasil à ex-metrópole ibérica, o que sobressaiu são paisagens bucólicas, naturezas-mortas, nus femininos e Lindoia (uma índia, bem ao gosto oitocentista). O que corrobora a visão de que o “Stand de Arte” estava imerso na tradição acadêmica da arte brasileira, compatível com a orientação das instituições oficiais, como o Museu Nacional de Belas Artes, sob a direção de Oswaldo Teixeira, e o Salão Anual.
O impacto visual causado por Café entre pinturas identificadas como acadêmicas propiciou que Portinari e sua obra ficassem conhecidos em Portugal e se tornassem assunto da imprensa portuguesa. A repercussão envolveu o campo cultural daquele país nas discussões sobre questões centrais e prementes em torno da arte moderna no Brasil e em Portugal, como nacional/internacional e arte pura/arte social, além das aproximações arte/vida e arte/política.
A recepção de Café, em 1940, marcou indelevelmente os caminhos a serem trilhados pelos artistas e pela crítica de arte em Portugal. A historiografia da arte em Portugal menciona Café como um ponto de inflexão na história do modernismo português; para alguns, teve importante papel no estabelecimento do neorrealismo naquele país. A autora adverte que Portinari só foi recuperado pelos neorrealistas portugueses em 1946, quando concedeu entrevista ao poeta, ensaísta e pintor Mário Dionísio, após a exposição na Galerie Charpentier, em Paris.
Café é visto como o melhor exemplo da estética modernista brasileira, embora na Exposição do Mundo Português tenha sido exposto em meio à preponderância da imagem da tradição do Estado Novo brasileiro.
O livro de Luciene Lehmkuhl é de suma importância para a história da arte brasileira, merece ser lido não só pelos acadêmicos que se debruçam sobre história e arte, imagens, práticas historiográficas, acervos documentais e visuais. Deve-se proceder à leitura como a “uma operação de caça” – no sentido proposto por Michel de Certeau – na qual se descobrem muitas sutilezas metodológicas.
Notas
1 Café (1935), pintura a óleo sobre tela, 130 x 195 cm. Assinada e datada no canto inferior esquerdo, “Portinari Brasil 935”. Coleção Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Maria de Fátima Fontes Piazza – Doutora pelo PPGH/UFSC. Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFSC. Campus Universitário. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: md.piazza@uol.com.br
[IF]Pierre Nora- homo historicus – DOSSE (RBH)
DOSSE, François. Pierre Nora- homo historicus. Paris: Perrin, 2011. 660p. Resenha de: SILVA, Helenice Rodrigues da. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.
Dando sequência ao gênero de ‘biografia intelectual’ de autores franceses que marcaram a segunda metade do século XX (Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Gilles Deleuze/Félix Guattari), François Dosse completa um extenso trabalho sobre Pierre Nora. Figura singular no espaço intelectual francês, esse autor atravessa, de maneira discreta e silenciosa, diferentes domínios de produção e difusão (literatura, jornalismo, edição e ensino) nestes últimos 50 anos.
Conhecido pelos historiadores como um dos coordenadores (com Jacques Le Goff) de “Fazer a história” e o idealizador dos “lugares da memória”, Pierre Nora é, sobretudo, visto como o editor da maison Gallimard e o criador da famosa “Bibliothèque des sciences humaines”. Nessa coleção, a ‘nata’ da intelligentsia francesa e estrangeira (Michel Foucault, Georges Dumézil, Émile Benveniste, entre tantos outros) promove, nas décadas de 1960 e 1970, “os anos dourados das ciências humanas”.
Professor universitário (assistente na École des Hautes Études en Sciences Sociales e no Institut d’Études Politiques, nas décadas de 1970 e 1980), idealizador de diferentes coleções de ciências humanas (inicialmente na editora Julliard, em seguida na Gallimard), fundador (com Marcel Gauchet), em 1980, da revista Le Débat (importante mídia intelectual ancorada na crítica de ideias e nas análises da atualidade), imortal (eleito para a Académie Française em 2002), Pierre Nora ocupa ainda uma posição de destaque nos debates atuais da Cité (esfera pública) no que diz respeito, notadamente, aos imbróglios da memória, da história e do patrimônio francês.
No entanto, autor de um único livro, publicado durante a guerra da Argélia, Les Français d’Algérie, e de numerosos artigos (jamais agrupados) sobre história do presente e epistemologia da história, Pierre Nora encarna o intelectual solitário, o escritor de talento que duvida do caminho a seguir, e que se sente incapacitado para edificar uma obra individual.
Ao longo de um trabalho denso e detalhado, graças, notadamente, a uma extensa documentação do arquivo pessoal do biografado, François Dosse reconstitui os diversos itinerários desse historiador, buscando entender o enigma do acadêmico ‘fora da norma’. Como bem mostra a biografia, o paradoxo de Nora, editor de grandes livros em todas as disciplinas – da linguística à economia, da antropologia à história, da filosofia à política – residiria na sua impossibilidade de se afirmar como autor de uma obra.
Sensível à recepção de novas ideias, Pierre Nora publica, desde a década de 1960, textos até então inéditos e originais, produzidos na França e no estrangeiro. De As palavras e as coisas, de Michel Foucault, a Montaillou, povoado occitâneo, de Leroy Ladurie (300 mil exemplares vendidos), Pierre Nora, na Gallimard, lança os best sellers das ciências humanas e sociais. No entanto, duas obras de peso que marcaram seu tempo constituíram exceções. Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, e A era dos extremos, de Eric Hobsbawm, foram recusados pela editora.
Ora, como explicar a trajetória de um autor sem obra, mas que parece ter feito de sua existência sua própria obra? Tal interrogação constitui um ‘desafio biográfico’ (título de um dos livros de François Dosse). Pierre Nora seria mais solícito a ideias de seus autores que à produção de suas próprias ideias. Escritor talentoso, ele teria dito: “os melhores editores são, certamente, escritores reconvertidos, reprimidos, transformados”.
Pautada por sucessos e fracassos, sua trajetória intelectual é reveladora de um Ser em busca permanente de si mesmo. Nora coloca em dúvida seu percurso, critica as normas acadêmicas e recusa fechar-se dentro de uma disciplina. Mas, ao lado de aparentes frustrações e insucessos (os concursos de admissão para a École Normale Supérieure, a renúncia a uma tese já iniciada, a desistência de trabalhos coletivos) encontram-se incontestáveis conquistas. Graças a seu dom de escritor, a sua visão antecipada e a sua incansável curiosidade, Pierre Nora obtém a difícil agrégation em história (concurso para se tornar professor da Educação Nacional), antecipa a criação de novos modelos historiográficos e consegue sobreviver à crise das ciências humanas e sociais, criando, em 1980, uma revista aberta aos debates intelectuais.
Relatar essa ‘aventura intelectual’ solicita, por parte de um bom biógrafo, recursos da psicanálise. François Dosse é, assim, levado a ressaltar uma experiência traumática, vivida pelo jovem Pierre aos 12 anos. De origem judia, totalmente assimilada à República francesa, a família Nora (originalmente Aron, antes do século XIX) se considera, no entanto, “uma família judia mais francesa do que francesa”. Refugiado com os parentes no sul da França, no momento da ocupação alemã, Pierre se salva de uma rafle (uma blitz para prender judeus) organizada pela Gestapo. Nas palavras do biógrafo, esse episódio drástico acrescentará certa inquietação e gravidade a sua existência, marcando-o para sempre.
Na opinião de François Dosse, a lembrança desse acontecimento incidirá, provavelmente, sobre seu trabalho intelectual posterior, levando-o a repensar as categorias da memória e da história: “[Esta] será, incontestavelmente, a contribuição mais decisiva de Pierre Nora à historiografia; a sua singularidade de judeu o leva a valorizar a memória – o Zakhor [‘lembre-se’] -, mas a submete a uma artilharia ininterrupta da crítica à disciplina histórica, à vigilância histórica”.
Outras pistas que podem explicar suas escolhas ou suas recusas são recenseadas: o autoritarismo do pai, o sucesso de um irmão mais velho (aluno brilhante na prestigiosa École Nationale d’Administration – ENA, alto funcionário das finanças e conselheiro de Mendès France, presidente do conselho de ministros da IV República), a paixão inicial pela literatura e poesia, o espírito crítico em relação à retórica e à filosofia ensinadas na juventude. Este último aspecto justificaria seu triplo fracasso no concurso de admissão para a École Normale Supérieure. Destinada aos futuros filósofos, a ENS constitui um dos ‘lugares de passagem’ da elite intelectual e ‘republicana parisiense’.
No entanto, a escrita de Les Français d’Algérie (1961) despertará seu interesse pelos arquivos. Nora idealiza, ainda na editora Julliard, o lançamento de uma coleção de bolso que apresentaria aos leitores a integralidade dos arquivos, acompanhados de comentários por parte de especialistas. Intitulada “Archives”, essa coleção, publicada em 1964, parece renovar a disciplina história. Seu projeto de lançamento de novas coleções, desta vez na editora Gallimard, se concretizaria na “Bibliothèque des sciences humaines”, na “Bibliothèque des histoires” e na coleção “Témoins”.
Seus sucessos editoriais, no entanto, o impedem de elaborar seu próprio pensamento. Em carta redigida no final da década de 1960, Edgar Morin demonstra sua inquietude e afirma:
cada vez mais, você encarcera sua primeira personalidade, que penso que é sonhadora, meditativa, afetuosa, plena de curiosidades profundas que vão alhures. Não existe uma solução em vista, mas existe um caminho: cultive sua própria filosofia. Isto não quer dizer: faça uma tese ou um livro, ou ande a cavalo. Isto quer dizer, apenas, que é hora de partir em busca da expressão daquilo que mais conta dentro de você mesmo.
Ora, segundo François Dosse, a grande obra na vida de Pierre Nora realizar-se-á através de sua ligação íntima com a França, por intermédio dos ‘lugares da memória’; ele até afirma que um ‘momento Nora’, semelhante a um ‘momento Michelet’ e a um ‘momento Lavisse’, marcará a historiografia francesa.
Esse empreendimento ‘memorial’, coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos “Lugares da memória”. Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos ‘lugares da memória’ (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à “República” (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à “Nação” (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às “Franças” (les France).
Trabalho historiográfico e epistemológico notável na trajetória intelectual de Nora, esse ‘empreendimento’ ocupa um espaço central em sua biografia. No capítulo intitulado “A fábrica dos lugares da memória”, François Dosse descreve a confecção dessa produção historiográfica lembrando que, nas décadas de 1980 e 1990, a expressão ‘lugares de memória’ passa a integrar a linguagem corrente. Se a noção da memória emerge no território dos historiadores franceses, ela se apresenta como coadjuvante da categoria da história. Através dos ‘lugares da memória’, Pierre Nora fornecerá “uma resposta histórica pessoal a esta situação ‘ambígua’ do intelectual francês judeu; desta [situação] resulta sua relação passional com este monumento editorial”.
No entanto, a partir da década de 1970, a França conhece o ressurgimento das memórias ocultas, reprimidas e recalcadas pela história oficial. Consequentemente, o fenômeno do après coup, do traumatismo, expresso pelos sobreviventes das catástrofes do século XX, modificará sensivelmente a abordagem do passado. Contudo, longe de exprimir a dialética da memória e do esquecimento (da memória coletiva), os ‘lugares da memória’ (responsáveis pelo retorno da questão nacional, por intermédio da memória e da política) se erigem como um estudo do patrimônio francês.
Embora reconhecendo seu valor heurístico, compartilho as críticas emitidas por alguns historiadores franceses (citadas por Dosse). Enquanto patrimônio nacional (simbólico e material), os ‘lugares da memória’ sacralizam a história oficial, os mitos da nação, os lugares de culto. Assim, os sete volumes que formam os três tomos dessa coletânea não deixam de representar um ‘monumento histórico’, uma celebração da história nacional francesa. Voltados à trilogia – a República, a Nação e as Franças – os ‘lugares da memória’, injustificadamente, não levam em conta a análise do passado colonial, ou seja, do império francês e da guerra da Argélia, esquecendo-se dos traumatismos da memória coletiva (o governo de Vichy, a guerra da Argélia e o tráfico de escravos, dentre outros).
Analisar, retrospectivamente, o chamado ‘momento Nora’ nos tempos atuais da vigência do paradigma da global history leva os historiadores a exprimir sérias reservas em relação à matriz histórica do Estado-nação. Além do mais, a noção de ‘identidade nacional’ (intrínseca e explícita a esta obra), que se transformou em uma categoria polêmica e perigosa na França atual, obriga os historiadores a rever as interpretações históricas e historiográficas das décadas anteriores.
Em contrapartida, é de fundamental importância o empreendimento posterior de Pierre Nora para a história intelectual. Criada em 1980, a revista Le Débat (dirigida por Pierre Nora, Marcel Gauchet e Krzysztof Pomian) se propõe a repensar novos modelos intelectuais e/ou ‘a mudança de paradigmas’ nas ciências humanas. Aberta à inovação, à reflexão, às contribuições estrangeiras e, sobretudo, à heterogeneidade das ideias, ela se instala na paisagem intelectual como uma referência obrigatória.
“A palavra-chave para caracterizar Le Débat é a abertura, uma vontade de descompartimentalização, de romper as fronteiras, tanto disciplinares como nacionais.” Ao longo dos 30 anos de sua existência, o espírito de renovação e a sensibilidade em relação às mutações históricas e intelectuais do momento da revista permanecem atuais.
Conjugando história do intelectual, história intelectual e história da historiografia francesa (dos últimos 50 anos), este estudo biográfico oferece ao leitor um estimulante percurso através das ideias. Abordando diferentes cenários – instituições, pessoas, obras e redes sociais -, François Dosse reconstitui tensões políticas e intelectuais, debates ideológicos, modelos de análise etc. através do percurso original de um discreto ‘aristocrata de esquerda’..
Helenice Rodrigues da Silva Silva – Professora Associada, Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460. 80060-150 Curitiba – PR – Brasil. E-mail: helenrod@terra.com.br.
[IF]Memórias e narrativas (auto) biográficas – GOMES; SCHMIDT (RBH)
GOMES, Ângela M. de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas. Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p. Resenha de: SILVA, Weder Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.61, 2011.
O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biográficas e autobiográficas vem ganhando destaque nas publicações recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catálogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o país experimenta grande aumento de publicações de caráter biográfico e autobiográfico – a título de exemplo citemos apenas O retorno de Martin Guerre, de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das ciências sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primárias, documentos, papéis, cartas, bilhetes e fotografias é capaz de revelar parcelas desconhecidas ou até então invisíveis da história e do mundo social vivenciado tanto por homens e mulheres ‘comuns’ quanto por personagens de maior relevo na história. Essa sensação é fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produção documental, às características seriais e ao formato burocrático, e tem uma origem privada, um caráter pessoal, conferindo a impressão de que se está tomando contato com aspectos muito íntimos da história de seus personagens. O acesso a tais fontes tem a força de simular o transporte no tempo, a imersão na experiência diretamente vivida, sem mediações.1 Paralelamente a esse movimento, é importante ressaltar que é cada vez maior o interesse do leitor por certo gênero de escritos – uma escrita de si – que inclui diários, cartas, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevistas de trajetórias de vida, por exemplo.
Como apontou Giovanni Levi, nosso fascínio de arquivistas pelas descrições impossíveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta não só a renovação da história narrativa, como também o interesse por novos tipos de fontes – nas quais se poderiam descobrir indícios esparsos dos atos e das palavras da vida cotidiana dos atores sociais.2 É nesse mesmo movimento historiográfico que se enquadra a publicação do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas, organizado por Ângela de Castro Gomes e por Benito Bisso Schmidt.
O conjunto de textos apresentado no livro constitui significativo exemplo de como os chamados escritos de si ou autorreferenciais vêm ganhando terreno no campo da historiografia, ilustrando, assim, as várias possibilidades e os resultados de pesquisas que utilizam tais escritos como fonte de investigação histórica. Nesse sentido, o livro Memórias e narrativas (auto)biográficas apresenta ao leitor uma nova possibilidade heurística para os arquivos privados. De acordo com os organizadores do livro, “a atenção de muitos historiadores voltou-se para os arquivos privados, nos quais passaram a procurar não apenas rastros das ações e ideias de seus personagens, mas também a forma pela qual eles constituíram a si mesmos, à medida que selecionavam e guardavam seus documentos e, assim, propunham um sentido para suas vidas” (p.7).
Na esteira das transformações pelas quais a historiografia passou desde a década de 1980, a biografia, isto é, o indivíduo, emerge como tema relevante para a compreensão não apenas do social, mas também de questões ligadas à ‘invenção’ de si. Essas novas abordagens passam a ocupar espaço privilegiado no conhecimento histórico, suscitando, com isso, reflexões sobre o espaço privado e o público, sobre o individual e o coletivo e sobre as formas narrativas e analíticas da escrita da história. Daí a importância dos acervos pessoais como elementos para a compreensão da ‘superfície social’ em que age o indivíduo numa multiplicidade de campos, a cada momento. Nos textos que compõem o livro é possível observar que as narrativas autobiográficas evidenciam de forma clara como a trajetória de um indivíduo varia no tempo, o que atesta, mais uma vez, aquilo que Pierre Bourdieu chamou de ilusão biográfica – a ilusão de uma linearidade e coerência do indivíduo.3 Dito isto, cabe ainda ressaltar a proposição de Paul Ricoeur, para quem a história de vida de indivíduo não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta de si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.4
Os textos que integram o livro em questão estão dispostos em quatro partes. A primeira – “O historiador entre a história e a memória” – compõe-se de um artigo de Sabina Loriga em que a autora aborda ‘as porosas fronteiras’ entre história e memória. Com base na obra A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur (Campinas: Ed. Unicamp, 2007), a historiadora tece considerações sobre as múltiplas relações estabelecidas entre a história e a memória. Nesse sentido, o texto de Loriga antecipa o contexto historiográfico em que se situam os artigos subsequentes da obra.
Na segunda parte do livro, Ângela de Castro Gomes, Haike Roselane Kleber da Silva, Yonissa Marmitt Wadi e Keila Rodrigues de Souza abordam facetas das trajetórias de indivíduos com base nas correspondências que trocaram. Ao leitor, ficará evidente que a documentação epistolar permite ‘decompor’ a vida de indivíduos aproximando-se da sua esfera privada de atuação. Ao investigarem a troca de correspondência entre figuras de relevo da política e da intelectualidade da Primeira República, as cartas de germanistas no Brasil e bilhetes de pessoas que cometeram autoviolência, os autores tecem reflexões sobre a construção do ‘Eu’, demonstrando que as escritas de si também se constituem em lugares de memória.
Na sequência, Joseli Maria Nunes Mendonça, Benito Bisso Schmidt e Gisele Venâncio ocupam-se em investigar como determinados atores sociais construíram suas imagens por meio de narrativas autobiográficas. Essas análises são reveladoras para pensar as estratégias utilizadas de forma consciente ou não – no processo de construção de si mesmo. Nesse espectro de análise é possível notar as disputas, os silêncios, as hipérboles, enfim, as oscilações das narrativas que pretendem ‘forjar’ uma imagem de si projetadas para a posteridade.
Por fim, os artigos de Márcia de Almeida Gonçalves, Bruno Barreto Gomide, Marcelo Timotheo da Costa e Maria Elena Bernardes têm como objeto de análise as produções biográficas e autobiográficas que pretenderam traçar um sentido social e existencial para as trajetórias de notáveis intelectuais e políticos brasileiros dos séculos XIX e XX. No capítulo que encerra o livro, Maria Elena Bernardes faz uma incursão à instigante trajetória de vida da escritora e militante comunista Laura Brandão. Nessa biografia, como que em um jogo de escalas, a autora articula aspectos da vida da militante com elementos mais amplos da história do Brasil e mundial, revelando, assim, as potencialidades que a biografia pode oferecer ao campo do ofício do historiador.
Não obstante a diversidade dos objetos e de enfoques, os artigos que compõem a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas podem ser conectados um ao outro formando, assim, um ‘hipertexto’ que se constitui em importante contribuição para o campo da historiografia que se ocupa em investigar a multiplicidade de temas relacionados aos fenômenos da lembrança, do esquecimento e da produção do ‘eu’.
Notas
1 HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v.19, p.41, 1997. [ Links ]
2 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.169. [ Links ]
3 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA; AMADO, 2006, p.183-191. [ Links ]
4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997. t 3. p.425. [ Links ]
Weder Ferreira Silva – Doutorando em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: wedhistoria@yahoo.com.br.
[IF]História, educação e interdisciplinaridade / Revista Brasileira de História / 2010
O número 60 da RBH apresenta o dossiê “História, educação e interdisciplinaridade”, o qual traduz a expressiva dimensão que os debates sobre o ensino de História vêm assumindo nos meios acadêmicos brasileiros. Se por muito tempo os professores universitários de História foram resistentes a esse tipo de reflexão, o volume e a diversidade de artigos recebidos mostra uma positiva mudança em direção ao aprofundamento das questões relativas ao ensino da disciplina.
Os textos que compõem o dossiê procuram refletir sobre o saber escolar, entendido aqui como uma construção histórica, ou seja, como um produto de seu tempo, guardando muito do contexto em que foi elaborado. A perspectiva de que o ensino deve ser pensado em sua historicidade é um passo importante para entendermos a constituição da História como uma disciplina acadêmica e escolar, bem como as relações entre a carreira acadêmica e a formação docente no contexto brasileiro. A ideia básica do dossiê é contribuir para o debate sobre a formação dos docentes e apresentar subsídios para pensarmos sobre as funções e o alcance do ensino de História, tanto no passado como nos dias de hoje.
O dossiê é composto de sete artigos: Marcos Antônio da Silva e Selva Guimarães Fonseca analisam tradições de debate sobre ensino de História no Brasil desde a ditadura de 1964-1984. O artigo discute as mudanças, permanências, conquistas e perdas na história da disciplina. Destaca a importância da cultura escolar, a necessária continuidade da escola como instituição e o diálogo com formas não escolares de ensino. Aryana Lima Costa nos apresenta um artigo sobre a extensão na formação dos profissionais, pensando o papel que cabe (ou caberia) aos cursos de História na contemporaneidade através de atividades concebidas para extrapolar os muros das universidades. O texto de Maria Aparecida Bergamaschi e Juliana Schneider Medeiros analisa como a educação escolar indígena no Brasil foi imposta aos povos originários desde os primórdios da colonização, com o intuito de catequizá-los e civilizá-los, e de que maneira, coerentes com suas cosmologias, esses povos mantiveram um modo próprio de educação. O artigo de Maria Rita de Almeida Toledo e Daniel Revah apresenta um estudo sobre a revista Escola e a política educacional do regime militar a partir da difusão da reforma de ensino instituída pela Lei 5.692, de 1971. Outro texto que versa sobre a problemática do ensino durante a ditadura militar é de autoria de Elaine Lourenço e enfoca memórias da atuação docente no período. O artigo de Helenice Aparecida Bastos Rocha trata de um problema existente na escola brasileira que afeta diretamente o trabalho de ensino e aprendizagem de história: as condições de seus alunos no que se refere ao domínio da leitura e da escrita. Considerando o quadro apresentado, a autora sinaliza algumas alternativas para o ensino de história no Ensino Básico. Finalizando o dossiê, Ricardo de Aguiar Pacheco analisa as ações educativas em museu e suas relações com o ensino de história.
Os demais artigos deste número focalizam temáticas variadas. O texto de Raquel Discini de Campos analisa a atuação do médico carioca Floriano de Lemos na região Noroeste Paulista, na década de 1920 e procura situá-lo como personagem possuidor de uma trajetória emblemática a uma geração de intelectuais que intencionou mapear, analisar e organizar discursivamente o interior do país nas primeiras décadas do século XX. Francisca L. Nogueira de Azevedo e Roberta Teixeira Gonçalves estudam um documento do século XIX intitulado Novella pollítica e sentimental, e o ponto central do artigo é a análise da narrativa novelesca, no sentido de perceber os elementos discursivos utilizados como persuasão em defesa da Espanha. Ana Carolina Eiras Coelho Soares busca entender as relações entre os espaços urbanos do Rio de Janeiro oitocentista e as relações de gênero expressas na narrativa de José de Alencar em seus romances urbanos femininos: Diva, Lucíola e Senhora. O artigo de Andrea Dupuy focaliza como os primeiros núcleos populacionais da América Hispânica eram abastecidos de carne e o impacto do estanco, sistema de monopólio voltado para assegurar um eficiente fornecimento de alimentos às cidades. Para finalizar, Maria Helena Versiani apresenta alguns valores correlacionados à ideia de República presentes em um repertório de práticas políticas que tiveram lugar na sociedade brasileira, na segunda metade da década de 1980.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.60, 2010. Acessar publicação original [DR]
Revista Brasileira de História | São Paulo, v.23, n.45, 2003 / v.20, n.60, 2010.
Sumário | Rev. Bras. Hist. vol.30 no.60 São Paulo 2010
Apresentação
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Dossiê: História, educação e interdisciplinaridade
- Ensino de História hoje: errâncias, conquistas e perdas | Silva, Marcos Antônio da; Fonseca, Selva Guimarães | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A extensão na formação de profissionais de história | Costa, Aryana Lima | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- História, memória e tradição na educação escolar indígena: o caso de uma escola Kaingang | Bergamaschi, Maria Aparecida; Medeiros, Juliana Schneider | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A indústria cultural e a política educacional do regime militar: o caso da revista Escola | Toledo, Maria Rita de Almeida; Revah, Daniel | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- O ensino de História encontra seu passado: memórias da atuação docente durante a ditadura civil-militar | Lourenço, Elaine | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A escrita como condição para o ensino e a aprendizagem de história | Rocha, Helenice Aparecida Bastos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Educação, memória e patrimônio: ações educativas em museu e o ensino de história | Pacheco, Ricardo de Aguiar | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Artigos
- Um intelectual viajante: Floriano de Lemos no sertão paulista (1926-1930) | Campos, Raquel Discini de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Libro de Mano: “Novela Política e Sentimental”, um pasquim manuscrito | Azevedo, Francisca L. Nogueira de; Gonçalves, Roberta Teixeira | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX: o Rio de Janeiro de Diva, Lucíola e Senhora | Soares, Ana Carolina Eiras Coelho | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Crisis in the meat shop of colonial Buenos Aires: from monopoly to free competition | Dupuy, Andrea | · resumo em Espanhol | Inglês | · texto em Espanhol | Inglês | · Inglês ( pdf ) | Espanhol ( pdf )
- Uma República na Constituinte (1985-1988) | Versiani, Maria Helena | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Resenhas
- Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966 | Duarte, Adriano Luiz | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas | Basso, Rafaela | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Cultura escrita: séculos XV a XVIII | Duran, Maria Renata da Cruz | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A história nos filmes, os filmes na história | Santiago Júnior, Francisco das Chagas Fernandes | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. vol.30 no.59 São Paulo jun. 2010
Apresentação
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Dossiê: História e historiadores
- Capistrano de Abreu, viajante | Gontijo, Rebeca | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Fazer história, escrever a história: sobre as figurações do historiador no Brasil oitocentista | Oliveira, Maria da Glória de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- O ofício do historiador e os índios: sobre uma querela no Império | Moreira, Vânia | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A institucionalização dos estudos Africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações | Ferreira, Roquinaldo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A teoria da história como hermenêutica da historiografia: uma interpretação de Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda | Assis, Arthur | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- História do Brasil para o “belo sexo”: apropriações do olhar estrangeiro para leitoras do século XIX | Jinzenji, Mônica Yumi; Galvão, Ana Maria de Oliveira | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Artigos
- Um rei indesejado: notas sobre a trajetória política de D. Antônio, Prior do Crato | Hermann, Jacqueline | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Novos elementos para a história do Banco do Brasil (1808-1829): crónica de um fracasso anunciado | Cardoso, José Luís | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A floresta mercantil: exploração madeireira na capitania de Ilhéus no século XVIII | Dias, Marcelo Henrique | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Subsistemas de comércio costeiros e internalização de interesses na dissolução do Império Colonial português (Santos, 1788-1822) | Moura, Denise Aparecida Soares de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira | Motta, Rodrigo Patto Sá | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Resenhas
- The case for books: past, present and future | Araújo, André de Melo | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) | Caldas, Pedro Spinola Pereira | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Os índios na história do Brasil | Garcia, Elisa Frühauf | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. vol.29 no.58 São Paulo dez. 2009
Apresentação
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Dossiê: Repúblicas
- Positivistas e republicanos: os professores da Escola de Engenharia de Porto Alegre entre a atividade política e a administração pública (1896-1930) | Heinz, Flavio M. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Estratégias populares de sobrevivência: o mutualismo no Rio de Janeiro republicano | Viscardi, Cláudia Maria Ribeiro | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Biologia, natureza e República no Brasil nos escritos de Mello Leitão (1922-1945) | Duarte, Regina Horta | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A produção dos números escolares (1871-1931): contribuições para uma abordagem crítica das fontes estatísticas em História da Educação | Gil, Natália de Lacerda | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- O currículo bandeirante: a Proposta Curricular de História no estado de São Paulo, 2008 | Ciampi, Helenice; Godoy, Alexandre Pianelli; Almeida Neto, Antonio Simplício de; Silva, Ilíada Pires da | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Voltando aos registros paroquiais de Minas colonial: etnicidade em São José do Rio das Mortes, 1780-1810 | Libby, Douglas Cole; Frank, Zephyr | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Semeando os alicerces da nação: História, nacionalidade e cultura nas páginas da revista Niterói | Andrade, Débora El-Jaick | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Entre flores e canhões na Grande Guerra (1914-1918): o final da Belle Époque e o começo do “breve século XX” em um álbum de retratos fotográficos | Stancik, Marco Antonio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Entrevista
- Fernando Catroga | Ferreira, Marieta de Moraes | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto | Oliveira, Lucia Lippi | · texto em Português | · Português ( pdf )
- New World coming: the sixties and the shaping of global consciousness | Correa, Sílvio Marcus de Souza | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império | Rampinelli, Waldir José | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) | Abrahão, Eliane Morelli | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. vol.29 no.57 São Paulo jun. 2009
Apresentação
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Dossiê: O Brasil Visto de Fora
- A Amazônia no imaginário norte-americano em tempo de guerra | Garfield, Seth | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf ) | · press release em Português
- Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964 | Green, James N.; Jones, Abigail | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Como era ardiloso o meu francês: Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia das Luzes | Safier, Neil | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Ensino primário franquista: os livros escolares como instrumento de doutrinação infantil | Capelato, Maria Helena Rolim | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial | Rodrigues, Aldair Carlos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Lévi-Strauss, Braudel e o tempo dos historiadores | Rodrigues, Henrique Estrada | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Varrendo a democracia: considerações sobre as relações políticas entre Jânio Quadros e o Congresso Nacional | Loureiro, Felipe Pereira | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX | Albuquerque Júnior, Durval Muniz de | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Black townsmen: urban slavery and freedom in the eighteenth-century Americas | Libby, Douglas Cole | · texto em Português | · Português ( pdf )
- The surgeon in medieval English literature | Santos, Dulce O. Amarante dos | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Greening Brazil: environmental activism in state and society | Sedrez, Lise | · texto em Português | · Português ( pdf )
- El desierto en una vitrina: museos e historia natural | Blasco, María Elida | · texto em Espanhol | · Espanhol ( pdf )
- Esquizohistoria: la Historia que se enseña en la escuela, la que preocupa a los historiadores y una renovación posible de la historia escolar | Cerri, Luis Fernando | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.28 n.56 São Paulo 2008
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Dossiê: Darwinismo
- O Programa Brasileiro de genética evolucionária de populações, de Theodosius Dobzhansky | Glick, Thomas F. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Darwin por Manoel Bomfim | Uemori, Celso Noboru | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O darwinismo nas Conferências Populares da Glória | Carula, Karoline | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O darwinismo e o sagrado na segunda metade do século XIX: alguns aspectos ideológicos e metafísicos do debate | Sánchez Arteaga, Juanma | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- História Nova do Brasil: revisitando uma obra polêmica | Lourenço, Elaine | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os debates pelo fim do tráfico no periódico O Philantropo (1849-1852) e a formação do povo: doenças, raça e escravidão | Kodama, Kaori | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Comércio e circulação de livros entre França e Portugal na virada do século XVIII para o XIX ou Quando os ingleses atiraram livros ao mar | DeNipoti, Cláudio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Escravidão indígena no sertão da Capitania do Rio Grande do Norte | Macedo, Helder Alexandre Medeiros de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- As Guerras Mundiais e seus veteranos: uma abordagem comparativa | Ferraz, Francisco César Alves | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Missivas que constroem limites: projeto intelectual e projeto político nas cartas de Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco (1886-1903) | Pereira, Daniel Mesquita; Felippe, Eduardo Ferraz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O Partido Comunista do Brasil e a crise do socialismo real | Sales, Jean Rodrigues | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Sombras literárias: a fotonovela e a produção cultural | Joanilho, André Luiz; Joanilho, Mariângela Peccioli Galli | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Estado da Arte
- D. João e as histórias dos Brasis | Carvalho, José Murilo de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional | Petersen, Sílvia Regina Ferraz | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A guerra civil espanhola | Motta, Rodrigo Patto Sá | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Black mass | Decca, Edgar Salvadori de | · texto em Português | · Português ( pdf )
- La ville au Brésil (XVIIIe – XXe siècles): naissances, renaissances | Furtado, Júnia Ferreira | · texto em Português | · Português ( pdf )
- The edge of evolution: the search for the limits of darwinism | Ávila, Gabriel da Costa | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde | Nunes, Eduardo Silveira Netto | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Errata | | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.28 n.55 São Paulo jan./jun. 2008
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Dossiê: Imprensa, impressos
- Ver, ler e escrever: a imprensa e a construção da imagem no cinema brasileiro na década de 1950 | Lucas, Meize Regina de Lucena | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O jornalista Costa Rego e o tempo revolucionário (1930) | Sandes, Noé Freire | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Missionários da ‘boa imprensa’: a revista Ave Maria e os desafios da imprensa católica nos primeiros anos do século XX | Gonçalves, Marcos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Anatole Louis Garraux e o comércio de livros franceses em São Paulo (1860-1890) | Deaecto, Marisa Midori | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- ‘Amáveis patrícias’: o Mentor das Brasileiras e a construção da identidade da mulher liberal na província de Minas Gerais (1829-1832) | Silva, Wlamir | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- O Brasil nos relatos de viajantes ingleses do século XVIII: produção de discursos sobre o Novo Mundo | Domingues, Ângela | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Para uma definição de Didática da História | Cardoso, Oldimar | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A expulsão dos jesuítas da Bahia: aspectos econômicos | Santos, Fabricio Lyrio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Dinâmicas centrípetas e centrífugas na formação do Estado monárquico no Brasil: o papel do Conselho Geral da Província de São Paulo | Leme, Marisa Saenz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Floresta, política e trabalho: a exploração das madeiras-de-lei no Recôncavo da Guanabara (1760-1820) | Cabral, Diogo de Carvalho | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Estado da Arte
- O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica | Mattos, Marcelo Badaró | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Durval Muniz de Albuquerque Júnior. História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história | Cezar, Temístocles | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Joshua Blu Buhs The fire ant wars : nature, science and public policy in twentieth-century America | Drummond, José Augusto | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Regina Beatriz Guimarães Neto Cidades da mineração: memória e práticas culturais: Mato Grosso na primeira metade do século XX | Rodrigues, Antonio Edmilson Martins | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Alfredo dos Santos Oliva: a história do diabo no Brasil | Benatte, Antonio Paulo | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Haroldo Leitão Camargo. Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850) | Pelegrini, Sandra C. A. | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Ângela de Castro Gomes, Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces | Montenegro, Antonio Torres | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.27 n.54 São Paulo dez. 2007
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Dossiê: História e Gênero
- Apresentação: dossiê | | · texto em Português | Inglês | · Português ( pdf ) | Inglês ( pdf )
- Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985 | Wolff, Cristina Scheibe | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Sociabilidades políticas e relações de gênero: ritos domésticos e religiosos no Rio de Janeiro do século XIX | Costa, Suely Gomes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Memórias femininas: tempo de viver, tempo de lembrar | Cavalcanti, Vanessa Ribeiro Simon | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Amor e gênero em quadrinhas | Cardoso, Elizangela Barbosa | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Casamento, maternidade e viuvez: memórias de mulheres hansenianas | Borges, Viviane Trindade | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Mulheres em movimento: a presença feminina nos primórdios do esporte na cidade do Rio de Janeiro (até 1910) | Melo, Victor Andrade de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Imigração e família em Minas Gerais no final do século XIX | Botelho, Tarcísio Rodrigues; Braga, Mariângela Porto; Andrade, Cristiana Viegas de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Em busca da caixa mágica: o Estado Novo e a televisão | Busetto, Áureo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Propaganda e crítica social nas cronologias dos almanaques astrológicos durante a Guerra Civil inglesa no século XVII | Ferreira, Juliana Mesquita Hidalgo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Modernização e concentração do transporte urbano em Salvador (1849-1930) | Saes, Alexandre Macchione | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Debates científicos e a produção do vinho paulista, 1890-1930 | Oliver, Graciela de Souza | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná | Leandro, José Augusto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Estado da Arte
- A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero | Soihet, Rachel; Pedro, Joana Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Paulo Cesar Gonçalves. Migração e mão-de-obra: retirantes cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901) | Leite, Rosângela Ferreira | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Guadalupe Gómez-Ferrer, Gabriela Cano, Dora Barrancos e Asunción Lavrin (Coord.). Historia de las Mujeres en España y América Latina: del siglo XX a los umbrales del XXI | Arend, Silvia Maria Fávero | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Bolívar Lamounier. Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família | Novinsky, Anita Waingort | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.27 n.53 São Paulo jan./jun. 2007
Apresentação
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Dossiê: Cidades
- Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias | Pesavento, Sandra Jatahy | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na sociedade contemporânea – o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961 | Knauss, Paulo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Narrativas fotográficas sobre a cidade | Possamai, Zita Rosane | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852-1930) – a proposta do Cemumc | Doin, José Evaldo de Mello; Perinelli Neto, Humberto; Paziani, Rodrigo Ribeiro; Pacano, Fábio Augusto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Espaço, paisagem e população: dinâmicas espaciais e movimentos da população na leitura das vilas do ouro em Minas Gerais ao começo do século XIX | Cunha, Alexandre Mendes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Imagens sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de 1950 | Monteiro, Charles | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade | Castelo Branco, Edwar de Alencar | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cajuína e cristalina: as transformações espaciais vistas pelos cronistas que atuaram nos jornais de Teresina entre 1950 e 1970 | Nascimento, Francisco Alcides do | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- As cidades da juventude em Fortaleza | Damasceno, Francisco José Gomes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O processo de urbanização paulista: a medicina e o crescimento da cidade moderna | Silva, Márcia Regina Barros da | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas) | Flores, Maria Bernardete Ramos; Campos, Emerson César de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950) | Lohn, Reinaldo Lindolfo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX | Guimarães, Valéria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.26 n.52 São Paulo dez. 2006
Apresentação
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Dossiê: Escravidão
- Introdução | Florentino, Manolo | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos em Constituição (Piracicaba), 1861-1880 | Motta, José Flavio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- As muitas faces do compadrio de escravos: o caso da Freguesia de São José dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII para o XIX | Machado, Cacilda | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII) | Chambouleyron, Rafael | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Esperanças e desventuras de escravos e libertos em Vitória e seus arredores ao final do século XIX | Soares, Geraldo Antonio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro” | Pires, Maria de Fátima Novaes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A morte do senhor e o destino das famílias escravas nas partilhas: Campinas, século XIX | Rocha, Cristiany Miranda | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A África carioca em lentes européias: corpos, sinais e expressões | Sela, Eneida Maria Mercadante | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano | Guarinello, Norberto Luiz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978) | Pedro, Joana Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII | Venâncio, Renato Pinto; Sousa, Maria José Ferro de; Pereira, Maria Teresa Gonçalves | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Joly, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão | Benthien, Rafael Faraco; Palmeira, Miguel S. | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Sandra Lauderdale Graham. Um outro olhar sobre a escravidão e o gênero no Brasil: Caetana diz não: história de mulheres da sociedade escravista brasileira | Gonçalves, Andréa Lisly | · texto em Português | · Português ( pdf )
Natureza e cultura | Sumário | Rev. Bras. Hist. v.26 n.51 São Paulo jan./jun. 2006
Apresentação
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Artigos
- Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Elisée Reclus | Duarte, Regina Horta | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- (Re)significações culturais no mundo rural mineiro: o carro de boi – do trabalho ao festar (1950-2000) | Machado, Maria Clara Tomaz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Padrões alimentares em mudança: a cozinha italiana no interior paulista | Oliveira, Flávia Arlanch Martins de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil | Corrêa, Dora Shellard | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cultura, natureza e história na invenção alencariana de uma identidade da nação brasileira | Borges, Valdeci Rezende | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental | Pelegrini, Sandra C. A. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- As variáveis ambientais, as estradas regionais e o fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930 | Martins, Marcos Lobato | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A Natureza e a gênese das Minas do Sul nos livros de André João Antonil e Sebastião da Rocha Pita | Andrade, Francisco Eduardo de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia (1889-1916) | Lacerda, Franciane Gama | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O natural e o construído: a estação balneárea de Araxá nos anos 1920-1940 | Lima, Glaura Teixeira Nogueira | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável | Zanirato, Silvia Helena; Ribeiro, Wagner Costa | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Makunaima e Macunaíma: entre a natureza e a história | Faria, Daniel | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Célia Tavares: jesuítas e inquisidores em Goa | Franco, José Eduardo | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Horacio Gutiérrez, Márcia Naxara e Maria Aparecida Lopes (Org.) . Fronteiras: paisagens, personagens, identidades | Nishikawa, Reinaldo | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.25 n.50 São Paulo jul./dez. 2005
Apresentação
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Poder: Tramas e Tensões
- Zyuganov: figura emblemática dos problemas dos comunistas russos pós-soviéticos | Segrillo, Angelo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O “dia de São Bartolomeu” e o “carnaval sem fim”: o quebra-quebra de ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947 | Duarte, Adriano Luiz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A política como espetáculo: a reinvenção da história brasileira e a consolidação dos discursos e das imagens integralistas na revista Anauê! | Silva, Rogério Souza | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A modernidade envolve o campo político: representações e práticas do processo eleitoral na Porto Alegre da década de 1920 | Pacheco, Ricardo de Aguiar | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Flutuações econômicas, crise política e greve geral na Bahia da Primeira República | Castellucci, Aldrin A. S. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os predicados da ordem: os usos sociais da justiça nas Minas Gerais 1780-1840 | Vellasco, Ivan de Andrade | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Jacob Roland: um jesuíta flamengo na América Portuguesa | Ambires, Juarez Donizete | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Valimento, privança e favoritismo: aspectos da teoria e cultura política do Antigo Regime | Oliveira, Ricardo de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Machado de Assis: o aprendizado do escritor e o esclarecimento de Mariana | Roncari, Luiz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O selvagem na “gesta Dei”: história e alteridade no pensamento medieval | Woortmann, Klaas | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Futebol é “coisa para macho”?: Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol | Franzini, Fábio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Shawn C. Smallman. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society | Izecksohn, Vitor | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Maria Cecília Guirado. Relatos do descobrimento do Brasil – as primeiras reportagens | Noelli, Francisco Silva | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida N. Delgado (Org.) O Brasil Republicano | Viscardi, Cláudia Maria Ribeiro | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.25 n.49 São Paulo jan./jun. 2005
Apresentação
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Entrevista
- Alain Corbin o prazer do historiador | Vidal, Laurent | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- O relógio de Hiroshima: reflexões sobre os diálogose silêncios das imagens | Kossoy, Boris | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941-1942) | Mauad, Ana Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Arte e movimento estudantil: análise de uma obra de Antonio Manuel | Freitas, Artur | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte de Franz Kugler (1848) | Fernandes, Cássio da Silva | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso | Morettin, Eduardo Victorio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Ir ao cinema em São Paulo nos anos 20 | Schvarzman, Sheila | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris | Rossato, Luciana | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos ex-votos mineiros do século XVIII | Abreu, Jean Luiz Neves | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenha
- Oswaldo Caldeira. Café Manduca: uma história recontada | Leite, Miriam Lifchitz Moreira | · texto em Português | · Português ( pdf )
Produção e divulgação de saberes históricos e pedagógicos | Sumário | Rev. Bras. Hist. v.24 n.48 São Paulo 2004
Apresentação | | · texto em Português | · Português ( pdf )
História científica, história contemporânea e história cotidiana | Guarinello, Norberto Luiz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
A dialética em questão: considerações teórico-metodológicas sobre a historiografia contemporânea | Sena Júnior, Carlos Zacarias F. de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Testemunho, juízo político e história | Kolleritz, Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
As multifaces de “Através do Brasil” | Santos, Claudefranklin Monteiro; Oliva, Terezinha Alves de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD | Miranda, Sonia Regina; Luca, Tania Regina de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
IV Congresso de História Nacional: tendências e perspectivas da história do Brasil colonial (Rio de Janeiro, 1949) | Guimarães, Lucia Maria Paschoal | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
O caderno de recortes sobre educação do “Diario Official do Estado de São Paulo”: indícios de cultura material na escola primária “Dr. Jorge Tibiriçá” (1930-1947) | Abreu Junior, Laerthe de Moraes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
História com Pedagogia: a contribuição da obra de Jonathas Serrano na construção do código disciplinar da História no Brasil | Schmidt, Maria Auxiliadora | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Saberes históricos diante da avaliação do ensino: notas sobre os conteúdos de história nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM | Cerri, Luis Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Laboratório de História e meio ambiente: estratégia institucional na formação continuada de historiadores | Martinez, Paulo Henrique | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Almas em busca da salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII) | Fleck, Eliane Cristina Deckmann | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa de Lavradio | Santos, Fabiano Vilaça dos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX | Souza, João Carlos de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenha
- François DOSSE. La marche des idées: histoire des intellectuels, histoire intellectuelle | Rodrigues, Helenice | · texto em Português | · Português ( pdf )
Brasil:do ensaio ao golpe (1954-1964) | Sumário | Rev. Bras. Hist. v.24 n.47 São Paulo 2004
Apresentação
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1964: o golpe contra as reformas e a democracia | Toledo, Caio Navarro de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar | Fico, Carlos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
“E foi proclamada a escravidão”: Stanislaw Ponte Preta e a representação satírica do golpe militar | Moraes, Dislane Zerbinatti | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981) | Napolitano, Marcos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
A questão da cultura popular: as políticas culturais do centro popular de cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) | Garcia, Miliandre | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Narrativas de um candango em Brasília | Cardoso, Heloisa Helena Pacheco | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
A estratégia do confronto: a frente de mobilização popular | Ferreira, Jorge | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Liberdade de imprensa: margens e definições para a democracia durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) | Biroli, Flavia | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964) | Mattos, Marcelo Badaró | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964 | Codato, Adriano Nervo; Oliveira, Marcus Roberto de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Representações do universo rural e luta pela reforma agrária no Leste de Minas Gerais | Borges, Maria Eliza Linhares | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Documento
- Discurso proferido por Francisco Clementino San Tiago Dantas em agradecimento pelo prêmio “Homem de Visão de 1963”, outorgado pela Revista Visão | | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.23 n.46 São Paulo 2003
Apresentação
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Dossiê: Experiências Urbanas
- Luzes e sombras da cidade (São Paulo na obra de Mário de Andrade) | Schpun, Monica Raisa | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A Estação Experimental de Piracicaba e a modernização tecnológica da agroindústria canavieira (1920 a 1940) | Oliver, Graciela de Souza; Szmrecsány, Tamás | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Campina Grande: cartografias de uma reforma urbana no Nordeste do Brasil (1930-1945) | Sousa, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Aspectos políticos das reformas da instrução pública na cidade do Rio de Janeiro durante os anos 1920 | Paulilo, André Luiz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Catolicismo e casamento civil na Cidade de Goiás: conflitos políticos e religiosos (1860-1920) | Silva, Maria da Conceição | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- São José do Rio Preto fotografado: imagética de uma experiência urbana (1852-1910) | Cavenaghi, Airton José | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- A diplomacia dos armamentos em Santiago: o Brasil e a Conferência Pan-Americana de 1923 | Garcia, Eugênio Vargas | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O Partido Democrata Cristão: teores programáticos da terceira via brasileira (1945-1964) | Coelho, Sandro Anselmo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Interpretação de textos, de história e de intérprete | Campigoto, José Adilçon | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os sertões proibidos da Mantiqueira: desbravamento, ocupação da terra e as observações do governador dom Rodrigo José de Meneses | Rodrigues, André Figueiredo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- História e Memória: o caso do Ferrugem | Santos, Myrian Sepúlveda dos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- As peculiaridades dos ingleses e outros artigos | Secreto, María Verónica | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo | Leite, Miriam Lifchitz Moreira | · texto em Português | · Português ( pdf )
The case for books: past, present and future – DARNTON (RBH)
DARNTON, Robert. The case for books: past, present and future. New York: Public Affairs, 2009. 240p. Resenha de: ARAÚJO, André de Melo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.
Com base nas correspondências trocadas entre editores, filósofos escritores e livreiros, como também nos contratos de concessão de direitos de impressão e comercialização da Encyclopédie, Robert Darnton identifica, em O Iluminismo como negócio (1979), conflitos editoriais e manobras lucrativas no mercado da cultura letrada setecentista. Trinta anos após a primeira edição desse estudo, e ainda tendo em vista os mecanismos de controle da produção e circulação do conhecimento impresso, Darnton apresenta em The case for books (2009) divergências desafiadoras e identidades lúcidas entre os (quase) dois séculos e meio que separam a França pré-revolucionária do final da primeira década do século XXI.
A identidade temática entre as duas obras se mostra presente já na recomposição atual da frase de abertura do texto de 1979. Em O Iluminismo como negócio Darnton expõe o resultado de suas pesquisas como “a book about a book”. Em The case for books, o historiador reexplora sua fórmula consagrada ao publicar um livro sobre livros: “this is a book about books” (p.vii). No plural, o autor inscreve a primeira situação divergente. Em 1979, Darnton estuda a história da publicação de um único livro, a Encyclopédie. Trinta anos depois, e já com a experiência de pouco mais de dois anos como diretor da rede de bibliotecas da Universidade Harvard, Darnton identifica no cargo que assumiu em junho de 2007 “uma oportunidade para fazer alguma coisa sobre as questões que … havia estudado como fenômeno histórico” (p.ix).1
E tais questões eram prementes: “assim que me transferi para o novo escritório, descobri que a Biblioteca de Harvard estava envolvida em conversas secretas com o Google sobre um projeto que tirou meu fôlego”, relata Darnton. “O Google planejava digitalizar milhões de livros, começando com o acervo de Harvard e de mais outras três bibliotecas universitárias, e comercializar as cópias digitais…” (p.ix). O projeto de comercialização de milhões de livros em formato digital faz o historiador relembrar os traités que lera ao estudar o grande negócio do Iluminismo e identificar a forma necessariamente plural do seu novo ponto de partida. Com base no grande volume de livros já digitalizados, Darnton resolve refletir principalmente sobre o papel das bibliotecas de pesquisa e seus possíveis caminhos na era do conhecimento armazenado em memórias de silício.
The case for books é uma coletânea de onze textos, publicados entre 1982 e 2009, dividida em três partes editadas nesta ordem: futuro, presente e passado. No título do livro, Darnton não só sugere a forma tradicional de se armazenar livros em uma estante – a book case -, como também faz ecoar por meio da assonância entre os termos four [quatro] e for [para] o núcleo da fantasia futurística de Louis Sébastien Mercier, conhecida desde 1771 e segundo a qual o volumoso conhecimento impresso seria coisa do passado. A verdade do futuro caberia em quatro estantes, “into the four bookcases” (p.44). Assim, Darnton parte do futuro do passado para fazer um alerta quanto ao presente do futuro: “Nós poderíamos ter criado uma Biblioteca Nacional digital – o equivalente, no século XXI, à Biblioteca de Alexandria. Já é tarde. Não somente fracassamos em conceber tal possibilidade, quanto, o que é pior, estamos permitindo que uma questão de política pública – o controle do acesso à informação – seja determinada por processo judicial de caráter privado [private lawsuit]” (p.17). Aqui resumo três preocupações centrais de Darnton quanto ao futuro.
1) Ao estudar a cultura letrada do século XVIII, o historiador localizava, a partir do caso francês, um projeto de abertura e divulgação do conhecimento que era, em princípio, universalista. No entanto, o projeto iluminista restringia paradoxalmente o seu universalismo à população economicamente favorecida. O primeiro alerta de Darnton quanto ao futuro diz respeito ao acesso pago às redes de conhecimento, controladas, por sua vez, por um monopólio privado. É certo que Darnton fala tanto do Google quanto de projetos de digitalização de acervos com bastante entusiasmo. Sua preocupação recai, no entanto, sobre o que ele chama de “tendências monopolistas” (p.33).
2) O autor insiste na presença mais ativa das instituições públicas nas decisões políticas de acesso ao conhecimento: “Sim, temos que digitalizar. Mas mais importante: temos que democratizar. Temos de abrir acesso à nossa herança cultural. Como? Reescrevendo as regras do jogo, subordinando interesses privados ao bem público…” (p.13). Desse modo, Darnton propõe a união das bibliotecas no futuro em nome do projeto de uma grande biblioteca pública digital (p.57): “Abertura, livre acesso [openness], é o princípio-guia que procuraremos seguir para adaptar as bibliotecas às condições do século XXI” (p.50).
3) Ao enfatizar o alto preço que as bibliotecas hoje já pagam para manter em dia seus acervos com periódicos, Darnton se preocupa com o comprometimento do orçamento das bibliotecas de pesquisa com as altas taxas de acesso aos acervos digitais, baseados originalmente em acervos públicos. Como consequência, as bibliotecas do futuro teriam de adquirir menos livros (p.18-19)!
Dessas três preocupações centrais decorrem ainda outros problemas estruturais. A instabilidade da informação, tal como Darnton a define (p.23), requer a possibilidade de exploração das mínimas variações no mundo das ideias: várias cópias de um mesmo título – algo que se pode deixar de lado para que o mundo digital se resuma em quatro estantes – podem apresentar dissonâncias reveladoras da cultura letrada (p.29-31). Historiador de profissão, o novo bibliotecário desconfia da eficácia do sistema de preservação de acervos digitais: a materialidade temporária – ou quase “imaterialidade” – dos livros nascidos em formato digital pode se dissipar no espaço cibernético (p.37). Darnton ainda amplia o alerta ao mencionar a fragilidade do registro das comunicações no mundo contemporâneo (p.53). Sua tônica incide principalmente sobre a necessidade de discutir as políticas públicas de preservação de acervos e de controle dos canais de divulgação do conhecimento. E esse é o motivo pelo qual a responsabilidade das bibliotecas aumenta na era digital, não apenas por terem em vista o ideal de livre acesso a fontes de pesquisa, mas também por se verem responsáveis por preservar o passado do futuro. O pressuposto de todo historiador é bem conhecido: se o presente não deixar rastros para o futuro, ele jamais poderá ser passado.
Algumas das preocupações de Darnton quanto ao futuro se repetem na segunda parte do texto, ou seja, no presente. As repetições dos argumentos, quando não dos próprios exemplos, marcam a leitura dessa coletânea de textos em que se procura destruir o mito de que o futuro eletrônico coloca em risco a tradição dos livros impressos (p.67). De forma a explorar a convivência da tinta sobre papel com as tecnologias da informação eletrônica no mundo contemporâneo (p.77), The case for books foi lançado simultaneamente tanto como livro eletrônico (e-book), quanto no formato tradicional do códice impresso.
No último capítulo, ou seja, na parte que diz respeito mais diretamente ao passado, Darnton reedita seu estudo clássico de 1982 sobre a história dos livros, já disponível ao público brasileiro há duas décadas em O beijo de Lamourette. Nesse texto, discute como as formas de transporte e de comunicação influenciaram decisivamente a história da literatura (p.199). Ao revisar recentemente o artigo de 1982, Darnton insiste no caráter material do objeto chamado livro,2 e tal insistência se faz mais uma vez presente em The case for books. Familiarizado com o mundo em que as notícias se viam atreladas à forma em papel (p.109), Darnton aponta a importância para o historiador do contato material com as suas fontes de pesquisa: a cor, o tamanho das páginas (p.125), até mesmo a experiência de passá-las uma a uma fazem parte do estudo das práticas de leitura.
E como Darnton insiste em buscar uma saída conciliatória entre a forma impressa e a forma eletrônica para o passado, para o presente e para o futuro dos livros – ao dar provas de que o historiador não se ocupa apenas do passado -, também prefiro aqui esboçar um caminho conciliador das duas atividades profissionais de Robert Darnton, historiador do Iluminismo francês e diretor da rede de bibliotecas da Universidade Harvard. Parto do núcleo deflagrador das divergências – entre o passado e o futuro – que desafiam o presente e a partir do qual Darnton procura com lucidez indicar, em The case for books, algumas identidades.
O projeto de digitalização – e comercialização – de milhões de livros, tal como Darnton o descobriu em seu novo escritório em Harvard, relembra o modelo econômico e epistemológico de filiação iluminista, para o qual The case for books oferece uma resposta cética e um desafio. No plano epistemológico, o modelo das Luzes procura ordenar e encadear o conhecimento dos homens – tal como D’Alembert propunha no discurso preliminar da Encyclopédie, em 1751 – ou ainda reunir o conhecimento disseminado na face da Terra, como Diderot sugere no quinto tomo da mesma obra. Aqui atua o ceticismo de Darnton, ao apontar lacunas e fragilidades em projetos de caráter supostamente totalizante. No caso dos acervos digitais, páginas incompletas e ausência potencial de variantes são índices claros de tal fragilidade.
Do ponto de vista econômico, a promessa de acesso a volumes compactos da cultura escrita mais uma vez se mostra como um grande negócio. Mas eis que o desafio proposto por Darnton procura renovar, no século XXI, os termos da utopia setecentista, segundo a qual uma grande biblioteca pública digital asseguraria o acesso universal ao conhecimento. Ou seja, se por um lado as reflexões publicadas em The case for books ensaiam a crítica ao projeto das Luzes, ao identificar com lucidez semelhanças entre os interesses de mercado dos grandes negócios do passado e do futuro, bem como entre as formas de privilégio de acesso à cultura escrita, por outro, Darnton procura ampliar o mesmo projeto que havia estudado como fenômeno histórico, na medida em que aposta na redefinição dos mecanismos de acesso universal ao conhecimento letrado. Em The case for books, o futuro do presente é uma aposta ao fracasso do universalismo do passado.
Notas
1 As traduções do texto de Robert Darnton foram feitas pelo autor da resenha, o qual agradece ao prof. dr. Luiz Sávio de Almeida a leitura crítica de todo este texto.
2 Cf. DARNTON, Robert. “What is the history of books?” Revisited. Modern Intellectual History , Cambridge: Cambridge University Press, v.4, Issue 3, p.495-508, 2007. [ Links ]
André de Melo Araújo – Kulturwissenschaftliches Institut Essen (KWI). Institute for Advanced Study in the Humanities, Goethestr. 3145128 Essen Germany. E-mail: andre_meloaraujo@yahoo.com.br.
[IF]A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (RBH)
ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 204p. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.
A publicação de A experiência do tempo, de Valdei Lopes de Araujo, deve ser vivamente aproveitada. Trata-se de um livro rico, digno de se encontrar nas estantes dos interessados em história política e intelectual do Brasil no século XIX, mas também nas bibliotecas dos estudiosos da história da historiografia e – por que não? – da filosofia da história. Melhor ainda: pode despertar no estudioso de vocação empírica o interesse pelas questões filosóficas mais abstratas, bem como mostrar à mente mais especulativa e reflexiva que os conceitos podem encontrar correspondência na realidade histórica mutável.
Valdei Lopes de Araujo é professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde integra o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). O livro é fruto de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, resultante de pesquisa orientada por Luiz Costa Lima. A refinada abordagem feita por Valdei Araujo se explica, sem nenhum demérito para a originalidade da obra, em parte pela formação obtida sob orientação de um intelectual que sempre estimulou a reflexão teórica e foi um dos responsáveis pela difusão da hermenêutica literária no Brasil, e que resulta na grande contribuição do livro de Valdei Araujo para o debate teórico e historiográfico. Seu mérito, portanto, consiste na sofisticada incorporação de discussões teóricas desenvolvidas na Alemanha na segunda metade do século XX, sobretudo aquelas herdeiras e críticas da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, autor que influenciaria tanto o historiador Reinhart Koselleck como um teórico e crítico literário do porte de Hans-Ulrich Gumbrecht. Sente-se a influência de Koselleck e Gumbrecht no texto de Valdei Araujo: do primeiro, a preocupação com a história conceitual, gênero no qual o autor se sai extremamente bem, dando bom exemplo de como os conceitos não são reflexos polidos da vida histórica, mas a própria forma pela qual esta se torna inteligível. Destarte, o conceito é lugar de experiência, e não de distanciada e desinteressada cognição por parte de intelectuais diletantes. Nada melhor que uma boa obra de história dos conceitos para que o estudioso da história do Brasil e da historiografia brasileira tenha a chance de manchar a imagem homogênea do intelectual brasileiro retórico e desocupado, que se preocupava com o mundo das letras somente por distração e ornamento. Mas o conceito – e aqui se percebe a influência de Gumbrecht – é também fruto de uma radical presença histórica, situada circunstancialmente. O livro, portanto, é profundamente feliz em se apropriar de textos teóricos como os de Koselleck e Gumbrecht sem, em momento algum, cair no erro de fazer de sua pesquisa uma exposição de conceitos importados, uma aplicação que viria meramente a confirmar o já sabido. Assim, embora a obra lide com fontes em grande parte já analisadas por outros historiadores, a maneira de lidar com elas é bastante original e criativa.
O livro inicia-se com uma questão fundamental para se pensar não somente a independência do Brasil, mas o que ela representa categorialmente como experiência moderna. Como diz Valdei Araujo em suas considerações finais: “A relação com o tempo e com o passado estava ainda condicionada, de um lado, por elementos clássicos da imitação e do exemplo e, de outro, por um entendimento geral do universo como a repetição de leis eternas e eventos cíclicos” (p.185).
A primeira parte de A experiência do tempo, denominada “A História do Sistema”, basicamente descreve e analisa a trajetória um tanto trágica de José Bonifácio de Andrada e Silva, o qual, tomando por base ainda uma visão cíclica de história, concebia o sentido da história do Brasil a partir da regeneração. Regeneração é possível somente se for entendida como a etapa subsequente à decadência, termo fundamental para a compreensão morfológica das ciências naturais. A propósito, é instigante perceber a semelhança do debate intelectual brasileiro sobre a modernização com a discussão travada no espaço alemão no último quarto do século XVIII, como demonstram as pesquisas de Peter Hans Reill.1 Porém, “regeneração”, para Bonifácio, se implicava a recuperação da essência de ser português, ainda que transplantada para o Brasil, não significava um retorno. Para usar os termos do autor, ao “espelhar” a história de Portugal, a história do Brasil abria uma possibilidade em sua busca de consciência, a de ser “uma outra história que já não podia mais ser de Portugal” (p.63). É esta a dialética delineada por Valdei Araujo, a do “tempo como repetição” (título do primeiro capítulo) para o “tempo como problema” (título do segundo capítulo). A tentativa da natural superação da decadência abria, portanto, a fresta para o projeto moderno. Afinal, a regeneração dar-se-ia em uma natureza virgem, pura, plenamente visível em seus princípios criadores, a qual teria sua potencialidade moldada pela ciência.2 O dilema da singularidade da história brasileira, posto pelo autor desde Bonifácio, é detidamente desdobrado no exame da possibilidade da existência histórica da língua e da literatura brasileiras, que deveriam ser construídas tendo por base o eixo clássico greco-latino, mas sem fazer dessa base um modelo a ser meramente copiado.
A segunda parte do livro (“O Sistema da História”), que compreende um excurso e dois capítulos adicionais, trata justamente da maneira pela qual os intelectuais brasileiros enfrentaram o incômodo gerado pela necessidade incontornável de se afirmar a singularidade nacional. Incômodo? Necessidade? Sim. O autor afirma-os muito precisamente: “As teorias disponíveis que poderiam explicar a constituição de novas formas, sejam animais, sejam políticas, estavam muitas vezes fundadas na ideia de degeneração” (p.126), e conclui, demonstrando a dimensão do problema, que, sendo verdadeiro o modelo organicista, “a mudança só poderia ser entendida como aperfeiçoamento, regeneração ou degeneração. O mesmo não seria válido então para as nações? Como entender o surgimento de uma nova nação?” (p.126).
Valdei Araujo apresenta, então, os esforços dos intelectuais envolvidos com a revista Nitheroy (como Domingos José Gonçalves de Magalhães) e com a própria fundação do IHGB. Se na primeira se percebia a tonalidade romântica com a qual se coloriria a singularidade nacional em fase de afirmação (mas na qual a história pertencia a um grupo amplo das “letras”), no documento fundador do IHGB, de 16 de agosto de 1838, percebe-se a presença de traços marcantes daquilo que – lembra muito bem o autor – Arnaldo Momigliano considerou fundamental para a caracterização da historiografia moderna, a saber, a conjunção da tradição antiquária e erudita, a preocupação com o sentido filosófico da história, e, por fim, a narrativa. Para Valdei Araujo, o primeiro traço é muito mais visível que os dois subsequentes, principalmente o terceiro, ainda muito discreto.
Outra faceta da modernidade ressaltada pelo autor, tão importante quanto o estabelecimento das bases da pesquisa histórica (mas dela decorrente), reside na abertura da possibilidade da experiência no lugar da imitação. O fato, assim, não é a recapitulação de um exemplo já feito, registrado, ensinado e conhecido, mas, sobretudo, a expressão da individualidade de uma época. O fato, portanto, é impensável dentro do modelo cosmológico ou exemplar, mas torna-se cognoscível em sua assimilação pela pesquisa antiquária e erudita no escopo da tentativa de afirmação da singularidade nacional.
A singularidade, de alguma forma, operava uma interessante transformação semântica: a degeneração deixava lugar para a consciência da finitude, para a consciência de uma experiência tipicamente moderna – a sensação da transitoriedade de todas as experiências. O projeto inicial do IHGB era, mostra muito bem Valdei Araujo, marcado por uma ambiguidade essencial: distante do organicismo que animara um José Bonifácio, o mundo letrado que girava em torno ao Instituto não respirava ainda o ar do pensamento evolucionista, naquele momento o único capaz de, para me apropriar de uma expressão de Henry James, ser o fio capaz de unir todas as pérolas. Como diferenciar as épocas da história do Brasil? Como organizar os fatos?
O livro de Valdei Araujo cumpre papel importante no ambiente atual de discussões teóricas e historiográficas, bastante marcadas pelo embate entre o ceticismo quase cínico dos ditos “pós-modernos” e os racionalistas. Afinal, Experiência do tempo mostra que a historiografia brasileira dá uma guinada fundamental em um momento de crise de orientação – para usar um termo de Jörn Rüsen. Portanto, não há problema algum em se escrever história em tempos de incerteza. De alguma maneira, sempre foi assim e esse foi o desafio sempre respondido, ainda que de muitas maneiras diferentes, pelos historiadores.
Notas
1 Cf. REILL, Peter Hans. Vitalizing nature in the Enlightenment. Berkeley: University of California Press, 2005; [ Links ] ______. Die Historisierung von Natur und Mensch. Der Zusammenhang von Naturwissenschaften und historischem Denken im Entstehungsprozess der modernen Naturwissenschaften. In: KÜTTLER, Wolfgang; RÜSEN, Jörn; SCHULIN, Ernst. Geschichtsdiskurs Band 2: Anfänge modernen historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1994. [ Links ]
2 Nesse sentido, permito-me uma comparação. José Bonifácio lembra muito o Goethe que viaja pela Itália. Na península, encontra a serenidade juvenil e a naturalidade de cuja falta tanto se ressentia em Weimar, onde já era um grande nome intelectual, sufocado pelas formalidades cortesãs. Vale lembrar que ambos – Bonifácio e Goethe – dedicavam-se largamente à ciência natural. Para uma visão da concepção de natureza em Goethe, ver MOLDER, Maria Filomena. O Pensamento morfológico de Goethe. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995. [ Links ]
Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto II do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121, Bloco H, sala 1H42. 38400-902. Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: pedro.caldas@gmail.com.
[IF]Os índios na história do Brasil – ALMEIDA (RBH)
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p. Resenha de: GARCIA, Elisa Frühauf. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.
Até muito recentemente, os índios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados à condição de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização, seu destino inexorável era desaparecer à medida que a sociedade envolvente se expandia. Nas últimas duas décadas, porém, significativas mudanças teórico-metodológicas, associadas a criteriosas pesquisas empíricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva sobre as populações nativas.
A trajetória da inserção dos índios em nossa historiografia, contemplando as mudanças conceituais e os avanços obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os índios na História do Brasil. A publicação, inserida na coleção FVG de Bolso, Série História, sem dúvida será de grande valia àqueles que têm interesse na temática, cumprindo sua função de divulgação do conhecimento produzido na academia. Além disso, o lançamento também ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obrigatoriedade do ensino da história indígena nas escolas de nível fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas. Diante dessa exigência, muitos professores encontram dificuldades para ministrar tal conteúdo, pois ele ainda não foi devidamente inserido nos cursos de graduação em história do país.
A autora inicia o livro apresentando a mudança no lugar ocupado pelos índios na história do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos “bastidores” ao “palco”. Debatendo em linhas gerais as principais modificações teórico-metodológicas que possibilitaram tal mudança, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram fundamentais para uma alteração no paradigma sobre as ações dos índios em diferentes conjunturas. Como demonstrado de forma clara e concisa no texto, a aproximação entre a história e a antropologia, ancorada no diálogo entre os profissionais dessas áreas, possibilitou que as antigas noções de cultura e identidade, percebidas como “fixas e imutáveis” (p.21), passassem a ser consideradas como fruto de processos históricos, resultado das interações dinâmicas dos diferentes agentes envolvidos em situações específicas.
Articulando as questões teórico-metodológicas às pesquisas recentes na temática, a autora aborda aspectos fundamentais para a compreensão do lugar dos índios na história do Brasil, começando com uma discussão sobre a dinâmica das guerras. Sem negar a sua importância para os grupos nativos, como demonstrado por autores como Florestan Fernandes, Regina Celestino enfatiza a impossibilidade de analisá-las sem referência ao seu contexto, pois, a partir dos primeiros contatos e das disputas pelo território americano, as guerras indígenas passaram a convergir com as guerras coloniais. Associada às guerras e à construção da sociedade colonial, a autora enfrenta ainda a difícil questão da formação das etnias, uma das grandes discussões atuais nos estudos sobre os povos indígenas. Pesquisas sobre o surgimento e a operacionalidade dos etnônimos desenvolvidas em várias regiões das Américas, inclusive no Brasil, demonstraram como muitas etnias, antes consideradas anteriores aos contatos com os europeus, originaram-se no decorrer do processo de conquista e das diferentes formas de inserção dos índios na sociedade colonial. Para exemplificar a questão, a autora utiliza como base os dados de sua tese de doutorado, demonstrando como os temininós, aliados fundamentais dos portugueses na Guanabara, provavelmente nada mais eram do que uma dissidência dos tamoios consolidada com o processo de conquista.1
Ao analisar a formação dos etnônimos, a autora enfatiza como eles estavam entrelaçados com o domínio dos povos indígenas por parte do Estado colonial. A criação e cristalização de etnônimos e a rígida separação dos índios entre aliados e inimigos eram uma forma de classificar a população nativa e viabilizar o empreendimento colonial através da sua alocação em determinados lugares na hierarquia social. Regina Celestino, porém, demonstra muito bem como esse processo era mais complexo, pois aborda ainda os mecanismos através dos quais os índios se apropriaram dessas categorias, utilizando-as como base para elaborar as suas próprias estratégias para interagir com a sociedade colonial. Afinal, como apontou John Monteiro, “a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias”.2
Um dos espaços por excelência de inserção dos índios na sociedade colonial e, consequentemente, de redefinição de suas identidades e culturas eram os aldeamentos, analisados com propriedade pela autora no capítulo quatro. Até muito recentemente, nossa historiografia abordava os aldeamentos pela ótica do Estado colonial, dos moradores ou dos missionários. Eles eram então definidos como espaços de agrupamento de índios de origens diversas, que deveriam servir aos intuitos coloniais, possibilitando tanto a concentração da mão de obra disponível, a ser empregada em atividades variadas, quanto a implementação do projeto de catequização dos nativos. Em tal perspectiva, os índios eram sempre objeto de diferentes políticas e de disputas entre determinados agentes, mas nunca sujeitos atuantes na construção do espaço dos aldeamentos. Para a autora, porém, eles devem ser considerados também a partir das motivações dos nativos. Pesquisas recentes permitem afirmar o seu interesse em tais estabelecimentos, pois eles “participaram de sua construção e foram sujeitos ativos dos processos de ressocialização e catequese” ocorridos naqueles espaços (p.72).
Outra importante discussão contemporânea abordada no livro, especialmente nos capítulos quatro e cinco, é a relação dos índios com as diretrizes coloniais, articulando políticas indígenas com políticas indigenistas. Novamente, Regina Celestino redimensiona certos pressupostos historiográficos. De maneira geral, a política indigenista da Coroa portuguesa era apresentada como inoperante, na medida em que não se fazia valer nas práticas coloniais, especialmente em relação à condição de liberdade jurídica outorgada à maioria dos índios, ameaçada diante das estratégias dos moradores interessados nessa mão de obra. Como já assinalado por Thompson, porém, mais do que um mero instrumento de dominação, a legislação também se configura como um campo de lutas.3 Assim, tal como outros sujeitos históricos, os índios, ainda que em posição subalterna, aprenderam a utilizá-la em prol dos seus interesses. Como muito bem demonstrado pela autora, se é fato que a legislação indigenista colonial era aplicada de acordo com conflitos e negociações envolvendo vários agentes (principalmente missionários, funcionários reais e moradores), é imprescindível considerar o papel dos índios nesse processo. Em tal discussão, adquire importância fundamental o capítulo cinco, sobre a aplicação das políticas pombalinas, cujas linhas gerais se orientavam à extinção da categoria dos índios aldeados, promovendo a sua diluição no conjunto da população. Na análise dessa legislação, uma das mais pesquisadas pelos historiadores da temática, fica evidente como a constante negociação com os índios foi uma das marcas da construção e manutenção da sociedade colonial.
No último capítulo a autora aborda o século XIX, enfocando as diferenças entre as políticas imperiais em relação aos índios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional então em construção. Os índios do presente, especialmente aqueles que habitavam as aldeias fundadas durante o período colonial, deveriam ser rapidamente integrados ao conjunto da população, consonante às linhas anteriormente estabelecidas por Pombal. Já os índios ainda não inseridos plenamente na sociedade imperial, comumente chamados “selvagens”, deveriam ser aldeados, também com o objetivo de preparar a sua diluição no conjunto da população, ou implacavelmente combatidos, caso não aceitassem o aldeamento e resistissem à expansão das frentes de ocupação. Assim, o Império projetava uma população homogênea, sem espaço para a permanência dos índios como grupo diferenciado. Reservava, porém, lugar de destaque aos nativos no passado da jovem nação. Apesar de significativas divergências, prevaleceu entre os intelectuais envolvidos na construção da identidade nacional a proposta de atribuir aos índios importante papel no momento fundador do Brasil, simbolizado na sua união com os portugueses.
Ao abordar o lugar dos índios na história do Brasil contemplando diferentes conjunturas, interesses e agentes, Regina Celestino oferece ao leitor uma importante iniciação na temática. Após a leitura, ficará evidente que não se trata apenas de perceber as histórias específicas de diferentes grupos nativos, certamente importantes, mas de considerá-los agentes fundamentais no processo de construção da sociedade colonial e pós-colonial. Apesar de terem enfrentado situações extremamente difíceis e uma série de restrições jurídicas e sociais, eles ajudaram também a delinear os limites e possibilidades daquelas sociedades.
Notas
1 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]
2 MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP), 2001, p.58. [ Links ]
3 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.358. [ Links ]
Elisa Frühauf Garcia – Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus Gragoatá. Bloco O, 5º andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. E-mail: elisafg@terra.com.br.
[IF]História e historiadores / Revista Brasileira de História / 2010
Neste número 59 inaugura-se uma nova fase da Revista Brasileira de História, com a edição exclusivamente digital e também com sua versão em inglês. Esse novo formato, no entanto, mantém o compromisso de dar continuidade à linha editorial dos números anteriores, e de ao mesmo tempo enfrentar os desafios que ora se apresentam.
Essa mudança representa uma nova etapa na história da RBH. Nossa tradição historiográfica de valorização dos textos e arquivos em papel nos faz temerosos desses novos suportes da escrita. No entanto, as aceleradas transformações sofridas pelo mercado editorial na atualidade implicam uma tendência crescente à digitalização dos periódicos. A publicação eletrônica permite viabilizar a utilização da tecnologia com vistas ao enriquecimento da produção historiográfica, ou seja, abre-se a possibilidade de uma escrita da história que vai além das palavras e passa a compor narrativas com imagens, hipertextos, ambientes em 3D e tudo mais que o suporte digital puder oferecer aos pesquisadores. Tal mudança tem ainda por objetivo a internacionalização da produção historiográfica brasileira, além da diminuição dos custos e das dificuldades logísticas relacionadas ao armazenamento e à distribuição.
Neste número, o dossiê “História e Historiadores” reuniu cinco artigos que apresentam uma discussão acerca do papel e das concepções de história e de historiadores que marcaram a historiografia brasileira. O texto de Rebeca Gontijo tece relações entre a trajetória de Capistrano de Abreu em busca de um lugar para si mesmo, num espaço social determinado, e sua trajetória em busca de uma interpretação sobre o Brasil.
O texto de Maria da Glória de Oliveira analisa no Brasil oitocentista a constituição de um regime historiográfico com pretensões científicas. O objetivo central do artigo é analisar as figurações que definiram qualidades e competências específicas para o estudo e a escrita da história, notadamente nas biografias de alguns “homens de letras”, publicadas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ao longo do século XIX.
O artigo de Vânia Moreira visa evidenciar a importância da historiografia como ferramenta organizadora dos direitos indígenas durante a estruturação do regime imperial no Brasil. Merecem destaque as divergências historiográficas entre defensores e detratores da presença indígena na história nacional e a conexão dessa discussão intelectual com a política indigenista imperial.
Roquinaldo Ferreira analisa o advento, a consolidação e a transformação dos Estudos Africanos nos Estados Unidos entre a década de 1960 e os dias atuais. Seu artigo tem como propósito discutir o contexto acadêmico, político e geopolítico que lastreou a criação desse campo de estudos. Para tanto, enfatiza as transformações na sociedade americana nos anos 1960, sobretudo o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos, assim como o contexto internacional, particularmente a Guerra Fria.
Arthur Assis oferece uma interpretação do livro Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda, que reconta a história política brasileira da segunda metade do século XIX. Baseando-se em conceitos desenvolvidos pelo teórico da história Jörn Rüsen, o autor detém-se particularmente em três aspectos do referido livro: os artefatos teóricos que presidem a interpretação da crise da Monarquia brasileira, os padrões narrativos que dão suporte à constituição de sentido sobre essa experiência do passado, bem como o contexto atual de orientação que serviu de parâmetro de significado / sentido à interpretação e à representação.
Encerrando o dossiê, Mônica Jinzenji e Ana Maria Galvão analisam os diversos olhares sobre a história do Brasil produzidos e apropriados em três obras historiográficas da primeira metade do século XIX: History of Brazil, de R. Southey, Histoire du Brésil, de A. Beauchamp, e o conteúdo de história do Brasil publicado no semanário O Mentor das Brasileiras. A análise dessas obras permite verificar os trabalhos de tradução e adaptação dos textos e de transformação nas materialidades dos suportes realizados por seus autores.
Os demais artigos do número focalizam temáticas variadas. O texto de Jacqueline Hermann procura mapear, com base na vida e na trajetória política de d. Antônio, Prior do Crato, algumas questões para o estudo da história política e cultural ibérica na virada do século XVI para o XVII.
José Luís Cardoso escreve sobre as motivações que estiveram na origem da criação do primeiro Banco do Brasil, instituído em 1808, e as razões do fracasso no cumprimento da sua missão.
Marcelo Henrique Dias trata os processos de extração, beneficiamento e comércio de madeiras de lei no território da capitania de Ilhéus, sobretudo a partir do momento em que a Coroa portuguesa passou a explorar diretamente esse negócio. A análise recai sobre a dimensão, os mecanismos administrativos, os destinos do comércio e sua importância no conjunto da economia regional.
Denise Moura apresenta em seu texto os primeiros resultados de uma pesquisa sobre o comércio costeiro e suas relações com o funcionamento do sistema colonial e com o contexto da Independência.
Por último, Rodrigo Patto Sá Motta em “Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira” analisa a atuação da United States Agency for International Development (Usaid) no Brasil: a assessoria para treinamento e modernização técnica das corporações policiais. O texto procura sintetizar os aspectos mais importantes do funcionamento desse programa – que no Brasil esteve em vigor entre 1960 e 1972 -, buscando compreender os objetivos de ambos os lados envolvidos, com o propósito de evitar apreensões simplificadas.
Finalizamos este número da RBH com três resenhas que apresentam ao leitor textos relevantes para a renovação do debate historiográfico. André de Melo Araújo resenhou a obra The case for books: past, present and future, de Robert Darnton. Pedro Spinola apresenta o livro de Valdei Lopes de Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira,e Elisa Garcia assina a resenha sobre a obra de Maria Regina Celestino sobre Os índios na história do Brasil.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, jun, 2010. Acessar publicação original [DR]
Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas – SILVA (RBH)
SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 293p. Resenha de: BASSO, Rafaela. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.
Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas, escrito por Flávio Marcus da Silva, traz uma contribuição significativa para o campo da historiografia sobre Minas Gerais colonial, na medida em que analisa a dinâmica do abastecimento alimentar na região no século XVIII, a partir de uma perspectiva política. Nesse sentido, a proposta do historiador é atentar para as diferentes estratégias empreendidas pela Coroa Portuguesa para garantir o acesso da população aos gêneros alimentares de primeira necessidade e evitar qualquer desordem pública. Porém, acreditamos que essa não é a única importância da obra, uma vez que o estudo desenvolvido por ela perpassa várias instâncias da sociedade mineradora, buscando decifrá-la e repensá-la não só no âmbito geral da política e da economia, mas também no cotidiano, através do estudo da alimentação. Vejamos por quê.
O problema da instabilidade do mercado de víveres, no que diz respeito ao suprimento regular da população, era frequente em várias regiões da América Portuguesa. Ainda mais na sociedade mineira, que nesse período estava em seus primórdios e sem estrutura para receber o contingente de pessoas que para lá migravam, vindas de várias partes, inclusive da metrópole, em busca de ouro e pedras preciosas. Não foram raros os problemas referentes à escassez, à má qualidade e à carestia dos gêneros alimentares, os quais afligiam a população dessa região na primeira metade do século XVIII e geravam conflitos com as autoridades locais. Esses conflitos criavam um ambiente propício para a sublevação dos povos, o que de fato ocorreu algumas vezes no período. O livro analisa, portanto, a questão do abastecimento, cujo papel era fundamental para garantir
o êxito da administração na região e também para aquietar a população. Para se embrenhar nas tessituras da cultura política metropolitana, o his toriador revisita obras de autores como Adam Smith, E. P. Thompson, John Bohstedt, Adrian Randall e Andrew Charlesworth, que também se dedicaram ao estudo das políticas intervencionistas no âmbito do abastecimento alimentar. Esse debate forneceu ao autor acesso a conceitos explicativos, tal como o de economia moral extraído da obra A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, de E. P. Thompson. Nesse trabalho, o historiador inglês aponta como as intervenções do poder público na comercialização de gêneros de primeira necessidade na Inglaterra moderna foram resultado de uma série de motins da população contra a fome generalizada no período. De acordo com Thompson, as revoltas eram motivadas por uma visão “consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres”. Tal postura estaria relacionada com noções que a comunidade tinha sobre o que era direito e dever do Estado, as quais seriam legitimadas por antigas tradições.
Deve-se ressaltar que essa categoria analítica será reavaliada por Flávio Marcus da Silva, tendo em vista dar conta da especificidade da realidade colonial de Minas. Para ele, o conceito deve ser mais abrangente a fim de esmiuçar
o equilíbrio de forças estabelecido entre governantes e classes populares, mediante um acordo implícito para garantir o cumprimento das obrigações sociais. Nesse ponto entra em cena a teoria corporativa do Estado, de António Manuel Hespanha. De acordo com essa teoria, a sociedade portuguesa – incluindo também suas possessões coloniais – deveria ser entendida como um organismo onde cada indivíduo tinha uma função para o bom funcionamento do corpo social e político. Nesse sentido, o soberano ocupava a posição da cabeça do “corpo”, cuja função deveria ser a de garantir o cumprimento da justiça mantendo a ordem e a harmonia dentro de seus domínios.
O uso dessas noções, em seu arcabouço teórico, permitiu a Flávio Marcus da Silva analisar as seguintes estratégias empreendidas pela Coroa para sanar os problemas advindos da crise de subsistência: a concessão de terras para a agricultura, a taxação dos gêneros de primeira necessidade, a fiscalização dos pesos e medidas, bem como a preocupação com a manutenção das estradas. Por desenvolver essa análise, acreditamos que o autor se propõe a romper com interpretações que, através de uma perspectiva política, trabalham com a dicotomia entre colonizadores e colonizados, como se não houvesse interesses comuns entre ambas as partes. Tais interpretações seriam advindas de uma visão que entende a colonização portuguesa somente como um vasto empreendimento predatório, voltado a explorar a colônia para atender os interesses da Coroa, sejam eles econômicos, políticos ou religiosos, entre outros. O historiador, por sua vez, quer trabalhar de uma nova maneira a relação entre colônia e metrópole, pois a pesquisa por ele desenvolvida o levou à elaboração da tese de que uma das preocupações centrais da administração em Minas era garantir a subsistência dos povos.
Nesse contexto não podemos deixar de mencionar que Flávio Marcus da Silva não se centra apenas nas ações das autoridades, pois ele nos possibilita visualizar a atuação dos mais diversos agentes históricos envolvidos, desde a produção e a circulação até o consumo dos alimentos. O que nos chama atenção é a negociação desses sujeitos com as autoridades e as relações sociais mantidas entre ambas as partes. De acordo com o autor, os habitantes de Minas perceberam que uma vez o Estado estando estabelecido por aquelas partes, sua obrigação seria garantir a subsistência da população. Além do mais, havia a noção da vulnerabilidade do aparelho administrativo metropolitano e o temor de que a população se amotinasse contra a falta de víveres. As autoridades, desta forma, não poupariam esforços para evitar conflitos, pois haveria o receio de que esses fossem duradouros, a ponto de ameaçar a estabilidade do controle sobre a área.
O que se pretende mostrar é a ação dos mais diversos indivíduos pressionando as autoridades por meio de ameaças, protestos e pequenas sublevações, a fim de que atitudes fossem tomadas com relação ao problema do abastecimento alimentar. Mesmo que na maioria dos casos as ações dos moradores não objetivassem solapar o domínio dos portugueses na região e sim firmar as bases legítimas desse domínio, sua postura política não pode ser deixada de lado, uma vez que demonstram a capacidade do povo de se organizar e defender seus interesses. Nessa proposta, Flávio Marcus da Silva analisa ainda o papel de indivíduos que, de certa forma, representaram um empecilho para o estabelecimento eficaz das políticas de controle sobre a dinâmica do mercado alimentar, tais como proprietários de terras, quilombolas, mercadores, negras de tabuleiro e atravessadores.
Podemos propor que o livro, além de trazer um olhar inovador sobre a política colonial empreendida em Minas, também traz contribuições no que diz respeito à maneira como aborda a economia local. O autor, influenciado por trabalhos que buscam repensar o papel da economia interna dentro da sociedade colonial,1 relativiza algumas ideias consagradas acerca da pobreza da Capitania, a qual estaria ligada ao exclusivismo da extração mineral e à lógica externa desse setor econômico. Dessa forma, ele se opõe à interpretação que relega para segundo plano a estrutura produtiva interna e a comercializa ção alimentar da região, preocupando-se em acompanhar o dinamismo da produção e do comércio interno. Para tanto, o diálogo com obras mais recentes sobre a historiografia de Minas Gerais2 é também fundamental, visto que elas apontam para uma diversificação desses setores, através de uma rede de abastecimento que procurava atender a demanda crescente dos moradores da zona aurífera. Contexto este que existia desde o início dos Setecentos, contrariando a imagem consagrada em outros estudos, segundo a qual a produção alimentar só teria ganhado espaço com a crise da mineração, no final do XVIII.
Ademais, acreditamos que a importância da obra Subsistência e poder reside no fato de que nela a alimentação é utilizada como chave para o entendimento das relações estabelecidas entre colônia e metrópole. Não é de hoje que a alimentação tem chamado atenção dos historiadores. Tal interesse veio se desenvolvendo desde o início do século passado, porém esse campo ainda é muito recente e pouco explorado pelos historiadores brasileiros. Acreditamos que ao trabalhar na perspectiva da História da Alimentação, a obra de Flávio Marcus da Silva é uma das contribuições que surgiram nos últimos anos para suprir essa lacuna.
O autor, ao se mover nessa perspectiva, faz uso dos mais variados enfoques para adentrar seu objeto de estudo, tais como o econômico, o social e o cultural. A presença do primeiro se manifesta na medida em que Flávio Marcus da Silva se preocupa com os problemas referentes à economia de subsistência e à sua dinâmica interna, abrangendo desde a produção até o consumo dos alimentos e sua comercialização com outras partes. O enfoque social se faz presente, visto que são abordados no livro os temas da fome e da desordem social, provenientes dos problemas de abastecimento, bem como a questão da atuação “estatal”, cujo objetivo era sanar o problema através de políticas públicas. Quanto ao enfoque cultural, apesar de não ser uma preocupação do autor e de infelizmente ser o menos explorado pelos trabalhos na área de História da Alimentação, visualiza-se sua presença ainda que tímida no livro, pois temos alguns indícios do cotidiano desenvolvido em torno da alimentação. O autor nos fornece um panorama dos hábitos alimentares daquela região, mostrando alimentos consumidos, bem como alguns de seus usos.
A obra Subsistência e poder de Flávio Marcus da Silva traz várias contribuições para os estudos históricos sobre Minas Colonial, na medida em que reflete sobre aspectos da colonização portuguesa empreendida naquelas terras. Dentre esses aspectos destaca-se a oposição à ideia de pobreza generalizada, decorrente do exclusivismo da indústria mineradora. Tal exclusivismo teria consumido todos os esforços dos colonos e relegado a produção dos gêneros de subsistência para um segundo plano. Além de apontar a importância desta última produção para o mercado interno, o autor apresenta outra face da colonização, diferente daquela intransigente e alheia aos problemas que afetavam a população. Nesse sentido, ao buscar penetrar na sociedade mineira partindo das tensões que a constituíam, ele move constantemente as fronteiras do econômico, do político e do social, apresentando um estudo revelador de toda uma complexa rede de relações que permearam tal sociedade.
Notas
1 Dentre essas obras podemos citar os trabalhos pioneiros de LINHARES, Marie Yeda. História da agricultura brasileira, combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1982; [ Links ] e de LAPA, José Roberto do Amaral. Economia colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, [ Links ] bem como outros que os seguiram, como o de FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça do Rio de Janeiro 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. [ Links ]
2 GUIMARÃES Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988; [ Links ] FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999; [ Links ] e MENESES, José Newton Coelho de. O Continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina (MG): Maria Fumaça, 2000. [ Links ]
Rafaela Basso – Mestranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Departamento de História. Rua Cora Carolina, s/n – Campinas – SP. E-mail: rafaelabasso28@gmail.com.
[IF]Cultura escrita: séculos XV a XVIII – CURTO (RBH)
CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 438p. Resenha de: DURAN, Maria Renata da Cruz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.
O livro Cultura escrita: séculos XV a XVIII, de Diogo Ramada Curto, é categórico em sua proposta: “orientado analiticamente … desafia toda e qualquer forma de modelação dos sistemas de comunicação, visando trazer para o centro da análise a instabilidade criativa que se encontra presente na intervenção de cada agente (autores, impressores, mecenas, censores, leitores, etc.)” (p.12).
Seu autor, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Escola dos Altos Estudos, nas universidades de Brown e Yale, no King’s College e no Instituto Universitário Europeu, funda a proposta ora apresentada na prerrogativa de que “tais estruturas podem ser vistas como definindo lugares onde se enraízam regimes de práticas” (p.14). Tal constructo nos é apresentado por meio de 12 capítulos, dispostos segundo uma lógica em que as fontes de pesquisa, a noção de história, os agentes do processo, seu modo de produzir e seu tipo de produção são concatenados em textos já conhecidos do público europeu, seja por meio de palestras ou de artigos. Separados, em sua escrita, por cerca de dez anos, os ensaios serão abordados pontualmente.
No primeiro capítulo, intitulado “Gravura e conhecimento do mundo em finais do século XV”, Curto procura abstrair do estudo do modo de produção dos livros que circularam na Alemanha, na Itália e na Península Ibérica a longevidade da combinação entre textos e imagens impressas, e as interferências entre a forma de transmissão de uma mensagem e o sentido dos conteúdos transmitidos.
No segundo capítulo, “A língua e a literatura no longo século XVI”, o foco são as “questões que supõem a possibilidade de determinar a vitalidade do uso social de uma língua” (p.58), por meio de um estudo sobre o estabelecimento de hierarquias em luta pela imposição de discursos legítimos.
No terceiro capítulo, “Historiografia e memória no século XVI”, o autor se volta para a corte de d. João II, propondo uma sondagem acerca da genealogia das obras no âmbito cotidiano e ordinário de sua existência.
No quarto capítulo, “Orientalistas e cronistas de Quinhentos”, Curto pretende demonstrar o vínculo entre feitos e obras a partir de um sentido comum, por ele afixado nas lógicas de família e de parentesco.
No quinto capítulo, “Uma tradução de Erasmo: Os louvores da parvoíce“, Curto reproduz palestra proferida no colóquio “Erasmo na Cultura Portuguesa”, realizado pela Academia de Ciências de Lisboa em maio de 1987.
No sexto capítulo, “Uma autobiografia de Seiscentos: a Fortuna de Faria e Sousa”, o autor repassa a figura do bricoleur, apontando registros autobiográficos, discursos confessionais, relatos picarescos e memoriais de serviços como interessantes fontes de pesquisa para o estudo dos homens de letras. Para mais, recorre à noção de tomada de consciência para traçar o percurso e distinguir a consciência de si de homens como Faria e Sousa.
No sétimo capítulo, “Grupos de rapazes, violência e modelos educativos”, o descentramento em relação aos processos de organização social, a valorização da esfera privada e o fim de “uma determinada concepção de espaço público” compõem o texto.
No oitavo capítulo, “Mercado e gentes do livro no século XVIII”, Ramada Curto é diligente, procurando nos arquivos notariais, comerciais e religiosos as referências pessoais das “gentes do livro” residentes em Portugal. O que o autor, outrora editor da coleção Memória e Sociedade da Difel portuguesa, acompanha são as mudanças na forma de trabalhar do escritor ocidental, o que encontra é o estabelecimento de uma relação com um público alargado e com novos tipos de mecenas.
No capítulo nono, a presença da corte portuguesa nos domínios da cultura escrita lhe permite traçar sua noção de iluminismo. Com “D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego”, apresentam-se “numa lógica de relações claramente cortesãs” as tensões de uma época em que coabitavam figuras como d. Rodrigo e Pina Manique, protagonistas do excerto.
No décimo capítulo, “Literaturas populares e de grande circulação”, o historiador português prossegue na companhia dos documentos notariais, mas, agora, sai das casas e vai para as ruas, procurando valorizar o espaço urbano “a partir dos significados atribuídos a cada espaço particular, bem como às suas respectivas relações” (p.299).
Em “Notas para uma história do livro em Portugal” e em “Da tradição bibliográfica à história do livro” o autor problematiza as pesquisas lusófonas sobre o livro. Primeiro apontando a subalternização da produção e da divulgação de novos conhecimentos em função da cristalização de algumas explicações; depois, afirmando que suas observações têm “a ambição exclusiva de poder funcionar como guia crítico de futuras investigações” (p.414).
Nessa construção de uma “história dos sistemas de conhecimento imperiais” tendo em vista o modo como nela se desencadearam “novas perspectivas em relação ao estudo da cultura escrita” (p.17), Curto procura orientar seu pensamento a partir de dois modelos historiográficos: o de Lucien Febvre, com seu Rabelais “vivendo numa época cujas estruturas mentais não lhe permitiam pensar sequer no problema da descrença”, e o de Carlo Ginzburg, com seu Menocchio “que, uma vez interrogado pelos inquisidores, demonstrava a sua originalidade em fabricar uma visão própria do mundo” (p.14). Não se trata, todavia, de optar por um desses rumos, mas, sim, de “reforçar um ponto de vista capaz de explorar as diferentes dinâmicas sociais presentes mesmo quando se trata de sociedades altamente hierarquizadas e caracterizadas – como sugeriu Vitorino Magalhães Godinho – por diversos bloqueios” (p.15).
Do mais, que Ramada Curto traga novas questões e novas fontes para enriquecer o estudo dos domínios da cultura escrita é tão certo quanto sua proposta de movimentar a historiografia lusófona. Acerca dessas provocações e do lançamento de Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII), editado pela Unicamp em 2009, deu-se um encontro ocorrido no dia 23 de outubro de 2009, no IFCH da Unicamp, aqui descrito para melhor esclarecer o lugar do autor na historiografia contemporânea.
No encontro, Silvia Hunold Lara apresentou e Alcir Pécora debateu um texto de Ramada Curto pautado pela discussão do barroco, da cultura letrada e do período compreendido entre o final do século XVI e o início do XVII. Em sua fala, o historiador português ponderou que a assistência teria contato com uma visão estrangeira de sua terra e, então, anunciou a pretensão de analisar um “conjunto de atitudes” capaz de desenhar uma autorrepresentação da época à luz dos seus “diversos contextos pertinentes”.
A arguição de Alcir Pécora distinguiu o ardil de Curto: cria-se no seu tipo de historiografia um inventário calculado que dissolve lugares comuns, mas que, ao mesmo tempo, esquiva-se de polêmicas. Ramada Curto respondeu mencionando a necessidade do historiador de buscar novas fontes e de tirar das mais comuns o estatuto absoluto por elas alcançado, não para desautorizá-las, mas para avançar com a pesquisa – no que evoca Irving Leonard, afirmando a prerrogativa de se fugir às totalizações para não perder as distinções.
A réplica de Pécora foi enfática – “Mas seu texto não responde o que pergunta!” –, no que Curto se explicou descrevendo a própria formação: lecionou uma Sociologia da Literatura Brasileira em universidades norte-americanas; aprendeu, na juventude, a ideia de mosaico; participou da efervescência francesa sobre o estudo do fragmento (o que considera um privilégio). Em Portugal, tomou lições sobre o neolusotropicalismo e aprendeu a manter o discurso sobre as colônias “a panos quentes”. Em seguida, Ramada Curto afirmou que sua intenção não é tanto fazer uma proto-história, quanto ressaltar os contrastes de cada época para dar a ideia de sua dinâmica, tendo em vista que “uma cultura deve ser vista a partir de seus fragmentos e em relação a um conjunto de práticas que envolva pessoas concretas”. Alcir Pécora não expressou convencimento ou concordância. Os espectadores, inquietos, passaram a perguntar.
Laura de Mello e Sousa foi a primeira, indagando sobre sua proximidade com Nathalie Zamon Davies na obra “A ficção no arquivo” e sobre sua opinião acerca de uma construção literária que permite o tipo de história que ela detectava nos livros do historiador português.
Para responder, Curto citou Naipaul, se disse longe de Davies e afirmou sua posição como a de alguém que busca na realidade, e não na ficção, os seus recursos. Concluiu essa resposta recomendando a leitura de Pierre Chaunu para os espectadores mais jovens.
Silvia Hunold Lara, brincando com a expressão de Pécora sobre o texto de Curto – “uma muralha” –, refere-se a ele como um mar, cujos vagalhões vêm na forma de notas de rodapé e onde as correntes têm maior importância que a desembocadura. Para ela, Sérgio Buarque de Holanda é correnteza subterrânea nesse mar, no que um aceno de Ramada Curto nos faz crer que estava certa.
Iris Kantor assinalou que não apenas os historiadores portugueses não conhecem a bibliografia brasileira, como os brasileiros não conhecem a historiografia portuguesa; que talvez esse seja um problema geracional, mas que ele só tem aumentado. Menciona a ideia de uma geografia política de intelectuais e pede que Ramada Curto se localize ali.
Ramada Curto enunciou Pierre Vilar a propósito do que colocou como uma de suas principais perguntas: “Como pensar a nação?”. Depois, descreveu suas preocupações acerca do desconhecimento da historiografia e, sobretudo, das fontes históricas assinalando, relutante, que as bibliotecas e arquivos possuem muito mais manuscritos guardados que catalogados, e que, destes, “basta que a ficha seja roubada, para se perder a memória do mesmo”.
Faço uma pergunta: de onde vem e para onde vai a ideia de uma tomada de consciência em sua obra? Ele responde: vem de uma tradição marxista e da necessidade, no momento em que vivemos, de suscitar ideias como essa. Daí por diante, entre fragmentos dispersos, tais como algo sobre a impossibilidade de classificar o passado, mas buscando conferir se seus agentes o fazem, recordo que Ramada Curto, respondendo a uma reivindicação de Pécora sobre sua metodologia, assinalou: “Não digo isso no próprio texto porque não posso estar sempre a dizer das regras do jogo que estou a jogar”.
Maria Renata da Cruz Duran – Doutora pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Quadra 02, Bloco L, 7º andar Brasília – DF. E-mail: mrcduran@bol.com.br.
[IF]Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966 – FONTES (RBH)
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. 436p. Resenha de: DUARTE, Adriano Luiz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.
Um nordeste é desses livros raros que arejam nossas ideias, ampliam nossos horizontes e abrem inúmeras janelas à reflexão. Areja nossas ideias por nos mostrar que devemos pensar a história social e política da cidade de São Paulo considerando o impacto das migrações internas, nos últimos 60 anos. Nesse período, aproximadamente 38 milhões de pessoas saíram do campo em direção às áreas urbanas, e seu principal destino era a cidade de São Paulo. A capital paulista triplicou seu tamanho, enquanto sua população de origem nordestina cresceu dez vezes. Entre 1950 e 1960, a cidade recebeu 1 milhão de migrantes, representando 60% do seu crescimento. Em 1970, o censo apontava que “70% da população economicamente ativa na cidade havia passado por algum tipo de experiência migratória” (p.46).
Norte, Nordeste, nordestino, como mostra o autor, são categorias genéricas que se referem a diferentes lugares, origens e experiências. No entanto, ao chegar à cidade de São Paulo, as diferenças eram esquecidas e todos se tornavam “baianos”. Ser “baiano” tinha uma implicação cultural e étnica, cuja função era, principalmente, marcar a sua diferença em relação aos moradores mais antigos: “[nordestinos] são essas pessoas morenas e de pele mais escura que não eram como nós” (p.78). A migração nordestina cruzava dois elementos bastante explosivos: a origem racial e o baixo grau de instrução. Pesquisas discutidas com muita propriedade por Paulo Fontes mostram que, em 1962, 60% dos trabalhadores que migravam para a capital paulista eram analfabetos (p.64). Não demorou muito para que “os nordestinos” fossem responsabiliza-dos pelas mazelas do crescimento urbano desordenado da cidade: a debilidade dos serviços públicos, o crescimento da criminalidade, a expansão de cortiços e favelas.
A segregação era tanto espacial quanto social e cultural. Uma pesquisa realizada entre universitários paulistas, em 1949, revelou que um em cada três não considerava a hipótese de matrimônio com “baianos ou nortistas” (p.69). Por isso é possível dizer que a identidade de muitos bairros paulistanos, nas décadas de 1960 e 1970, está profundamente marcada por certa percepção dos “nordestinos” como o lado obscuro do progresso: sua presença seria o preço a pagar pelo desenvolvimento. Junte-se a isso a violenta segregação espacial do processo de urbanização da cidade. O seu “padrão periférico de crescimento urbano” – que reservava áreas vazias próximas ao centro da cidade para especulação imobiliária – alterou completamente o cenário. Os trabalhadores foram paulatinamente expulsos das áreas centrais e de industrialização antiga e forçados a se deslocar para áreas periféricas desprovidas de serviços urbanos como água, luz, esgoto, correios etc. Esse processo desencadeou o fenômeno da autoconstrução, que marcou fortemente o cenário suburbano. Segundo Paulo Fontes, em 1980 calculava-se que 63% das moradias na grande São Paulo haviam sido construídas desse modo. São Miguel Paulista, a “Bahia Nova”, foi um exemplo: de um vilarejo com 7 mil habitantes em 1940, chegou a 140 mil em 1960. Mas a autoconstrução supunha a inestimável ajuda de parentes e amigos expressa no mutirão, fortalecendo os laços de solidariedade e consolidando a identidade de moradores e trabalhadores.
Um nordeste em São Paulo amplia nossos horizontes ao mostrar que não era apenas de segregação, isolamento, baixos níveis educacionais e “barbarismo” que se fazia a epopeia da migração nordestina para São Paulo. Solidariedade talvez seja o substantivo que melhor define as múltiplas redes que conectavam os migrantes. Começando pelo simples fato de que sair do Nordeste pressupunha um contato prévio na cidade grande. Ou seja, o processo de migração não era, de modo geral, desordenando e desprovido de planejamento. Era escolha racional, assentada numa cuidadosa teia de contatos que facilitava a decisão de partir, ajudava na viagem e no processo de adaptação na cidade. Essas “redes” forjavam as relações de vizinhança e alcançavam o interior das fábricas, chegando sólidas aos partidos políticos. Elas foram fundamentais para tecer uma identidade específica de trabalhador nordestino, identidade de classe, embora nem sempre suficientes para configurar uma comunidade.
A migração nordestina era fartamente descrita na imprensa como associada à ignorância, à violência irracional e à pobreza. Caracterizados como grosseiros e rudes, tinham sua “propensão natural à violência” atribuída ora à herança de um ambiente hostil e agressivo, ora a um estágio civilizacional inferior. Paradoxalmente, a imagem do “cabra-macho que não leva desaforo pra casa”, simbolizada pelo cangaceiro, foi largamente cultivada pelos migran tes como símbolo de coragem, força e determinação que os diferenciava dos sulistas. Porém, a reação mais comum diante das hostilidades que recebiam não implicava violência, mas a valorização da sua capacidade de trabalho – e, portanto, da sua identidade de operário – sob o argumento de que sem eles São Paulo não seria o que é.
Ao seu suposto atraso, responderam também com forte atuação política no pós-guerra. A despeito de suas ambiguidades, o PCB contou com forte adesão dos moradores de São Miguel e dos operários da Nitro Química. Sua popularidade expressou-se na célula Augusto Pinto, a maior célula comunista do estado, e nos mais de 35% de votos dados ao partido nas eleições para a Assembleia Legislativa, em janeiro de 1947. A cassação do registro legal do PCB pulverizou as fidelidades partidárias em São Miguel, embora não tenha arrefecido o envolvimento político no bairro. As agremiações partidárias saíram a campo para disputar o espólio do “partidão” – espólio eleitoral e organizativo. Adhemar de Barros e Jânio Quadros seriam os principais destinatários do voto operário em São Miguel. Mas não eram apenas os partidos políticos que disputavam a consciência dos operários: o Círculo Operário Cristão também contou com a adesão dos operários, embora – para tristeza dos circulistas – não pelas razões “certas”. A estreitíssima relação entre o Círculo Operário e a Nitro Química era vista com grande desconfiança pelos trabalhadores que o utilizavam como um clube, um espaço de lazer e assistência numa cidade profundamente carente de ambos, mas recusavam seu pacote ideológico.
A crescente repressão do governo Dutra e a cassação da direção do sindicato dos químicos levaram muitos militantes para as Sociedades Amigos de Bairro (SABs) que se tornaram os centros da chamada “luta pelo direito à cidade”. O golpe civil-militar de 1964 acentuaria os vínculos entre as SABs e os sindicatos, visto que muitos militantes e simpatizantes de esquerda se refugiaram nelas. Estabelecendo uma conexão entre as SABs e os chamados “novos movimentos sociais” surgidos na cidade no final da década de 1970, Paulo Fontes sugere que a existência de “uma longa e subterrânea tradição organizativa no bairro iria alimentar e ‘dialogar’ com esses novos militantes e organizações” (p.284). As SABs foram fundamentais também nas campanhas pela autonomia de São Miguel Paulista, movimento iniciado em 1962 e por três vezes derrotado. A primeira metade da década de 1960 foi marcada também pelo crescimento da ação sindical na Nitro Química e no bairro de São Miguel. A expectativa pelas “reformas de base”, prometidas pelo governo de João Goulart, mobilizou a população e desencadeou inúmeras greves. Mas esse período coincidiu também com uma profunda crise econômica na empresa, cuja resposta imediata foi o esvaziamento do famoso serviço social que ela mantiverapor mais de 30 anos. Às milhares de demissões, seguiu-se a deslegitimação do papel desempenhado pela empresa no bairro; assim, o ano de 1966 marcou o fim de uma era.
Um nordeste em São Paulo abre inúmeras janelas à nossa reflexão ao tomar com desassombro a decisão de lidar com o cotidiano operário, com a cultura popular, com as relações de gênero, as identidades étnicas, as formas de lazer e sociabilidade dos trabalhadores na chave das mais atualizadas abordagens sobre esses temas. Problematiza as relações entre campo e cidade, não apenas colocando sub judice uma versão tradicional que percebia a migração como a destruição dos vínculos de solidariedade, mas também mostrando que ela não significava, em geral, rompimento com o campo. O “problema” da comunidade, que emerge quando os historiados buscam a ampliação das análises da formação de classe para além do espaço fabril, é tratado com o devido cuidado, supondo a solidariedade não como uma consequência “natural” da proximidade geográfica, mas como resultado de um esforço humano deliberado e reatualizado cotidianamente, tanto nas redes de lazer quanto nas lutas. Comunidade emerge não como simples categoria teórica, mas como problema historiográfico a ser investigado. Um nordeste em São Paulo é leitura obrigatória não apenas para os historiadores preocupados com o problema da formação da classe operária no Brasil, mas para historiadores, sociólogos, antropólogos e outros preocupados em entender este misterioso lugar chamado Brasil.
Adriano Luiz Duarte – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Campus Trindade – Departamento de História. Av. Engenheiro Max de Souza, 620 – Florianópolis – SC. E-mail: adrianoduarte@hotmail.com.
[IF]
A história nos filmes, os filmes na história – ROSENSTONE (RBH)
ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. 262p. Resenha de: SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, no.60, 2010.
Há pouco mais de dez anos, quando comecei a pesquisar sobre a relação história e cinema, havia pouca coisa publicada no Brasil: pouquíssimas obras traduzidas, alguns textos introdutórios teórico-metodológicos e uns poucos artigos. Lembro que, mesmo para um pesquisador iniciante, as considerações dos historiadores sobre o cinema e os filmes pareciam travadas, até “medrosas”, quando não hostis à reflexão histórica contida na imagem fílmica. Considerei, na época, que devia ser um “mal brasileiro”, que nos Estados Unidos e na França os historiadores já haviam resolvido algumas das questões referentes à existência da visão cinematográfica da história. A falta de traduções e a qualidade das reflexões seriam reflexos de nosso provincianismo.1 Estava enganado.
O novo livro do historiador canadense Robert Rosenstone, A história nos filmes, os filmes na história, lançado no Brasil em 2010, trouxe velhas questões sobre a visão cinematográfica da história para o primeiro plano. O texto oferece um painel das dificuldades que os historiadores criam quando lidam com cinema. Esta resenha pretende expor a importância do livro e, ao mesmo tempo, apontar a “hesitação” que ainda acompanha a reflexão sobre as relações entre história e cinema.
Rosenstone era um historiador das revoluções sociais quando, desenvolvendo um trabalho sobre o jornalista John Reed,2 tornou-se “consultor histórico” (numa época em que essa expressão não tinha significado firmado) na realização da cinebiografia Reds (1981), sobre a vida do autor de Os dez dias que abalaram o mundo. Foi quando o canadense começou a se inteirar das discussões sobre cinema e história. Seus trabalhos posteriores tornaram-se conhecidos no Brasil por meio de algumas poucas traduções em periódicos como Olho da História,3 e pelos comentários de estudiosos como Mônica Almeida Kornis, Cristiane Nova e Jorge Nóvoa.4 A história nos filmes, os filmes na história é a primeira tradução brasileira de uma obra completa desse importante e polêmico autor.5
Embora o livro chegue com atraso, como quase sempre ocorre com publicações sobre o tema no Brasil, o que surpreende é perceber que em 2006, quando History on Film/Film on History foi publicado nos Estados Unidos, Rosenstone ainda se via obrigado a defender a legitimidade das interpretações cinematográficas da história. Hoje, em dissertações, teses, artigos e capítulos de livros, o filme é tido como importante temática do campo historiográfico, mas a leitura cinematográfica da história parece ter sido tragada, segundo o autor, pela associação do filme com o que os historiadores escreviam em seus escritos. A tese subjacente do canadense é que a “correspondência” à fidelidade histórica viciou a reflexão historiográfica sobre cinema.
Incorporando contribuições de Hayden White, Rosenstone se apresenta como historiador pós-moderno interessado na renovação da narrativa e das perspectivas teóricas da historiografia por meio da incorporação de novos estilos de argumentação e escrita. Porém, em vez de qualquer defesa do relativismo sua ideia é demonstrar como a existência de diferentes discursos sobre o passado (como os presentes nas películas), mais do que dinamitar verdades, criam versões alternativas da história.
O livro visa compreender se é possível um filme oferecer uma reflexão histórica comparável à da historiografia, se um cineasta pode ser considerado um historiador e se o cinema é uma forma alternativa de articular o passado. Na sua perspectiva, assim como o conhecimento histórico possui regras, estilos e investigação específicos, a mídia visual também tem seus próprios critérios e circunstâncias de produção da história – ao historiador cabe reconhecer a existência, legitimidade, diferença e influência das representações da história produzidas pelas fitas.
O volume é composto de nove ensaios dedicados a vários tópicos. Após um capítulo breve de introdução, o segundo texto realiza preciosa revisão bibliográfica sobre como, na comunidade histórica norte-americana (e um pouco na francesa), a representação cinematográfica da histórica começou a ser pensada pelos historiadores. O início do livro é dedicado a evidenciar a formação de um campo de investigação que teria surgido comprometido com a preocupação dos historiadores em relação à fidelidade histórica nos filmes. A maioria dos textos resenhados tende a recusar às fitas a possibilidade de articular reflexões históricas (exceção principalmente de Marc Ferro e Natalie Zemon Davis). Rosenstone aponta que é preciso reconhecer que o filme, diferente da historiografia, não possui a fidelidade entre suas regras de produção, mas isso não prejudica a capacidade fílmica de condensar, nas suas formas plásticas, a história. O autor defende o entendimento das “regras de interação do longa-metragem dramático com os vestígios do passado – e começar a vislumbrar o que isso acrescenta ao nosso entendimento histórico”.6
O canadense lembra que a película trabalha por invenções, condensações, compressões, alterações e deslocamentos de elementos do passado para montar a própria interpretação do passado. Esse raciocínio conduz todas as reflexões do livro nos capítulos seguintes, explorando a construção de interpretações cinematográficas do passado nos dramas comerciais, dramas inovadores, cinebiografias, documentários etc. Talvez o capítulo mais instigante seja o sétimo, com o tema do cineasta como historiador. Refletindo sobre realizadores como Oliver Stone, o historiador ressalta que alguns cineastas obcecados e oprimidos pela pressão do passado “continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente” (p.172-174). Não seria difícil encontrar tal qualidade de realizador no Brasil, de Silvio Tendler a Carlos Diegues, demonstrando que a memória e a história envolvem questionamentos sociais atuantes no cinema também.
Para defender sua tese, Rosenstone opera dois deslocamentos: primeiro distingue o filme histórico do filme cuja trama se ambienta em um período histórico qualquer (os dramas de época), afirmando que aquele constrói interpretações sobre a história que rivalizam com a da historiografia. Segundo, evidencia que as películas, de fato, lidam com os vestígios do passado de maneira singular. A representação cinematográfica da história não é uma questão de fidelidade ao passado, mas de uma forma midiática que cria com aquele sua própria relação.
A história nos filmes, os filmes na história, porém, não conclui a reflexão iniciada. Preocupado com a construção da legitimidade do objeto, deixa seu discurso num nível superficial, executando um livro importante, mas que rejeita o passo seguinte a ser tomado. Para defender que a questão da “história nos filmes” diz respeito à forma como a linguagem visual lida com o passado, Rosenstone acaba reduzindo a relação com o passado e seus vestígios à construção de interpretações articuláveis num enredo – aqui se vê seu débito com
o conceito de “historiofotia” de Hayden White, grosso modo a representação da história no discurso imagético e fílmico (p.44). Entretanto, o que fica evidente em seu texto é que compreender como o cinema se relaciona com o passado e o constrói é passível de se tornar um tópico da própria teoria da história, envolvendo além das interpretações enredadas, a configuração de orientações na experiência do tempo.
Se o objetivo da teoria da história é refletir sobre o que os historiadores fazem quando fazem história,7 o livro de Rosenstone hesita ao não explorar a relação do campo historiográfico com o campo cinematográfico no que se refere à construção de relações com os vestígios do passado e com a concepção de passado e de tempo. Esse tema tem sido explorado por teóricos do cinema, mas ignorado pela maioria dos historiadores.8 O canadense até menciona a questão rapidamente, mas logo abandona o assunto (p.233).
Obviamente, não era o objetivo do autor aprofundar os quesitos aqui levantados. Ao final da leitura de A história nos filmes, os filmes na história fica o desejo pela constituição de um tópico de investigação que contemple as relações do campo historiográfico com as formas visuais de experimentações, orientações e interpretações socialmente atuantes do passado, principalmente quando alimentadas pela energia investigativa de espíritos como Oliver Stone, Sergei Eisenstein ou Silvio Tendler. Elas apontam relações diretas com a indagação do tempo histórico numa perspectiva visual, a maneira pela qual ocorre a distinção entre passado e futuro em sua relação com o presente, dos quais nos falam teóricos como Reinhart Koselleck.9
Hoje há uma considerável reflexão sobre os filmes como fonte e meio de pesquisa, no entanto, a proeza maior de Rosenstone é apontar a inclusão, entre os tópicos da teoria da história (e não apenas da metodologia) de uma sistematização da relação história-cinema-passado. Essa importante reflexão, que já gerou excelentes frutos na problematização literatura-história, ainda aguarda desenvolvimento para o cinema. Estaria essa lacuna relacionada com a dificuldade dos historiadores em enfrentar o que significa ter concorrentes nas construções da memória e da história sociais, quando estes são poderosos como as mídias visuais das quais o cinema é apenas um exemplo? A questão fica em aberto.
Notas
1 FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, [ Links ] era praticamente a única tradução significativa, embora houvesse textos nacionais. Outras obras importantes permanecem longe do mercado editorial, desde textos de Rosenstone e Ferro até Michel Lagny, Pierre Sorlin, Natalie Zemon Davis, Tom Gunning, Andre Gaudreault, Richard Allen, Thomas Elsaesser etc.
2 ROSENSTONE, Robert. Romantic revolutionary: a biography of John Reed. New York: Alfred A. Knopf, 1975. [ Links ]
3 ROSENSTONE, Robert. História em imagens, história em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens. O olho da história, Salvador, v.1, n.5, p.105-116, 1997. [ Links ]
4 Ver KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.5, n.10, p.237-250, 1992; [ Links ] NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da história. O olho da história, Salvador, v.2, n.3, p.217-234, 1996; [ Links ] NOVA, Cristiane. A história diante dos desafios imagéticos. Projeto história, São Paulo: PUC/SP, v.21, p.141-162, 2000. [ Links ]
5 Em 2009 foi traduzido mais um artigo: ROSENSTONE, Robert. Oliver Stone: historiador da América recente. In: FEIGELSON, Kristian; FRESSATO, Soleni Biscouto; NOVOA, Jorge (Org.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. São Paulo: Ed. Unesp; Salvador: Ed. UFBA, 2009, p.393-408. [ Links ]
6 ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p.54. [ Links ]
7 Alusão ao título da dissertação: ASSIS, Arthur O. A. O que fazem os historiadores quando fazem história? A teoria da história de Jörn Rüsen e Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda. Dissertação (Mestrado) – UnB. Brasília, 2004. [ Links ] Ver, ainda, RÜSEN, Jörn. A razão histórica: teoria da história, os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001. [ Links ]
8 Exemplar nesse sentido é a reflexão algo pessimista de JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. O autor cita Jameson rapidamente na página 23. [ Links ]
9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RIO, 2006. [ Links ]
Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Departamento de História. BR 101, Km 01, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN. santiago.jr@gmail.com.
Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império – DAVIS (RBH)
DAVIS, Mike. Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império. São Paulo: Boitempo, 2008. 351p. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009
O livro Apologia dos bárbaros, do historiador estadunidense Mike Davis, professor da Universidade da Califórnia, reúne escritos publicados entre 2001 e 2007 que analisam, sob diferentes perspectivas, a política interna e externa dos Estados Unidos, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Davis divide o trabalho em cinco partes, tendo por critério temas afins. No entanto, a linha de continuidade que perpassa a estrutura do livro é uma crítica perspicaz e fundamentada à Casa Branca, ao Congresso, ao Poder Judiciário, ao Pentágono, aos partidos políticos e às organizações sindicais que estão a serviço do grande capital e não dos interesses da população dos Estados Unidos.
Davis não acredita na afirmação de que “os estadunidenses colheram o que semearam” com os atentados às Torres Gêmeas, já que as principais vítimas daquela tragédia foram as secretárias, os contadores, os entregadores de lojas de conveniências, os lavadores de janelas, os corretores da bolsa e os bombeiros, pessoas que “não conceberam ou implementaram nossas políticas secretas, antidemocráticas e criminosas no mundo muçulmano” (p.24). Responsáveis diretos pelos atentados, entre tantos, seriam, por exemplo, Madeleine Albright, secretária de Estado de Bill Clinton, que, ao responder a uma pergunta em rede nacional de TV sobre as 500 mil crianças mortas no Iraque como resultado das sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos, asquerosamente afirmou: “Acredito que o custo compensou”. E o maior responsável de todos – George W. Bush – foi escolhido presidente por uma maioria na Suprema Corte e não pelos eleitores, tendo adotado poderes de guerra contra todos, em toda parte e para sempre, sem precedentes na história nacional dos Estados Unidos e, quiçá, mundial.
O autor de Apologia dos bárbaros não vê grandes diferenças entre o Partido Republicano e o Democrata, já que ambos estão ligados aos donos do poder econômico. Os socialistas estadunidenses, diz Davis, há anos vêm de monstrando que os democratas não passam de um partido capitalista com verniz social-democrata. No entanto, as elites formadas por sindicalistas e por militantes dos direitos civis encontram sempre um pretexto para o velho vício, qual seja, a opção pelo mal menor. A história mostra, por exemplo, que a maioria democrata no Senado 1) vendeu a Bill of Rights (a Constituição dos Estados Unidos aprovada em 1787); 2) endossou cortes marciais e campos de concentração; 3) acatou a não assinatura do Protocolo de Kyoto e do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos; 4) apoiou a militarização da fronteira mexicana e deu carta branca ao presidente George W. Bush para intervir na guerra suja da Colômbia; 5) aprovou, por meio do Comitê de Inteligência do Senado, a opção do uso de armas nucleares de ‘pequeno alcance’ contra o dito Eixo do Mal. Por fim, o democrata Joe Lieberman, ex-candidato à vice-presidência de Al Gore, defendeu com mais ênfase que os próprios republicanos o direito de invadir o Iraque, e Carl McCall promoveu sua campanha para governador de Nova York exibindo fotos em que aparecia disparando um fuzil M-16 em um campo de treinamento ‘antiterrorismo’ israelense.
Uma política externa intervencionista compromete a própria democracia interna dos Estados Unidos. John Hobson, em seu Estúdio del imperialismo, criticava, no início do século XX, a voracidade da classe dominante inglesa em suas colônias espalhadas pelo mundo, ao tempo em que mostrava que essa mesma elite, no afã de acumular sem limite, destruía a democracia interna londrina. O ‘Ato Patriota’, aprovado em 26 de outubro de 2001, 45 dias após os ataques do 11 de setembro, nada mais é que um conjunto de leis destinadas a aumentar a regulação, o controle e a fiscalização das atividades cotidianas dos cidadãos estadunidenses, exacerbando o poder de policiamento do governo. James Petras o denominou de “fascismo amistoso”. Noam Chomsky vai mais longe, chegando a dizer que “não devemos nos esquecer que os próprios Estados Unidos são um Estado líder do terrorismo”.
Mike Davis, ao analisar a destruição de New Orleans pelo furacão Katrina, mostra que todos os aspectos da catástrofe foram moldados por desigualdades de classe e raça. Pesquisadores de várias universidades do sul dos Estados Unidos vinham chamando a atenção das autoridades para a possibilidade do rompimento dos diques por falta de manutenção. No entanto, nada se fez para sanar o problema, já que a cidade era povoada por 75% de afro-americanos e tinha altos índices de pobres, criminosos e desempregados. Foi a negligência federal, e não a fúria da natureza, a maior responsável pelo assassinato de New Orleans.
Utilizando-se do desastre natural, políticos inescrupulosos, especuladores imobiliários gananciosos e brancos racistas apostaram em uma higienização da metrópole do jazz. Um deles, Finis Shellnut, afirmou que “o furacão obrigou os pobres e os criminosos a saírem da cidade, e esperamos que eles não voltem. A festa dessa gente está quase no fim e agora eles terão de encontrar outro lugar para morar” (p.237). Outro, Joseph Canizaro, com laços pessoais que o ligam ao círculo interno da Casa Branca, disse que “essas pessoas pobres não têm condições de voltar para nossa cidade, assim como não tiveram condições de deixá-la. Então, não traremos todas de volta” (p.236).
O governo Bush também aproveitou o pretexto do Katrina para atacar os sindicatos independentes, sobretudo aqueles que defendiam os direitos dos trabalhadores e pressionavam pela contratação de moradores para recuperar New Orleans. Com isso, favoreceu as grandes corporações, como o Wal-Mart, que, combinando a tecnologia just in time com as características mais selvagens do capitalismo, tornou-se a empresa-símbolo da exploração. “Conhecida por pagar salários miseráveis e fraudar as horas extras de seu 1 milhão de empregados nos Estados Unidos”, comenta Davis,
o Wal-Mart age de forma ainda mais sinistra no estrangeiro, pressionando incessantemente seus milhares de fornecedores em Bangladesh, na China e na América Central para que reduzam os custos do trabalho e suprimam direitos trabalhistas. O Wal-Mart é, sem dúvida, o maior empregador indireto de mão de obra semiescrava ou infantil do planeta. A ‘walmartização’ tornou-se, portanto, sinônimo de ‘corrida ao fundo do poço’, completa abolição dos direitos do trabalhador e da cidadania. (p.158)
O historiador Mike Davis critica os livros didáticos das escolas estadunidenses por sua ocultação da história. A “Operação Bagration”, de junho de 1944, por exemplo, que leva esse nome em homenagem a um herói russo de 1812, foi um ataque soviético decisivo contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht de Hitler. Para Davis, foi a batalha decisiva pela libertação da Europa do nazifascismo. No entanto, não se encontra uma palavra sobre essa operação nos livros básicos de história nos Estados Unidos. E isso tudo, apesar de essa ofensiva de verão soviética – chamada pelo historiador Jon Erickson de “o grande terremoto militar” – ter sido muito mais grandiosa que o desembarque na Normandia, tanto em escala de forças envolvidas quanto em custo direto infligido aos alemães. “Na luta contra o nazismo, cerca de quarenta Ivans morreram para cada soldado Ryan“. “De fato”, diz Davis que
a maioria dos norte-americanos é espantosamente ignorante a respeito dos ônus dos combates e das baixas da Segunda Guerra Mundial. E mesmo a minoria que compreende algo da grandiosidade do sacrifício soviético tende a julgá-lo nos termos dos estereótipos crus do Exército Vermelho: uma horda bárbara conduzida por um sentimento cruel de vingança, um frenesi por estupros e um nacionalismo russo primitivo. (p.282)
O Pentágono, diz Davis, deveria estudar a história das colônias conquistadas e perdidas, dos impérios erguidos e derrubados, evitando, assim, a atual carnificina iraquiana. Bastava ler as cartas de Gertrude Bell e os diários de Winston Churchill, os homens que transformaram três prósperas e etnicamente distintas províncias do Império Otomano em um infeliz território britânico. Churchill, então secretário de Estado de Guerra e da Aeronáutica (1920), utilizou a estratégia dos bombardeios com armas químicas, como as bombas de gás mostarda, para economizar dinheiro e soldados na dominação do Iraque. Graças ao gás venenoso e aos tanques, os britânicos recuperaram o controle da região, em setembro de 1920, sem deixar de lado as expedições punitivas pelos territórios rebeldes, queimando vilarejos, executando suspeitos, confiscando mantimentos e aplicando multas. Mais tarde, a força aérea britânica bombardeou regiões do Iraque, como o baixo Eufrates, já não para reprimir tumultos e sim para pressionar os vilarejos a pagar seus impostos. Em fins de 1921, Churchill observou com satisfação que seus aeroplanos haviam passado a ser temidos e continuou a defender o uso do gás venenoso no Iraque e em toda a região. Questionado por um coronel, subordinado seu, sobre os horrores causados pelos efeitos dos bombardeios, Churchill o repreendeu severamente dizendo que “não entendo essa aversão ao uso de gás. Sou totalmente a favor do uso de gás venenoso contra tribos incivilizadas” (p.114). Certamente, foi esse o mestre maior de Saddam Hussein. Apesar de tais métodos genocidas, a Grã-Bretanha saiu derrotada da região.
Algumas ausências sentidas no trabalho foram as de Noam Chomsky, James Petras, Michael Klare e Immanuel Wallerstein, que trabalham igualmente as relações dos Estados Unidos no mundo.
Apologia dos bárbaros mostra como a revolução revoluciona a contrarrevolução. Por isso, o livro é importante para entender a política interna e externa dos Estados Unidos. Enfim, um livro que ajuda a entender os meandros do império.
Waldir José Rampinelli – Professor do Departamento de História da UFSC; doutor em Ciências Sociais – Política (PUCSP). Depto. de História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC. Cidade Universitária. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: rampinelli@globo.com.
[IF]Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) – SILVA (RBH)
SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. 216p. Resenha de: ABRAHÃO, Eliane Morelli. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009.
O fogão a lenha, utensílio obrigatório nas casas até meados da década de 1930, estava presente nas cozinhas e não raras vezes tinha sobre si o grande tacho de cobre a cozer vagarosamente os doces de abóbora, de mamão ou cidra, dentre as muitas iguarias preparadas pelas famílias. Esse cômodo da casa traz à tona nossas lembranças de infância e desvenda nossa memória gustativa repleta de aromas e sabores.
João Luiz Máximo da Silva no livro Cozinha modelo, originário de sua dissertação de mestrado, instiga-nos a pensar sobre os hábitos cotidianos desempenhados pelas senhoras, suas escravas e, posteriormente, suas empregadas no preparo dos alimentos que seriam servidos à família no dia a dia ou em ocasiões especiais. É um livro sobre história da cultura material e revela-nos aspectos interessantes dos impactos trazidos às cozinhas das casas paulistanas pela introdução do gás e da eletricidade. Mostra, também, como as donas de casa aderiram a essas novidades. Mas seu interesse vai além dos artefatos e procura entender a dimensão física, sensorial, “que perpassa todos os domínios do existir humano”, segundo as palavras do prefaciador, Ulpiano Bezerra de Menezes.
O autor percorre vasta quantidade de documentos – relatórios de diretoria das empresas concessionárias de gás e eletricidade, relatórios técnicos, notícias de jornal, legislação e normas –, focando três grandes temas: história das empresas concessionárias de energia, tecnologia doméstica e habitação. Silva aborda questões de natureza política, sanitária, econômica, tecnológica, cultural e social, além de temáticas diversas, como a arquitetura e o urbanismo, a administração pública e a legislação, os investimentos estrangeiros, os novos equipamentos integrados às redes de fornecimento de energia e ainda os serviços técnicos, as relações de gênero e a publicidade.
Ao tratar da introdução das empresas de energia e das inovações proporcionadas pela eletricidade, Silva tece um amplo discurso sobre os avanços tecnológicos e econômicos e resgata todo o processo de instalação e os mecanismos de expansão das duas redes de infraestrutura urbana: o gás e a eletricidade. O autor relata a atuação da empresa de capital estrangeiro The São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited (Light), com concessão pública para a exploração da energia pública e doméstica e do transporte urbano, desde finais do século XIX. Em 1912, essa empresa também passaria a controlar a distribuição do gás ao incorporar a The San Paulo Gás Company.
Silva faz uma abordagem atraente dos avanços proporcionados pela introdução da energia elétrica e do gás à paisagem da cidade de São Paulo, descreve o incremento da indústria e do comércio e sua repercussão no dia a dia dos moradores, sobretudo o impacto do uso do gás pelas famílias paulistanas.
Quanto à urbanização, nesse período a administração pública implantou um novo Código de Postura que disciplinava a abertura de ruas, os alinhamentos das construções etc. Porém, com o crescimento demográfico e econômico vivido por São Paulo, essas medidas públicas não foram seguidas. A demanda por habitação para todas as camadas da população fez crescer a malha urbana consideravelmente. As redes de fornecimento de iluminação e gás não atenderam a todos os novos bairros, percebendo-se então uma segregação espacial na cidade.
Nesse cenário de transformações urbanas as companhias de gás anunciavam seu produto nas revistas femininas com o intuito de conquistar as famílias para as novas tecnologias. Esses anúncios ofereciam ‘progresso e civilização’ e combatiam a antiga tradição da cozinha brasileira – os fogões a lenha –, impondo a mecanização da área de serviço e colocando como ator principal o fogão a gás, símbolo de cozinha moderna, limpa, ordenada e arejada.
Em busca de seu público consumidor – as donas de casa –, as empresas ofereciam cursos especialmente destinados às cozinheiras, ensinando culinária e o manejo dos fogões. Na década de 1910, as revistas femininas publicavam artigos que orientavam as donas de casa na escolha correta da alimentação e na forma de seu preparo, tendo em vista as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias – fogão a gás, panelas de ágata e de ferro –, todas as vantagens que o novo modelo de cozinha representava.
Contribuíram com os anseios das companhias distribuidoras de gás as questões sanitárias implantadas pelo poder público. Em 1918, o Código Sani tário focalizou a questão da higiene e da salubridade dos cortiços e discutiu explicitamente o papel da cozinha na casa e, mais ainda, de seus principais equipamentos, como o fogão. Pouco depois o Padrão Municipal de 1920 dedicou todo um item à organização da cozinha. Antes espaço da casa desprestigiado porque vinculado aos trabalhos braçais, a cozinha passou a ser o alvo principal das autoridades escudadas pelo saber médico. Este a considerava espaço essencial, que deveria ser agregado ao corpo principal do lar e à lógica imposta pelos ideais de urbanização e consumo.
Essas alterações sanitárias não mudaram a realidade, e, por muitos anos os fogões a lenha conviveram com os fogões a gás, não só pelo hábito e pelo conhecimento empírico adquirido no seu manuseio – acendimento, tempo e formas de cozimento –, mas também pela questão econômica, uma vez que a lenha era muito menos onerosa que o gás.
O aparecimento deste novo equipamento, o fogão, é exaustivamente analisado pelo autor de Cozinha modelo, que aborda a sua evolução, de meados do século XIX até a década de 1930, e também a forma de funcionar desse aparelho doméstico. Silva é minucioso em suas descrições e aponta as diferenças entre os fogões tradicionais e os de ferro fundido – estes também conhecidos como ‘econômicos’ –, os quais usavam lenha, carvão vegetal ou coque e cujo modo de funcionamento e combustão os diferenciava completamente dos fogões a gás.
Os espaços domésticos mereceram atenção do autor em questões que ultrapassam as alterações arquitetônicas e chegam às diferentes formas de moradias, divididas por ele em quatro categorias – os palacetes, as casas médias (com mais de três cômodos), as casas populares e os cortiços. Suas análises sobre a cozinha recaem não só em sua localização – no caso dos cortiços, por exemplo, ela inexistia ou era improvisada –, mas também em sua preconizada modernização. Substituía-se a imagem da cozinha bandeirista, que sugeria trabalho pesado e sujo, desenvolvido longe das áreas de estar em razão de fumaça, cheiro e fuligem, por um modelo limpo, com novo mobiliário, visando eficiência no trabalho.
As novas relações que se tramam entre o espaço privado e o espaço público por intermédio da cozinha criam uma articulação inédita com o espaço urbano. Nas palavras do autor: “A viabilização e comercialização de uma nova tecnologia, aplicada ao trabalho doméstico e distribuída por meio de redes, trouxe um grau de dependência da casa a novas relações, que extrapolaram os antigos limites desse espaço” (p.94).
A difusão do uso de novas práticas e técnicas domésticas estava fortemen te associada aos novos padrões urbanos de embelezamento e sanitarização. Para isso, era necessário romper com o passado colonial e com tudo o que ele representava. A nova cozinha higiênica exigia a participação efetiva da mulher, com novas formas de organizar o tempo e o espaço doméstico, a racionalização de seu espaço e seu gerenciamento econômico. Silva entende que essa ‘importância’ da dona de casa relegou a empregada ao papel de mera executora, cabendo à mulher a administração do lar num sentido mais amplo. Estudos de gênero recentes têm revelado que as mulheres nas primeiras décadas do século XX já controlavam o orçamento e as despesas familiares, e esses estudos apontam para uma tendência ao consumo de novidades tecnológicas que facilitassem os afazeres cotidianos do lar, o que sem dúvida satisfazia os anseios das companhias de gás.
No que tange à cultura material, a descrição dos novos artefatos à disposição das donas de casa foi pouco explorado pelo autor. Para apreender os objetos, as novidades tecnológicas que compunham o arsenal de utensílios existentes nas casas paulistanas, faz-se necessária uma pesquisa aos inventários post mortem do período, uma vez que são fonte documental essencial para esses estudos por seu caráter descritivo. Os inventários registram todos os bens da pessoa falecida e que foram objetos da partilha. Nos autos de avaliação, por exemplo, são discriminados os ‘bens móveis’ – utensílios domésticos, móveis, objetos de decoração e de trabalho – e os ‘bens imóveis’, ou ‘de raiz’ – casas, terrenos e plantações. Os aparelhos introduzidos com o advento da eletricidade – torradeiras, cafeteiras e chaleiras, por exemplo – poderiam ter sido mais bem explorados se o autor não se houvesse detido apenas nos anúncios publicitários e na lista de leilões, porque nessas fontes há apenas a indicação dos objetos disponíveis no mercado.
Com narrativa clara e convidativa, Silva nos estimula a percorrer os caminhos da passagem do fogão a lenha para o fogão a gás. Expõe os sentimentos contraditórios em relação à nova tecnologia – crença em seus poderes curativos e terapêuticos, ao lado do medo de intoxicação – e a ideologia de progresso subjacente à propaganda do gás e da eletricidade para o interior das casas. E, sobretudo, revela como a cozinha foi redesenhada em torno do fogão ‘moderno’, transformando as relações entre patroas e empregadas e a dinâmica no preparo e na escolha dos alimentos. O autor fornece pistas sobre uma possível ligação entre essa nova cozinha e o desenvolvimento da gastronomia e, de forma pontual, aborda a alteração do cardápio que deveria atender aos novos ritmos urbanos, com refeições rápidas e subordinadas a horários específicos. Algumas deficiências podem ser observadas neste trabalho, relaciona das às próprias escolhas temáticas e das fontes, uma vez que o autor se deteve muito na história das empresas concessionárias e pouco nas transformações dos aparelhos elétricos e no surgimento de novos utensílios domésticos.
Eliane Morelli Abrahão – Doutoranda em História Cultural. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Universidade Estadual de Campinas (CLE/Unicamp). Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, Barão Geraldo. (Caixa Postal 6133). 13083-970 Campinas – SP – Brasil. E-mail: eliane@cle.unicamp.br.
[IF]New World coming: the sixties and the shaping of global consciousness – DUBINSKY (RBH)
DUBINSKY, Karen et al. New World coming: the sixties and the shaping of global consciousness. Toronto: Between the Lines, 2009. 515p. Resenha de: CORREA, Sílvio Marcus de Souza. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009.
New World coming reúne mais de quarenta artigos apresentados durante um encontro internacional em junho de 2007, em Kingston (Canadá). Naquela ocasião, centenas de especialistas, estudantes e (ex-)militantes de vários países debateram sobre a década de 1960 e seus desdobramentos. Os artigos coligidos pelos editores para este livro representam amostra significativa de vários temas tratados durante quatro dias de verão na Queen’s University.
Apesar dos diferentes temas e enfoques, a formação de uma consciência global perpassa todos os artigos. Questões como raça, gênero, sexualidade, nacionalidade, classe, religião, imperialismo, colonialismo, sexismo e capitalismo foram tratadas a partir de diversos lugares; porém, como afirmam os editores de New World coming, “every locality has a global history”.
O quadro temporal das análises poderia dispensar maiores comentários sobre a sua relação com uma nova consciência global. No entanto, os próprios editores chamam atenção para a arbitrariedade ou fluidez de marcos, pois certas análises das tendências da década de 1960 podem ter a Guerra da Argélia (1954) ou a Conferência de Bandung (1955) por ponto de partida.
Ao levar em conta certos movimentos de resistência e protesto em várias localidades do globo, os editores de New World coming apresentam um con-junto de contribuições sobre as mudanças culturais, sociais e políticas da década de 1960 com base em suas particularidades históricas. Também logram enfoques inovadores com grupos de atores até então pouco conhecidos como, por exemplo, mulheres em Havana, jovens em Dacar, exilados caribenhos em Montreal ou trabalhadores porto-riquenhos em Nova York. O Ocidente deixa, portanto, de ser o epicentro de um mundo em transformação.
A primeira parte do livro (Nation-Descolonization-Liberation) explora as implicações do nacional para vários movimentos de libertação. Movimentos de descolonização na África e de redemocratização na América Latina não foram, todavia, o eixo temático dos 12 artigos que compõem a primeira sessão do livro. Movimentos de protesto e de resistência no Canadá, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália e na Holanda são apresentados como elos de uma mesma cadeia, ou seja, de uma solidariedade internacional emergente na década de 1960. Estranheza causa a ausência de um artigo sobre a “revolução tranquila” no Québec. Ainda mais quando o assunto é nação, descolonização e libertação nos anos 60.
A segunda parte do livro (Cultural Citizenship) é composta por 12 artigos que enfatizam a circulação de ideias e valores em um mundo globalizado, ou melhor, em esfera cultural transnacional. São contribuições sobre novas subjetividades que se expressam por meio de produtos culturais, como filmes, músicas, peças teatrais e pôsteres, que circulam por vários espaços diferentes e que conectam pessoas através do mundo porque elas compartilham um novo imaginário social. Mas não se trata da cidadania dos habitantes da aldeia global de Marshall McLuhan. A maioria desses cidadãos se encontra em lugares desfavorecidos como um gueto em Chicago ou uma favela em São Paulo. Festivais de arte, manifestações da cultura popular e movimentos de contracultura foram tratados por vários especialistas, tendo por objetos de estudo a representação revolucionária no cinema cubano, o teatro de trabalhadores rurais na Suécia, os refritos da música pop internacional e sua importância para jovens mexicanos, o sentido de resistência da música soul na Tanzânia, o Primeiro Festival Mundial de Arte Negra, em Dacar (1966), a arte dos pôsteres de protestos etc.
Na terceira parte do livro (Mobilizing Bodies), dez artigos tratam da complexa politização do corpo durante aquela década. Destaque para a segunda onda do movimento feminista e seus desdobramentos. É nessa sessão do livro que aparece o único artigo sobre algo que se passou no Brasil à época. A organização dos primeiros grupos de conscientização de mulheres é o tema do artigo da historiadora Joana Maria Pedro (UFSC), que demonstra como outras professoras universitárias, com base em suas experiências nos Estados Unidos nos anos 60, introduziram em São Paulo e no Rio de Janeiro o modelo de consciousness-raising group. Esses primeiros grupos de conscientização foram organizados no início da década de 1970 e teriam uma função de rizoma, no sentido que Felix Guattari empresta ao termo. A conexão entre a segunda onda do feminismo em nível internacional e o que se organiza em termos de grupos de conscientização no Brasil nas décadas de 1970 e 1980 acusa um movimento de libertação que não deixa de ter suas implicações com a redemocratização da sociedade brasileira. Nesta terceira sessão do livro, o movimento feminista em Cuba, o radicalismo do feminismo nos Estados Unidos, o pacifismo e a consciência ecológica no Canadá e alhures são tratados de forma crítica. Injustificável é a falta de um artigo sobre a mobilização do corpo homossexual nessa década.
A quarta parte do livro (Lasting Legacies) enfoca alguns movimentos políticos e paisagens culturais forjadas durante a década de 1960. Ao tratar de algumas questões como a democracia participativa, os autores dos oito artigos que compõem esta última sessão fazem um tipo de balanço dos anos 60 com base na identificação de alguns de seus desdobramentos nas décadas seguintes. Por epílogo, tem-se uma avaliação das possibilidades e problemáticas do ‘Terceiro Mundo’. Algumas alternativas de cenário(s) futuro(s) são esboçadas, num louvável esforço intelectual para superar qualquer teoria de modernização, mas que mais parece um trabalho de Sísifo. Interessante é a atualização da alcunha de Albert Sauvy, inspirada no famoso panfleto do abade Sieyès, Qu’est–ce que le Tiers État? (1789). Ao almejar seu reconhecimento, o Terceiro Mundo transformaria seu potencial revolucionário em ato. Seriam essas experiências relatadas e analisadas em New World coming os indicadores de uma consciência global que, ancorada na solidariedade internacional e no reconhecimento da liberdade e da alteridade, emerge de um passado recente e serve de orientação para a construção de um novo mundo.
A proposta eclética de New World coming trata da década de 1960 e de seus desdobramentos com base em certos grupos em seus espaços da vida cotidiana. São trajetórias por geografias que implicam uma história sem centro, porém em conexão num mundo cada vez mais globalizado.
New World coming logra um mosaico da formação de uma consciência global a partir da década de 1960. Nesse sentido, a panóplia de movimentos de resistência sugere um grande movimento libertário, mesmo com seus descompassos e suas particularidades. Apesar do ecletismo e a descentralização da história proposta pelo livro, tem-se a impressão de que uma interpretação teleológica de história emerge do conjunto dos textos, como se um fim imaginado (de liberdade) fosse o ponto de partida em direção à década de 1960, período grávido de movimentos sociais, culturais e políticos que baliza(ra)m os caminhos atuais rumo ao reconhecimento da(s) liberdade(s). Enfim, um passado recente parece ter sido analisado com base num futuro próximo.
As evidências do legado dos anos 60 apontariam, então, para variações desse movimento global de libertação: os exemplos do movimento feminista em Cuba, no Brasil ou na Palestina, do pacifista de mulheres norte-americanas, do antirracista de jovens africanos ou afro-americanos, do ecológico de ambientalistas de países setentrionais, do democrático de exilados latinoamericanos seriam como vários afluentes desaguando no oceano da liberdade.
A leitura instigante das dezenas de artigos de New World coming não deixa de ser tentadora na medida em que nos dá a impressão de provarmos de um futuro que se antecipa, talvez com pressa, como se o que podemos ter amanhã já foi esboçado ontem. O risco de uma racionalidade a posteriori está presente em todas as partes do livro; mas as evidências de uma consciência global diante das injustiças do mundo contemporâneo foram tratadas com acuidade pelos articulistas. Resta saber até que ponto certa nostalgia da década de 1960 tolhe as análises e sínteses elaboradas pelos editores e coautores do livro.
Sílvio Marcus de Souza Correia – Doutor em sociologia pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha); estágio de pós-doutorado, Institut National de la Recherche Scientifique (INRS), do Québec (Canadá). Depto. de História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC. Cidade Universitária. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: silviocorrea@cfh.ufsc.br.
[IF]
Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RBH)
LIMA, Nísia Trindade; Sá, Dominichi Miranda de (Org.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 327p. Resenha de: OLIVEIRA, Lucia Lippi. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.58, DEZ. 2009.
Durante o século XIX ainda existiam dúvidas sobre como deveria ser chamado o nascido no Brasil. Não por acaso o principal jornal do Império denominava-se Correio Brasiliense. Já no início do século XX, ao apresentar um panorama da evolução da ciência no país, Roquette-Pinto se referia à contribuição científica dos ‘brasilianos’ e ao Brasil ‘brasiliano’, aquele depois de Ron-don. Essa mesma designação foi usada por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, organizadoras da coletânea Antropologia Brasiliana.
As quatro partes do livro mapeiam a ciência – a Antropologia – e a área de atuação – a educação – de Edgard Roquette-Pinto. A primeira parte, como diz seu título, trata do “Perfil e trajetória”; a segunda, de “Positivismo e nação”; a terceira, de “Antropologia e população”, e a última, de “Ciência e ação”. Na “Apresentação”, as organizadoras ressaltam que Roquette-Pinto é mais lembrado e reconhecido por suas realizações no rádio e no cinema educativos, ou seja, como divulgador da ciência, e é relativamente esquecido como cientista, estudioso das raças e dos tipos antropológicos brasileiros. Destacam, também, um ponto central presente na maioria dos artigos: Roquette-Pinto, com base em pressupostos da antropologia física e da biologia mendeliana, refutou as teses da inferioridade dos mestiços brasileiros.
Os artigos da coletânea procuram, cada um à sua maneira, situar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto no contexto da época e mostrar como as questões-chave dos anos iniciais do século XX envolviam o fortalecimento da República e da nação. A ciência da época – o Positivismo – prometia progresso e civilização, e nesse quadro sobressaía o papel dos engenheiros, dos médicos e dos educadores. As figuras de Oswaldo Cruz, Paulo de Frontin, Aarão Reis, Pereira Passos, Euclides da Cunha e Cândido Rondon, entre outros, podem iluminar os diagnósticos, as expectativas, as atuações, e também os desencantos dos primeiros anos da República no Brasil. Essa era a reação dos desiludidos, que procuravam respostas para a questão: “como explicar o atraso do Brasil?”. Os intelectuais cientistas entraram no debate lançando mão do que tinham à disposição: leis biológicas, eugenia, mestiçagem, ‘branqueamento’, imigração. Tudo isso foi acionado, com diferentes combinações, para explicar a formação do povo, da ‘raça’ brasileira, do ‘tipo’ nacional, e tentar responder ou resolver a questão mencionada.
O “Prefácio”, de Robert Wegner, assim como o artigo “Roquette-Pinto e sua geração na República das Letras e da Ciência”, das organizadoras do livro, oferece um bom guia de leitura. Então, como reapresentar aqui o livro aos leitores? O que selecionar? Como a seleção se faz guiada por motivações derivadas do trabalho do leitor/resenhador, esclareço as questões que guiaram minha leitura.
A construção de um regionalismo no Brasil durante o Estado Novo, reiterada pela atuação do IBGE na redefinição do mapa do país, ao estabelecer em 1941 a divisão regional do Brasil, foi acompanhada pela apresentação e divulgação de desenhos que representavam ‘tipos brasileiros’, como o seringueiro, o vaqueiro, o pescador, a baiana e o gaúcho, entre outros. Percy Lau, desenhista e funcionário do IBGE, foi o autor dos desenhos dessas figuras que frequentaram os livros de Geografia por muitas décadas. Durante a leitura, eu me perguntava: essa história de ‘tipos brasileiros’ teria a ver com sociologia de Oliveira Viana? Lendo Antropologia Brasiliana pude entender melhor a matriz dessa classificação e conhecer o papel dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre a unidade ou pluralidade da ‘raça’ brasileira. Os artigos de Giralda Seyferth, de Jair de Souza Ramos e de Vanderlei Sebastião de Souza, que compõem a terceira parte do livro e analisam a Antropologia do autor, oferecem a chave explicativa do debate em questão.
Giralda Seyferth, no magnífico artigo “Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”, analisa a obra antropológica do autor confrontando-a com a antropologia da época, em especial com o que já se dizia nos Estados Unidos (sobretudo Franz Boas). Roquette-Pinto produziu uma classificação dos ‘tipos nacionais’, assunto de destaque da antropologia física, que importava até mesmo para assuntos demográficos. Suas categorias se reportavam à cor da pele: leocodermos (brancos), melanodermos (negros), xantodermos (mestiços de branco e índio, indicativo da cor amarela) e faiodermos (mestiços de branco e negro). As classificações foram elaboradas com base em amostragem significativa de homens jovens oriundos de todos os estados brasileiros. Segundo Giralda, Roquette-Pinto, mesmo com uma bibliografia cheia de paradoxos, de classificações ambíguas, foi capaz de mostrar “a falácia da desigualdade racial, a heterogeneidade da população, a normalidade dos mestiços e a impossibilidade de vaticinar a formação de um tipo nacional” (p.161).
O artigo de Vanderlei Sebastião de Sousa, “‘As leis da eugenia’ na Antropologia de Edgard Roquete-Pinto”, também aborda a pesquisa “Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil”, cujo texto foi publicado em 1928 no Boletim do Museu Nacional e apresentado em 1929 no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Ali Roquette-Pinto concluía que nenhum dos tipos da população brasiliana apresentava qualquer estigma da degeneração antropológica. Negava assim os supostos efeitos negativos que derivariam da miscigenação social. Reafirmaria em Ensaios de antropologia brasiliana (1933) que não havia mal algum no processo de mestiçagem, na combinação de fatores biológicos que levaram à formação de um tipo híbrido, e que haveria mesmo, nessa formação, uma eugenia saudável. Assim, o homem brasileiro precisava era ser educado, e não substituído.
Jair de Souza Ramos, no artigo “Como classificar os indesejáveis?”, acompanha a participação de Roquette-Pinto no debate da seleção racial suscitado pela política de imigração. Explora os passos dados na identificação e restrição aos imigrantes indesejáveis e reafirma que Roquette-Pinto – convocado a participar nos debates das políticas de imigração por sua condição de antropólogo, autor de Rondônia (1917) e diretor do Museu Nacional (de 1926 a 1936) –, usando os caminhos da antropometria, abordando a questão da mestiçagem sob o ângulo da eugenia, ou seja, como portador de um discurso racialista, foi crítico da superioridade das raças. O uso da categoria ‘racioalismo’ como o autor do artigo esclarece, é feito no sentido explicitado por Todorov:
As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1) os homens se diferenciam em grandes grupos chamados raças, os quais possuem certa unidade física, que lhes confere determinadas características psicológicas e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indivíduo (isso significa supor que o comportamento do indivíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam apenas diferentes, mas também desiguais. (p.206)
Para além dos artigos que tratam da questão das raças e dos ‘tipos nacionais’, gostaria também de ressaltar o artigo de Regina Horta Duarte, “Rumo ao Brasil: Roquette-Pinto viajante”, que enfoca a viagem como uma vitória sobre a rigidez dos costumes, como algo capaz de forjar uma abertura no caráter do indivíduo e de operar uma transformação em cada brasileiro. As via-gens de Euclides, de Rondon, dos médicos sanitaristas, dos modernistas paulistas às cidades mineiras e de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste vêm merecendo atenção de inúmeros analistas. No caso de Roquette-Pinto o foco da transformação tem a ver com o impacto produzido pelo encontro com os Nhambikuáras em 1912, quando, acompanhando Rondon, fez sua viagem de descoberta do Brasil. Roquette-Pinto fez anotações e fotografou os índios, seus enfeites, seus apetrechos, suas habitações. Gravou a narração de lendas e cantigas, filmou o preparo da mandioca, os trabalhos de tecelagem e fiação. Observou, desenhou, documentou tudo, como prova e também como fonte de conhecimento a ser utilizado na educação.
Para Roquette-Pinto, a constituição da nação implicava vencer distâncias, e as estradas eram referidas como ‘vasos nutridores’ do Brasil. Se os ‘tipos brasileiros’ precisavam e podiam ser melhorados pela educação, o país enfrentava dificuldades adicionais derivadas da grande extensão territorial. Pode-se então compreender o papel do rádio e do cinema como projetos de divulgação do saber, como meios eficazes de vencer distâncias, de ultrapassar os limites do espaço e do tempo, possibilitando que os homens do povo realizassem suas viagens transformadoras. Daí sua frase: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. Tanto suas ações envolvendo o rádio e o cinema quanto sua atuação como editor da Revista Nacional de Educação, fundada em 1932, falam de uma mesma estratégia de partilhar o conhecimento entre os brasileiros espalhados pelo território nacional, nos informa Regina Horta Duarte.
A concepção de nação como domínio sobre os territórios e suas populações, as ideias sobre a importância do saber geográfico na construção da nação, estavam na ordem do dia. A premiação de Rondônia e de A expansão geográfica do Brasil Colonial, de Basílio de Magalhães, em 1917, pelo IHGB, falam dessa tendência. A repercussão de Os sertões já indicava isso. A relação entre ocupação do território e população também está fortemente presente na historiografia de Capistrano de Abreu. Se nação é combinação entre território e população, Roquette-Pinto estudou, escreveu, atuou nos dois campos, e procurou responder ao desafio de vencer dificuldades de ambos: vencer distâncias e demonstrar que o povo mestiço não era inferior. Seu compromisso com a nação, sua missão de construir a nacionalidade guiou sua trajetória e sua obra.
Ao discutir e apresentar a obra de Roquette-Pinto, Antropologia Brasiliana oferece um importante panorama das teses e dos confrontos de posições entre os intelectuais e cientistas que compunham a geração que pensou o Brasil na Primeira República. Mostra também a complexidade e a riqueza do pensamento da época ao fazer uso das categorias ciência, desigualdade, mestiçagem, branqueamento, imigração e democracia. Se alguns dos temas são questões do passado, outros estão presentes nos dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais vão se tornando correntes nas ações do Estado brasileiro. É importante que historiadores, sociólogos e antropólogos tomem conhecimento das experiências anteriores, quando a raça foi a principal moeda para condenar o mestiço brasileiro e para classificar os imigrantes desejados.
Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Praia de Botafogo, 190. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. lucia.lippi@fgv.br.
Repúblicas / Revista Brasileira de História / 2009
Neste número 58 iniciam-se os trabalhos do novo Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, com o compromisso de dar continuidade ao trabalho dos colegas que nos antecederam, e ao mesmo tempo enfrentar os desafios que ora se apresentam.
De acordo com a resolução da Assembleia Geral da Anpuh, realizada em Fortaleza em julho de 2009, este é o último número impresso da RBH. A partir do número 59, daremos início a uma nova fase, na qual a publicação será exclusivamente digital e com versão em inglês.
Adotar esse formato representa uma nova etapa na história da RBH. Nossa tradição historiográfica de valorização dos textos e arquivos em papel nos faz temerosos desses novos suportes da escrita. No entanto, as aceleradas transformações sofridas pelo mercado editorial na atualidade implicam uma tendência crescente à digitalização dos periódicos. A publicação eletrônica pode viabilizar a utilização da tecnologia com vistas ao enriquecimento da produção historiográfica, ou seja, abre-se a possibilidade de uma escrita da história que vai além das palavras e passa a compor narrativas com imagens, hipertextos, ambientes em 3D e tudo mais que o suporte digital puder oferecer ao pesquisador. Tal mudança tem ainda por objetivo a internacionalização da produção historiográfica brasileira, além da diminuição dos custos e das dificuldades logísticas para o armazenamento e distribuição.
Neste número, o dossiê “Repúblicas” reuniu quatro artigos que privilegiam o período de 1889-1930. O texto de Flavio Heinz analisa a atuação dos professores da Escola de Engenharia de Porto Alegre e sua participação na Administração Pública. Cláudia Viscardi nos apresenta um artigo que trata do mutualismo no Rio de Janeiro, visto como estratégia dos trabalhadores para enfrentar a pobreza e o desamparo social. O texto de Regina Horta, através da análise da trajetória do cientista Cândido de Mello Leitão, discute o desenvolvimento do campo da Biologia no Brasil, e como este foi marcado por uma forte instrumentalização política, comprometida com a defesa de concepções favoráveis à construção de um Estado forte e centralizado. Encerrando o dossiê, temos a contribuição de Natália de Lacerda, que analisa os dados produzidos pela Diretoria Geral de Estatísticas entre os anos de 1871 e 1931, buscando fazer uma reflexão acerca da relevância das estatísticas educacionais como fonte para a pesquisa em História da Educação.
Os demais artigos do número focalizam temáticas variadas. O texto de Helenice Ciampi, Alexandre Pianelly, Antonio Simplício e Ilíada Pires, “O currículo bandeirante”, discute os desdobramentos que a Proposta Curricular do Estado de São Paulo trouxe tanto para os profissionais de educação quanto para os discentes. Douglas Cole e Zephyr Frank apresentam uma pesquisa que aborda a temática da etnicidade e da classificação social no Brasil, do século XVIII ao XIX. Estudando a revista Niterói, Débora Andrade busca reconstruir a proposta de afirmação da nacionalidade contida nessa publicação, que defendia a centralidade das artes e da literatura. Fechando a série de artigos, temos a contribuição de Marco Stancik, que analisa fotografias datadas da época da Primeira Guerra Mundial abordando-as como documentos das diferentes percepções do conflito.
Ainda neste volume, apresentamos uma entrevista concedida pelo professor Fernando Catroga, da Universidade de Coimbra. O historiador nos falou sobre sua trajetória intelectual, eventos históricos por ele vividos e a evolução do lugar da História na sociedade contemporânea.
Terminamos este número da RBH com uma série de resenhas que buscam apresentar aos leitores contribuições relevantes para a produção historiográfica do Brasil e do exterior. Lúcia Lippi assina a resenha do livro Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Lima e Dominichi de Sá; Sílvio Marcus Correa nos apresenta o livro de Karen Dubinsky et al., New World Coming: the sixties and the shaping of global consciousness; Waldir Rampinelli traz um texto sobre a Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império, de Mike Davis; e por último temos Eliane Abrahão, que resenha o livro de João Luiz Máximo da Silva, Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930).
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.58, dez, 2009. Acessar publicação original [DR]
The surgeon in medieval English literature – CITROME (RBH)
CITROME, Jeremy J. The surgeon in medieval English literature. New York: Palgrave MacMillan, 2006. (The New Middle Ages Series). 191 p. Resenha de: SANTOS, Dulce O. Amarante dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun. 2009.
O diálogo profícuo com a produção acadêmica francesa constitui-se em uma das principais características dos estudos medievais no Brasil, sobretudo no campo da história. A leitura crítica da obra em epígrafe contribui para a ampliação desse diálogo, desta vez com a produção inglesa, já que se trata da publicação, pela editora norte-americana Palgrave MacMillan, de uma tese de doutorado realizada na University of Leeds. Seu Institute for Medieval Studies, centro de referência na área dos estudos medievais, realiza anualmente o maior congresso internacional europeu da área. O autor, Jeremy Citrome, é atualmente professor assistente de literatura inglesa na University of Newfoundland and Labrador, no Canadá.
Na introdução, Citrome afirma que não se propôs a realizar uma obra de história da medicina nem de crítica literária, mas uma análise do poder social da metáfora do cirurgião nos textos poéticos religiosos e nos textos médicos em prosa, em língua vernácula, o inglês medieval (Middle English), no final da Idade Média. O rigor da investigação repousa na erudição do medievalista, que exibe domínio das fontes manuscritas e impressas além da extensa e valiosa bibliografia compulsada.
O exame da inter-relação entre os conceitos medievais de pecado e doença não é algo novo, muito menos a associação entre o físico (médico) e o padre confessor. O médico antigo cuidava da paixão (sofrimento) do corpo, o filósofo (e depois o padre confessor) aplicava-se a curar as doenças da alma, ou seja, os pecados. É bem conhecida também a imagem de Cristo como o Supremo Médico, aquele que traz o conforto físico e espiritual, perpetuada por Agostinho de Hipona. Essa imagem justifica-se, dentre outros fatores, porque grande parte de seus milagres foi cura de doentes (paralíticos, leprosos, cegos e surdos, entre outros) e igualmente porque trouxe a salvação à humanidade enferma pelo pecado. Nessa linha, nenhum físico poderia competir com as intervenções miraculosas de Deus.1 Outra questão abordada é a não distinção muito clara entre os físicos e os cirurgiões no período anterior ao século XIII, o grande divisor na história da medicina. Ambos podiam exercer as três estratégias da arte de curar os corpos enfermos: primeiro, a composição de regimes e dietas para a preservação da saúde corporal; segundo, a prescrição de remédios apropriados para cada caso e, por fim, o último recurso adotado quando os outros falhassem, a cirurgia, ou seja, a interferência direta no corpo. Este era pensado como criação divina, algo fechado (enclosure), sem lesões, inviolável, daí a proibição da dissecação dos cadáveres até o final do século XIV e o pouco desenvolvimento da anatomia. Além disso, para os gregos antigos a enfermidade era um processo de desestruturação interna do corpo humano. Para explicá-la Hipócrates de Cós (século V a.C.) criou a teoria humoral, retomada por Galeno (século II d.C.) e utilizada em toda a medicina medieval. Nessa teoria o corpo era formado por quatro humores ou compostos líquidos, a saber, sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. A corrupção deles constituía-se na causa primeira de todas as doenças humanas.
Paralelamente ocorreu o debate em torno desta questão: a medicina era uma arte (techné ou ars) ou uma ciência (epistemé ou scientia)? Discussão interminável, que fazia da teoria uma ciência e da prática uma arte. Segundo Aristóteles, uma das grandes autoridades do período, a medicina estava mais para a techné grega (ou ars), porque mesmo sendo uma ciência fundada em princípios universais, tem como objetivo o incerto, o particular, o que lhe confere o estatuto de arte, no saber fazer. Porém, a medicina podia ser entendida como uma ciência, já que implicava racionalidade, explicação causal, observação, indução e dedução, previsões e hipóteses. Assim, nessa afirmação da medicina como um campo do conhecimento teórico no diálogo com a filosofia natural, os físicos escolásticos, atuantes nos Studia Generalia de Paris, Montpellier ou Bolonha, tornaram-se figuras proeminentes na hierarquia dos especialistas na cura das doenças: os cirurgiões, os barbeiros, as parteiras etc. É importante ressaltar que muitos físicos eram clérigos.
O grande mérito da obra de Jeremy Citrome consiste em sua contribuição para essas questões com sua nova leitura dos cânones do IV Concílio de Latrão (1215), destacando as repercussões nos meios médicos e eclesiásticos na época posterior. Nesse concílio, o papa Inocêncio III (1198-1216) implantou uma série de reformas, dentre as quais destacam-se a obrigatoriedade da confissão auricular anual para o perdão dos pecados e a proibição do exercício da cirurgia pelos clérigos, pois qualquer contato com sangue era incompatível com o exercício da atividade clerical. Consequentemente, a cirurgia passou a ser majoritariamente exercida por leigos e socialmente desprestigiada. No entanto, no final do século XIV e inícios do XV, a cirurgia começa a integrar o currículo dos cursos de medicina. Simultaneamente ocorre a proliferação de manuais de confissão2 e de cirurgia, tais como o de Guy de Chauliac e o de Lanfranco, em línguas vernáculas na Inglaterra e em outros reinos europeus. Assim, segundo Citrome, essas duas reformas foram responsáveis pelo aparecimento da metáfora da cirurgia como tratamento para ferimentos, entendidos muitas vezes como as marcas corporais do pecado. Praticamente todo manual de confissão no século XIV incorpora essa imagem dos ferimentos corporais ligados ao pecado, pois para esses clérigos a relação entre a aflição física e a espiritual não era meramente figurativa. Associavam aflições corporais com intemperança moral. Portanto, as feridas eram sinais das punições futuras dos pecadores no post mortem. O autor demonstra essa tese numa análise instigante das fontes literárias e médicas dos séculos XIV e XV.
A título de exemplo, Citrome explora o poema-sermão Cleanness, cuja narrativa linear de história sagrada bíblica inicia-se com episódios do Velho Testamento, o Dilúvio e a destruição da cidade de Sodoma, e chega até a Encarnação de Cristo no Novo Testamento. Ao dialogar com outros estudiosos do poema, demonstra, de forma interessante, a interface da medicina com a teologia, quando o autor anônimo (Pearl Poet) comparou as diferentes ações divinas, no Velho e no Novo Testamento, com tratamentos médicos opostos. O poeta reflete a divisão discursiva já referida entre as atuações dos físicos e dos cirurgiões, apresentando o Deus do Velho Testamento como cirurgião e Jesus Cristo, num segundo momento, como o físico que cura sem ferir. Assim, a primeira imagem é a de Deus como o cirurgião que queima e destrói o tecido corrompido do corpo social, justificando, portanto, a destruição punitiva para os sodomitas em função dos desregramentos sexuais, considerados pelo poeta como lesões ou fístulas que poderiam infectar toda a sociedade. Nessa estrutura discursiva e mental que trabalha com antíteses, Cristo torna-se, para o poeta, o físico que trouxe tratamentos médicos suaves, pois cura sem ferir os pecados humanos.
Em outro capítulo da obra, Citrome volta-se para a leitura crítica da obra Concilium consciencie, uma antologia de poemas sobre diversos temas religiosos do século XIV, de autoria do clérigo John Audelay. O exame desses poemas é duplamente valioso porque aponta para a ubiquidade da metáfora das lesões do pecado e também porque se trata de um relato autobiográfico de aflições vividas, dos sofrimentos crônicos, que defende a confissão como o único remédio verdadeiramente eficaz contra esses males. Assinala ainda os vários significados da doença na cultura penitencial do final da Idade Média, na Inglaterra, e a importância contínua da metáfora do cirurgião para os discursos de salvação.
A fim de contrapor fontes médicas às literárias de cunho religioso, o autor debruçou-se também na versão em Middle English da obra latina do século XIV, Practica, do cirurgião inglês John de Arderne. Num dos tratados desse texto, Fistula-in-Ano, Citrome desvenda a imagem ambivalente do cirurgião e de sua atividade porque corta, mas depois une, remove, porém logo restaura, fere e, por fim cura, assim como o próprio Deus. Dessa maneira, justifica a cirurgia como atividade salvadora e, ao mesmo tempo, defende a proposta de valorização social do seu ofício de cirurgião.
Por fim, convém ressaltar a abordagem interdisciplinar, hoje tão incentivada nas pesquisas científicas, mas nem sempre bem-sucedida, operada por Citrome tanto na composição do corpus documental quanto no diálogo com a historiografia social da medicina e com a produção da crítica literária sobre a época medieval. Este livro integra, assim, os títulos da série The New Middle Ages, organizada por Bonnie Wheeler, especialista em literatura medieval da Southern Methodist University (SMU), nos Estados Unidos, cuja marca distintiva é a publicação de estudos acadêmicos interdisciplinares sobre as culturas medievais.
Notas
1 AGRIMI, Jole; CRISCIANI, Chiara. Charité et assistance dans la civilisation chrétienne médiévale. In: GRMEK, Mirko (Dir.). Histoire da la pensée médicale en Occident. Paris: Seuil, 1995. p.151-174. [ Links ]
2 Em Portugal traduziu-se o Libro de las confesiones de Martim Perez (Universidade de Salamanca, 1316).
Dulce O. Amarante dos Santos – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás (UFG). Pesquisadora do CNPq – Campus II Samambaia. 74001-970 Goiânia – GO – Brasil. E-mail: dulce@fchf.ufg.br.
[IF]Greening Brazil: environmental activism in state and Society – HOCHSTETLER; KECK (RBH)
HOCHSTETLER, Kathryn; KECK, Margaret E. Greening Brazil: environmental activism in state and Society. Durham (NC): Duke University Press, 2007. 304 p. Resenha de: SEDREZ, Lise. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun. 2009.
Com um estilo envolvente e farta documentação, Greening Brazil: environmental activism in state and society promete um estudo ao mesmo tempo amplo e detalhado do ativismo ambiental no Brasil. É uma promessa cumprida com garbo. Usando como fio condutor a transformação da agenda ambiental no Brasil, o livro analisa a interação entre o Estado brasileiro e a sociedade civil. As autoras Kathryn Hochstetler e Margaret Keck já estudam as instituições brasileiras e o movimento ambientalista há mais de duas décadas e, em Greening Brazil, colocam ao alcance do leitor a experiência e o insight acumulados ao longo dos anos, num trabalho ambicioso que sintetiza temas de governabilidade, história ambiental e conexões entre Estado e sociedade civil.
Em publicações anteriores, Hochstetler e Keck já tinham proposto modelos teóricos competentes sobre a gênese da moderna sociedade civil na América Latina. Neste novo livro, no entanto, as autoras se debruçam sobre os mecanismos concretos que deram forma aos processos de desenvolvimento de instituições ambientais, evidenciando ora as potencialidades e contradições desses processos, ora os agentes e alianças que os tornaram possíveis. Traçando narrativas locais e internacionais, Greening Brazil associa o contexto internacional de disputas e acordos ambientais às singularidades da história e da política brasileiras. Nesta perspectiva, as autoras corretamente sublinham a importância de trajetórias e alianças pessoais no funcionamento do Estado brasileiro, assim como o descompasso entre uma legislação ambiental avançada e sua implementação de fato, não tão avançada. Parte do dilema de base, segundo Hochstetler e Keck, se explica pelas constantes reestruturações a que as agências ambientais eram submetidas, as quais continuamente redefiniam o foco de ação para um ou outro aspecto da agenda ambiental. Esse processo de permanente recomeçar trouxe para a esfera pública elementos de incerteza e indefinição que os atores políticos precisavam levar em conta ao alocar esforços e recursos.
Para os leitores americanos, seu público alvo, Hochstetler e Keck dissecam os diversos níveis da burocracia brasileira e suas transformações ao longo dos anos, transpondo quando possível agências e títulos para os similares americanos. Não é uma tarefa menor, já que alguns – ou vários – aspectos desse sistema legal e administrativo são obscuros mesmo para brasileiros, e já que várias das transformações citadas no livro, como a expansão de direitos coletivos e a criação do Ministério Público, foram conquistas quase revolucionárias no processo de formação da sociedade civil no Brasil. Nessas análises, a contribuição de Hochstetler e Keck é valiosa não só para leitores interessados em meio ambiente e governabilidade, mas também para um público mais amplo que estude o funcionamento do Estado brasileiro.
As autoras organizaram o livro cronológica e tematicamente. Os primeiros três capítulos discutem o estabelecimento de agências ambientais governamentais e não governamentais desde 1950, identificando três fases (ou ondas) de ativismo ambiental. A primeira fase, influenciada por um nacionalismo desenvolvimentista que se prolonga até a década de 1970, deu origem às mais antigas organizações conservacionistas brasileiras e várias instituições de pesquisa ambiental, e formou a geração que criou as primeiras instituições ambientais governamentais. A segunda fase cobre o período de liberalização política que se inicia em 1974 e continua até meados dos anos 80. Nesse período emergiram organizações ambientalistas mais militantes, “socioambientalistas”, de certa forma inseridas no quadro mais amplo de pressões exercidas pela sociedade civil brasileira pela melhoria de condições sociais e por maior democracia. Um terceiro período, a partir da Constituição de 1988, caracteriza-se pelo desafio triplo de restauração democrática, crise econômica e aumento exponencial do contato com agências e ativistas internacionais, um movimento que continua até o presente.
Os últimos dois capítulos são desenvolvidos paralelamente a essa identificação das “três ondas” do ambientalismo brasileiro, em estudos de caso sobre florestas e ambiente urbano, os dois pólos que constituem, nem sempre harmonicamente, a base da agenda ambiental brasileira. É um fecho oportuno – e necessário. Se por um lado a questão da Amazônia foi e é fundamental para o ambientalismo brasileiro, por outro lado a partir de meados dos anos 80 cerca de 40% de todas as organizações ambientais no Brasil, governamentais ou não, eram voltadas para problemas ambientais urbanos – uma consequência da característica majoritariamente urbana de 80% da população brasileira, incluindo os ambientalistas.
Uma das contribuições de Greening Brasil é seu entendimento de políticas ambientais como inseridas no contexto político brasileiro maior, e não isoladas ou um fim em si mesmas. Nesse sentido, e diferentemente de experiências em outros países, as autoras ressaltam a importância da politização do ativismo ambiental – neutralidade política não era uma opção se o ambientalismo buscava se legitimar no quadro político brasileiro. Porém, não obstante a importância de atores domésticos, o livro enfatiza também o papel de atores transnacionais, brasileiros ou não. Talvez o papel da iniciativa privada, que em parte resistia à agenda ambiental, e em parte se apropriava desta para fins de relações públicas, tenha sido pouco desenvolvido no livro. E talvez algumas vezes o acompanhamento dos ativistas ao longo de décadas tenha sido menos frequente e evidenciado do que os leitores gostariam, haja vista a importância que as autoras dão às trajetórias pessoais no desenvolvimento de políticas ambientais públicas. Mas em geral, Greening Brazil é uma obra fundamental para a história do ambientalismo brasileiro, trazendo à luz fontes inestimáveis como entrevistas com Chico Mendes e Herbert de Souza, o Betinho. De fato, o longo envolvimento de Hochstetler e Keck no ambientalismo brasileiro as torna, tal qual seus entrevistados, atores da narrativa que construíram em seu livro.
Lise Sedrez – Professora Assistente de História da América Latina, California State University, Long Beach. 1250 Bellflower Boulevard, Long Beach, CA 90830-1601. E-mail: lsedrez@csulb.edu; www.sedrez.com.
[IF]El desierto en una vitrina: museos e historia natural – PODGORNY; LOPES (RBH)
PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margaret. El desierto en una vitrina: museos e historia natural. México: Limusa, 2008. 279 p. Resenha de: BLASCO, María Elida. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun. 2009.
La publicación de El Desierto en una vitrina se trata de un hecho muy esperado para quienes nos interesamos por la historia de los museos y el coleccionismo. En efecto, haciendo una revisión de las investigaciones producidas por los historiadores argentinos1 notaremos la ausencia de trabajos vinculados al surgimiento y desarrollo de los museos, aunque si apelamos a la comparación, afortunadamente en Brasil la situación despliega mayor riqueza.2 Por ese motivo, cabe señalar que para los ámbitos académicos argentinos, el estudio de la complejidad de las instituciones llamadas “museos”, era una asignatura pendiente felizmente saldada con la aparición del libro que nos ocupa.
En segundo lugar, corresponde destacar que la obra elaborada en conjunto entre una investigadora argentina y otra brasileña conlleva un riguroso trabajo previo: las autoras cuentan con amplia producción académica centrada en los diferentes aspectos de la práctica científica desarrollada en los museos, el trabajo, las técnicas y las condiciones de construcción e institucionalización de las ciencias naturales durante el siglo XIX.3 El fluido intercambio de conocimientos sumado a la posibilidad de investigar “la una en el país de la otra”, posibilitó la feliz experiencia de escribir un libro en coautoría. Esos aprendizajes las llevaron a descubrir similitudes y establecer diferencias sobre la base del libro escrito por Lopes en 1997 O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX, centrado en el actual Museo Nacional de Río de Janeiro. Algunos resultados de la comparación entre la constitución de los museos brasileños y argentinos fueron publicados como artículos, otros plasmados en el libro de Podgorny El argentino despertar de las faunas y de las gentes prehistóricas, y muchos otros condensados en El desierto… que analizan la complejidad de las dimensiones en las que se inscribe un museo.
El libro ofrece una visión panorámica de los museos de ciencias de la Argentina del siglo XIX: Museo Público de Buenos Aires, Museo Nacional de Paraná, Museo de Corrientes, los museos de la Academia de Ciencias de Córdoba, el Nacional de Buenos Aires, el Museo de La Plata, los museos universitarios y aquellos surgidos en el seno de las sociedades eruditas metropolitanas y provinciales. Los nueve capítulos se estructuran en tres niveles de análisis: el origen de las colecciones insertas en las redes del mercado; la relación entre los museos y la imbricada maquinaria estatal – que involucra sobre todo las estrategias montadas por sus promotores y las circunstanciales alianzas políticas; y los museos como lugares de producción de conocimientos científicos asociados a la especialización disciplinar.
El capítulo 1 describe el entrecruzamiento entre el envío de ejemplares a los museos europeos, la provisión al mercado internacional, la diplomacia, la política y el interés de algunos naturalistas por otorgar impulso y funcionalidad al Museo Público de Buenos Aires (fundado en 1823 bajo protección estatal). El segundo capítulo se ocupa del Museo Nacional de Paraná, fundado por el gobierno de la Confederación (1854) y del Museo de Corrientes (1852) haciendo hincapié en las divergencias entre los objetivos establecidos por los decretos fundacionales y las funciones concretas de las instituciones moldeadas por las prácticas científicas de sus directores. El tercero analiza los intentos de reorganizar el Museo Público de Buenos Aires luego de 1854, primero bajo el impulso de la Asociación de Amigos de la Historia Natural del Plata y luego de la mano de quien dirigió y orientó la institución hacia la paleontología: Hermann Burmeister. El capítulo gira en torno a las prácticas del naturalista que transformó el “museo general” en gabinete de estudio del director. Estos aspectos son retomados en el capítulo 4 donde se exponen las estrategias montadas por Burmeister para producir y divulgar sus investigaciones y dialogar con sus pares a través de los espacios institucionales que contaba con la protección de los poderes público. Pero como muestran las autoras, la retroalimentación de esa imagen de “única autoridad científica”, comenzó a ser cuestionadas por algunos “jóvenes locales”. Este es el tema del capítulo 5: el surgimiento de la Sociedad Científica Argentina, en 1872, donde adquieren protagonismo Estanislao Zeballos, Francisco Moreno, Carlos Berg y Florentino Ameghino. Apelando a sus colecciones particulares, ellos impulsaron la formación de un museo vinculado a la antropología y la arqueología.
El capítulo 6 lleva por título el libro de Zeballos, “La conquista de las 15.000 leguas”, y explora el devenir de las prácticas científicas en la campaña militar de expansión de las fronteras del Río Negro. Por otro lado, también se analizan los debates parlamentarios donde se discute la posibilidad de utilizar fondos públicos para los viajes de exploración del noroeste argentino propuesto por la sección Córdoba del Instituto Geográfico Argentino.
El capítulo 7 describe las negociaciones políticas de 1881 surgidas a raíz del proyecto del Poder Ejecutivo de fundar un Museo Nacional en Buenos Aires y de las pretensiones de Moreno y Ameghino de crear un “gran museo nacional” desalojando al Museo Público de la nueva capital de la nación. Pero como se demuestra en el capítulo 8, las alianzas políticas estaban imbricadas también en polémicas científicas entre naturalistas como las que mantuvieron unidos a Ameghino y los hermanos Doering en contra de Burmeister en los años posteriores a 1882. Y en estas polémicas científicas que ilustran parte del problema de la paleontología del siglo XIX, también se vislumbra la superposición de cuestiones mucho menos teóricas como las disputas por los puestos de trabajo en instituciones públicas, la difusión de sus investigaciones y el control sobre la provisión de datos.
Finalmente, el capítulo 9 describe la conformación del Museo General de La Plata moldeado desde su instalación en 1884, por Francisco Moreno, pasando revista al pasaje de las colecciones privadas a los museos estatales, al control de las instituciones y a la consolidación del trabajo científico y al uso de un discurso legitimador basado en “ayudar a construir la Nación mediante el estudio de sus recursos y la educación de sus habitantes”.
Una de las mayores contribuciones del libro reside en desmontar los discursos establecidos, tanto por los científicos como por los representantes de los poderes públicos, concentrando su atención en las prácticas sociales de los promotores de museos. Desde la perspectiva de los estudios de la historia visual se ha limitado el surgimiento de estas instituciones con los “nuevos escenarios” para la celebración de “las glorias pasadas” y con los programas de nacionalización para la construcción de la identidad nacional.4 Sin embargo, el libro reseñado sugiere una revisión a estos argumentos y un abanico de interrogantes a explorar: ¿existieron realmente sólidos proyectos para efectivizar la alianza entre historia-ciencia-poder y control estatal?, ¿por qué entonces la formación de colecciones y el trabajo científico se estructuraban sobre redes de sociabilidad privada y apelando a recursos económicos propios?, ¿cuáles eran los vínculos formales e informales entre los promotores de los museos, los grupos políticos y las estructuras de un aparato estatal en formación?. Según nuestro criterio, si algo le falta al trabajo de Podgorny y Lopes es justamente ese debate: dicho de otra manera, explicitar las posturas historiográficas y los criterios metodológicos con los cuales existiría la posibilidad de confrontar o de coincidir, vinculando los aspectos analizados en el libro no solo con la historia de la ciencia, sino también con procesos más amplios ligados a la construcción de la historia. A su vez, una mayor conexión entre los aspectos tratados con otras contribuciones de la historiografía,5 otorgaría mayor solidez a los argumentos sostenidos por las autoras. En definitiva, lejos de agotar las controversias, el libro convoca a iniciarlas ya que creemos que solo intentando derribar las barreras, a veces levantadas con demasiada solidez entre los diferentes campos disciplinarios, podremos comprender los imbricados y solapados motivos que llevaron a algunos científicos a intentar, como lo sugiere el título del libro, encerrar “el desierto” en las estrechas vitrinas de un museo. Por este motivo, sumado a la riqueza temática y la solidez que encierra, sus páginas constituirán una referencia ineludible para las investigaciones posteriores que intenten una “historia de la práctica científica” o una “historia de los museos” latinoamericanos.
Notas
1 Desde la historia del arte se realizaron aportes de relevancia respecto a la formación de las colecciones artísticas tales como los trabajos de Laura MALOSSETTI COSTA y María Isabel BALDASARRE.
2 Solo a modo de ejemplo, los señeros trabajos de Ulpiano T. Bezerra de Meneses y los de la misma Maria Margaret Lopes.
3 Cf. Curriculum Vitae de las autoras en los sitios www.sicytar.secyt.gov.ar/busqueda/prc_imp_cv_int?f_cod=0000536326 y buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4793564H8.
4 FERNÁNDEZ BRAVO, Alvaro. La invención de la nación. Buenos Aires: Manantial, 2000; [ Links ] GONZÁLEZ STEPHAN, Beatriz; ANDERMANN, Jean (Ed.). Galerías del progreso: museos, exposiciones y cultura visual en América Latina. Rosario: Beatriz Viterbo Ed., 2006. [ Links ]
5 Cf. BUCHBINDER, Pablo. “Vínculos privados, instituciones públicas y reglas profesionales en los orígenes de la historiografía argentina”, Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. Emilio Ravignani”, n.13, 1996, p.59-82. [ Links ]
María Elida Blasco – Bolsista Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas). Archivo del Museo de La Plata – Neuquén 1306, 7° B, CP 1405 – Ciudad Autónoma de Buenos Aires – Argentina. E-mail: eliblasco@yahoo.com.ar.
[IF]Black townsmen: urban slavery and freedom in the eighteenth-century Americas – DANTAS (RBH)
Há cerca de três décadas os estudos comparativos das várias regiões do Novo Mundo consideradas como escravistas andam em descrédito entre a maioria dos historiadores especialistas no tema. A renovação historiográfica, iniciada nos Estados Unidos no final da década de 1960, julgava como simplista e inadequada a abordagem que enfatizava as diferenças entre as sociedades escravistas ibero-americanas e anglo-saxônicas, particularmente no que diz respeito à história das suas instituições e culturas distintas.1 Da mesma forma, rejeitava como mecanicistas as análises que insistiam nas semelhanças, naquelas mesmas sociedades, da natureza da escravidão como um sistema de exploração econômica.2 Já a mais conhecida tentativa revisionista de redirecionar os estudos comparativos para a problemática das classes constituintes dos regimes escravistas3 acabou sucumbindo, apesar da matriz marxista compartilhada, diante da crescente influência de E. P. Thompson sobre os estudiosos da escravidão e da consequente preocupação em desvelar o escravo como agente de sua própria história. Desde então, vem prevalecendo a tendência de concentrar os esforços em pesquisas bem delimitadas, seja pelas temáticas,4 seja em termos regionais,5 tendência essa claramente reforçada pela progressiva consolidação das várias correntes da História Social da Cultura. E, é inegável que o resultado tem sido o enriquecimento quase que imensurável da produção em torno da escravidão moderna, erguendo-a a uma posição de grande destaque na historiografia brasileira, caribenha, norte-americana e, de maneira menos impactante, na da América Hispânica continental. Ao mesmo tempo e correlato à crescente especialização dos estudos do escravismo, vem-se assistindo ao surgimento da História da África, cada vez mais aprofundada e nitidamente vinculada aos rumos da História Mundial. Leia Mais
Esquizohistoria: la Historia que se enseña en la escuela, la que preocupa a los historiadores y una renovación posible de la historia escolar | Gonzalo de Amézola
A obra Esquizohistoria faz parte da linha “Formación Docente” da Ediciones del Zorzal, uma nova editora argentina que tem centrado seu trabalho exatamente na área de atualização e formação dos professores das diversas áreas das disciplinas escolares. O título decorre de um artigo da década de 1990 publicado por Amézola juntamente com Ana Barleta, no primeiro número da revista Entrepasados, que hoje se caracteriza como uma das mais importantes revistas de história na Argentina. Esse artigo foi motivado pela magnitude das diferenças e contradições entre a visão do passado que os jovens ingressantes na Universidade de La Plata traziam do ensino médio, a que viam durante o curso e, de volta, a que deveriam enfrentar novamente com o planejamento para as atividades de estágio nas escolas. Amézola aponta que não se trata de erudição ou não, mas de natureza da história em cada âmbito, dentro de um processo de contínuo afastamento. O que explica esse espaço crescente entre a história na universidade e na escola é que “história acadêmica” tornou-se conhecimento especializado, e a escola sedimentou sua forma própria de conceber e de ensinar história, o que praticamente bloqueia a inovação com seus preceitos. Os termos esquizohistoria e historiofrenia indicam que essa fratura entre as histórias assumia e continua assumindo uma característica patológica, mesmo passados mais de dez anos entre aquele artigo e este livro. Mudaram radicalmente as características institucionais da educação argentina, mas permanece, todavia, a incerteza do valor educativo da história que se estuda na escola.
A primeira questão que cumpre responder é sobre o interesse da obra para os historiadores não argentinos, especialmente os historiadores brasileiros interessados nas questões relativas ao ensino de História. O motivo mais imediato é a comparação de experiências históricas e temas atuais na área entre Brasil e Argentina, que a obra permite largamente, e que a realidade demanda de maneira cada vez mais intensa no contexto da integração cultural motivada pelo Mercosul, bem como pela integração latino-americana mais ampla.
A obra permite também a identificação das formas pelas quais os colegas argentinos equacionaram ou vêm equacionando problemas educacionais ou teóricos dentro de suas fronteiras, mas que na realidade são problemas comuns. Nessa vertente, poderemos talvez nos beneficiar da experiência já desenvolvida no enfrentamento daqueles problemas comuns, por caminhos distintos dos que viemos tentando ao longo do tempo.
Outro fator que torna o livro interessante para a comunidade de história no Brasil é o fato de permitir o conhecimento da bibliografia com a qual os colegas argentinos equacionam algumas das suas questões de interesse, que em alguns pontos são relativamente novas para nós, e em outros são velhas questões da reflexão didática da história tal como se realiza no Brasil, mas por outros caminhos e com outros autores. Esse conhecimento mútuo, que em muitos casos ainda está totalmente por fazer, tem grande potencial para impulsionar a pesquisa e a reflexão teórica e didática, assim como as contribuições dos pesquisadores à escola.
O livro está estruturado em duas partes. A primeira traça um histórico que permite vislumbrar como se refletiu na escola a visão dos historiadores da segunda metade do século XIX (ou como se constrói o que se pode chamar hoje de tradição do ensino de História). Se essa parte é útil ao professor de história argentino por ajudar a apreender a historicidade do seu métier, para o professor de história brasileiro e/ou pesquisador brasileiro do ensino de história, a narrativa desse percurso permite, além de conhecer melhor a experiência do país vizinho, ir reconhecendo e colecionando elementos que começam a sugerir universais do fenômeno social que é o ensino escolar da história, para além da especificidade das histórias particulares.
A segunda parte do livro é composta por um panorama crítico das alternativas de mudança para que a história no ensino médio se torne mais significativa. No final das contas, o desenho do problema central da obra é dado pelo esquadrinhamento e presença constante da diferença de natureza, ritmo e até mesmo de objeto entre a história ensinada e a pesquisada institucionalmente hoje, final de uma trajetória cujo início é marcado por uma quase identidade entre a história acadêmica e a história escolar.
Como se estabeleceu na escola uma visão de história tão resistente às inovações? Ao buscar as respostas a esse problema, Amézola indica as considerações de dois pesquisadores, Cuesta Fernández, que aporta o conceito-chave de “código disciplinar” a partir da história social da cultura, e Pilar Maestro, cuja análise ocorre a partir da teoria da historiografia e de sua relação com aspectos psico-cognitivos e traz a reflexão sobre a grande influência das histórias gerais de construção de narrativas nacionalistas no século XIX para a criação de uma forma curricular para a história em diversos âmbitos educativos. Para Maestro, esse momento estabelece uma imagem tão forte da história e da nação – além do próprio conceito de história – que permanece marcada no imaginário coletivo. A primeira parte do livro é dedicada a testar essas teorias – desenvolvidas para o caso espanhol – na história argentina do ensino de História.
Depreende-se que, para o autor, a história do ensino de História na Argentina é periodizada de forma própria, ainda que seja balizada por alguns dos marcos da história política. Do surgimento da Argentina em 1810/1815 até 1930, temos o período de constituição da disciplina (pois lá, como aqui, a criação da disciplina escolar coincide com a criação da disciplina científica) e de seu conteúdo, que poderia ser intitulado como “organização do panteão dos heróis”. Outro período delimitado por Amézola vai de 1930 a 1955, marcado pelo nacionalismo e pelo peronismo. É a conformação do início de um combate pela história, revisionista, no qual os nacionalistas recuperam a imagem de Juan Manuel de Rosas e o incorporam ao panteão de heróis nacionais. Perón, aliás, tratou inicialmente de associar sua imagem à de Sarmiento, e no período posterior, de 1955 (queda de Perón) a 1976, a “desperonização” da educação teve como uma de suas marcas a associação de Perón a Rosas, caracterizando seu período como “segunda tirania”. Nesse período, Amézola identifica o incremento da velocidade de distanciamento entre a história escolar e a história acadêmica. O outro período é o da segunda ditadura militar e da redemocratização, de 1976 a 1993 (ano da reforma educativa que institui os Contenidos Basicos Comunes), em que a psicologia cognitiva passa a ter um papel de peso na definição da história na escola. O período atual, por sua vez, é marcado pela reforma de 1993 e a intenção – não tão bem-sucedida – de aproximar ambas as histórias.
A segunda parte do livro dedica-se a apontar os principais temas da discussão do ensino de História na Argentina, que constituem as várias frentes a partir das quais se procura aproximar um pouco mais a história pesquisada e a história ensinada.
Amézola cita Zavala (Uruguai), Finocchio e Lanza (Argentina) para demonstrar que hoje o conhecimento escolar no campo da história é um conhecimento à parte, composto de diversas fontes, e que as formas de promovê-lo em sala de aula são distintas, com predomínio de uma perspectiva positivista, complementada por um olhar idealista, com raros matizes de uma abordagem hipotético-dedutiva.
O autor coteja o tema do ensino de história com as proposições da psicologia e da pedagogia, opondo assim os graduados em história a pedagogos e psicólogos no enfrentamento das questões do ensino de história. Sem desprezar suas contribuições, reivindica o espaço do historiador no debate educativo, já que esse profissional é quem tem o domínio da matéria, sem o que as inovações técnicas ficam no vazio ou reforçam objetivos e práticas educativas já superadas epistemologicamente no campo da história e das ciências humanas.
Nessa chave interpretativa, o autor percorre as discussões sobre o ensino e a operação com os conceitos de tempo e espaço; a periodização; a complexidade do tempo histórico; os sujeitos históricos; sobre o que se busca com o ensino – “saber história” ou “saber historiar” -, e assim aborda o tema dos conteúdos procedimentais.
Com o debate dos conteúdos procedimentais, Amézola constrói o encerramento da obra, considerando o malefício que é a “procedimentalização” do ensino de história quando ocorre sem um profundo conhecimento da disciplina. Oferece ao professor-leitor uma sugestão de encaminhamento didático em que se aplica a construção do conhecimento histórico, atendendo, assim, à demanda pelos conteúdos procedimentais, sem perder de vista a complexidade do tempo histórico e das demandas epistemológicas contemporâneas da disciplina. Afinal, por mais que se distanciem pesquisa e ensino, continuam sendo essas as balizas comuns do trabalho de historiadores-professores ou professores-historiadores. Lidar com essa relação entre a história que se pesquisa e a história que se ensina, relação que para o autor chega às raias da patologia, é o desafio cotidiano desses profissionais.
Luis Fernando Cerri. Professor do Departamento de História e do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Rua Conrado Schiffer, 60, bl. 4, ap. 304 – Vila Estrela. 84050-280 Ponta Grossa – PR – Brasil. lfcerri@uepg.br.
AMÉZOLA, Gonzalo de. Esquizohistoria: la Historia que se enseña en la escuela, la que preocupa a los historiadores y una renovación posible de la historia escolar. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2008. Resenha de: CERRI, Luis Fernando. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.57, JUN. 2009. Acessar publicação original [IF].
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX – REIS (RBH)
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 461 p. Resenha de: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29 no. 57, JUN. 2009.
João José Reis é merecidamente um figurão da historiografia brasileira. Seus livros, desde o pioneiro Rebelião escrava no Brasil, modificaram o estado da arte dos estudos sobre escravidão, sobre rebelião escrava e movimentos sociais, não só no país, mas internacionalmente. Esse pesquisador meticuloso e apaixonado, esse amante dos arquivos, das bibliotecas, dos documentos e dos livros acaba de lançar mais uma obra, um livro já saudado efusivamente em várias resenhas de especialistas no campo dos estudos sobre escravidão, no campo da chamada História Social: Domingos Sodré, um sacerdote africano. O livro se propõe a fazer um exercício de micro-história, pois toma como fio condutor da análise a vida de um africano liberto que viveu na Bahia do século XIX, e a partir da biografia desse ex-escravo que se tornou uma importante figura entre a população africana da cidade, desse sacerdote preso por ser acusado de práticas religiosas heréticas e diabólicas, o autor traça um amplo panorama das intrincadas relações sociais, das relações de poder, das atividades econômicas e culturais vivenciadas pelos libertos, por essa parte da população que, vivendo nas fímbrias do sistema escravista, sendo resultado dele, mas em muitos aspectos a ele se opondo, é pouco levada em conta quando se trata de contar a história da escravidão brasileira. A trajetória do liberto, do papai Domingos Sodré, que provavelmente nasceu em Onim ou Lagos, na atual Nigéria, por volta do ano de 1797, que morreu em 1887, com estimados noventa anos de idade, que deve ter desembarcado na Bahia, como escravo, entre os anos de 1815 e 1820, até por sua longevidade, por ter atravessado quase todo o século e por ter transitado entre as condições de escravo e de homem livre, permite pensá-lo como um sujeito encruzilhada, sujeito que foi se constituindo e se transformando à medida que transitava por distintos territórios sociais e culturais, que elaborou e vestiu distintas máscaras identitárias, que encarnou distintos lugares de sujeito, que entrou em conflito e teve de negociar com distintas forças e personagens sociais, que conviveu, fez parte e recorreu a distintas instituições sociais, tanto formais como informais, que fez parte tanto do mundo dos pretos, da cidade negra, quanto dos brancos, da cidade oficialmente dita branca e aristocrática. Através de sua vida, João Reis tentou acompanhar as pistas que levam àpresença e àprática do candomblé, na Bahia do século XIX, bem como dar conta da dura repressão que ele sofria, em dados momentos, por parte das autoridades policiais e judiciais, e como, ao mesmo tempo, essas práticas conseguiam resistir e sobreviver por terem, muitas vezes, o apoio de membros das elites e até mesmo das próprias autoridades que deviam combatê-las.
No que tange à contribuição deste livro para o estudo da escravidão, da liberdade e do candomblé, outros autores já se manifestaram e não sou eu o mais habilitado para avaliá-la, já que não sou especialista no tema, nem milito no campo da História Social. Os motivos que me levam a resenhar esta obra, a indicá-la, portanto, como leitura obrigatória para todos os historiadores, independentemente do tema com que se ocupem, do campo da disciplina em que militem, é que a considero uma obra exemplar do que seriam, hoje, as regras que presidem a operação historiográfica; considero-a uma obra exemplar na observância dos procedimentos que dariam estatuto científico ao nosso ofício, mas também a considero exemplar no que tange aos impasses, aos dilemas, aos debates acalorados que dividem, nestes dias que correm, a comunidade dos historiadores. Assim como aborda um sujeito encruzilhada, ela é, também, uma obra onde as encruzilhadas em que está colocado nosso ofício emergem com nitidez. Ela é uma obra exemplar do caráter narrativo da historiografia, do papel que a narrativa desempenha na elaboração e inscrição da história; é obra exemplar das artes e artimanhas que são requeridas de todo historiador, na hora que tem de transformar a pilha de documentos compulsados, as inúmeras pistas e rastros encontrados, num enredo que faça toda essa poalha, essa dispersão, fazer sentido; ela é exemplar do uso do que alguns preferem chamar de imaginação histórica, para não dizer o uso da ficção na escrita da história, ficção entendida não como o oposto da verdade ou da realidade, mas como a capacidade poética humana de dotar as coisas de sentido, de imaginar significados para todas as coisas, sentidos que são sempre, em última instância, uma invenção humana, já que as coisas não trazem em si mesmas um único significado, nem gritam ou dizem o que significam. As evidências nem falam, nem são evidentes; elas são levadas a dizer algo por quem as diz, elas são levadas a serem vistas por quem as põe em evidência.
Em várias passagens do livro, o caráter lacunar das fontes, a falta de documentos sobre a vida de Domingos Sodré e o silêncio dos arquivos sobre a vida dos de baixo obrigam João Reis a imaginar, a ficcionar, a tentar adivinhar como poderia ter sido, o que poderia ter acontecido com o papai Sodré e seus companheiros de condição na cidade da Bahia, em tal ano e em tal situação. Ele não se contém em imaginar que papai Domingos poderia ter estado em dado lugar, conhecido alguns de seus vizinhos, participado de dadas cerimônias, conhecido algumas autoridades, tivesse tomado algumas medidas, sabido de dados eventos e notícias, sempre fazendo questão de deixar claro, nesses momentos, como pesquisador sério e honesto que é, que se tratava de viagens ou visagens de sua própria lavra. Imaginação, ficção que na historiografia é limitada pelas próprias informações que se tem, pelo conhecimento que o historiador tem do período que estuda, por aquilo que sabe sobre o funcionamento da sociedade e da cultura que está estudando. Imagina-se o provável, ficciona-se o possível de ocorrer naquele tempo e lugar, com as pessoas que vivem em dada situação social e segundo dados códigos culturais. No entanto, sem essa capacidade de imaginar, sem a habilidade de criar, de inventar sentidos e significados para os restos do passado que chegam até o presente, a historiografia seria impossível. O próprio João Reis admite o parentesco existente entre o historiador e o adivinho. O historiador, às vezes, também tem que ser um papai, tem que jogar os coloridos búzios das significações que acha possível serem dadas a um evento, tem que exercer suas artes divinatórias, deixar a intuição trabalhar, estabelecer ligações entre os eventos que não estão explicitadas na documentação. Afinal, faz certo tempo que os historiadores sabem que os documentos não dizem tudo e que eles são capazes de provar as teses mais díspares, dependendo dos significados que a eles se atribuem, da leitura que deles se faz.
No epílogo do livro, João Reis vai fazer uma afirmação que é muito reveladora da própria consciência que o autor tem da importância da narrativa, da construção do texto para a versão da história que constrói. Estamos muito longe, aqui, de certa visão ingênua de que é possível estabelecer uma versão definitiva dos eventos e que essa seria a verdadeira versão do passado. O autor vai afirmar que se as informações que se tinha sobre um figurão popular como Domingos Sodré eram poucas e esparsas, o que se sabia sobre a vida de Maria Delfina da Conceição, que foi sua esposa por cerca de dezenove anos, era ainda menos expressivo. Essa mulher que acompanhou os passos, que dividiu a vida, a casa e possivelmente a crença com o papai, deixou pouquíssimos rastros de sua passagem pela história. Se soubéssemos mais sobre ela, diz Reis, o enredo dessa história poderia ser diferente. Nessa passagem, o autor admite, explicitamente, que a história que acabou de contar tinha um enredo: ela foi enredada, tramada, os eventos foram interligados por uma atividade narrativa, por uma arte de contar história. Ao contrário do que alguns historiadores ainda supõem, o enredo da história de Domingos não foi descoberto, encontrado pronto nos arquivos pelo historiador baiano. Ele não está no próprio passado, embora este seja uma referência para criá-lo, embora pequenos pedaços de enredos, pequenas tramas, também narrativas, também escritas tenham chegado até nosso pesquisador. O que Reis está afirmando é que o enredo foi feito no presente, por ele, com as informações que encontrou. Se ele afirma que o enredo poderia ser outro, não é que a história em si mesma pudesse ser outra. Sabemos que o passado não pode mais ser alterado pelo simples fato de que passou, mas o enredo poderia ser outro, pois, de posse de outras informações, de informações sobre a vida da companheira de Domingos, ele poderia escrever a história que escreveu de outro modo, o livro poderia ser diferente do que este que está publicado. A estratégia narrativa podia ser outra, outras as personagens, outras as ligações entre os eventos, outras as tramas, outras as explicações e significações.
O livro Domingos Sodré, um sacerdote africano é uma obra modelar no uso das artes, artimanhas e mandingas de nosso ofício, por isso deve ser bibliografia obrigatória nos cursos de metodologia da pesquisa histórica. Nele estão presentes todas as regras que presidem a operação historiográfica e que permitem que nosso ofício reivindique o estatuto científico: a narrativa mediante documentos; a pesquisa ampla e meticulosa de arquivo, onde o autor expõe nosso parentesco com os detetives; a crítica rigorosa das fontes; o concurso de uma ampla bibliografia na área de estudos a que pertence, incluindo desde obras clássicas, até obras mais recentes, trabalhos sequer publicados; um domínio fino da teoria e da metodologia faz com que ela sustente a análise, esteja presente na carpintaria, na estruturação do texto e de todos os passos da pesquisa, sem que precise aparecer atravancando o texto, em digressões que costumam ser xaroposas e pedantes. Essa leveza, essa fluência, essa beleza do texto, que já fez de Reis um autor premiado, é parte desta outra dimensão inseparável da operação historiográfica, aquilo que Certeau nomeou de escrita, a dimensão artística de nosso ofício, a dimensão ficcional que a narrativa histórica convoca. O bom livro de história, o clássico em nossa área não se faz apenas às custas do tema que se escolhe e da pesquisa documental que se faz, pois a história só existe quando escrita, é no texto que ela se realiza, bem ou mal. Afirmo, e talvez ele nem considere isso um elogio, que grande parte do sucesso dos livros de João Reis se deve à forma como são escritos, à sua habilidade narrativa, a despeito de serem todos fruto de exaustiva pesquisa e do estudo metódico e rigoroso de temas inovadores, muitos deles pouco tratados ainda.
João José Reis possui uma consciência da centralidade da narrativa em nosso ofício, como poucos. Seus livros explicitam as estratégias narrativas que escolheu. Domingos Sodré é um livro que, se fôssemos adotar as sugestões de Hayden White, diríamos vazado no enredo romanesco. É uma trama em que embora Domingos opere como uma metonímia de seu tempo, bem a gosto da micro-história italiana, que inspira teoricamente e metodologicamente o livro, ele é descentrado e disperso por uma dezena de outros personagens que vêm ocupar o seu lugar na trama sempre que as informações sobre ele escasseiam. João Reis deixa explícito que irá adotar na narrativa esse procedimento analógico. Como num romance, o livro de Reis não é um livro de teses, embora defenda algumas ideias, aliás faça algumas conclusões, mas estas não aparecem explicitadas, e sim implícitas, imanentes à trama que ele arma. Ele convoca a nós, leitores, a que cheguemos às conclusões antes que ele as exponha, a partir do enredo que ele elabora. Ele homenageia a inteligência dos leitores, jogando no tabuleiro os seus Fás para que a gente os decifre, para que leiamos a mensagem que quer nos fazer chegar. Em vários momentos da obra, a metonímia Domingos é substituída por outros personagens que atuam como se fossem metáforas do velho sacerdote, outros personagens ocupam o lugar desse sujeito e o dispersam, fazendo-o aparecer com diferentes rostos, em diferentes corpos, em diferentes situações, para em seguida, em outro movimento, tal como ocorre com o Menocchio de Carlo Ginzburg, em quem parece se inspirar, deixar de ser um ser singular, único, para ser um sujeito exemplar, um sujeito resumo de seu tempo, de sua sociedade e de sua cultura. Sua figura, que se dispersa num primeiro momento, no segundo momento unifica, homogeneíza, encarna a situação do liberto na Bahia, no século XIX. Em ambas as situações o caráter ficcional do procedimento é notório, para o mau humor do historiador italiano, que não cessa de fazer diatribes azedas contra a presença da ficção no ofício do historiador. Mas sem a ficção não haveria trama, não haveria enredo, não haveria compreensão, não haveria saber histórico. Tanto no momento em que outros libertos vêm agir, se comportar, falar, como Domingos, tanto no momento em que o autor supõe que se um liberto realizava tais práticas, o papai como um liberto que era também possivelmente fazia a mesma coisa, passava pela mesma situação, quanto no momento em que o sacerdote singular, excepcional, tão único que chegou a merecer biografia escrita por outro figurão da cidade, torna-se um representante de todos os libertos, que sua vida se torna similar à de todos de sua condição, que suas práticas de crença se tornam análogas às de outros praticantes desses rituais, é a imaginação, é a ficção, é a capacidade de dar sentido, de raciocinar por imagens, por figuras, de estabelecer configurações, por parte do historiador, que está agindo. É o historiador João Reis que está produzindo esse enredo, essa versão para o passado, a partir de seu olhar: um olhar formado pela disciplina histórica, pelas regras da disciplina, um olhar informado por dados pressupostos teóricos, um olhar informado por dadas posturas políticas, éticas e morais, e, por que não admiti-lo, um olhar constituído por dados códigos estéticos, por uma dada maneira de figurar o mundo, de vê-lo e de dizê-lo, um olhar tropológico, além de ideológico. A história é um saber de encruzilhada entre o fato e a ficção, entre o feito e o contado, entre a ação e a narração, entre o que se vê e o que se imagina, entre o rastro e o sonho, entre o resto e o desejo, entre o que se lembra e o que se esquece, entre o achado e o perdido, entre a fala e o silêncio, entre o signo e a significação, entre o material e o etéreo, entre os homens e todos os deuses.
Portanto, Domingos Sodré, um sacerdote africano é um bom exemplo de como a “história vista de baixo” é uma impossibilidade, já que ela, como todas aquelas escritas por historiadores, é fruto do olhar do historiador e não do personagem que nela é tratado. No livro de João Reis não lemos a história contada do ponto de vista de Domingos, até porque este está morto e quase nada pode nos dizer para além do pouco que ficou registrado, sempre por outras pessoas, pois, como é comum entre os de baixo, na época tratada por Reis, ele era iletrado, e até os documentos que registram sua presença são escritos e assinados por outros. A história é vista por Reis, não por Domingos, embora caiba ao historiador, esta é uma das mandingas do ofício, tentar adivinhar, imaginar, fabular, idear, intuir o que pensava e sentia o papai. Talvez, quem sabe, João Reis até gostaria de ser um cavalo em que viesse se encarnar o papai Domingos, o mandingueiro famoso, mas, nas artes divinatórias da história, quem frequenta essa encruzilhada costuma fazer seus próprios despachos, encomendar seus próprios feitos e contados. João Reis faz, como todas, uma “história vista de cima”, já que, pelo menos até hoje, em nossa sociedade, os historiadores costumam ocupar os estratos considerados superiores da sociedade. É ele quem olha para Domingos do alto de sua sabedoria, de sua posição social, de seu lugar institucional, de seu lugar de classe, de seu lugar de letrado e doutor, de seu lugar de branco, né meu rei! Sobre a vida do velho sacerdote joga sua rede discursiva, o aprisiona em dados sentidos que estão agora à disposição da comunidade de historiadores para que sejam discutidos, debatidos, repensados, refeitos, reabertos a novas interpretações, a novas invenções. Mas, por isso mesmo, o velho mandingueiro baiano virou de vez figurão, passou a fazer parte da história do país, da história desta ignomínia, desta chaga que não pode deixar de ser reaberta para que continue doendo na consciência dos homens que foram capazes e ainda são capazes de perpetrá-la: a escravidão. Só por isso a invocação e a evocação do preto velho, a sua reencarnação narrativa nas páginas deste livro magistral, escrito por um mestre do ofício de historiar, que pode botar banca como seu personagem negro fazia na cidade da Bahia, já é merecedora de elogios e de leitura atenta. E quando tal intenção política e tal postura ética dão origem a uma narrativa primorosa como o deste Domingos Sodré, deve ser motivo de recomendação, não apenas para todos os santos, não apenas para todos os iniciados nas artes e ofícios da historiografia, mas principalmente para os neófitos, os que ainda estão realizando os atos preparatórios para entrar na nossa seita, os que ainda não estão de cabeça feita, que precisam passar pelos rituais de introdução a este fascinante mundo do sacerdócio, por isso mal remunerado, em nome do passado. Aceitem o sorriso convidativo do autor em sua rede e se enredem no fascínio deste livro escrito com competência científica e sensibilidade artística.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior – Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador CNPq. Departamento de História – Campus Universitário, BR-101, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. E-mail: durvalal@pesquisador.cnpq.br.
O Brasil Visto de Fora / Revista Brasileira de História / 2009
A imagem de Clio, musa helênica da história, fruto das noites ardentes de Mnemósine e Zeus, é sempre um símbolo recorrente entre os historiadores. Mas há outra figura imaginária feminina – perpetuada por outras tradições culturais – também capaz de desencadear uma série de elucubrações sobre a prática histórica.
Referimo-nos aqui a Cheherazade, a bela jovem que deteve a ira assassina do sultão Chahriar. O poderoso homem jurara não dormir mais de uma vez com a mesma mulher. A cada noite deitava-se com uma virgem, executada ao amanhecer. O terror invadiu todos os lares. A condenação de tantas jovens resultaria, ao longo dos anos, num mundo crescentemente masculino e estéril. Um dia, Cheherazade, uma das duas filhas do grão-vizir, o qual até então as ocultara, comunicou ao pai sua decisão de deter a barbaridade do sultão, e implorou casar-se com Chahriar. A partir de suas núpcias, a jovem seduziu seu algoz com histórias emocionantes e diversas, mas nunca concluídas ao amanhecer, o que fez sua vida ser poupada ao longo de mil e uma noites. Ao final, Cheherazade, graças às suas narrativas, venceu não apenas a ameaça de sua própria morte – pois o sultão se apaixonou por ela – mas também o fantasma da extinção da sociedade em que vivia.
Entre Cheherazade e o historiador, o desafio da morte surge não só como uma intenção comum, mas também como uma tarefa a ser continuamente retomada. A escrita da história debruça-se sobre sociedades desaparecidas, contata mulheres e homens ausentes, vislumbra possibilidades consideradas em outros momentos e agora esquecidas. Como afirma Michel de Certeau, os discursos sobre o passado trazem a marca dos mortos, e sua evocação se realiza numa troca entre os vivos. Duelo contra a morte, a prática histórica não conhece descanso. Experimentando a incompletude não como falta, mas como afirmação da complexidade da vida, o historiador está sempre disposto a recomeçar sua escrita, já que o saber produzido não é nem contínuo, nem necessariamente acumulativo.
Ao final dos trabalhos deste Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, gestão 2007-2009, esperamos ter contribuído para reafirmar a importância da escrita da história na sociedade contemporânea, vítima de tantos pesadelos e ameaças de extinção por todos os lados. Buscamos dar continuidade ao trabalho de tantos dias e noites (na verdade, quase mil) de todos os editores, membros dos conselhos editoriais e consultivos, assim como inúmeros pareceristas ad hoc em atividade desde a publicação do primeiro número, em setembro de 1981. Projeto coletivo de uma instituição que congrega historiadores diversos, a Anpuh, nossa revista lança-se aos dias futuros na expectativa de continuar servindo como local de divulgação de reflexões, pesquisas e debates, numa tarefa a ser incansavelmente reiniciada.
Neste número, o dossiê “O Brasil visto de fora” traz artigos de autores estrangeiros escrevendo acerca de visões estrangeiras sobre este país, assim como ações a ele direcionadas desde o exterior. Seth Garfield descortina o debate diplomático, ambiental e cultural sobre a Amazônia brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial. Em argumentação consolidada por ampla pesquisa, investiga as forças materiais e ideológicas que moldaram as compreensões norte-americanas sobre a floresta tropical. James Green e Abigail Jones enfocam as versões construídas pelo embaixador Gordon acerca das ações dos Estados Unidos em relação ao golpe de 1964, no Brasil. O artigo abrange temas diversos como relações internacionais, memória política e práticas de pesquisa histórica. Neil Safier investiga as estratégias narrativas de La Condamine ao apresentar o rio Amazonas aos europeus do século XVIII numa obra escrita na primeira pessoa, sem divisão em capítulos, fluida como um barco pelo rio, mesclando observações naturais com relatos míticos de palácios e mulheres guerreiras.
Maria Helena Capelato abre a seção de artigos avulsos com estudo sobre a doutrinação franquista direcionada às crianças através de livros didáticos. Sua análise privilegia aspectos políticos, culturais e pedagógicos, com ênfase nas mensagens e imagens alimentadoras do imaginário coletivo espanhol e na “venda” de ilusões purificadoras e estimuladoras da intolerância. Aldair Carlos Rodrigues contribui para o estudo da Inquisição em Minas colonial, focalizando os agentes inquisitoriais portugueses ali presentes, discutindo sua formação e atuação, perfil, recrutamento e papéis. Henrique Estrada Rodrigues analisa os escritos de Fernand Braudel sobre Lévi-Strauss, debatendo questões relativas ao tempo histórico, mas também à ação política como fonte da diferenciação social, momento inaugural de todo movimento e de toda história, matriz de multiplicidade. Felipe Pereira Loureiro avalia os impasses políticos do Governo Jânio Quadros, discutindo seus ataques à legitimidade política do Congresso, assim como a reação parlamentar para reconstruir sua imagem.
Seguem-se seis resenhas, assinadas por Durval Muniz Albuquerque Junior, Douglas Cole Libby, Dulce O. Amarante dos Santos, Lise Sedrez, María Elida Blasco e Luis Fernando Cerri, cumprindo a importante tarefa de levar aos leitores análises críticas de obras recentemente lançadas e de relevância destacada, abrangendo temas e abordagens diversos.
Em sua tarefa “à la Cheherazade”, esta revista convida seus leitores a virar as próximas páginas. Apostamos nos escritos aqui divulgados como estímulos à vida e ao pensamento. Afinal, é sempre uma alegria lembrar que a história – passada, presente e futura – está sempre por ser escrita, e que retomá-la a cada dia é a garantia de nossa sobrevivência.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun, 2009. Acessar publicação original [DR]
Darwinismo / Revista Brasileira de História / 2008
Na noite de 3 de julho de 1980, na rua Macapá 29, na cidade de São Paulo, um grupo de historiadores pertencentes à diretoria da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) reuniu-se na residência da professora Alice Canabrava com o corajoso intuito de fundar um periódico científico. Durante meses, vários contatos com agências de fomento haviam sido realizados em busca de fundos. A boa notícia era a de que a Capes concedera, como apoio e impulso inicial, o financiamento dos dois primeiros números, a serem seguidos de outros, futuramente bancados pelos recursos da Associação.[1]
A Anpuh surgira durante um encontro de docentes, o I Simpósio de Professores de História do Ensino Superior, em outubro de 1961, e visava romper o isolamento em que trabalhavam os professores universitários de história, estimulando o diálogo e o compartilhamento de experiências. Completava, então, vinte anos de existência. Tratava-se de comemorar, e o projeto de fundação da revista inseria-se nesse propósito. Afinal, aqueles eram também tempos de intensificação de esperanças, com a extinção do AI-5, a re-ascensão dos movimentos sociais, a luta pela democratização política, a campanha pela Anistia, intensas greves operárias e de trabalhadores diversos e, sobretudo, a expectativa da superação de tempos tão tristes.
Em agosto de 1980, a casa da rua Macapá abrigou nova reunião, na qual se discutiram vários problemas práticos envolvidos na criação de um periódico da Associação, como nome, tamanho, periodicidade, conteúdos e sua viabilidade financeira. Após debate, decidiram-se o título da Revista Brasileira de História, órgão da Anpuh, a periodicidade semestral, e os conteúdos (com artigos, bibliografia e noticiário), entre outros detalhes. Ficou ainda acertado que o primeiro número seria lançado no XI Simpósio, programado para julho de 1981, na cidade de João Pessoa.
Desde então, a Revista Brasileira de História venceu inúmeros desafios. Sua heróica regularidade deveu-se ao esforço dos seus muitos editores e conselheiros, em quinze gestões — compostas por historiadores de diversas instituições, com grande abrangência geográfica — eleitas através dos processos de participação na Anpuh. Publicou artigos de grande impacto, assinados por autores brasileiros e estrangeiros. Organizou dossiês valiosos e pioneiros para a renovação historiográfica, veiculando temas e abordagens, estimulando a produção de um conhecimento de intenções transformadoras.
No ato de publicar, tornar acessível, possibilitar a circulação do conhecimento, a sociedade contemporânea abriu caminhos que têm se mostrado poderosos instrumentos para a pesquisa, para a produção de conhecimento, assim como para a educação. Nos primeiros números da Revista Brasileira de História, os índices de algumas revistas eram reproduzidos, mas sua disponibilidade permanecia difícil na maioria das universidades. Atualmente, a internet, os portais e os indexadores trazem canais decisivos de superação das distâncias. A aproximação não se efetiva apenas entre historiadores das mais variadas partes do país, pois abre-se a chance de uma circulação além das fronteiras, inaugurando uma dimensão renovada e estimulante do conhecimento histórico. O historiador constrói um olhar transnacional e transdisciplinar.
Trata-se, agora, de abrir a Revista Brasileira de História a uma rede de pesquisadores diversos, situados em vários países, dedicados às diferentes áreas do conhecimento histórico. Para tanto, os portais aos quais pertence, SciELO e Redalyc, dão acesso gratuito e fácil aos abstracts, resumos e artigos integrais. A base Scopus, disponível no Brasil gratuitamente desde o Portal de Periódicos Capes, e nas bibliotecas das mais variadas universidades do mundo, também veicula e disponibiliza conteúdos, que se tornam cada vez mais públicos, circulam, dão-se a conhecer, abrem-se ao debate e à crítica.
Neste número, o dossiê abre reflexões sobre a comemoração dos duzentos anos do nascimento de Darwin. Thomas Glick enfoca a presença do geneticista e evolucionista Dobzhansky no Brasil e a renovação das práticas de pesquisa nos meios científicos, sob a perspectiva da história da ciência. Celso Uemori mostra a peculiaridade de certas leituras de Darwin, com destaque para Manoel Bomfim que, diferentemente de muitos de seus contemporâneos, relacionou a luta pela sobrevivência às práticas de solidariedade e co-operação. Karoline Carula apresenta a presença darwinista nas Conferências da Glória, no Rio de Janeiro, entre 1875 e 1880, e Juanma Sánchez aborda os debates sobre evolucionismo, religião e marxismo.
Na seção de artigos, Elaine Lourenço analisa a coleção História Nova do Brasil, lançada em 1964 e logo abortada pela ditadura militar, como importante esforço de renovação do ensino da História; Kaori Kodama investiga a atuação do jornal O Philantropo (1849-1852) nos debates sobre o tráfico de escravos; Claudio DeNipoti enfoca o comércio e a circulação de livros em Portugal, na virada do século XVIII para o XIX, e os mecanismos de disseminação da literatura filosófica iluminista e liberal; Helder Macedo discute a existência de escravos índios no sertão da Capitania do Rio Grande e sua relação com as atividades econômicas nesse território, com ênfase na pecuária e na agricultura de subsistência; Francisco Ferraz aborda os processos de reintegração social dos ex-combatentes norte-americanos, franceses e ingleses, nas duas guerras mundiais; Daniel Pereira e Eduardo Felippe analisam a noção de formação territorial nas cartas enviadas por Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco, entre 1886 e 1903; Jean Sales analisa o impacto da crise do socialismo real na trajetória do Partido Comunista do Brasil, e André e Mariângela Joanilho revisitam a fotonovela como fonte para a história da leitura e da cultura de massas.
No Estado da Arte, José Murilo de Carvalho — um dos pioneiros colaboradores da Revista Brasileira de História, com artigo publicado no segundo número, em 1981 — traz um ensaio sobre as comemorações dos duzentos anos da vinda da Corte.
Seguem-se seis resenhas, cumprindo aqui o papel de discutir e apresentar criticamente obras valiosas para os rumos do debate histórico contemporâneo.
Esperamos manter a Revista Brasileira de História como veículo eficiente de publicação de artigos, no contexto das redes sociais e acadêmicas de interatividade. Esse será certamente o caminho para mantê-la jovem, como uma bela e cobiçada balzaquiana conectada a histórias infinitamente ramificadas: desejada pelos leitores — apresentando-se como um veículo de estímulo intelectual — mas também pelos autores — destino almejado de seus textos mais provocativos. Só assim poderemos fazer jus aos esforços pioneiros daquele grupo de historiadores reunidos na rua Macapá, e aos vários outros que, ao longo de quase três décadas, dedicaram seu tempo e seus ideais a esta revista.
Nota
1. GLEZER, Raquel. A fundação da revista. Revista Brasileira de História, ano 1, n.1, p.129-130, mar. 1981. [ Links ]
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008. Acessar publicação original [DR]
Imprensa, impressos / Revista Brasileira de História / 2008
Revista Brasileira de História conquistou o pertencimento ao SciELO Brasil em 1998, tendo sido um dos primeiros periódicos na versão brasileira desse portal. Assumiu, assim, papel pioneiro na área de humanas. Mais recentemente, outras revistas de nossa área passaram também a integrar o portal, e isso facilitou a busca de artigos por pesquisadores diversos e abriu um caminho cada vez mais profícuo para a construção do conhecimento histórico. Tal pertencimento, entretanto, não é um privilégio. Relaciona-se ao mérito alcançado por esses periódicos que, para serem aceitos, preencheram inúmeros quesitos formais de publicação, os quais devem ser mantidos a cada número. Especialmente, esses periódicos adotam formas de oferecer, aos seus leitores, artigos de qualidade e ineditismo, que realmente possam contribuir para o debate entre os pesquisadores.
Muitas vezes a incursão em um portal desse tipo traz alguma sensação de estranhamento ao historiador, já que muitos recursos — comuns aos pesquisadores de outras áreas — apresentam-se um tanto misteriosos para nós. Entretanto, rapidamente se evidenciam a utilidade de várias ferramentas e a dinâmica que elas podem instaurar tanto em nossas pesquisas bibliográficas como na divulgação do conhecimento produzido. Afinal, um autor escreve para ser lido.
No portal, cada revista traz instrumentos de busca por autor, assunto e título, assim como pelas palavras-chave exigidas em cada artigo. Nos relatórios de utilização, podem ser encontrados o ano de ingresso de cada periódico no portal, o índice de visitas dos volumes e o número de artigos requisitados a cada mês, ao longo dos anos. No site específico de cada revista, novamente abrem-se possibilidades de busca dos artigos de várias maneiras, mas também instruções aos autores e dados sobre a revista, assim como o número exato de consultas a cada artigo. A partir daí, o visitante pode ler ou imprimir livremente os textos, ou apenas avaliar o que lhe interessa através dos resumos. Mas pode também visualizar as referências usadas em cada texto e seguir o link de cada uma delas através do Google. Há ainda ferramentas de busca dos artigos de temas semelhantes, o caminho para o currículo Lattes do autor (e a visualização de outras publicações) e o acesso aos outros artigos do mesmo autor no SciELO, bem como a facilidade de enviar o texto por e-mail. Através do Lattes é possível acessar os artigos do mesmo autor no SciELO, ao passo que a inclusão do número DOI (Digital Object Identifier) no preenchimento dos dados de cada produção bibliográfica facilita o acesso direto ao texto. Enfim, através da internet, os periódicos tornam-se um veículo impressionante no processo de debate, expansão e divulgação do conhecimento. Associados à Plataforma Lattes, assumem um papel inestimável no fomento do contato entre pesquisadores de diversas áreas e diversas instituições.
É claro que não há diminuição da importância do registro em papel. A Revista Brasileira de História, assim como várias outras revistas, mantém sua versão impressa e prioriza sua distribuição. Se o diálogo e a interação são fomentados virtualmente, a sua realização permanece ligada à leitura em papel, alimentando o nosso verdadeiro ‘fetiche’ por livros, também tão característico da nossa área e nem sempre bem compreendido entre os outros ramos do conhecimento acadêmico.
Neste momento em que a web estimula cada vez mais os diálogos entre os historiadores, o dossiê Imprensa, impressos discute aspectos dessa forma de veiculação de idéias, informações e análises que revolucionou a vida dos homens de maneira similar — ou talvez até mais profunda, como medir? — ao modo como a internet tem revolucionado a sociedade contemporânea. Os artigos deste número privilegiaram debates sobre a imprensa e a sociedade brasileira. Meize Lucas analisa como a imprensa da década de 1950 alimentou uma cultura cinematográfica, e como as cinematecas nutriram a cultura letrada no Brasil. Noé Sandes focaliza a atuação do jornalista Costa Rego no Correio da Manhã nos anos 30 e como suas práticas valorizavam a experiência política. Marcos Gonçalves debate a cultura política em construção através da imprensa católica no início do século XX. Marisa Midori demonstra a inserção do mercado de consumo de livros em São Paulo dentro de um movimento editorial mundial crescentemente dinâmico em meados do século XIX, e Wlamir Silva discute a atuação da imprensa na ampliação do lugar da mulher no espaço público em Minas Gerais no mesmo período.
Na seção de artigos avulsos, Ângela Domingues faz instigante incursão em textos pouco divulgados sobre o Brasil no século XVIII, como diários de viagens, mapas e vistas de marinheiros e traficantes, assim como textos produzidos por homens ilustrados. Oldimar Cardoso propõe a consideração da Didática da História como uma subárea da História, argumentando como ela se apresenta muito além dos conteúdos escolares. Fabricio Santos propõe uma análise da expulsão dos jesuítas e do confisco e venda de suas propriedades, construindo um diálogo entre a economia e a política, discutindo as transformações no Império português na mesma época. Marisa Leme discute as forças dinâmicas centrífugas e centrípetas na construção do Estado no Brasil na década de 1820, e Diogo Cabral avalia exploração madeireira, império português e indústria naval em abordagem sob a perspectiva da história ambiental.
A seção Estado da Arte traz ensaio de Marcelo Mattos sobre a fecunda produção historiográfica realizada em franco diálogo com o ‘aniversário’ de quarenta anos do Golpe Militar, em 2004, e com os trinta anos da morte de Goulart, completados em 2006. O texto avalia ainda a relação entre escrita da história e centros de pesquisa e documentação. Seguem-se seis resenhas críticas, focalizando obras de interesses diversos.
Esperamos que, entre impressos e hipertextos, o presente volume da Revista Brasileira de História fomente nossos contatos, contribuindo para o trânsito de nossas experiências, idéias, pesquisas e, sobretudo, de nossas esperanças.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, jan. / jun., 2008. Acessar publicação original [DR]
Jango: as múltiplas faces – GOMES; FERREIRA (RBH)
GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 280p. Resenha de: MONTENEGRO, Antonio Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55 jan./jun. 2008.
O livro Jango: as múltiplas faces, de autoria dos professores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, vem de forma muito própria ampliar o debate em torno da trajetória pública de um político que teve participação fundamental na história do Brasil, particularmente na segunda metade do século XX.
Em que pese essa participação ampla e ativa nos acontecimentos, sobretudo políticos, econômicos e sociais, produziu-se em torno do ex-presidente João Goulart uma história carregada de significados negativos. E essa produção (como assinalam os autores) foi instituída tanto por setores adversários (partidos e grupos políticos dos mais diferentes matizes ideológicos e segmentos da sociedade civil) como pelos partidos e grupos políticos que o apoiavam. Em razão desse cenário, desconstruir essa história que hoje opera como uma memória não é algo instantâneo nem uma operação que ofereça facilidade aos historiadores.
É nessa trincheira de uma história a contrapelo que este livro irá se posicionar. E o primeiro movimento para quebrar o quadro monolítico das adjetivações de Jango indeciso, Jango sem controle da situação política do País, Jango dominado pelos comunistas, Jango de quem todos desconfiavam, é trazer à tona uma série de atores constituidores desses discursos e confrontá-los com outros atores e outros discursos que apontam em sentido diametralmente oposto. O segundo movimento é romper com um relato e uma imagem que comumente reduz a trajetória de Jango ao seu período como presidente. Assim, os autores ao reconstruírem a trajetória de Jango, desde seus primeiros encontros com Vargas em São Borja em 1945, depois deputado estadual pelo PTB no Rio Grande do Sul, deputado federal, secretário do Interior e Justiça do governo de Ernesto Dornelles no Rio Grande do Sul, presidente do PTB, ministro do trabalho de Getúlio em 1953-1954 e depois vice-presidente de Juscelino entre 1956 e 1960, instituem a história de um político que acumulou uma larga experiência ao longo da vida.
Entretanto, para todos que acompanham os artigos e livros dos professores Ângela de Castro e Jorge Ferreira, não é difícil perceber que tanto esse período da história do Brasil, como a atuação de João Goulart, constantemente atravessam as trilhas de seus escritos, mesmo quando o foco de suas narrativas históricas é outro. Este registro é importante, pois sem um amplo conhecimento do período e de uma documentação bastante diversificada, não seria possível construir uma contra-história que rompesse a rede de significações estabelecidas. Afinal, constitui-se um grande desafio aos historiadores que se dedicam a pesquisar esse período, não subsumir a sua produção a uma lógica dualista e teleológica que, de maneira ‘apriorística’, institui uma visão histórica positiva ou negativa acerca de João Goulart.
Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores? Poderiam ter escrito uma biografia política tradicional. No entanto, optaram por um caminho muito mais sinuoso. Poder-se-ia dizer uma meta-história. Mas não reduzida à perspectiva lingüística, em que o sentido ou os significados se estabelecem a partir das figuras da linguagem, e sim, fundamentalmente por meio de um caleidoscópio documental. Neste, a história de vida e, sobretudo política de Jango, apesar de se apresentar narrada em sete capítulos ou períodos referenciais, adquire formas as mais diversas à medida que lemos o conjunto documental em que se apóia cada capítulo. Dessa maneira, desafia o leitor a realizar uma leitura difícil, articulando, detalhando a trama que obriga à reflexão a todo instante, pois os distintos documentos e imagens emitem signos de diferentes matizes. E, possivelmente, as pessoas que buscam uma resposta pronta, uma representação sem paradoxo, sem conflitos, sem dúvidas, não terão neste livro uma leitura fácil.
Ao percorrer atentamente as linhas labirínticas que instituem essa história, descobre-se como mãos extremamente habilidosas operaram no limiar ou na fronteira da unidade e da pluralidade de sentidos e significados. Os autores, ao afirmarem “que se buscou não foi a homogeneidade e a convergência de pontos de vista, ‘fechando’ a biografia, mas justamente o inverso: o confronto, o debate de opiniões, ‘abrindo’ a trajetória de Jango a leituras variadas”, possibilitaram ao leitor conhecer relatos de aliados e de adversários de Jango, produzindo as mais diferentes análises, avaliações e pontos de vista. Entretanto, essa pluralidade/diversidade caleidoscópica está montada para nos causar a sensação ou o efeito literário de que o acaso, a incerteza e a dúvida não são apenas atributos da história cotidiana, mas, também da reconstrução historiográfica.
A seleção de alguns pequenos trechos de relatos presentes no livro possibilita ao leitor antever como essa diversificada e paradoxal documentação sugere a potencialidade de distintas histórias, ou talvez a impossibilidade de uma história conclusiva. Observa Raul Ryff, secretário de imprensa da presidência de Jango, o qual abre a sessão de documentos do capítulo VI, “Jango e o golpe de 1964”:
Ele incentivou a sindicalização rural, mexeu numa área perigosa, uma área de coronéis, no sentido de chefia política. Lutou pela reforma agrária; estabeleceu a Lei da Remessa de Lucros controlando, colocando normas para essa remessa e diminuindo a taxa de retorno do capital estrangeiro; desapropriou as refinarias particulares entregando-as à Petrobras. Enfim, tomou várias medidas importantes. Foi um governo notadamente nacionalista, popular e democrático.
Ainda numa perspectiva muito próxima a esse depoimento de Ryff, poder-se-ia apontar nesse mesmo capítulo o depoimento de Hércules Correia, membro do PCB que no dia do golpe acompanhou o diálogo ao telefone entre Jango e um dos militares golpistas:
Aí o Kruel ligou e Jango pediu que um de nós fosse para o telefone na extensão. O Oswaldo Pacheco pediu: “Vai você”. Aí eu fui para a extensão e ouvi a conversa. O Kruel disse que a única forma de evitar um golpe era dissolver oficialmente a CGT e prender todo mundo. Naquela época, seria prisão de mais ou menos 500 dirigentes sindicais aqui do Rio e dos estados; as principais cabeças. E o Jango não aceitou. Respondeu na hora, disse que não, que não ia prender, não ia fazer aquilo. A partir daí não tinha mais condições de ficar na presidência. Então foi para Brasília e, de Brasília, pegou outro avião e foi para o Uruguai.
Esses fragmentos positivam a atuação e o comportamento do presidente João Goulart. No entanto, há nos autores uma clara opção por uma trilha marcada por paradoxos que recolocam a dúvida e a incerteza, desconstruindo a possibilidade de instituir uma história conclusiva. E nesse sentido é revelador o relato de Hugo Faria, que conhece Jango ainda no período em que este assumiu o Ministério do Trabalho de Getúlio, vindo posteriormente a se tornar seu amigo e conselheiro:
E chegou um ponto em que ele me disse: “Hugo, você sabe por que tirei você da Casa Civil?”. Eu respondi: “Saber eu não sei, mas desconfio. O senhor não tem condições de aceitar críticas, e como eu sou por natureza um crítico, o senhor se encheu. Como é meu amigo, me deu uma outra posição. Na verdade, o senhor não aceita crítica”. Ele concordou: “É, você me enchia… Todo o dia era notícia ruim, notícia ruim…”. Não era. Eu estava mostrando a evolução, ele não queria acreditar. Não fui eu só, não! Juscelino foi três vezes ao palácio alertar Jango de que a revolução ia estourar. E na última vez Jango disse: “Eu boto esse pessoal nas ordens em meia hora, uma hora. O Assis Brasil tem um esquema montado”. Ele preferia acreditar nas bazófias do general Assis Brasil…
Este pode ser visto como um fragmento de um relato crítico de um amigo, que foi preterido como voz aconselhadora quando tentou (da mesma forma que outros também o fizeram) alertar Jango acerca do perigo de uma conspiração golpista que se avizinhava. Ou seja, o presidente não era receptivo a críticas e às boas avaliações na visão do amigo de longa data, Hugo Faria.
Um relato do campo adversário, também instituindo uma perspectiva negativa da imagem de Jango, encontra-se no relato do general Geisel. Este irá apontar para uma grande resistência a Jango, apenas contornada provisoriamente enquanto se manteve o regime parlamentarista: “A conspiração começou a tomar vulto quando o Jango derrubou o parlamentarismo, foi para o presidencialismo e passou a ser dominado pelo Dante Pellacani e uma série de outros líderes sindicais que mandavam e desmandavam”.
Revela o general que, no momento em que o presidente obteve por meio de um plebiscito amplamente favorável os poderes constitucionais de presidente, o movimento conspiratório foi colocado em marcha.
Estes fragmentos oferecem ao leitor uma pequena visão da riqueza e diversidade documental dessa narrativa que elege a figura emblemática de Jango para estudo e que faz recordar Foucault com sua crítica ferrenha às biografias, que instituem representações fechadas, acabadas e na maioria das vezes heróicas dos seus personagens. Ou ainda, por que não lembrar Pirandello e seu maravilhoso Moscarda em Um, nenhum, cem mil?
Ao mesmo tempo, confirma-se o compromisso político da prática historiográfica dos autores, aliando o fazer intelectual a uma busca incessante de novas compreensões de uma realidade em que passado e presente são ressignificados em uma nova forma de fazer política, permanentemente desafiando nosso agir social. É possivelmente com esse espírito que os autores finalizam esta biografia com um pequeno texto manuscrito de Jango, datado de 18 de julho de 1975, portanto um ano antes de sua morte: “Os últimos acontecimentos não podem e não devem ser julgados apressadamente. Não podemos viver placidamente quando milhões de Brasileiros estão sofrendo inúmeros sacrifícios. Peço fé e confiança. Estarei sempre ao lado dos que sofrem em defesa de seus direitos e de nossos ideais”.
Antonio Torres Montenegro – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Pesquisador do CNPq. Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n – Cidade Universitária. 50670-901 Recife – PE – Brasil. antoniomontenegr@hotmail.com
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História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico – XAVIER (RBH)
XAVIER, Regina Célia Lima (Org.). História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. 392p. Resenha de: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
O guia bibliográfico História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional, organizado por Regina Célia Lima Xavier e que resultou de um projeto premiado pelo concurso “Memória do Trabalho no Brasil” (Petrobrás/MinC, CPDoc da FGV e Ministério do Trabalho e Emprego), é uma obra ímpar na historiografia brasileira. Pertence àquela linhagem de trabalhos absolutamente indispensáveis para promover e renovar a produção do conhecimento histórico em um determinado ‘território’ e que, pelos serviços que prestam aos pesquisadores, merecem todo destaque e divulgação.
Neste caso, trata-se de um levantamento exaustivo de fontes bibliográficas (com os respectivos resumos) sobre a temática, precedido por uma sólida abordagem analítica de referências teóricas, problemáticas, temas e debates que orientaram e vêm orientando os estudos sobre a escravidão no Brasil Meridional. Dentro desse cenário de análise historiográfica, examina as principais tendências da produção dos historiadores sul-riograndenses que trabalharam esses temas e questões. Oferece assim ao leitor uma oportuna contribuição sobre o ‘estado da arte’ em um tema que vem agregando cada vez maior número de pesquisadores no Brasil e no sul do Brasil em particular.
Ainda que a autora classifique esta análise historiográfica como “breve e introdutória”, seu texto é bem mais que uma introdução, não só pelo rigor com que é apresentado, mas também pelo fato de que não existia até agora um trabalho mais específico, que abordasse de forma sistemática e desde a perspectiva historiográfica, o tema da escravidão e da liberdade no Rio Grande do Sul.
Certamente a qualidade deste trabalho presta tributo à trajetória intelectual da autora, que vem de longa data se dedicando ao estudo da escravidão e da liberdade no Brasil, especialmente desde sua dissertação de mestrado desenvolvida na Unicamp.1
Quanto ao repertório bibliográfico que é objeto da obra, ele inclui livros, dissertações, teses, artigos e resumos de trabalhos apresentados em congressos acadêmicos, totalizando 851 títulos que abrangem o período compreendido entre meados do século XIX e o ano de 2006.
Esses trabalhos estão agrupados em blocos ou itens classificatórios, cujos títulos já oferecem ao leitor um sugestivo elenco temático que ultrapassa amplamente os enfoques tradicionais sobre a história da escravidão e da liberdade no Brasil meridional: “Dados populacionais, étnicos e questões raciais”; “Participação dos escravos em conflitos militares”; “Trajetórias de vida e experiências cotidianas”; “Trabalho escravo; movimentos sociais: fugas, quilombos, insurreições e crimes”; “Cultura; Afro-descendentes no pós-abolição”; “Família escrava”; “Aspectos jurídicos”; “Abolições e processo de emancipação”; “Economia”; “Tráfico” e “Reflexões historiográficas”. Um último bloco reúne os resumos de apresentações em eventos.
O livro também expõe com muita clareza os critérios que presidiram a seleção da bibliografia (as razões, por exemplo, de não haver incluído obras literárias ou artigos de jornais e revistas de grande circulação), a elaboração dos resumos, os blocos em que as obras foram agrupadas etc. Um índice dos autores e uma lista de siglas completam esta preocupação de orientar o leitor na consulta da obra.
A partir destas observações, é fácil concluir que o Guia atenderá aos objetivos a que se propõe:
Primeiro, deve estimular pesquisas inovadoras sobre o tema da escravidão, uma vez que evidencia as temáticas que foram mais desenvolvidas e aquelas mais carentes de estudos; proporciona uma percepção sobre o uso de fontes e formas de abordagem; assinala as regiões geográficas mais favorecidas nas pesquisas; abre a possibilidade de se pensar as semelhanças entre os Estados do Sul e suas experiências escravistas; por fim, o guia pode ainda explicitar as lacunas existentes e incentivar a renovação e o aprofundamento das pesquisas. Em segundo lugar, deve instigar estudos de cunho historiográfico. (p.11-12)
Trabalhos como o de Regina Xavier nos levam à constatação de que certas afirmações repetidas sem muita crítica ao longo dos anos são apressadas e não resistem às evidências demonstradas por um livro este. Neste caso estão a situação quase residual da escravidão no Rio Grande do Sul, a democracia racial dos pampas, a concentração do trabalho escravo em regiões específicas e o caráter antieconômico da escravidão.
Através dos agradecimentos que a autora faz na Introdução aos numerosos alunos — bolsistas ou voluntários — e aos professores que proporcionaram informações sobre obras de difícil localização, o leitor vislumbra o cuidado em realizar um levantamento exaustivo, que levou a equipe a se embrenhar por três anos nas mais diversas bibliotecas, em arquivos e acervos de todo tipo e depois produzir resumos muito apropriados sobre o conteúdo dos textos, trabalho este que implica extraordinária economia de tempo e esforço para os que consultarem o livro. Uma obra de referência desta envergadura é verdadeiramente uma preciosidade para os pesquisadores.
No entanto, é preciso insistir, o livro de Regina Xavier não é apenas um guia bibliográfico, o que já justificaria plenamente sua publicação. Mais do que isto, como antecipei, a autora realiza também uma pioneira análise historiográfica da produção sul-riograndense sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes.
O espaço de uma resenha não permite que eu refaça aqui o caminho que ela percorreu em sua análise, na qual comenta as características da abordagem desses autores, a começar pelas Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves, escritas entre 1817 e 1823, um dos primeiros textos antiescravistas que se conhece no sul do Brasil. Também coloca historiadores rio-grandenses como Emílio de Souza Docca e Dante de Laytano em diálogo com as conjunturas históricas das décadas de 1930 a 1950, em que suas obras foram produzidas, e com os vários debates que se desenvolveram no centro do país — onde a referência obrigatória é Gilberto Freyre — e na Europa sobre o racismo e o conceito de raça, sua definição biológica ou cultural, sobre o papel das diferentes raças na construção da nacionalidade. Na década de 1960, esses debates têm por referência as transformações estruturais da sociedade brasileira, a passagem da sociedade tradicional escravista para a sociedade moderna capitalista, e um dos expoentes dessa perspectiva analítica foi Fernando Henrique Cardoso, com cujo trabalho dialogou no Rio Grande do Sul, entre outros, Mario Maestri Filho. A obra de Cardoso suscitou, no entanto, numerosos debates e experimentou muitas refutações através das pesquisas de Paulo Zarth e Helen Osório, para citar os mais conhecidos, que têm revisado, desde vários ângulos, a importância e o significado do trabalho escravo no Rio Grande do Sul.
A autora comenta, também, os trabalhos muito diversificados que se voltaram, nas décadas recentes, para valorizar a experiência dos escravos, seu cotidiano e sua religiosidade, e neste alargamento temático, proporcionado em boa medida pela pesquisa vinculada ao crescimento dos cursos de pós-graduação, também se incluem investigações sobre o tema do trabalho escravo na pecuária e na cidade. Paulo Zarth, Helen Osório e Paulo Moreira são timoneiros dessa nova historiografia no Rio Grande do Sul.
Na conclusão deste panorama analítico referente ao conhecimento produzido sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, a autora também faz um diagnóstico que aponta rumos para as futuras pesquisas:
muito resta por ser aprofundado: na análise das próprias obras citadas nesta Introdução ou o contexto de suas formulações; na relação dessas obras com seus interlocutores, entre outros aspectos. Certamente é preciso tecer considerações mais abrangentes sobre toda esta produção arrolada, privilegiando a perspectiva comparativa. Neste caso, aguardam-se estudos mais sistemáticos que relacionem, por exemplo, a experiência do Rio Grande do Sul com aquela de Santa Catarina e do Paraná. Enfim, longe de esgotar o tema, o panorama citado acima tem o intuito de demonstrar a potencialidade e a importância dos estudos historiográficos. (p.40)
Concluindo, quero reafirmar que a impecável análise historiográfica introdutória, o rigor da pesquisa realizada e o alentado número de obras que integram este livro de Regina Xavier fazem dele um excelente exemplo da qualidade que os historiadores e historiadoras brasileiros da recente geração vêm imprimindo aos seus trabalhos, atestando a vitalidade do conhecimento histórico em nosso país.
Notas
1 Sua dissertação de mestrado foi publicada pela Editora da Unicamp em 1997, com o título A conquista da liberdade; a tese de doutorado foi publicada em 2008 pela Editora da Universidade/UFRGS e pelo IFCH, com o título Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito.
Sílvia Regina Ferraz Petersen – Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Av. Bento Gonçalves, 9500. 91509-900 Porto Alegre — RS — Brasil. E-mail: spetersen@orion.ufrgs.br
SALVADÓ Francisco J Romero (Aut), A guerra civil espanhola (T), Jorge Zahar (E), MOTTA Rodrigo Patto (Res), Revista Brasileira de História (RBH), Guerra Civil Espanhola, Europa/Espanha (L), Século 20 (P)
SALVADÓ, Francisco J. Romero. A guerra civil espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 356p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56 2008.
O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.
Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.
Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.
É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.
Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.
Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.
Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.
O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a ‘milhões’ de soldados; e o nome do marechal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.
Rodrigo Patto Sá Motta – Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. E-mail: rodrigosamotta@yahoo.com.br
[IF]Black mass – GRAY (RBH)
GRAY, John. Black mass. New York: Penguin Books, 2008. 352p. Resenha de: DE DECA, Edgar Salvadori. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56 2008.
Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: “a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo” (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, “Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas” (p.16).
Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, “o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas” (Cachorros de palha, p.3).
Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a “Missa Negra” é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.
A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.
Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.
No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.
Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar “arte de responder ao fluxo das circunstâncias”. Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?
Edgar Salvadori de Decca – Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. E-mail: edecca@terra.com.br
[IF]La ville au Brésil (XVIIIe — XXe siècles): naissances, renaissances – VIDAL (RBH)
VIDAL, Laurent Vidal (Org.). La ville au Brésil (XVIIIe — XXe siècles): naissances, renaissances. Paris: Rivages des Xantons, 2008. 402p. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
Entre 16 e 18 de 2005 realizou-se na França, em La Rochelle e Brouage, um colóquio intitulado “La ville au Brésil: naissances, renaissances”. Agora, três anos depois, publica-se um livro que aborda as principais questões e os temas desenvolvidos por ocasião do colóquio. Organizado por Laurent Vidal, historiador da Universidade de La Rochelle, o livro apresenta 25 artigos, um dos quais a título de conclusão, mesclando principalmente autores franceses e brasileiros, mas não só, que versam sobre o processo urbano em nosso país.
O Brasil tem se apresentado como um espaço preferencial para o estudo da formação, desenvolvimento e decadência das cidades, “um verdadeiro laboratório, um vasto terreno de experiências”. Como nos alerta Alain Musset, no texto que serve de conclusão ao livro, “das cinzas de uma cidade brasileira pode-se observar sua mudança de forma, de estatuto e de função”. As cidades, por serem tema de caráter transdisciplinar, têm interessado a especialistas de diferentes áreas, mas notadamente aos historiadores. Essa diversidade se reflete na escolha dos articulistas do livro, o que só enriquece e estimula o debate. São várias as questões que norteiam os diferentes artigos: Como se funda uma vila? Como um arraial se transforma em vila ou cidade? Quais os significados do espaço urbano e de que maneiras ele é apropriado? Como se opera o processo de transição entre a formação, o auge e a decadência dos espaços urbanos? Como se desenrola o tempo urbano? Enfim, como as urbes nascem e se transformam ao longo do tempo?
Desde o primeiro capítulo, que versa sobre a fundação do Rio de Janeiro, no século XVI, os autores lançam olhares críticos e se debruçam sobre vários mitos que há muito têm perdurado na historiografia. Nesse artigo, escrito por Maurício Abreu, como também no que versa sobre Vila Boa de Goiás, por Renata Malcher Araújo, e em quase todos os demais que se referem ao nascimento de urbes coloniais, questiona-se a idéia, semeada por Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, da falta de planejamento das cidades brasileiras criadas pela metrópole portuguesa. Outro paradigma posto em questão é o da decadência urbana enfrentada por algumas cidades como é o caso de Ouro Preto, no artigo de Cláudia Damasceno Fonseca e Renato Pinto Venâncio, ou Salvador, no capítulo escrito por Pedro de Almeida Vasconcelos. Até mesmo a idéia arraigada de que a cidade contemporânea tem se tornado espaço pouco democrático é desmistificada por alguns deles, como o de Paulo Costa Gomes, que apresenta o espaço das praias cariocas como locus de convivência democrática de vários grupos heterogêneos de moradores da cidade do Rio de Janeiro, ou ainda o de James Houlston, que revela o caráter reivindicatório de regras e direitos democráticos no discurso das gangs urbanas, bem como o artigo de Dominique Vidal que questiona diretamente o tema.
O livro se divide em duas grandes seções, uma que aborda o processo fundacional, os “Nascimentos” de várias urbes, mas que também toca e questiona o momento de decadência e morte de algumas delas, e a segunda, chamada de “Renascimentos”, que discute as transformações, as intervenções e as experiências vividas nos e pelos espaços urbanos. O espectro geográfico é amplo: Rio de Janeiro, Salvador, Goiás Velho, Brasília, São Paulo, Niterói, Porto Velho, Anápolis, Vila Bela, Niterói e Marabá são alguns dos inúmeros estudos de caso apresentados. Há estudos comparativos, como o de Rubenilson Teixeira e Ângela Lúcia Ferreira, que compara o processo de formação e desenvolvimento urbano de Natal e Assu, no Ceará, ou o de Maria Encarnação Sposito, que discute a formação sócio-espacial da rede urbana em São Paulo no boom cafeeiro. Mas há alguns artigos, como o de Fania Friedman, sobre as vilas do café no Rio de Janeiro, ou o de Hervé Théry, sobre as capitais brasileiras fundadas no século XX, que não se limitam a uma ou duas cidades específicas, mas tratam de toda uma rede de cidades. Algumas são próximas uma das outras, como o tecido urbano em torno de Marabá, estudado por Leandro Rocha, outras tantas são distanciadas geograficamente, como as capitais brasileiras fundadas no século XX, analisadas por Hervé Théry.
O marco cronológico é o da longa duração. Há artigos que versam sobre a fundação de cidades, desde o período colonial, como o Rio de Janeiro no século XVI (e não XVIII como o subtítulo do livro parece enquadrar); passando pelo início do século XX, como é o caso de Marabá, analisado por Leandro Mendes Rocha, e de Porto Velho, estudado por Martine Droulers e Laurent Vidal; até as décadas mais recentes, como é o caso de Brasília, estudado por Heliana Angotti-Salgueiro, através das imagens fotográficas de Marcel Gautherot. Há também casos em que uma mesma cidade é examinada pelo autor ao longo de um período bastante amplo, como é o caso de Ouro Preto, cujo processo de transformação da urbe é visto entre os séculos XVIII e XX, ou o de Niterói, descrito entre 1819 e 1930, por Marlice Azevedo e Fernanda Teixeira.
Se “desenho e engenho” foram a base sobre a qual nasceram várias urbes brasileiras, como nos casos clássicos de Vila Bela, Belo Horizonte ou Brasília, as mutações perpétuas por que passam as cidades brasileiras são resultado de uma relação dinâmica vivenciada entre os seus espaços e seus moradores. Sobre essas mudanças nos falam vários artigos, como o de Sylvie Miaux, sobre os condomínios do bairro da Tijuca, ou o de Rodrigo Valverde, sobre o Largo da Carioca, ambos no Rio de Janeiro, ou o de Sylvia Macet, sobre as festas em Goiás Velho, ou ainda o de Alain Musset, sobre o que diz a linguagem dos graffiti nos muros das cidades brasileiras. A questão do planejamento urbano é outro tema que surge do processo de transformação pelo qual as urbes passam ao longo do tempo. Tal é o caso de São Paulo, examinado por Maria Stella Bresciani, ou do Rio de Janeiro, examinado por Vera Rezende e Fernanda Furtado.
O livro não apenas aborda a cidade na sua concretude, mas também fala de imagens e símbolos construídos sobre elas. O artigo de Tânia Regina de Luca discute, por exemplo, as imagens de decadência das cidades do Vale do Paraíba construídas por Monteiro Lobato, mostrando tratar-se não de cidades reais, mas de metáforas do Brasil da época. Rémy Lucas apresenta as diversas imagens construídas sobre o arraial de Belo Monte, desde a linguagem jornalística concomitante à Guerra de Canudos até a obra literária que versa sobre o episódio.
Enfim, há toda uma amplitude de temáticas, questões e abordagens que uma pequena resenha não dá conta de abarcar. No entanto, é essa mesma diversidade que justifica e serve de convite ao leitor para que se aventure por esse mundo urbano brasileiro em mutação perpétua, descrito de forma instigante e criativa por esses autores.
Júnia Ferreira Furtado – Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. E-mail: juniaf@fafich.ufmg.br
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882008000200019
BEHE Michael (Aut), The edge of evolution: the search for the limits of darwinism (T), Free Press (E), ÁVILA Gabriel da Costa (Res), Revista Brasileira de História (RBH), Teoria da Evolução, Charles Darwin, Darwinismo, Europa/Inglaterra (L), Século 19 (P), Século 20 (P)
BEHE, Michael. The edge of evolution: the search for the limits of darwinism. New York: Free Press, 2007. 331p.Resenha de: ÁVILA, Gabriel da Costa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
A teoria da evolução a partir de um ancestral comum, através da seleção natural e da mutação aleatória, exposta por Charles Darwin n’A origem das espécies em 1859,1 formou um dos conjuntos de idéias mais influentes na história recente da ciência. O darwinismo atravessou as barreiras da academia e difundiu-se, bastante matizado, pela sociedade. Durante quase um século, o darwinismo dominou a explicação científica da origem da vida.
Com as novas descobertas ocorridas a partir de meados do século passado, especialmente do DNA, o nível de complexidade por trás dos processos celulares se mostrou maior do que o esperado pelos evolucionistas. Pôr o darwinismo à prova, à luz dessas descobertas, abre um enorme espaço para a refutação das idéias do naturalista inglês. Atualmente, o questionamento mais vigoroso a respeito da validade dos fundamentos teóricos do darwinismo parte das críticas de Michael Behe.
Michael J. Behe é um autor conhecido entre os estudiosos do darwinismo. Bioquímico e professor na Leigh University, na Pensilvânia, Estados Unidos, popularizou-se por defender o criacionismo — bastante camuflado — de forma bastante competente. Em 1996, com o lançamento de A caixa preta de Darwin,2 o autor tentava provar que algumas estruturas bioquímicas presentes em certas células são tão complexas que não podem ser explicadas pelo argumento da mutação aleatória, contrariando um dos pilares do darwinismo. A análise de Michael Behe fez o autor figurar entre os principais cientistas a advogarem em prol da teoria do design inteligente. Essa teoria defende que o darwinismo, mesmo sendo bastante coerente e verossímil, é insuficiente para a compreensão da vida e da evolução: a vida na Terra não alcançaria o estágio que alcançou baseada apenas em processos aleatórios. É necessário que haja um caminho a seguir, um projeto, um design funcional a ser alcançado.
Um dos suportes teóricos fundamentais para o design inteligente é o conceito de complexidade irredutível, introduzido por Behe em A caixa preta de Darwin. Segundo o autor, os avanços da ciência nos permitiram questionar a proposta evolutiva de Charles Darwin, principalmente quando se dispõe de dados e informações a que o naturalista jamais teve acesso, notadamente no que diz respeito à genética e à bioquímica. Analisando algumas estruturas celulares especialmente ‘elegantes’, o autor afirma que estas possuem uma configuração tão sofisticada que se torna impossível concebê-las em estágios anteriores na evolução, isto é, essas estruturas não poderiam ter evoluído de nada mais simples sem ter suas funções irremediavelmente comprometidas. Isso as faz irredutivelmente complexas. O livro gerou polêmica não apenas por seu conteúdo, mas também pela forma convincente da exposição.
Um longo debate teve início. Os darwinistas atacavam acusando os adeptos do design inteligente de criacionistas e anticientificistas, uma vez que, posta a questão do projeto que guia a evolução, é fácil questionar também a respeito do projetista. Quem é o designer? E a pergunta transcende o reino da razão, no qual se estabeleceu a ciência moderna, e passa para o campo metafísico da crença e da religião. Mesmo que se prove a inconsistência do darwinismo para explicar o desenvolvimento bioquímico de alguns organismos, o que é bastante saudável no meio acadêmico — embora o darwinismo possua acólitos fervorosos —, a hipótese de uma inteligência por detrás das estruturas da natureza lembra demais o criacionismo e outras idéias que não se sustentam se postas à prova pelos métodos desenvolvidos pela ciência para testar o conhecimento que ela produz.
Os defensores do design inteligente, por sua vez, acusavam os evolucionistas darwinistas de dogmatismo e de censura ao desenvolvimento científico, sentiam-se perseguidos por cientistas que se recusavam a aceitar a possibilidade de uma nova teoria para a evolução, julgavam estar enfrentando a “Nomenklatura científica”.3
Fica claro no debate a tentativa, de ambas as ‘facções’, de desqualificar os argumentos dos ‘adversários’ empurrando-os para o terreno da não-ciência, ou, ao menos, da ‘má ciência’.
Mais de dez anos depois de publicado o livro que reacendeu a tensão entre darwinistas e adeptos do design inteligente, Michael Behe volta à carga com The edge of evolution: a search for the limits of darwinism, estudo, lançado em 2007 e ainda sem tradução em português, que aprofunda as conclusões obtidas em A caixa preta de Darwin.
Enquanto o livro de estréia do autor partia de uma investigação mais específica, a respeito da ‘complexidade irredutível’ de algumas estruturas bioquímicas sofisticadas, The edge of evolution é muito mais ambicioso. A idéia central do livro é desenhar linhas gerais que demarquem o terreno a partir do qual o darwinismo deixa de ser útil na explicação não apenas de alguns processos bioquímicos localizados, mas também de aspectos gerais da origem das espécies. Com isso, o velho criacionismo ganha um status de saber científico na figura do design inteligente e, assim, pode disputar com o darwinismo o papel de detentor do conhecimento acerca da origem das espécies e da vida. Não é, agora, uma questão de ‘ciência contra religião’, mas sim de teorias científicas concorrentes.
Para os estudiosos da ciência, o surgimento de teorias que usem os pressupostos do racionalismo científico a partir de um pano de fundo religioso é, no mínimo, intrigante, pois aponta para questões novas que exigem uma revisão acerca das tradicionais idéias de ciência e razão. O desencantamento do mundo e a substituição dos elementos mágicos por elementos racionais — que, para Max Weber, consistia numa das principais características da modernidade4 — parece subvertido de forma bastante sofisticada. A razão científica é invocada por Michael Behe para dar validade a uma concepção mágica do mundo.
O estudo de Behe tem o mérito de investigar, como indica o título, os limites do darwinismo. Contudo, embora suas pesquisas demonstrem os pontos frágeis do darwinismo, não apresentam nenhuma evidência relevante a favor do design inteligente. Cabe a nós, historiadores e estudiosos da ciência, perguntarmo-nos que motivos o levaram a extrapolar de forma tão radical as fronteiras do método científico na defesa de sua teoria, quando, ao mesmo tempo, defende esse método tão veementemente ao atacar o darwinismo. De resto, é necessário atentarmos para a possível emergência de uma nova relação entre ciência e religião.
Uma história do darwinismo que tenha a pretensão de compreender o território conflituoso da afirmação de uma teoria científica em sua dimensão social não pode perder de vista as condições socioculturais que envolvem a produção dos discursos científicos. Ou seja, deve-se refletir sobre o tipo de ciência que pode ser feita por um católico apostólico romano que, como Michael Behe, direciona seu discurso a partir de convicções filosóficas e religiosas.
Não se trata de considerar, no entanto, a ciência como uma atividade neutra, objetiva, que pode ser corrompida pela subjetividade de criacionistas com interesses espúrios; trata-se de perceber a ciência como uma atividade humana que se inscreve no âmbito da cultura e que, por isso, está sujeita a variações e condicionantes sociais, culturais e históricos. A ciência está imersa em seu tempo. E o caso de Behe aponta para isso.
O design inteligente, como formulado por esse autor, dá aos criacionistas uma excelente oportunidade de desafiar o darwinismo na interpretação da origem da vida em igualdade de condições, especialmente em relação ao ensino dessas teorias nas escolas públicas dos Estados Unidos. Lá, a disputa pelo ensino do criacionismo em substituição, ou em paralelo, ao evolucionismo remonta ao início do século passado, e a matéria acabou na justiça em 1987, quando se decidiu suprimir o ensino do criacionismo, com base na noção de Estado laico. Com o advento do design inteligente, porém, a situação se altera.
Graças ao esforço cientificista de Michael Behe e outros cientistas ligados a essa corrente, outra vez a peleja entre darwinistas e criacionistas, agora escudados pelo design inteligente, vem à baila. Em 2004, a tentativa, no Liceu de Dover, de introduzir o design inteligente como explicação alternativa à origem da vida resultou em novo processo judicial, no qual a instituição foi acusada de privilegiar interpretações religiosas, contrariando assim o laicismo que rege a educação nos Estados Unidos. Pode-se perceber um jogo político no qual a ciência é um cavalo de batalha. E a reconfiguração do alcance do darwinismo, seja nas suas lacunas bioquímicas, seja nas cartilhas escolares, não significa um avanço das trevas sobre os territórios das luzes e da razão, mas uma demonstração da dinâmica da ciência tal qual se faz.
Notas
1 DARWIN, Charles. On the origin of species. Cambridge: Harvard University Press, 1975. 512p. [ Links ]
2 Cf. BEHE, Michael. A caixa preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução. Trad. Ruy Jungmann. 1.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 300p. [ Links ]
3 A Nomenklatura era a classe dirigente soviética, composta pelo alto escalão do partido comunista e do Estado. Segundo alguns críticos do regime de Moscou era o próprio Estado e usava essa condição para se beneficiar. É usada por alguns autores que defendem o design inteligente, quando se referem aos darwinistas, que dispõem de prestígio nas instituições científicas e constituiriam uma classe privilegiada.
4 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani Macedo. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 336p. [ Links ]
Gabriel da Costa Ávila – Mestrando em Ensino, Filosofia e História das Ciências — Universidade Estadual de Feira de Santana; FFCH — Depto. de História, Universidade Federal da Bahia (UFBA) — Estrada de São Lázaro, 197 — Federação. 40210-730 Salvador — BA — Brasil. E-mail: gabriel_avila_00@hotmail.com
CUETO Marcos (Aut), O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde (T), Editora da Fiocruz (E), NUNES NETTO Eduardo Silveira (Res), Revista Brasileira de História (RBH), História da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Século 20 (P)
CUETO, Marcos. O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. 241p. Resenha de: NUNES NETTO, Eduardo Silveira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
Na história das políticas de saúde pública no continente americano a presença da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é destacável, e na busca de delinear os caminhos da OPAS ao longo do século XX, Marcos Cueto desenvolveu seu estudo O valor da saúde.
Cueto é especialista em história da saúde pública no continente e, especialmente, no Peru, tendo desenvolvido importantes pesquisas e publicações enfocando essa temática e também a história da ciência naquele país. Sua circulação no Brasil é um tanto restrita, e este livro supre, em parte, tal lacuna.
Com pesquisa exaustiva em instituições de saúde, bibliotecas e arquivos, nacionais e de organismos internacionais — Organização dos Estados Americanos (OEA), OPAS, Organização Mundial da Saúde (OMS) —, e em periódicos da América Latina e dos Estados Unidos, o livro oferece justa visibilidade à trajetória histórica da instituição de saúde internacional mais antiga, e ainda ativa, a OPAS, criada em 1902.
A estratégia do autor foi a de acompanhar o desenvolvimento da instituição, numa linha fundamentada na sucessão das diferentes atuações e coordenações conduzidas por seus diretores gerais, cujos mandatos chegavam, em alguns casos, a dez anos.
O texto divide-se em seis capítulos: As origens da saúde internacional nas Américas; O nascimento de uma nova organização; A consolidação de uma identidade; Por um continente livre de doenças; Saúde, desenvolvimento e participação comunitária; Vigência e renovação.
As conjunturas e o desenvolvimento da saúde pública na região perpassam a periodização realizada pelo autor, interligados de modo muito interessante com as seguintes variáveis: o protagonismo de personagens importantes na saúde publica da região; as questões envolvendo os interesses particulares dos países-membros da OPAS (circulação de mercadorias e pessoas, prevenção de epidemias nos portos); os temas candentes da geopolítica de cada época (fim das duas guerras mundiais, guerra fria) conectados a emergência de sentimentos e estratégias de solidariedade continental latino-americana, num primeiro momento, e pan-americanismo da doutrina Monroe, num segundo período, expressando o interesse dos Estados Unidos nas ações da OPAS; o desenvolvimento do conhecimento sanitário, médico e higiênico, como também da engenharia, e as extensas fronteiras de ação social que as descobertas científicas como a microbiologia, a produção de novos fármacos, novas vacinas, a compreensão das dinâmicas das epidemias seus vetores, transmissores, e as técnicas de combate e prevenção, trouxeram; a criação de condições para o crescimento populacional, a urbanização (década de 1920) e a explosão urbana e demográfica (décadas de 1950 e 1960), as políticas de acomodação social, a reconfiguração das relações no campo e entre este e a cidade.
A forma habilidosa como o autor transita por diferentes fatores envolvidos na trajetória da OPAS deixa evidenciada a complexidade histórica dentro da qual a construção dessa instituição foi sendo forjada, bem como a maneira tortuosa, não linear, pela qual a saúde pública foi ganhando relevância dentro das políticas de cada um dos países, no plano interno-nacional e no internacional.
Resumidamente, a OPAS derivou da Repartição Sanitária Internacional, que fora fundada em 1902. Em 1923 sofreu alteração no nome para Repartição Sanitária Pan-Americana (RSP ou Oficina Sanitária Panamericana). A mudança de seu nome para OPAS aconteceu em 1943, como resolução da XII Conferência Sanitária Pan-Americana (Caracas, Venezuela). Apesar da nova nomenclatura, a entidade manteve o seu órgão executivo nomeado como RSP e a antiga estrutura decisória — colegiado com um membro de cada país.
A RSP interagiu através de acordos e convênios firmados em 1923 com a União Pan-americana (de 1890), assumindo a condução das Reuniões Interamericanas dos Ministros da Saúde. Em 1924 foi acolhida pelo Código Sanitário Pan-Americano do mesmo ano e reconhecida como “agência sanitária coordenadora central das várias repúblicas-membros da União Pan-Americana” e “responsável por promover a organização e a administração da saúde pública e divulgar informações sobre progressos da medicina preventiva”.
Com a fundação da OEA, em 1948, o papel da OPAS foi revisto. A OPAS era uma entidade ‘autônoma’ dentro das relações intergovernamentais e não estava submetida à nova estrutura da OEA. A relação entre ambas era diplomática. Foram necessários acordos entre a OPAS e a OMS, para que uma possível integração, garantindo certa autonomia à OPAS em matéria de saúde pública, fosse concretizada em 1950, quando esta passou a ser uma “Organização Especializada Interamericana” dentro da OEA, seu status atual.
A OPAS também foi reconhecida pela OMS (criada em 1948) como organismo regional dotado de autonomia diante dos organismos da Organização das Nações Unidas, dos quais a OMS fazia parte, através de um acordo de 1949, pelo qual passava a ser o escritório regional para as Américas da OMS.
A consolidação da OPAS foi paulatina, com dificuldades e prioridades diferentes ao longo do tempo. Suas ações também sofreram mutações. A adesão dos países como membros aconteceu plenamente entre 1940 e 1950, quando a organização passou a englobar as Américas e o Caribe.
A capacidade de financiamento limitava as ambições da instituição. Com o tempo ampliou-se a capacidade financeira. Os orçamentos eram estes: entre 1910 e 1930, 50 mil dólares; nos anos 40, 115 mil a 280 mil dólares por ano; em 1947, 1,3 milhão de dólares; no fim dos anos 50, 2,5 milhões; entre 1961 e 1964, 16 milhões de dólares por ano.
Constituiu-se assim uma ‘burocracia’ e uma área técnica vinculada à instituição, como um corpo permanente e estável, chegando ao auge de 750 funcionários em 1959.
A ampliação da presença da OPAS nos países se deu com a divisão das Américas em seis zonas, com um escritório regional em cada. Posteriormente, cada país passou a comportar um escritório local.
As finanças provinham de fontes regulares (pela contribuição dos membros); de projetos financiados e bolsas de estudos da Fundação Rockefeller (1920-1950), Fundação Kellogg (após os anos 40), OMS, Unicef (Fundo da ONU para as Crianças), ONU e FAO (organização da ONU para Alimentação e Agricultura); de convênios e acordos técnicos com países da região e, especialmente, com os Estados Unidos, em auxílio intensificado na guerra fria (1941-1951, atingindo cerca de 30 milhões de dólares).
As atividades e deliberações durante um largo período estiveram circunscritas a estas instâncias: Conferências Sanitárias Pan-Americanas, Conselho Diretor e Comitê Executivo. Como órgão executivo, a Repartição Sanitária Pan-Americana.
A ação da OPAS deu-se, inicialmente, por publicações como o Boletin de la Oficina Sanitária Panamericana, e pela participação nas Conferências Sanitárias, fomentando debates sobre saúde pública. O combate às epidemias provenientes de portos propiciou uma ‘guerra às epidemias’ com a estratégia de combater vetores e promover vacinação/imunização e educação.
A redução da mortalidade infantil e materna era preocupação constante. Também recebeu atenção a necessária indução à formação de escolas de enfermeiras e de pessoas capacitadas para o trabalho na área da saúde, higiene e sanitarismo.
A promoção de estruturas de fomento à saúde pública nos países (Ministérios ou Secretarias de Saúde, Centros de Higiene) atravessou o percurso da OPAS, que procurou induzir gestores públicos a adotarem medidas de saúde coletiva como forma de a sociedade auferir benefícios como mais trabalhadores saudáveis e produtivos, e crianças menos enfermas.
A emergência da noção de saúde como um valor vinculou-se à noção de bem-estar social, pela qual a prevenção, a extensão de serviços públicos e a implementação da atenção primária à saúde englobariam o paradoxo que redunda na gênese da concepção de saúde como um direito individual e coletivo dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a visão estratégica dos governos, no período da guerra fria, busca promover o bem-estar com a finalidade de limitar a possibilidade do surgimento de tensões e conflitos sociais entre capital e trabalho.
A OPAS exerceu uma função estratégica na região após a criação da Aliança para o Progresso, em 1961, pela OEA, para a qual o bem-estar social era critério para a ‘paz’ na região. Essa diplomacia sanitária foi perpassada pelos interesses dos governos, em especial dos Estados Unidos. Entretanto, a OPAS não foi uma agência submetida a um único governo. Um exemplo: à época da expulsão de Cuba da OEA, a OPAS não anuiu com a orientação dessa organização e sustentou aquele país como Estado-membro de sua estrutura.
A presença e a consolidação da OPAS no continente americano e sua participação direta e indireta na promoção e constituição da saúde pública dos países da região fazem deste livro uma importante referência. A OPAS desenvolveu esforços para se formar um ambiente regional de cooperação, de planejamento, e de ações dirigidas a políticas e intervenções de saúde, daí a importância em se tentar compreender as especificidades americanas nessa área, cuja historicidade e temporalidade são peculiares.
Antes de encerrar seu potencial de reflexões sobre a história da OPAS, o livro O valor da saúde aponta um horizonte de novos estudos relacionados a organismos internacionais, políticas de saúde pública, dinâmicas e tensões que atravessam as entidades inter-governamentais, redes intelectuais, profissionais e científicas. Aponta, também, a ascensão às esferas de poder de áreas do conhecimento como a medicina e a engenharia.
Eduardo Silveira Netto Nunes – Bolsista Fapesp. Doutorando em História Social — FFLCH/Universidade de São Paulo (USP) — Largo Padre Péricles, 74, ap.61 — Barra Funda. 01156-040 São Paulo — SP — Brasil. edunettonunes@yahoo.com.br
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Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850) – CAMARGO (RBH)
CAMARGO, Haroldo Leitão. Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850). São Paulo: Aleph, 2007. 383p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55 jan./jun. 2008.
Na efeméride dos duzentos anos da chegada da Coroa Portuguesa a terras brasileiras e na esteira das inovações que trouxe consigo — como a criação de instituições de ensino superior, indústrias, imprensa e museus, entre outras —, observamos que a historiografia tem revisitado esses temas. No entanto, poucos especialistas têm se debruçado sobre o estudo das formas de lazer introduzidas no Brasil Colônia, após 1808 — temática eleita por Haroldo Leitão Camargo em Uma pré-história do turismo no Brasil. Trata-se de um volume que retoma a análise dos percalços das viagens transoceânicas realizadas entre os séculos XVI e XIX e das transformações que distintas formas de diversão adquiriram no Brasil. Todavia, sua principal contribuição diz respeito à conceituação do ‘proto-turismo’ e ao estudo das conotações atribuídas às recreações, aos banhos de mar, às caldas e às estâncias hidrominerais desfrutados pelos membros da corte e seus pares.
Uma narrativa envolvente e fundamentada em documentação diversificada nos introduz em um universo que abarca desde relatos de navegadores anônimos manifestos por tripulantes de embarcações, funcionários da Companhia das índias ocidentais, comerciantes, jesuítas e capuchinhos, até correspondências pessoais de aspirantes a marinheiro como Manet, que se tornaria reconhecido artista plástico. Registros de exploradores e cientistas estrangeiros que se aventuraram pelas terras tropicais e comentários de personagens emblemáticos, como Pero Vaz de Caminha, também não escaparam de uma cuidadosa análise por parte do autor.
Com efeito, Camargo nos deleita com impressões transmitidas por olhares estrangeiros através da literatura de viagem, muito apreciada entre os europeus no século XIX. Um gênero que corroborou para transformar o exercício individual da leitura numa prática de sociabilidade compartilhada em serões domésticos não apenas na Europa, mas também no Brasil. Além dessa literatura, o autor toma como referenciais investigativos folhetins, anúncios, vinhetas, ilustrações e diários de membros da corte com o intuito de apreender o sentido atribuído para as práticas sociais que incluíram os benefícios medicinais das águas minerais e sulfurosas, as atividades em balneários marítimos e as diversões desfrutadas por parte significativa da aristocracia portuguesa instalada no Brasil no início do século XIX, reproduzidas também pela fidalguia mais abastada.
Tal empreitada exigiu a averiguação de pistas acerca das motivações e as inovações tecnológicas capazes de propiciar a oferta de atividades que levariam os indivíduos a se afastarem do trabalho (ou do não-trabalho) e seriam, na atualidade, decodificadas como anseios associados às necessidades psíquicas e culturais de os cidadãos esquivarem-se de suas rotinas cotidianas. Nesse percurso, Camargo não se furta da investigação sobre os significados históricos da vilegiatura, das caçadas e dos jogos de carteado, da hospedagem nos cottages na Serra, da construção de casas de veraneio, enfim, de recreações em tempos e espaços sociais distintos. Aborda a origem etimológica dos vocábulos e as suas similaridades e diferenças em relação ao turismo, tal como é concebido pela sociedade capitalista.
O livro examina de que maneira determinados costumes passaram a ser reconhecidos como embriões do turismo no país e procura desvelar visões simplistas, cujo intuito se circunscreve a associar, por exemplo, os banhos ao turismo. Interessado em compreender as alterações que, simultaneamente, enredaram a ritualização desse fenômeno, pesquisa os hábitos que passaram a adquirir sentidos lúdicos e a envolver serviços remunerados sem, no entanto, excluir as indicações médicas que os inflaram. Para tanto, opta por analisar a gênese e o desenvolvimento de determinadas práticas cotidianas, como as desenvolvidas nos antigos balneários romanos e outras que, ao longo dos séculos, se transformaram em atividades recreativas ou terapêuticas recorrentes entre a aristocracia européia, igualmente adotadas no Brasil pela ‘Corte Tropical’.
Do seu ponto de vista, a vilegiatura, as visitas à Floresta da Tijuca, ao Corcovado ou ao Horto Real ou Jardim Botânico indicam a busca de ares mais puros e a fuga da usualidade. Os banhos em águas salgadas ou passeios à beira-mar difundidos entre aristocratas e burgueses, a princípio recomendados por médicos, posteriormente assumiram um perfil hedonista e prazeroso distante das motivações terapêuticas e profiláticas iniciais.
Nessa linha argumentativa, o autor salienta que as visitas às fontes de águas minerais e às caldas, praticadas desde a Antiguidade, assumiram uma dimensão disciplinada e regular a partir da amplitude que atingiram no discurso médico no século XVIII e ora se imbricaram a empreendimentos médico-hospitalares, ora se associaram ao ‘curismo-turismo’, como ocorreu na Grã-Bretanha, na Europa Ocidental e Central. No Brasil, o usufruir das chamadas ‘águas virtuosas’ implicou as facilidades de acesso a esses locais, bem como diferentes percepções sobre suas finalidades. Enquanto para o comerciante inglês John Luccock1 elas apresentavam um potencial comercial a ser explorado, para D. João VI, fundamentado talvez em princípios de ‘eqüidade’ ou em perspectivas empresariais limitadas, a virtude curativa dessas águas devia ser consagrada a remediar “moléstias rebeldes aos esforços da Medicina e da Cirurgia” (p.259).
As viagens transoceânicas e os seus infortúnios constituem um outro assunto abordado por Haroldo L. Camargo, um tema recorrente na literatura especializada que deu e continua dando vazão às fábulas alimentadas no imaginário social. Assim, por intermédio de fragmentos de relatos dos vários viajantes, o historiador evidencia situações vivenciadas no cotidiano das embarcações que se precipitavam mar adentro e remete à precariedade das condições de vida a bordo, entre os séculos XVI e XVIII. Para esses passageiros e tripulantes, o conceito de uma viagem profícua se circunscrevia à condição de escapar com vida ao seu término.
Apenas para aguçarmos a diligência de futuros interlocutores, vale retomar determinados relatos analisados nesse volume, como os do jesuíta Antônio Sepp, do funcionário da Companhia das índias ocidentais da Holanda Joan Nieuhof e do marquês de Távora. Alguns deles descrevem suas impressões sobre o Brasil e seus habitantes, mas salientam os contratempos enfrentados no transcurso das viagens, tais como: sucessivas tempestades, a putrefação dos alimentos, a contaminação da água potável, o desconforto psicológico e material, a necessidade de superar a ‘lenta’ passagem do tempo, as pestes e doenças. Como se não bastassem tais mazelas, mencionam ataques de corsários inculpados de saquear as embarcações, ferir os tripulantes e escravizar os sobreviventes. O temor dos ‘perigos do mar’, por exemplo, é exposto com minúcias por Joan Nieuhof que, em 1640, desembarcou no Recife.
Os relatos tomados como fontes por Camargo tendem a desmistificar o imaginário ocidental relativo às imagens romanescas criadas em torno dos tripulantes das naus e suas ‘façanhas heróicas’. Se nos séculos XV e XVII alguns registros dessas viagens se aproximam do que o autor define como ‘confissões catárticas’, os relatos dos séculos XVIII e XIX apontam alterações no perfil dos viajantes e, principalmente, da tripulação — em geral, composta por pessoas marginalizadas socialmente e que abraçavam a profissão sem conhecer as artimanhas do ofício. O jesuíta Antônio Sepp, cujo translado iniciou-se em Cádiz (Espanha) com destino a Buenos Aires (Argentina), no segundo quartel do século XVII, inquieta o leitor porque se refere aos ‘conceitos e preconceitos’ manifestos no ambiente social interno dessas embarcações. Ele admite nutrir rancores contra o comandante considerado mesquinho e ambicioso. Já em 1750, o marquês de Távora mostra-se indignado frente à brutalização dos marinheiros e chega a afirmar: “Posso lhes assegurar que … sentem mais a morte de um de seus frangos do que a perda de cinco ou seis companheiros de viagem” (citado na p.53).
De todo modo, cabe-nos destacar que o historiador extrai das entrelinhas dessas narrativas algumas verossimilhanças e esmiúça as imagens idealizadas impressas na literatura que se reporta à pirataria ou aos desafios das viagens transoceânicas. Tais temas foram e continuam sendo alvo de inspiração para produções cinematográficas e literárias que não raro são apropriadas por empreendimentos turísticos e pela publicidade. Nessa direção, assevera: “O turismo reelabora para os seus próprios fins as imagens e a produção delas decorrentes…” e ao referir-se às recreações dessa natureza lembra que “Em torno delas, há uma orquestração que pretende revivê-las, mitigadas e conseqüentemente desprovidas de suas características reais…” (p.55).
Sem dúvida, as perspectivas de desfrutar da aventura, do terror ou do prazer estimulam sensações muito bem exploradas por empresas que se ocupam do turismo desde que a sociedade industrial criou o axioma ‘tempo é dinheiro’. O tempo deve ser integralmente aproveitado, até mesmo aquele destinado ao descanso, à recreação e ao lazer. Encerramos esta resenha citando o historiador Evaldo Cabral de Mello quando afirma que “o prazer de falar de um bom livro só é inferior ao prazer de lê-lo”,2 e salientamos a propriedade com que Haroldo Camargo trata a problemática pesquisada — tema candente na atualidade.
Notas
1 Luccock viveu no Rio de Janeiro entre 1808 e 1818. Ao retornar ao seu país publicou Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, em 1820. O livro foi traduzido para o alemão um ano depois e compilado em 1831 numa versão destinada ao público juvenil, dada a significativa aceitação do tema entre os europeus. No Brasil, há duas edições: Itatiaia (Belo Horizonte) e São Paulo (Edusp, 1975). Cf. CAMARGO, 2007, p.79, 367.
2 Cf. MELLO, E. C. “Em O modelo italiano, Fernand Braudel examina o apogeu cultural, político e econômico do país nos séculos 15, 16 e 17″. Folha de S. Paulo, 23.dez.2007, Caderno Mais, p.8. [ Links ]
Sandra C. A. Pelegrini – Depto. de História – Universidade Estadual de Maringá. Avenida Colombo, 5790, Jardim Universitário.87020-900 Maringá – PR – Brasil. E-mail: spelegrini@wnet.com.br
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História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história – Durval M. Albuquerque Jr.
Era de profissão encantador de palavras.
Manoel de Barros[1]
Durval Muniz de Albuquerque Júnior é de profissão historiador, o que não o impede de ser também um ‘encantador’ de palavras. História. A arte de inventar o passado, seu último livro, é uma coletânea de artigos sobre teoria da história articulados a partir de uma temática central: as diferentes formas de se pensar e de se escrever a história. Tarefa em geral árdua, ela é aqui tratada de modo rigoroso mas, ao mesmo tempo, sem a severidade de quem apenas quer dar lições. Como Michelet, Durval Muniz em vez de simplesmente redigir, escreve.[2] Escrita audaciosa, provocativa, criativa e elegante, não diria, contudo, que ele escreva com uma “linguagem de em dia-de-semana”, como suplica um ‘famigerado’ personagem de Guimarães Rosa.[3] Mas que ele nos conduz para o terreno ‘nebuloso’ e ‘temerário’ da arte literária, disso, não tenho dúvida. Cuidado, historiadores! Durval Muniz, tal como Foucault, é um desses ‘sujeitos’ perturbadores da boa ordem científica, desses que se colocam entre o sono dogmático e a vigília epistemológica ‘só’ para provocar a polêmica.
Prefaciada por um historiador da história, Manoel Salgado Guimarães, que ressalta o papel da obra no conjunto da produção historiográfica brasileira recente e o percurso intelectual do autor, o livro divide-se em três partes: na primeira é discutida a relação entre história e literatura; após, uma seção inteira dedicada à obra de Michel Foucault; e, por fim, uma reunião de artigos variados. Esses textos, quase todos curtos — o que não subtrai sua capacidade argumentativa —, são antecedidos por uma introdução na qual Durval Muniz procura problematizar e inserir no contexto contemporâneo a noção-chave do título — ‘invenção’: “A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos também inventam a história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que o inventa”, explica-nos ele com auxílio de uma analogia baseada em conto das Primeiras estórias.[4]
Ainda nessa parte introdutória, o autor debruça-se sobre outros aspectos relacionados à questão, entre os quais a divisão artificial entre a perspectiva cultural e a social. Eu gostaria de chamar atenção, entretanto, para uma outra dimensão que pode passar desapercebida em uma primeira ou rápida leitura: a da ‘evidência’ da história; ‘evidência’, palavra mais próxima da retórica e da filosofia que da história. Para Durval Muniz a idéia de que “os fatos se impõem ao historiador como evidência” é uma falácia, na medida em que ele dissimula o trabalho de construção não apenas do documento histórico mas também da própria escrita da história (p.32, 35). O autor inscreve-se assim em um momento reflexivo que a própria disciplina vem atravessando na última década, como bem demonstra um livro recente de François Hartog, cujo objetivo também é o de questionar a suposta evidência da história.[5]
Os artigos que compõem a primeira parte podem ser lidos como uma tentativa de fraturar a clássica oposição entre literatura e história. O autor busca dissolver a certeza manifesta do ‘evidente’ desencontro entre literatos e historiadores: “meu objetivo não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra” (p.44). De Clarice Lispector, passando pela hilária dupla Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, pelo sisudo Kafka, chegando ao desconcertante poeta Manoel de Barros, Durval Muniz atinge plenamente seu propósito: ele os articula e os pensa, e de forma extremamente inovadora. Não imaginemos, entretanto, que estejamos diante de um “culto ao texto”, isto é, que nada existiria fora dele, que a realidade textual seria a promotora incontestável de toda a revelação e verdade sobre as coisas pretéritas.[6] Um estudo sobre os diferentes modos de os historiadores servirem-se da linguagem não significa, necessariamente, a queda em perspectivas negadoras da possibilidade do conhecimento.[7]’Inventar’ e ‘imaginar’ são verbos que fazem parte das metodologias silenciosas, ou silenciadas, da historiografia: “a interpretação em História é a imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na mão”, todavia, ressalva importante, “isto não significa esquecermos nosso compromisso com a produção metódica de um saber, com o estabelecimento de uma pragmática institucional, que ofereça regras para a produção deste conhecimento, pois não devemos abrir mão também da dimensão científica que o nosso ofício possa ter” (p.63-64). O autor chega mesmo a falar nos limites impostos pelo “nosso arquivo” (o pronome possessivo preserva a primeira parte, enquanto o arquivo preserva a segunda; p.64). Trata-se de uma resposta prévia à provável objeção de um pós-modernismo-relativista do qual devemos manter as crianças afastadas? Talvez. O certo é que Durval Muniz sabe ser doutor quando quer. Mesmo optando em situar sua produção em um discurso sobre a pós-modernidade (sinceramente não sei qual razão o leva para esse debate, ainda um embate de grandes narrativas, que visam mais desqualificar o outro do que contribuir para um entendimento sociocultural do mundo em que vivemos), o autor deixa claro que não rompeu com os princípios da ‘operação historiográfica’ de um autor que lhe é caro, Michel de Certeau.[8]
Consagrada aos trabalhos de Foucault, a parte seguinte do livro é composta de seis capítulos. No primeiro desses estudos, o autor nos apresenta um estudo comparativo entre o Menocchio de Ginzburg e o Rivière de Foucault. Através de uma consistente crítica ao historiador italiano, Durval Muniz demonstra como seu personagem “termina se explicando pelo contexto mesmo em toda sua singularidade”, enquanto no dossiê organizado por Foucault acerca de Rivière a preocupação não é a de explicar suas palavras e os atos, “mas como estas palavras e estes atos foram silenciados” (p.105). O capítulo seguinte tem por objetivo analisar a obra de Foucault, de certa forma, à luz do próprio Foucault, quer dizer, como suas pesquisas relacionam-se com sua existência, com seus costumes, de onde o autor extrai a idéia nietzschiana de que o pensamento do francês deve ser mais do que discutido, usado. A reflexão seguinte relaciona-se à noção de experiência em Foucault confrontada àquela de Edward Thompson. Para Durval Muniz, enquanto o filósofo evita essencializar as experiências históricas ao negar-lhes um caráter tão-somente fundante, o historiador inglês as limita, em última instância, a serem efeitos fundacionais das classes sociais. Os dois estudos que se seguem procuram analisar, sempre a partir de Foucault, a questão do objeto em história, e a importância do ‘jogo’ na história (o exemplo explorado pelo autor não podia ser mais apropriado: o futebol) e sua correlata desconsideração pela historiografia como resultado de uma luta de poder.[9] Por fim, uma homenagem a Foucault, um homem que “morreu de rir”, dele (da doença que o vitimou, por exemplo) e dos outros, sobretudo dos poderes instituídos (p.193).
Destacaria, nos ensaios esparsos, a crítica de Durval Muniz à história oral. A conversão do oral em escrito, que anula significativamente a manifestação gestual e as emoções do ato de fala, a possível interferência do roteiro e, finalmente, a presença mesma do historiador-entrevistador como personagem da entrevista, são algumas da questões levantadas pelo autor, que não chega a investir em respostas mais aprofundadas. Sua relativa desconfiança (pois não há uma desconsideração pelos avanços realizados por inúmeros pesquisadores nesse campo) em relação às possibilidades da história oral, segundo ele “indefinida entre uma técnica, um método, uma postura teórica”, leva-o a se perguntar: “terá ela conseguido converter a derrota histórica das oralidades para a escritura?”. Não lhe parece: “até porque ela seria um agente infiltrado, que continua em busca dos segredos dos que falam para escrevê-los, tornando-os documentos, inscrevendo-os como monumentos” (p.234). Acredito que mais do que simplesmente provocar os historiadores da história oral, Durval Muniz busque no debate produtivo com esses profissionais respostas às suas inquietações, pois para ele, o que temos no final é “a reafirmação do poder dos que escrevem, dos que dominam a escrita sobre os que falam, os que apenas verbalizam seus conhecimentos, suas experiências. A história é mais um artefato que reafirma a dominação dos que escrevem sobre os que falam” (p.233). Convenhamos, não é todo sujeito com o dom da escrita que reconhece isso…
Finalmente, tentando não deixar passar em branco aquele que, em minha opinião, é o texto mais sensível e poético de Durval Muniz neste livro, sua homenagem a um grande amigo,[10] eu me permito uma ‘invenção’ (como os discursos de Tucídides!), ainda que parcial:
Paris, maio de 1961: “Para falar da loucura seria preciso ter o talento de um poeta”, conclui Michel Foucault depois de deslumbrar o júri e a platéia com a brilhante apresentação de seu trabalho. “Mas o senhor o tem”, responde Georges Canguilhem. Campinas, abril de 1994: “Para falar da invenção do Nordeste brasileiro seria preciso ter o talento de um poeta”, assim Durval Muniz de Albuquerque Júnior poderia ter concluído a exposição inicial de sua tese, e Alcir Lenharo, seu orientador, poderia ter respondido: “Mas o senhor o tem”. E quem poderia afirmar o contrário?[11]
Notas
1. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.17. [ Links ]
2. BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. p.244-245. [ Links ]
3. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Oympio Ed., 1981. p.11. [ Links ]
4. ALBUQUERQUE Jr., 2007, p.29; ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”, em ROSA, 1981, p.27-32. [ Links ]
5. HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: Éd. de l’EHESS, 2005. [ Links ]
6. FAYE, Jean Pierre. Théorie du récit, 1972, p.130, [ Links ]citado em HARTOG, François. Le miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre. Paris: Gallimard, 1991. p.321. [ Links ]
7 É o caso do trabalho de R. Koselleck, assim definido por Hayden White: a “história da historiografia, na visão de Koselleck, é a história da evolução da linguagem dos historiadores”. WHITE, H. Foreword. In: KOSELLECK, R. The practice of conceptual history. Stanford: Stanford University Press, 2002. p.XIII. [ Links ]
8. CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.63-120. [ Links ]
9. “Chega de ensaios racionalistas que, como diria Nietzsche, mal escondem o seu rancor e sua demagogia”. CERTEAU, 1975, p.178.
10. “Íntimas histórias: a amizade como método de trabalho historiográfico”, ibidem, p.211-217.
11. ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.117; [ Links ]ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.9. [ Links ]
Temístocles Cezar – Pesquisador do CNPq – Depto. de História — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500 – CP 91501-970. 91509-900 Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: t.cezar@ufrgs.br
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. 256p. Resenha de: CEZAR, Temístocles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55 jan./jun. 2008. Acessar publicação original [IF].
The fire ant wars: nature, science and public policy in twentieth-century America – BUHS (RBH)
BUHS, Joshua Blu. The fire ant wars: nature, science and public policy in twentieth-century America. Chicago: The University of Chicago Press, 2004. 216p. Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55 jan./jun. 2008.
Este livro instigante narra a vitoriosa invasão dos Estados Unidos da América pela América do Sul, ocorrida na década de 1930. Da Flórida à Califórnia, chegando ate à Virgínia ao norte, a ocupação sul-americana afetou quase a metade do território continental norte-americano. No entanto, essa invasão não foi feita por um exército profissional ou irregular de um país ou grupo de países, mas por um bem organizado e belicoso exército de formigas da espécie Solenopsis invicta (cujos nomes populares em português e inglês são respectivamente ‘formiga-de-fogo’ e fire ant), nativa de vários países sul-americanos.
O texto foi adaptado da tese de doutorado do autor (graduado em zoologia) na área de história e sociologia da ciência, defendida em 2003 na University of Pennsylvania. Buhs é atualmente pesquisador independente, trabalhando na Califórnia. A temática e a abordagem se enquadram na história ambiental, com foco mais forte (1) nas trocas biológicas entre regiões e continentes — tema do conhecido livro do historiador ambiental Alfred Crosby, Ecological imperialism: the biological expansion of Europe, 900-1900. Cambridge, Cambridge University Press, 1986 — e (2) nas relações entre ciência e tecnologia e as políticas públicas de combate à formiga-de-fogo. Os cinco capítulos são muito bem escritos, organizados e documentados, compondo um volume compacto e repleto de informação detalhada e sólida, análise aguda, discussão teórica e conceitual avançada e conclusões desafiadoras.
Buhs inicia o livro com uma torrente de informações sobre a origem geográfica, a ecologia e a biologia da formiga-de-fogo, uma entre muitas centenas de espécies de formigas nativas da América tropical e subtropical. Poucas décadas depois de a sua vanguarda invadir os Estados Unidos, no início da década de 1930, provavelmente pelo porto marítimo de Mobile (Alabama), a formiga-de-fogo se reproduziu e se espalhou vigorosamente. Chegou ao ponto de se tornar uma espécie ‘típica’ do Sul dos Estados Unidos, tanto que muitos residentes chegaram a considerá-la uma espécie nativa. No entanto, logo se percebeu que era uma invasora, pois virou grave praga em parques, praças e quintais urbanos, em beiras de estradas e em terras dedicadas à agropecuária — embora menos presente em áreas densamente florestadas. Por causa disso ela foi exaustivamente estudada e tornou-se alvo de campanhas caríssimas (todas fracassadas) de controle e erradicação. Transformou-se até em ‘personagem’ da cultura sulista dos Estados Unidos, homenageada por músicas, festivais e narrativas de folclore, sendo até adotada como mascote de times esportivos. No contexto anticomunista da Guerra Fria, conservadores menos tolerantes e mais mal-humorados chegaram ao extremo de comparar as formigas do fogo a invasores ‘comunistas’.
No entanto, ainda há incertezas fascinantes sobre a invasora. Por exemplo, não se sabe ao certo de onde ela veio — se da Argentina, do Paraguai ou do Brasil, países nos quais é nativa. Estudos genéticos indicam que as populações de formigas do fogo dos Estados Unidos são mais fortemente aparentadas com as do médio rio Paraguai. Outra incerteza é sobre o modo da invasão — uma ou mais rainhas grávidas teriam sido transportadas em cargas de frutas e madeiras? Ou teria uma colônia inteira sido transportada nas terras usadas como lastro nos navios? Talvez nunca se descubra o modo de invasão, mas ela certamente teve a ajuda involuntária dos humanos. Por que a formiga-de-fogo se tornou a espécie de formiga dominante em alguns lugares, e em outros ficou em plano secundário?
Seja como for, a formiga-de-fogo, adaptada a terras sujeitas a perturbações naturais periódicas, ligadas às cheias e vazantes de corpos de água, coloniza facilmente terras perturbadas, tanto naturalmente quanto pela atividade humana. Essa qualidade ajudou no seu rápido espalhamento do litoral do Alabama para os demais estados do Sul e Sudeste dos Estados Unidos, pois eles passavam por uma fase de intensa modernização agrícola. Os novos, numerosos e extensos campos de cultivo e pastos, o desmatamento, a introdução de maquinário pesado (tratores e bulldozers) e de pesticidas, além de obras diversas (estradas, canais, drenagem etc.), criaram territórios ideais para a proliferação da cuiabana. Ou seja, a disseminação das formigas-de-fogo também teve a ajuda humana involuntária. Porém, dois outros fatores de ordem estritamente natural ajudaram nessa proliferação: a falta de um predador ou competidor na fauna nativa e os invernos brandos. Porém, um outro fator natural — invernos rigorosos — ajudou a controlar a sua progressão mais para o norte dos Estados Unidos.
Em contraste com as primeiras seções do livro, onde predominam as abordagens e fatos da ecologia, zoologia, história natural e geografia física, as demais focalizam ações e atitudes humanas em relação às formigas-de-fogo, principalmente de cientistas, técnicos governamentais, políticos locais, estaduais e federais e fabricantes de pesticidas. As ‘guerras’ mencionadas no titulo não se deram, portanto, apenas entre os humanos em geral e os invasores invertebrados, mas entre diferentes segmentos da sociedade civil e do aparelho governamental. Eles discordavam entre si quanto à identificação, aos perigos e às vulnerabilidades da formiga-de-fogo e quanto aos modos de combatê-la. Não havia consenso sobre a sua periculosidade, por exemplo. As guerras entre humanos se explicitaram nas diferentes campanhas de erradicação e controle da formiga-de-fogo, em que se enfrentaram portadores de diferentes conceitos sobre a natureza e sobre a sociedade, correspondentes a coalizões políticas mais ou menos fortes e duradouras que reuniam atores desde o nível estritamente local ao nacional.
O autor demonstra esperança de que o melhor conhecimento sobre essas guerras e sobre o fracasso generalizado do combate às invasoras contenha uma “lição de humildade” (p.172) para os humanos confrontados com outros problemas naturais. Ele sustenta que natureza e sociedade são muito mais complexas internamente e nas suas relações mútuas do que supunha a maioria dos que estiveram nas trincheiras humanas das guerras. Técnicos e cientistas, por exemplo, saíram chamuscados, pois a sua credibilidade junto aos cidadãos foi seriamente abalada. O seu engajamento nas guerras os colocou na companhia um tanto incômoda de políticos e lobistas oportunistas, especialmente aqueles ligados à ainda nascente indústria de pesticidas sintéticos. Esse ainda jovem ramo industrial viu no combate às formigas-de-fogo uma grande oportunidade de vender os seus produtos e de convencer o público sobre as suas virtudes.
As fontes usadas são variadas e amplas. Materiais primários (cartas, memorandos, planos e relatórios) vieram de arquivos históricos e administrativos locais, estaduais e nacionais. Papers e relatórios científicos inéditos foram pesquisados em arquivos e bibliotecas universitárias e em arquivos particulares de cientistas. O autor usou ainda uma extensa relação de livros e teses universitárias de muitas áreas de saber e dezenas de artigos científicos (publicados em revistas especializadas de história natural, ecologia, zoologia, geografia, agronomia, química, história da ciência e história ambiental, ciência política etc.), ilustrando bem o caráter multidisciplinar da pesquisa. As bem selecionadas ilustrações (mapas, desenhos, charges e fotografias) enriquecem o texto.
O livro é de alta qualidade e será de interesse e proveito para pesquisadores, estudantes e cidadãos interessados nas relações entre humanos e não-humanos, em especial no tocante a introduções intencionais ou acidentais de seres vivos em locais distintos dos seus habitats ou áreas de ocorrência naturais. No entanto, cabe destacar dois pontos. Primeiro, trata-se de uma temática que, embora relevante para a realidade brasileira — diversa da norte-americana —, é um tanto avançada para o estado atual das ciências biológicas e sociais no Brasil. Segundo, a abordagem é avançada, e não introdutória. É mais recomendável, portanto, o seu uso em centros de pesquisa e pós-graduação, e não em cursos de graduação.
José Augusto Drummond – Centro de Desenvolvimento Sustentável – Universidade de Brasília (UnB), SAS Quadra 05, bloco H, n. 50, 2º and., zona central. 70070-914 Brasília – DF – Brasil. E-mail: jaldrummond@uol.com.br
[IF]Cidades da mineração: memória e práticas culturais: Mato Grosso na primeira metade do século XX – GUIMARÃES NETO (RBH)
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração: memória e práticas culturais: Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: Editora da UFMT; Carlini & Caniato Editorial, 2006. 272p. Resenha de: RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28 n.55 jan./jun. 2008.
Alguns encargos constituem fardos pesados e são resolvidos com má vontade; outros são tão prazerosos que gostaríamos de prolongá-los. Bom exemplo deste segundo caso é a leitura de Cidades da mineração, de Regina Beatriz Guimarães Neto. Construído inicialmente como tese de doutorado, o livro se destaca por ampliar os horizontes e o quadro de reflexões sobre a modernidade brasileira para fora do eixo que comumente os historiadores e cientistas sociais tomam como exemplaridade desse processo de mudanças. A escolha de Mato Grosso como tema de estudo sobre a expansão da urbanização no Centro-Oeste é instigante porque parte das referências teóricas comuns aos estudos da modernidade no Sudeste e, de saída, estabelece com eles um diálogo crítico que alcança o modo pelo qual até agora vem sendo tratada a questão da modernização no Brasil. O diálogo proposto aponta para a periodização que solicita de todas as áreas brasileiras os mesmos elementos para dar-lhes a condição de progresso. Regina Beatriz é dura nas suas críticas ao processo de exclusão de regiões desse horizonte de desenvolvimento.
Para dar ao diálogo crítico maior corpo, transforma o seu estudo em uma busca incessante de compreensão do que estaria para além das estruturas econômicas, sempre apresentadas como elemento definidor da inclusão, ou não, de regiões. Avança introduzindo na análise os elementos culturais, vistos da perspectiva da diversidade de contatos e entendidos como formalizadores de novos traços culturais capazes de dar identidade à região, considerada freqüentemente como uma região de passagem. Disso resulta uma contribuição significativa para os estudos culturais, por sua heterogeneidade, e abre-se caminho para que o trabalho possa ser integrado aos estudos sobre expansão de fronteiras, com a singularidade de colocar em jogo as referências da vida, o movimento dos sentimentos e a genealogia da conquista.
É nesse ponto que o livro de Regina Beatriz se mostra mais audacioso. Revela, na linha de Euclides da Cunha, em Os sertões, como a poeira possui traços que podem servir de rastros para a compreensão da realidade.
Mas o desbravamento realizado pela autora vai além e constitui uma das apostas interessantes numa área, ainda desértica, que é a dos estudos de frentes de expansão do Brasil central. Se isso não bastasse, ainda nos oferece outra lição sobre a utilização de fontes produzidas pela metodologia da história oral. A autora nos fornece elementos que, de um lado, nos ajudam a compreender as linhas de ponta dessa metodologia e, de outro, mostram exemplarmente como devemos trabalhar as memórias para que o resultado não seja apenas uma narrativa que tenta atar pontos comuns entre aqueles que falam. Temos aí um instrumento de produção de uma história singular das conquistas e da ocupação do espaço, e seus resultados, combinados com as leituras teóricas — que vão de Deleuze a Ginzburg —, oferecem um ‘desenho’ do Centro-Oeste. Desenho esse que ultrapassa as formas de simplificação explicativa oferecidas pelas interpretações tradicionais da região.
Com isso, a autora inclui o Centro-Oeste em uma discussão que elimina a sua condição de apêndice de uma economia maior, complemento ou periferia de transformações históricas que construíram a nação brasileira. Nesse sentido, as reflexões contidas no livro auxiliam no entendimento das variadas formas e projetos que estiveram presentes no processo de institucionalização do nacional no Brasil.
Outro ponto de destaque é a forma da narrativa adotada por Regina Beatriz, que nos dá a sensação de vivenciar os fatos e de entendermos os processos, mas que também nos lembra que o historiador deve, antes de tudo, narrar os modos de compreensão de determinado tema. O historiador deve antes compreender para depois indicar elementos explicativos. Nesse aspecto, a autora oferece uma narrativa que nos envolve no processo de expansão da região, das rotas iniciais de deslocamento, não só de São Paulo e de Minas Gerais, como também de outras áreas. Expõe, assim, a potencialidade da história ali presente, principalmente introduzindo como premissa a constituição das fazendas para logo a seguir mostrar como se estabelecem os caminhos de expansão dos nortistas. Isso é feito com o intuito de demonstrar como esses caminhos definidos pelos tropeiros vão dar origem a cidades, onde predomina a diversidade de culturas. Tais cidades contêm um imaginário fértil que decorre exatamente dessa multiplicidade de presenças, motivo pelo qual elas solicitam a presença da modernização e da civilização.
Esse percurso é realizado no capítulo final do livro, onde estão apresentados “os artifícios da civilidade” e os caminhos que essa solicitação de civilização toma, através das memórias de famílias. Essa linha de reflexão faz que o livro de Regina Beatriz possa se aproximar do texto de referência para a modernidade fora do Sudeste, intitulado Trem Fantasma, a modernidade na selva. Como Francisco Foot Hardmann, a autora desvenda o ‘espetáculo’ da modernização na selvageria inóspita de espaços conquistados e, com perícia, combina a multiplicidade cultural daqueles que para essa região se dirigiram, reforçando esse processo de compreensão com relação às histórias de vida da região.
Ao final da leitura temos a sensação de que aprendemos algo, de que tivemos contato com novas questões. Isso em um universo editorial em que os livros arriscam cada vez menos, são menos audaciosos e mais despossuídos de teses.
Por isso, Cidades da mineração é uma leitura obrigatória não só para quem pretende ampliar o seu horizonte de conhecimentos sobre a modernidade brasileira e o processo de constituição das cidades da mineração no Mato Grosso da primeira metade do século XX, mas também para quem quer observar como se pode combinar análise e síntese, lembrando a velha, mas cada vez mais oportuna, proposição de Lucien Febvre.
Antonio Edmilson Martins Rodrigues – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rua Marquês de São Vicente, 225, Sala 512 F – Gávea. 22453-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: edmilson@puc-rio.br
[IF]A história do diabo no Brasil – OLIVA (RBH)
OLIVA, Alfredo dos Santos. A história do diabo no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2007. 285p. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28 n.55 jan./jun. 2008.
Em suas célebres teses Sobre o conceito de História, Walter Benjamin referiu-se à teologia como “reconhecidamente pequena e feia”, um saber que “não ousa mostrar-se”. A julgar por trabalhos recentes como A história do diabo no Brasil, do historiador e teólogo Alfredo dos Santos Oliva, esse complexo de inferioridade parece ser coisa do passado, pois é justamente o ‘mostrar-se’ da teologia que faz a diferença na análise historiográfica aqui levada a efeito.
Já na introdução, o autor deixa ver o lugar existencial e epistemológico de onde fala, no que concerne tanto à sua identidade religiosa — pentecostal — quanto às suas opções teóricas e metodológicas, ancoradas na tradição francesa da historiografia de Bloch e Febvre a Michel Foucault. Oliva não esconde sua pertença religiosa nem faz dela uma bandeira, mas busca objetivála o máximo possível. A confessionalidade confessada não impede a objetivação; antes, é a sua condição necessária. Da tensão entre racionalismo e crença o autor não faz um dilema; sua posição é decididamente laica: “O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa” (p.21). Apesar disso, não cai no racionalismo míope, tão comum nesse tipo de pesquisa; pelo contrário, adota uma perspectiva de ‘razão sensível’ que poderíamos chamar pós-moderna, não fosse o rótulo ter-se desgastado a ponto de nada mais dizer. Ao discutir a obra seminal de Michel de Certeau, afirma Oliva que “a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade” (p.18). Esse difícil equilíbrio, mantido ao longo de todo o texto, faz que o livro seja uma contribuição não apenas conteudística como também metodológica para a historiografia da religião no Brasil contemporâneo. O último capítulo, estritamente metodológico, reafirma essa relevância.
O tema do livro é bem delimitado no tempo e no espaço: as práticas discursivas sobre o diabo na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de 1977 (ano de fundação da igreja do bispo Macedo) até 2005, ano de defesa da tese de que resultou o livro. Trata-se, pois, das práticas e representações em torno do mal na principal denominação do assim chamado neopentecostalismo brasileiro; mas, por tratar-se do diabo, “esse personagem já bastante idoso”, o autor, para fundamentar suas análises em terreno seguro, sente-se obrigado a traçar, em linhas gerais, uma história do diabo na longa duração, do judaísmo antigo e do cristianismo primitivo aos dias atuais. Essa excursão poderia ser considerada um desvio de rota, mas, além de mostrar as continuidades e descontinuidades nas representações do “Inimigo de Deus e de nossas almas”, ela fundamenta a análise mais circunscrita que se segue; pois, obviamente, as práticas e crenças da IURD sobre o vil tentador não partem de um vácuo nem são uma construção ex nihil, e sim retomam criativamente representações historicamente construídas desde os tempos bíblicos. Ou seja, as fontes primeiras das práticas e das representações contemporâneas em torno do Adversário são os textos bíblicos canônicos do Novo e do Antigo Testamento; daí as visões vetero e neotestamentárias do mal — ou melhor, de sua personificação no diabo e em seus demônios — serem um ponto de partida (ou de chegada) necessário. As pesquisas sobre a história do diabo na cultura ocidental permitem mostrar, por exemplo, como as práticas acerca desse personagem na IURD (o discurso demonizante, os rituais de exorcismo) não se separam do amplo processo de demonização da alteridade, e em especial da alteridade religiosa, que atravessa a história do cristianismo desde a Igreja primitiva.
A seguir, o historiador-teólogo aborda a implantação e a difusão do pentecostalismo no Brasil desde o começo do século XX. A partir de suas raízes no metodismo, no avivalismo e nos movimentos de santidade, contextualiza o pentecostalismo como uma religião atrelada às camadas populares urbanas, mostrando como “dentro desta categoria social [ele] viria a ser uma importante alternativa de reconstrução de um mundo que se dissolvia rapidamente” (p.123). Atento às diversas continuidades e rupturas na constituição do campo, o autor percebe uma série de diferenciações aparentemente insignificantes que atravessam e constituem o(s) pentecostalismo(s). Aqui, Oliva, mesmo endossando teses consagradas sobre esse movimento sócio-religioso no Brasil, distancia-se criticamente das tipologias ou classificações prévias construídas pelas ciências sociais, inclusive a história; para isso, adota uma perspectiva mais compreensiva (hermenêutica) e menos explicativa do fenômeno religioso.
Para efeitos comparativos, o autor analisa a seguir a visão do mal, do pecado e do diabo em várias perspectivas: no protestantismo tradicional, na teologia da libertação e no pentecostalismo clássico, até desembocar no neopentecostalismo da IURD como expressão de uma religiosidade integrada à lógica sistêmica do capitalismo tardio. Dificilmente esse empreendimento poderia ser realizado sem erudição e desenvoltura teológicas. Assim, para a nova história religiosa, parece claro que, especialmente no caso das grandes “religiões do livro”, a abordagem multidisciplinar do fenômeno religioso não possa mais excluir a teologia: o conhecimento teológico mostra-se insubstituível como chave para códigos religiosos que de outro modo passariam imperceptíveis por não se deixarem reduzir ao logos de qualquer ciência.
Mas a principal virtude do livro está em que, sem abdicar de uma postura crítica, o autor adota uma atitude empática do fenômeno religioso, muito distante das posturas científicas que, do alto do tribunal do santo ofício do saber, arvoram-se no direito de julgar e condenar, sem apelação, visões de mundo distantes de suas verdades pretensamente iluminadas e supostamente libertárias. A essa postura judicativa o historiador-teólogo contrapõe uma perspectiva ‘relativista’, como quando se opõe à interpretação, inspirada em Lévy-Bruhl, do diabólico na IURD como manifestação de uma ‘mentalidade primitiva’ ou ‘pré-lógica’.
No Brasil, os estudos da religião — tradicionais nas ciências sociais desde Nina Rodrigues, passando por Roger Bastide e Duglas Teixeira Monteiro, entre muitos outros — têm crescido quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas; e não é diferente com a história: o chamado cultural turn, ou o diálogo com a antropologia, tem favorecido a renovação da história religiosa. O livro de Oliva, em diálogo com a produção de ponta nessa área, insere-se num conjunto de estudos em que a religiosidade aparece intimamente articulada à cultura, no sentido antropológico do termo. Com efeito, os complexos liames entre religião e cultura perpassam toda a obra. O exorcismo, por exemplo, é analisado como um rito de passagem que, demonizando o outro, “constrói o sentido de pertença à igreja” (p.145).
Em alguns momentos, dada a amplitude do tema — a longa história do diabo —, parece haver um abuso de material bibliográfico; mas, na maior parte do tempo — e especialmente no terceiro capítulo, onde investiga como a IURD compreende e fundamenta teologicamente sua demonologia —, prevalece o tratamento empírico do objeto mais circunscrito, quando então a abordagem qualitativa, propiciada pela observação participante, é complementada pela análise de fontes primárias: o material impresso pela IURD, de teor teológico e devocional.
Em suma, trata-se de uma contribuição importante para as linhas de pesquisa preocupadas em compreender as múltiplas dimensões da religiosidade popular brasileira, especialmente quanto aos crentes chamados pentecostais e neopentecostais. Mas o trabalho permite também reflexões mais gerais. Situando-se na confluência da história religiosa e da história cultural, o livro permite ver que, assim como as tentativas de “matar Deus”, as tentativas de “assassinar o Diabo” também fracassaram: a persistência da crença na existência do Inimigo sobreviveu à secularização, à racionalização e ao desencantamento do mundo que, segundo as clássicas teses weberianas, caracterizariam a modernidade ocidental. Não é difícil observar que a crença religiosa, muito mais que a racionalidade strictu sensu, continua a ser a dinamis da maioria das práticas culturais. Permanece a certeza de que, sem compreendermos os fenômenos religiosos não compreenderemos as grandes mutações sociais e culturais de nosso tempo. A renitente permanência das crenças religiosas num corpo social crescentemente secularizado exigirá, queiramos ou não, um diálogo entre os adeptos das visões científicas e os das visões religiosas de mundo.
Nesse sentido, a autor, firmando-se em teorias de Jüergen Habermas, conclui seu livro afirmando a necessidade de um diálogo entre ciência e religião. Se, como dizia Kierkegaard, a fé começa onde termina a razão, pode-se imaginar a dificuldade inerente a essas conversações; dificuldade exacerbada, de um lado, pelos fundamentalismos, e, de outro, pelos virulentos ataques do cientificismo ateu, ou “ateísmo científico”. Com efeito, reduzir a religião à satisfação de interesses materiais ou mesmo psíquicos — como ainda faz a ciência de corte iluminista e positivista — é pouco entender de religião. A teologia, é claro, não deixa de ser uma ciência (um logos); mas, de qualquer modo, é um discurso menos reducionista e mais aberto à compreensão das necessidades espirituais da humanidade. Por isso, e cada vez mais, o saber teológico é chamado a ocupar uma função mediadora nesse importante diálogo.
Antonio Paulo Benatte – Depto. de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Bolsista da Fapesp. Rua Adriático, 151, bl. 14, ap. 52, Jd. do Estádio. 09172-180 Santo André – SP – Brasil. E-mail: apbenatti@ibest.com.br
[IF]História e Gênero / Revista Brasileira de História / 2007
Nas revisões interpretativas mais recentes da história, o “tempo presente” ganhou destaque e prestígio nas análises em que interagem o “tempo curto” e o “tempo longo”. Portanto são as exigências do presente que cada vez mais instigam o historiador a rever as narrativas existentes do passado, colocando novas indagações, retomando a leitura da documentação que desvenda os silêncios e possibilita a construção de outras histórias e sujeitos.
A exigência da organização de um Dossiê de Gênero na Revista Brasileira de História, após 19 anos (1989-2008) se fez imperativa na medida em que o campo de estudos sobre as mulheres e de categorias como “gênero” adensaram os debates de natureza teórico-metodológica consolidando os conceitos e perspectivas analíticas de modo a garantir uma expressiva produção acadêmica em nosso país.
Desta maneira apresentamos o Dossiê História e Gênero, que reuniu alguns trabalhos considerados representativos do momento presente, em que a RBH, em nova gestão, retoma o seu calendário editorial.
O primeiro artigo, “Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985”, retoma a época das ditaduras militares na América Latina evidenciando as distintas formas de luta e de resistência femininas e feministas; o texto “Sociabilidades políticas e relações de gênero: ritos domésticos e religiosos no Rio de Janeiro do século XIX” introduz perspectivas desafiadoras de abordagem e questionamento no campo do político; em “Memórias femininas: tempo de viver, tempo de lembrar” evidencia-se o papel da memória e das lembranças na constituição do gênero feminino; em “Amor e gênero em quadrinhas” demonstra-se a construção dos estereótipos femininos; no trabalho “Casamento, maternidade e viuvez: memórias de mulheres hansenianas” produz-se um mergulho numa comunidade “fechada” para demonstrar como funcionam as permanências de práticas e de diferenças de gênero, e em “Mulheres em movimento: a presença feminina nos primórdios do esporte na cidade do Rio de Janeiro (até 1910) discutem-se os obstáculos enfrentados por muitas mulheres para adentrar e permanecer em lugares considerados privilégio do sexo masculino.
Portanto, uma produção criativa sobre “mulheres” e “gênero” que possibilita vislumbrar um “horizonte de espera” significativo para o campo que se legitima e se consolida.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54, dez., 2007. Acessar publicação original [DR]
Historia de las Mujeres en España y América Latina: del siglo XX a los umbrales del XXI – GÓMEZ-FERRER et al (RBH)
GÓMEZ-FERRER, Guadalupe; CANO, Gabriela; BARRANCOS, Dora; LAVRIN, Barrancos (Coord.). Historia de las Mujeres en España y América Latina: del siglo XX a los umbrales del XXI. Madrid: Cátedra, 2006. v.4, 981p. Resenha de: AREND, Silvia Maria Fávero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54 , dec. 2007.
A coletânea Historia de las Mujeres en España y América Latina, composta de quatro volumes dirigidos por Isabel Morant e lançados em 2005 e 2006, é considerada uma importante referência para o estudo da História das mulheres e das relações de gênero. Esse monumental empreendimento (v.1, De la prehistoria a edad media, 2005; v.2, El mundo moderno, 2005; v.3, Del siglo XIX a los umbrales del XX, 2006), levado a cabo por um conjunto de historiadoras e historiadores dos dois continentes, propõe-se a analisar as experiências das mulheres que viveram em territórios que atualmente são conhecidos como América Latina e Espanha, desde a denominada Pré-História até o final do século XX, bem como os discursos emitidos por diferentes atores sociais sobre as relações de gênero vigentes nessas sociedades no período. Nesta resenha, em função da extensão das obras, realizaremos comentários somente sobre os 41 artigos do quarto volume, que abordam “as transformações verificadas na vida das mulheres durante o século XX”. Na Introdução da parte relativa à Espanha, Guadalupe Gómez-Ferrer sintetiza os objetivos perseguidos pelos articulistas:
Dar cuenta de esos cambios que se han producido en la vida de las mujeres y de su protagonismo en la tarea de romper los obstáculos que se oponían a la igualdad entre los sexos en el plano social, civil y político, en una sociedad dirigida por varones, que se resistía más o menos conscientemente a ver cuestionada la autoridad masculina. (Gómez-Ferrer, “Introducción”, p.16)
A periodização da história política da Espanha e o discurso Feminista são os “fios condutores” das reflexões da primeira parte do volume. O debate ocorrido na sociedade espanhola, nas décadas iniciais do século XX, acerca da luta pela conquista dos direitos políticos das mulheres é o tema central de parte dos artigos. Inmaculada Blasco, Rosa Maria Capel, Mary Nash e Mercedes Yusta procuram identificar as diferenças existentes entre os discursos das feministas católicas, das socialistas e das anarquistas. Para as católicas, norteadas pelo ideário liberal conservador, a luta por direitos políticos era sinônimo de voto feminino. Já para os outros dois grupos, o campo dos direitos políticos era muito mais amplo, abrangendo problemas suscitados pelo mundo do trabalho e relativos à igualdade civil. A introdução no texto constitucional, em 1931, do sufrágio feminino e de outros direitos civis e trabalhistas foi resultado desses embates. Todavia, com a mudança do cenário político, em 1939, grande parte dessas conquistas foi ‘esquecida’.
Em outro conjunto de artigos, Giuliana di Febo, Suzana T. Garcia e Teresa R. de Lecea demonstram a importância, para a manutenção do regime ditatorial franquista, das ações das mulheres filiadas à Sección Feminina de Falange. O discurso da mãe-esposa-dona-de-casa difundido pelas falangistas e pela Igreja católica começou a ser questionado somente a partir do final da década de 1960, quando as mulheres das camadas médias e urbanas ingressaram em grande número no mercado de trabalho, especialmente no setor terciário. As agendas do feminismo da segunda onda relativas à dupla jornada de trabalho e ao controle da natalidade, bem como à participação das mulheres (inclusive da rainha Sofia) no processo de redemocratização da Espanha constitui-se na temática de outra parcela de artigos. A polifonia feminista da década de 1990 – do mundo acadêmico, dos movimentos sociais e dos setores sindicais – e as questões referentes à saúde reprodutiva das mulheres e à terceira idade, associadas ao discurso da terceira onda, são debatidas nos últimos artigos dessa parte do volume.
Quanto à América Latina o grande desafio das articulistas estava em encontrar ‘pontos de contato’ nas experiências vivenciadas pelas mulheres em sociedades distintas. O discurso feminista articulado ao da modernização socioeconômica cumpre esse papel na obra. Diferente do verificado para a Espanha, nesta segunda parte do volume observamos um maior equilíbrio entre as narrativas produzidas sob o enfoque da história política e da história social. O primeiro conjunto de artigos discute a emergência e a difusão do discurso feminista da primeira onda nos vários paises do continente, entre 1900 e 1950. Foram, sobretudo, mulheres escolarizadas pertencentes às camadas médias e altas que lutaram pelo sufrágio feminino e por outros direitos sociais na Argentina, Uruguai, Peru, Colômbia, México, países da América Central e Brasil. Por essa dimensão social considera-se, atualmente, que os resultados dessas ações foram ‘limitados’. Dentre essas análises destaca-se a de Raquel Soihet acerca do Brasil. A autora construiu sua narrativa buscando realizar um diálogo historiográfico entre as abordagens das brazilianistas e das historiadoras brasileiras. Enquanto as primeiras, muitas vezes, olham o processo a partir de periodizações e problemas vigentes na Europa e na América do Norte, as segundas procuram descrever as singularidades brasileiras. Os Congressos Internacionais, organizados nas grandes cidades da região ao longo daquelas décadas, onde se verificava a difusão de discursos relativos à norma familiar burguesa e à infância, foi outro aspecto desse processo salientado pelas historiadoras.
As reflexões sobre a participação de mulheres latino-americanas nos movimentos sociais são o ‘ponto alto’ dessa parte do volume, pois demonstram quão plurais eram as identificações de classe, etnia, religiosidade e partidárias das protagonistas, gerando assim embates em campos muito distintos. Margareth Power analisa a participação das mulheres das camadas médias brasileiras e chilenas na deposição de João Goulart e Salvador Allende. Por sua vez, Suzana Bianchi descreve as várias fases do movimento das Mães da Praça de Maio, bem como sua importância para a queda do regime autoritário na Argentina. Já Lynn Stoner discute as dificuldades enfrentadas pelas socialistas cubanas no interior do Partido Comunista, onde os quadros eram em grande parte masculinos e, com certa freqüência, professavam um ideário machista. Eugenia Bridikhina narra as lutas das mulheres bolivianas mineiras e camponesas por melhores condições de vida. Por sua vez, os artigos de Mirta Zaida Lobato, Luz Gabriela Arango e Maria Teresa Fernández Aceves sobre as relações de trabalho femininas nas sociedades argentina, uruguaia, colombiana, equatoriana e mexicana abordam uma ampla gama de problemas, tais como, as mudanças na divisão sexual do trabalho no interior da família, a legislação trabalhista e os setores da economia onde as mulheres estavam inseridas.
O último conjunto de artigos do volume propõe-se a efetuar um ‘balanço’ dos rumos do feminismo no continente, no final do século XX. Nestas reflexões fica patente o estágio em que se encontra o discurso acadêmico sobre a temática nos países latino-americanos. Margareth Rago, além de analisar os impactos do discurso feminista da segunda e da terceira ondas na sociedade brasileira, responsáveis em grande parte pela edificação de um conceito de cidadania que leva em conta múltiplos sujeitos (desde as mulheres pobres afro-descendentes, passando pelas homossexuais até as executivas das multinacionais), enuncia as possibilidades da criação de outro paradigma epistemológico. A autora traz então para a cena os debates teóricos e políticos realizados no campo das relações de gênero e que estão sistematizados na produção bibliográfica recente do país. Segundo ela, esses debates estão presentes na Revista de Estudos Feministas, nos Cadernos Pagu, na Revista Espaço Feminino e na Revista Eletrônica Lybris (p.878). Marta Lamas e Margarita Iglesias Saldaña apresentam uma interpretação desse mesmo processo, ressaltando as singularidades dos casos mexicano e peruano.
Obras dessa magnitude são passíveis de inúmeras considerações críticas. O conjunto de artigos fornece para o leitor ou leitora um panorama do vivido pelas mulheres que habitaram a Espanha e a América Latina ao longo do século XX. Esse panorama do ponto de vista teórico foi elaborado a partir das clivagens de classe, etnia, dimensões do rural ou do urbano, religiosidade, grau de escolarização, ideário político etc. Nesse mesmo sentido, há um grande esforço das historiadoras na tentativa de compreender quais são os pilares constitutivos do discurso feminista da primeira, segunda e terceira ondas que vicejou nessas sociedades no período, bem como as diferentes ações engendradas por ele. A vasta e atualizada bibliografia a que as articulistas recorrem nessa tarefa também merece destaque.
Parte das narrativas, especialmente as presentes na primeira parte do volume, foi edificada sob o enfoque da história política de cunho factual, centrada nas grandes personagens e sem menção às fontes documentais. Porém, o que realmente gera grande inquietação no leitor é o fato de a periodização da história político-institucional dos Estados Nacionais (sobretudo no caso da Espanha) ser tomada como marco referencial para a História das mulheres. Não se está reivindicando devidamente uma abordagem totalmente autônoma desses referenciais temporais, mas sim que os processos protagonizados pelas mulheres sejam os balizadores da interpretação a ser feita pelos pesquisadores. Aliás, atuando nesta direção o discurso historiográfico poderá se aproximar do mencionado por Margareth Rago na própria obra, ou seja, colaborar para a gênese de outro paradigma.
Por fim, uma questão: fueron cien años de soledad? Guiomar Dueñas-Vargas, em seu texto acerca dos embates travados pelas mulheres sob o signo do Feminismo no século XX, responde: definitivamente,, n. O horizonte permaneceu sendo a construção coletiva de sociedades mais igualitárias de ambos os lados do Atlântico.
Silvia Maria Fávero Arend – Programa de Pós-graduação em História, Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Rua Visconde de Ouro Preto, 457, Centro. 88020-040 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: silvia@newsite.com.br
[IF]Migração e mão-de-obra: retirantes cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901) – GONÇALVES (RBH)
GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e mão-de-obra: retirantes cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901). São Paulo: Humanitas, 2006. 246p. Resenha de: LEITE, Rosângela Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54, dec. 2007.
A importância das correntes migratórias e as formas de utilização de diferentes grupos de população nas lavouras do Centro-Sul do Brasil, no momento de crise do cativeiro, são temas recorrentes na historiografia brasileira.
O caso específico da transferência de migrantes cearenses, ainda no século XIX, para utilização nas plantações de café parece-nos, no entanto, um encaminhamento original ao estudo da organização da mão-de-obra no momento de superação da escravidão.
Paulo Cesar Gonçalves, retomando clássicas obras sobre a história do Brasil, enfrentou o desafio de compreender como foi se constituindo um mercado de trabalho no seio de um processo de reorganização econômica, permeado tanto por novas demandas de mercado, quanto pela construção de idéias que dessem suporte aos conteúdos políticos emergentes naquele momento.
Para responder a esses anseios, o autor fez uso de um espectro variado de documentação: por meio de listas da Hospedaria dos Imigrantes, relatórios de presidentes de província, ofícios da Secretaria da Agricultura, mapas estatísticos, livros de registro da Companhia de Vapores, anais do Parlamento e jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, constrói um quadro explicativo fincado sob os sentidos econômicos da migração dos retirantes cearenses, mas que não despreza, em momento algum, as propostas de civilização encravadas no bojo das medidas apresentadas pelos diferentes protagonistas da cena brasileira do período entre 1877 e 1901.
As secas do Nordeste funcionaram como um elemento desencadeador da expulsão dos cearenses de seus espaços originais, dos inchaços de cidades como Fortaleza e das conseqüentes medidas de envio desses livres pobres para o Centro-Sul. Os retirantes, no contexto de estiagem alarmante, tornaram-se desprovidos de seus meios essenciais de subsistência, o que garantiu recolocação dessas populações de forma favorável – para setores da elite econômica – em novos espaços produtivos que possuíam demanda por trabalhadores.
Há que se considerar, no entanto, que esse processo não foi linear. A riqueza deste livro encontra-se exatamente na análise que permite compreender as contradições imanentes à utilização dos retirantes e, ao mesmo tempo, a depreciação da importância, por parte de alguns setores dirigentes, desses livres pobres no mercado de trabalho em formação.
Como diferentes grupos econômicos foram se articulando na crise do cativeiro? Como esses grupos poderiam incorporar os cearenses, preservando costumes patriarcais e relações de mando baseadas na violência? Essas são algumas das questões que Paulo Cesar Gonçalves procura discutir por meio desta obra.
Abordar as vicissitudes do processo de organização da mão-de-obra no momento de escravidão agonizante representa enfrentar a problemática sobre os sentidos da (re)elaboração das idéias acerca da Nação no período de declínio tanto do Império, quanto do trabalho escravo. O autor apresenta duas respostas importantes a tais questões. Para ele, a circulação das populações permitiu e, ao mesmo tempo, foi fruto de um processo de proletarização por meio do qual foram se constituindo mãos-de-obra disponíveis. Esse processo favoreceu, efetivamente, a organização dos trabalhadores para os cafezais como fenômeno que se deu fora dos limites geográficos São Paulo. Por esse viés interpretativo, a organização produtiva funcionava como componente central para o emprego adequado de diferentes grupos humanos de acordo com os interesses dominantes à época. Nesta mesma chave explicativa, o trabalho livre e baseado em relações permeadas por salário só pôde se constituir no Brasil pela interlocução entre as necessidades produtivas, variantes a cada momento, e as relações sociais fortemente assentadas na coerção de diferentes grupos de trabalhadores.
O século XX, iniciado pouco após a proclamação da República, recolocou velhos problemas à sociedade brasileira, muitos deles ligados à questão de como gerir contradições latentes às relações de trabalho num mundo de recente passado escravista e completamente dominado pelas relações capitalistas.
As formas e os conteúdos dessas contradições são matéria-prima para os estudos sobre as populações livres pobres. O livro de Paulo Cesar Gonçalves apresenta-se como uma importante referência nesta ceara de debates.
Rosângela Ferreira Leite – Centro de Ciências Humanas, Faculdade de História – Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas). Rodovia Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades. 13086-900 Campinas – SP – Brasil. E-mail: rfl@usp.br
[IF]Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família – LAMOUNIER (RBH)
LAMOUNIER, Bolívar. Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família. São Paulo: Augurium, 2004. 431p. Resenha de: NOVINSKY, Anita Waingort. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54 , dec. 2007.
Com uma obra que vem revolucionar a historiografia brasileira – Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família –, Bolívar Lamounier se lançou numa aventura histórica cujas proporções se estendem da mais profunda fantasia ao mais sério rigor científico.
Num volume de 431 páginas que lemos como se fosse o mais atraente romance, o autor mergulha no passado e fala a todos nós, leigos e historiadores, que buscam encontrar um elo entre o que somos e toda a galeria de antepassados, que não conhecemos, que viveram e lutaram antes de nós, para sobreviver com o trabalho, a caridade, o negócio, as plantas e a natureza.
Inicialmente, Lamounier partiu de um sentimento, uma curiosidade, uma curiosidade que nos preocupa a todos: quem somos? Não apenas como seres biológicos, mas como seres sociais.
Parte então fascinado pelos nomes. O que significam os nomes? E os sobrenomes? Como se formaram? Como evoluíram? Para responder a estas questões o autor penetra fundo no poço da história, vai ao Império Romano, vai à Idade Média, vai às Cruzadas. De onde veio seu nome? Buscou pistas, vasculhou o longínquo passado atravessando a realidade vivida pelos homens, suas lutas para sobreviver, suas misérias, até chegar ao grande tema político – a formação dos Estados Nacionais – e a alucinante corrida pela posse das riquezas. Mostra-nos que os apelidos e sobrenomes são derivados de ofícios, e isso é uma constante no mundo; entretanto, esse fenômeno não se verifica na onomástica brasileira durante o período colonial, talvez por causa da escravidão, talvez porque Portugal não permitia o desenvolvimento da colônia, limitada apenas a produzir para o Reino.
Os apelidos, na Europa em geral, têm origem em uma ocupação – que depois se generaliza e se transforma em sobrenome hereditário. Lamounier foi buscar seus ancestrais, longínquos, que viveram em outro universo, diferente do nosso, e caminhando através da história chega até nós – e até as fantásticas conquistas da técnica, sempre num crescendo até ancorar em Minas Gerais.
Vejamos o caminho percorrido pelo autor: partiu de quatro focos – o moinho, a esmola, a moeda e o limão. Partiu de um mundo onde a identificação das pessoas era precária e incipiente, para o mundo onde a identificação é completamente institucionalizada. Passou de um mundo ‘ignominioso’, sem nomes, ou de nomes difusos e instáveis, para o mundo atual, onde a identificação individual é minuciosa.
Apresenta-nos então o ‘moinho’ e a ‘miséria’, que era percebida como condição imutável, para em seguida chegar à ‘moeda’, quando se formam os Estados Nacionais, que controlam a fabricação e a circulação do dinheiro – e por último, nos conduz ao ‘limão’. Desses quatro focos evolui o mundo na direção do progresso.
Assim, duas visões de mundo se confrontam: uma é hostil à modernidade, nostálgica de um mundo mais simples; outra valoriza as conquistas materiais e a cultura, como caminho para uma vida humana mais feliz.
Lamounier mostra-nos o destino humano em um tempo quando tudo era desígnio divino e inexistia a idéia de progresso. A pobreza era aceita como algo natural e os reinos praticavam a caridade não para ajudar o ‘outro’, mas para salvar sua própria alma. As esmolas, escreve Lamounier, eram vistas como recibos de depósitos a serem cobrados no céu. Essa visão de mundo se manteve durante séculos.
As restrições religiosas que bloqueavam o progresso científico são quebradas no século XVIII, até que no século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, a Igreja passa por um processo de ‘esquerdização’, principalmente na América Latina, desaguando na Teoria da Libertação.
A industrialização e a modernidade tornaram a sociedade moderna extremamente vulnerável, e o socialismo aumentou ainda mais a centralização e a burocratização do Estado. Talvez, pensa o autor, as organizações não governamentais (ONGs) possam auxiliar na direção de uma nova política social.
Afinal, parece que nos encontramos numa situação angustiante e insolúvel, numa encruzilhada sem saída. De um lado, o mundo melhorou – hoje há muito menos pobres do que há dois ou três séculos. De outro, navegamos num agitado mar de violência destrutiva. Lamounier nos confronta com esse mundo paradoxal e pergunta: qual a saída?
Do moinho, da pobreza, da esmola, Lamounier passa para a moeda – e tece a mais curiosa história sobre sua origem e progresso. Durante séculos a escassez de moedas de pequeno valor dificultava as transações básicas da vida cotidiana e entravava o desenvolvimento do comércio. A moeda é uma criação recente – e seu desenvolvimento resultou de um processo lento que só se completou em estágio bem avançado do capitalismo. Como meio universal de troca, a moeda é um fenômeno do século XIX. Surgem então os patronímicos derivados da moeda.
Em se tratando de nomes, Lamounier lembra que há um mito corrente, de que os portugueses descendentes dos judeus, os cristãos-novos, traziam nomes de frutos e árvores, como, por exemplo, os Oliveira, Lima, Pereira, Carvalho. É verdade que esses nomes aparecem também entre os cristãos-velhos e em outros países, mas o que surpreende é a constância de alguns deles entre os cristãos-novos.
Sobre a mentalidade que na época predominava entre as elites dirigentes portuguesas, Lamounier nos mostra que estava conectada com a Contra-Reforma, a Inquisição e o Absolutismo. A falsa aparência de riqueza de Portugal coexistia com o seu obscurantismo – expresso numa instituição de terror, a Inquisição, cujos efeitos sobre a economia e a alma dos homens ainda não foram devidamente analisados.
No momento em que a Europa se reformula com o Iluminismo, quando filósofos expressam e criticam o mundo, a política, a religião, d. João V – chamado de “rei freirático”, porque todas as noites ia aos conventos dormir com as freiras – esbanja o ouro brasileiro para ostentar os famosos autos-de-fé, aos quais assistia com verdadeira paixão, rodeado de toda a nobreza.
Não creio que o furor inquisitorial tenha diminuído sob d. João V. Ao contrário, foi durante seu reinado que a Inquisição agiu com maior furor, prendendo e penitenciando centenas de luso-brasileiros, tanto em Portugal como no Brasil. Só fechou suas portas em 1821, continuando porém a existir no século XX, sob o nome de “Congregação para a Doutrina da Fé”, da qual foi diretor e ideólogo o atual papa Bento XVI.
Lamounier lembra-nos um aspecto sumamente interessante de nossa vida colonial no século XVII, o mandonismo de nossos fazendeiros de açúcar, que controlavam a Câmara e desacatavam os governantes enviados da Metrópole. Quem na realidade mandava no Brasil eram os senhores de engenho, que tinham verdadeiros exércitos, e os chamados “homens bons”, que controlavam todos os setores da vida – os preços, a construção de estradas e a Câmara.
Lamounier sugere uma resposta à questão formulada por Sérgio Buarque de Holanda e que permanece sem resposta até hoje: por que o Santo Oficio da Inquisição nunca estabeleceu um Tribunal no Brasil, se o tiveram México, Cartagena e Peru?
Depois da expulsão dos holandeses e durante a crise do açúcar, Portugal se ergue economicamente com o descobrimento do ouro, e, enquanto o Brasil manda toneladas do metal para Portugal, o povo morre de fome. A metrópole não permitia a livre iniciativa, a criação de uma universidade, nem a existência da imprensa, e proibia qualquer atividade que não fosse a extração do ouro.
O quadro de Minas Gerais que Lamounier nos pinta, revela o desastre da colonização – a Inglaterra enriquecia com o nosso ouro, e Portugal comprava luxo às custas do Brasil. O que impressiona é ler sobre a violência e as crueldades da sociedade mineira – que para o autor são conseqüência do regime absolutista.
Segundo certos autores, quando o ouro acabou, a população de Ouro Preto ficou reduzida – a economia murchou, a população empobreceu, as terras das minas foram abandonadas e surgiu outro tipo de sociedade. Mas Lamounier discorda de Celso Furtado sobre a atrofia econômica de Minas depois da extinção do ouro, e analisa opiniões controversas de diversos autores.
Através da busca curiosa de si próprio, Lamounier se lança na investigação crítica da história, atravessando campos diversos das ciências humanas. Parte da singularidade para chegar ao todo. Às vezes parece esperançoso, às vezes cético.
Como evoluiu a vida material do homem, como progrediu a sociedade, com seus desastres e suas vitórias, com suas cruezas e suas generosidades – e para onde partimos?
Lamounier nos mostra os paradoxos da trajetória humana. De um lado, a luta para preservar o que já está estruturado, de outro a ânsia de mudança. Se de um lado decaímos – pois à medida que evoluímos, evolui a crueldade, a violência, a anti-ética –, de outro, materialmente, quanto progresso e quanta inovação!
Depois de percorrer o mundo, reconstituir o cotidiano, refletir sobre a violência e a crueldade dos homens, os meios de subsistência, os alimentos, a casa, o mobiliário, os costumes, os talheres, as baixelas, as políticas reais e a mentalidade, depois de nos conduzir ao moinho ao século XX, Lamounier volta às suas memórias e origens. Retorna ao século XVIII, quando vivia seu antepassado Afonso Lamounier, que aos 20 anos chega sozinho de Lisboa para a Comarca do Rio das Mortes. O que o trouxe para as Minas? Aventura, ascensão social, dinheiro? Ou talvez, quem sabe, o estigma de sua ascendência na sociedade racista de Portugal?
No Brasil, Afonso Lamounier recebe terras e sesmarias, e seu bisneto Lamounier Godofredo faz parte do primeiro Congresso Republicano. Bacharel em Direito, deputado do Império, pronuncia-se enfaticamente sobre a separação entre Estado e Igreja, sobre a liberdade de culto e liberdade de consciência; luta pelo direito do voto feminino, pela reforma salarial e pelo anti-militarismo, participando da Constituinte de 1891.
E ainda outro Lamounier, Gastão Marques Lamounier, cujo talento o levou para a carreira de músico, e o curioso Levindo Lamounier, trineto daquele primeiro jovem que chegou ao Brasil e foi viver no sertão.
É interessante que a ‘obra aberta’ de Bolívar Lamounier nos mostra diversos caminhos – e nos sugere as mais diversas idéias e considerações. A mais sugestiva que perpassa o pensamento do leitor é, talvez, a sua identificação com a Sobornost, palavra que designa os princípios fundamentais do ‘viver russo’, pelos quais cada ser humano é visto como uma singularizarão da vida de muitos.
Compreender o ser humano como a singularização de muitos, como nos ensina Gilberto Safra, significa que cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais, assim como o pressentimento daqueles que ainda virão. Quando estamos frente a alguém, estamos frente à singularização dos ancestrais. Cada indivíduo é único – e é também múltiplo. Não é possível abdicar à condição humana sem pensar o homem através da história. Porque o homem não é só ser natural. É também histórico. A vida de cada um de nós só pode ser percebida na estrutura e forma da nossa própria família. Ao mesmo tempo em que o homem é filho da natureza, é fruto de seus ancestrais.
A obra de Bolívar Lamounier identifica-se com essa concepção de forma magistral. Deu-nos uma lição para repensar quem somos. Escreveu um livro sobre história do Brasil e encontrou o seu próprio lugar nessa história, compartilhando seu destino com os que estão, com os que foram e com os que virão.
Anita Waingort Novinsky – Laboratório de Estudos sobre a Intolerância – Universidade de São Paulo (USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 159 (prédio da Casa de Cultura Japonesa, subsolo), Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, Butantã. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil. E-mail: anitano@terra.com.br
[IF]
Cidades / Revista Brasileira de História / 2007
De uma cidade, não aproveitamos
as suas sete ou setenta e sete
maravilhas, mas a resposta
que dá às nossas perguntas.
Ítalo Calvino
Decorre da proposta de Calvino o esforço dos historiadores no sentido de colocarem perguntas pertinentes ao mundo urbano. Assim, o presente número da Revista Brasileira de História dedica-se a perscrutar algumas entre as múltiplas acepções do tema em questão.
Os estudos históricos sobre as cidades vêm acompanhando as significativas mudanças do seu objeto, ao mesmo tempo em que procuram desvendar o crescimento das tensões urbanas. Desta forma, a produção historiográfica busca decifrar as cidades e suas representações, recuperando múltiplas experiências urbanas vivenciadas de forma fragmentada, diversificada e contrastante.
As cidades se impõem como desafios aos historiadores que visam entender seus emaranhados de enigmas, de representações, de tempos, de espaços e de memórias. Sob a sua materialidade fisicamente tangível, descortinam-se ‘cidades análogas invisíveis’, com tramas de memórias e de esquecimentos do passado, contendo impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas. Nas cidades estabelecem-se conflitos e tensões, solidariedades e acolhimentos, mobilidade e enraizamento, planificação e representações, tudo envolto em confrontos infindáveis que redimensionam incessantemente o pulsar urbano. É dentro desse universo de significados que a Revista Brasileira de História, em seu 53º número, pretende movimentar-se.
Dessa forma, os artigos do presente dossiê percorrem caminhos variados, contando inicialmente um valioso texto introdutório de Sandra Jatahy Pesavento, “Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias”, que nos oferece reflexões sobre questões e perspectivas da produção historiográfica.
Os estudos em torno da modernidade, racionalidade e urbanização, que tanto vêm envolvendo a historiografia, fizeram-se presentes em vários artigos: “A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852-1930)”, de José Evaldo de Mello Doin e Humberto Perinelli Neto; “Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950)”, de Reinaldo Lindolfo Lohn; “Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas)”, de Maria Bernardete Ramos Flores e Emerson César de Campos, e “O processo de urbanização paulista: a medicina e o crescimento da cidade moderna”, de Márcia Regina Barros da Silva.
As sensibilidades urbanas emergem particularmente focalizadas em “A cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na sociedade contemporânea — o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961”, de Paulo Knauss, e em “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX”, de Valéria Guimarães, assim como estiveram presentes nos relatos das crônicas da imprensa analisadas em “Cajuína e cristalina: as transformações espaciais vistas pelos cronistas que atuaram nos jornais de Teresina entre 1950 e 1970”, de Francisco Alcides do Nascimento.
Análises sobre imagens e paisagens da cidade aparecem na maioria dos artigos, mas em especial nos de Zita Rosane Possamai, que privilegiou Porto Alegre em “Narrativas fotográficas sobre a cidade”, e de Charles Monteiro, “Imagens sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de 1950”, como também no enfoque das vilas do ouro por Alexandre Mendes Cunha, em “Espaço, paisagem e população: dinâmicas espaciais e movimentos da população na leitura das vilas do ouro em Minas Gerais ao começo do século XIX”.
Além dessas variadas experiências urbanas, ‘outras histórias’ foram focalizadas nas análises de Edwar de Alencar Castelo Branco e Francisco José Gomes Damasceno, respectivamente em “Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade” e “As cidades da juventude em Fortaleza”.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.53, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]
Escravidão / Revista Brasileira de História / 2006
Já se escreveu que um homem não deve ter a ousadia de regressar a lugar algum. Subjacente a semelhante afirmação pode estar a idéia de que jamais se deve macular a memória, único suporte de um passado que, afinal, já não pode ser vivido. Mas uma compreensão menos poética da frase de Robert Louis Stevenson remete ao que de movediço há em toda mirada mais ‘analítica’ sobre o que já não existe. É quando o mínimo que se espera do historiador é clareza sobre o seu próprio ofício.
Em meu caso, assino embaixo o veredicto de Marshall Sahlins — em História nem tudo são truques que os vivos fazem com os mortos.[1] É lícito, pois, indagar brevemente sobre alguns caminhos da historiografia da escravidão no Brasil, sobretudo quando duas décadas separam o presente número da Revista Brasileira de História daquele que, lançado por ocasião do centenário da abolição, dedicava-se igualmente ao tema do cativeiro.[2]
Algumas mudanças podem ser capturadas quando comparamos o mapa da pós-graduação em 1988 com o de hoje. Em duas décadas, o número de instituições voltadas para a pesquisa institucional de ponta multiplicou-se por cinco — há hoje meia centena de programas de pós-graduação no Brasil, e todas as regiões do país possuem ao menos dois cursos de mestrado.
Óbvio, tal expansão implicou uma enorme catalisação de recursos humanos e materiais para a área de História. Mas o importante é que a natureza necessariamente argumentativa do discurso historiográfico passou a ancorar-se como nunca em material empírico de primeira mão, na esteira de uma verdadeira ‘colonização’ dos arquivos locais, regionais e nacionais pelos historiadores profissionais e em formação. Resultado: o ensaísmo historiográfico perdeu terreno, restringindo-se cada vez mais à sua função primária de divulgação e de polemismo.
Não deixa de ser curioso observar que essa imensa transformação operou de modo paradoxal sobre os estudos da escravidão. Em função da universalidade do cativeiro em nossa história, a reflexão sobre a escravatura multiplicou-se regionalmente, de modo que já podem ser matizadas antigas idéias segundo as quais a presença africana teria sido insignificante nos limites extremos da América portuguesa, por exemplo. O número de teses e dissertações voltadas para o estudo do cativeiro, entretanto, não conheceu expansão semelhante à observada em outros campos da historiografia. É que a multiplicação de programas de pós-graduação ocorreu de modo seletivo, com ênfase em períodos mais recentes da nossa história em detrimento sobretudo da Colônia e do Império — isto é, da época da escravidão.
É possível que a ênfase assumida pela história republicana resulte de uma espécie de urgência em conhecer a verdadeira face de um país cujas transformações demográficas, culturais e sócio-econômicas aceleraram-se dramaticamente depois de 1964, a ponto de torná-lo de certo modo irreconhecível aos olhos de seus próprios filhos. Tudo se passa como se o adensamento do tempo histórico tornasse incontornável o mergulho nos fundamentos mais imediatos do presente, visando preservar e / ou forjar alguma capacidade de auto-representação por parte dos agentes históricos. (Não é esta a derivação necessária de todo trauma histórico; prova-o o caso dos Estados Unidos, para quem o fim da Segunda Guerra Mundial colocou o futuro — e não o passado — no centro das preocupações nacionais, brindando-nos, de quebra, com um livro genial como As crônicas marcianas, de Ray Bradbury.)[3]
Mas se é certo que tamanho não é documento, é possível detectar importantes ganhos de qualidade nos estudos dedicados ao cativeiro ao longo dos últimos vinte anos. De início, chama atenção a diversidade temática mediante a qual fluem os estudos da escravatura. Hoje em dia já não soam tão estranhos estudos sobre a família escrava (tida antes como aspecto ancilar da história colonial), as irmandades negras, os mecanismos e padrões de alforrias, etnicidade, formas de controle social e de resistência, tráfico interno e externo de escravos, para não falar nos trabalhos acerca do negro no imediato pós-abolição. Melhor: são temas encampados por profissionais das mais diversas tendências teórico-metodológicas, embora não se possa dizer o mesmo do ponto de vista estritamente ideológico — já não viceja entre nós, por exemplo, o menor traço de uma historiografia, digamos, liberal, da escravidão.
Este último aspecto não é de menor importância. Afinal, por meio do liberalismo o Ocidente retornou com vigor ao problema da liberdade encarnada no indivíduo, não sem uma grande dose de ironia, já que as instituições que hoje garantem a liberdade individual foram igualmente gestadas pelos mesmos povos que geraram os mais cruéis sistemas de exploração escravista. Eis o motivo pelo qual, aliás, a Europa e, em especial, o mundo anglo-saxão, continuam operando no ultrapassado registro das ‘raças’, sabidamente inexistentes, resultante de cisões seculares derivadas do cativeiro e de sua ideologia. Talvez por isso — por se defrontarem desde cedo com uma pauta política e ideológica bi-racializada, bem entendido — é que boa parte dos historiadores americanos e ingleses já não gastam muita tinta nas introduções de seus livros desculpando-se por não tomarem a escravidão como um anátema a ser esconjurado. Estão, pois, até certo ponto imunes ao pecado mortal do anacronismo quando o cativeiro é o tema.
Em que pesem seus logros, nossa historiografia sobre a escravidão trilha um caminho em tudo diverso da boa tradição liberal. Ela ainda professa um abolicionismo um tanto difuso, lamentável reflexo não apenas de resquícios da escravidão e do racismo à brasileira, mas igualmente de uma sociedade ainda carente de um projeto político moderno e verdadeiramente plural, para a qual o passado sirva de fonte de conhecimento e inspiração. Eis o principal motivo pelo qual, ao invés de insistirmos em ressaltar as origens e derivações de uma de nossas principais fortalezas — refiro-me à miscigenação, entendida como encontros e circularidades —, não poucos insistem em estabelecer a genealogia de ‘identidades’ que o tempo encarregou-se de diluir em nossa imensa pobreza material.
É provável que, tal como ocorreu com aquele publicado em 1988, o presente número especial da Revista Brasileira de História contribua para recolocar coisas como estas em seu devido lugar. De todo modo, a diversidade e a qualidade das contribuições que o compõem por certo são provas inequívocas do quão nobre permanece entre nós o tema da escravidão.
Notas
1. SAHLINS, Marshall. História e cultura (apologias a Tucídides). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.124.
2. Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh / Marco Zero, v.8, n.16, mar. / ago. 1988 (Escravidão — número especial organizado por Silvia Hunold Lara).
3. BRADBURY, Ray. As crônicas marcianas. São Paulo: Globo, 2005.
Manolo Florentino – Departamento de História / UFRJ.
FLORENTINO, Manolo. Introdução. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, dez., 2006. Acessar publicação original [DR]
Um outro olhar sobre a escravidão e o gênero no Brasil: Caetana diz não: história de mulheres da sociedade escravista brasileira – GRAHAM (RBH)
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Um outro olhar sobre a escravidão e o gênero no Brasil: Caetana diz não: história de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 289p. Resenha de: GRAHAM, Sandra Lauderdale. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52 , dec. 2006.
A história da cafeicultura no Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro, tem em Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o Barão do Pati do Alferes, uma de suas figuras mais representativas. Amparado em sua experiência como proprietário de fazendas e escravos, serviu-se da pena para divulgar seus conhecimentos não apenas de administrador, mas, sobretudo, dos princípios a serem seguidos pelos senhores no governo de seus cativos.
Assim, a partir de junho de 1847, inicia a publicação, no Auxiliador da Indústria Nacional, periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual Werneck era membro destacado, da sua “Memória sobre a fundação de uma fazenda na Província do Rio de Janeiro, sua administração e épocas que se devem fazer as plantações, suas colheitas, etc. etc.”.
Fosse porque a imprevisibilidade da produção agrícola impusesse certa distância entre teoria e prática, fosse porque os tempos já eram outros, o fato é que quando se tratou da administração do legado deixado por sua comadre e tia, D. Inácia Delfina Werneck (1771-1858), o Barão do Pati do Alferes enfrentou uma série de dificuldades. É nesse ponto, muito mais do que na dinâmica dos laços de parentesco que uniam os dois personagens, que se baseia uma das duas histórias reconstituídas por Sandra Lauderdale Graham, em seu livro voltado ao estudo de casos de mulheres da sociedade escravista brasileira.
Solteira e analfabeta, D. Inácia Delfina possuía, por ocasião da feitura de seu testamento, sete escravos, dos quais dois africanos, e três escravas, todas nascidas no Brasil. Além dos cativos, reunia uma soma razoável de recursos em dinheiro e jóias. Nem mesmo o fato de D. Inácia não saber ler ou escrever parece ter surpreendido Sandra Graham, ocupada em reconstituir-lhe a história de vida. Afinal, tratava-se de situação comum a mulheres de igual condição social da mesma geração que D. Inácia, partilhada também por sua irmã, D. Francisca. Inusitado, porém, principalmente ao observador de hoje, foi o fato de a proprietária deixar todos os seus bens a Bernardina e seus cinco filhos. Bernardina fora escrava de D. Inácia, de quem recebera a alforria com a obrigação de servi-la enquanto fosse viva. Dentre outros bens com que era contemplada no testamento, coube a ela dois escravos que a deveriam servir pelo prazo de dois anos, findos os quais, estariam livres.
Seus cinco filhos foram alforriados na pia batismal, e, à época da confecção do testamento, alguns eram menores e outros já haviam alcançado a maioridade. Os bens foram distribuídos desigualmente entre a prole de Bernardina, cabendo, por exemplo, a uma das filhas, Maria, a quantia necessária para quitar o valor de uma escrava que já possuía, de nome Inês. Antes disso, fato incomum, já havia contemplado outra filha de Bernardina, Rosa, com uma escrava de nome Helena.
Dadas as peculiaridades do sistema de herança no Brasil — herdado de Portugal e mantido após a Independência —, que assegurava às mulheres participação na herança deixada pelos pais e maridos, e dada a vigência de relações eminentemente privadas entre senhores e escravos, deixando, pelo menos em princípio, ao arbítrio dos proprietários todas as decisões que dissessem respeito à sua propriedade sobre cativos, a história de D. Inácia não surpreenderia tanto, exceto por instituir como herdeira uma sua ex-escrava.
A decisão, no entanto, assumiu uma série de desdobramentos, decerto não previstos pela testadora, conforme nos mostra Sandra Graham, sendo o principal deles resultado do equívoco na avaliação do montante do espólio. Assim, feitas as doações aos legatários nomeados por D. Inácia, a maioria composta por familiares, o que restou para a liberta Bernardina foram apenas dívidas. Dívidas cuja administração caberia ao primeiro testamenteiro, o Barão do Pati do Alferes. E aqui, não lhe parece ter valido a larga experiência como administrador de terras e escravos, registrada para a posteridade nas páginas do Almanack Laemmert, uma vez que “agiu com discernimento questionável” ao impor à família de Bernardina um contrato de arrendamento de terras exauridas e a preços exorbitantes (p.193).
O leitor desta resenha deve estar se perguntando o que a história de D. Inácia tem em comum com a da escrava Caetana, cuja história, afinal, dá título ao livro, apesar de ocupar menos páginas do que as da filha da aristocracia cafeeira. Deixemos a autora falar: “São histórias diferentes, sem conexão uma com a outra, exceto no importante sentido de que pertenceram à mesma cultura, sociedade e economia gerais — e que as utilizo para iluminá-las” (p.11). E certamente, é nesse ponto que reside uma das principais qualidades da obra. Laura Graham procura, com sucesso, dar conseqüências à afirmação, inúmeras vezes repetida, mas nem sempre levada em conta, de que “história é contexto”. Por isso mesmo, reconstitui minuciosamente os aspectos econômicos, sociais e demográficos de duas importantes regiões cafeeiras, o Município de Vassouras, no Rio de Janeiro, e Rio Claro, em Paraibuna, na Província de São Paulo.
Rio Claro é, assim, o cenário da primeira história narrada, a da escrava crioula Caetana. Tendo como fio condutor da narrativa a recusa de Caetana a partilhar o leito conjugal com seu marido, o também escravo Custódio, Laura Graham aponta como foram complexos os arranjos societários e pessoais que se forjaram no contexto das grandes unidades plantacionistas — ainda que com o emprego do termo não se queira repetir o engano de supor que essas unidades constituíssem verdadeiras autarquias. Tais arranjos se expressavam desde as pretensões do marido legítimo de Caetana a reproduzir, com anuência da família da escrava, uma relação de tipo patriarcal, forçando-a a submeter-se, até as possibilidades encontradas por Caetana em manipular sua condição de escrava doméstica, de mucama das mulheres da família na casa-grande para convencer a seu senhor, Capitão Tolosa, o mesmo que a constrangeu ao casamento, a intermediar sua demanda pela anulação do enlace.
Decisão que o fazendeiro aceita, mas não sem antes consultar um de seus pares, hóspede ocasional em sua casa, Manuel da Cunha de Azeredo Souza Chichorro. Antigo Secretário de Governo de São Paulo que, no cargo, se ocupou de questões como a utilização de homens vadios, malfeitores e vagabundos para estabelecerem povoações no sertão, colaborador da Revista do IHGB, Manuel da Cunha Chichorro o aconselha a atender aos rogos da escrava, mostrando assim que se as decisões dos senhores se circunscreviam ao âmbito privado, elas não correspondiam apenas ao arbítrio ou aos caprichos do proprietário.
O desfecho do pleito de Caetana, intermediado por seu senhor, é conhecido: a Cúria Metropolitana da Bahia recusa-lhe a anulação uma vez que a seu caso não era aplicável nenhuma das disposições canônicas que previam a anulação. Esse resultado decepciona mais o leitor do que a impossibilidade, assumida pela autora, de explicar as razões íntimas ou as menos recônditas, como se queira, que levaram Caetana a rejeitar o “estado de casada”. Isso porque Laura Graham se preocupa o tempo todo — e essa é outra característica positiva do trabalho — em formular hipóteses consistentes, numa espécie de ‘maiêutica socrática’ muito mais esclarecedora do que se fossem dadas respostas definitivas.
Um outro aspecto a ressaltar é o de que a perspectiva adotada é a da história de gênero, o que justifica o fato de personagens masculinos ocuparem papel proeminente na reconstituição das tramas. A preocupação central, portanto — apesar de o subtítulo informar que se trata de “Histórias de mulheres da sociedade escravista” —, é com a análise relacional, realçando a instabilidade dos papéis sociais assumidos por homens e mulheres no Brasil escravista.
Em meio a temas abrangentes — como organização da Guarda Nacional, atuação dos juízes de Paz, laços de compadrio, família escrava, recolhimentos no Brasil, rebeliões de escravos, sistema de herança, alianças matrimoniais, ilegitimidade, irmandades religiosas, Revolução Liberal de 1842 e declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba no Rio de Janeiro a partir da experiência concreta de um fazendeiro —, Laura Graham desvenda a interação entre as histórias de Caetana, Chichorro, Tolosa, D. Inácia, Bernardina e seus filhos e o Barão do Pati do Alferes.
Caetana diz não foi lançado nos Estados Unidos três anos antes de a tradução vir a público no Brasil (Caetana says no: women’s stories from a Brazilian slave society. New York: Cambridge Press, 2002) sendo objeto de resenhas em revistas especializadas como Hispanic American Historical Review e The Americas. O livro integra, naquele país, a coleção “New approaches to the Americas”, editada por Stuart Schwartz.
Trata-se de obra elaborada com base em uma extensa pesquisa primária, constituída de fontes censitárias, cartorárias e eclesiásticas, perscrutada de maneira original. Mas há um aspecto que realmente deve surpreender nosso leitor: a opção da autora por basear-se em obras produzidas sobre a escravidão brasileira por especialistas norte-americanos. É bem verdade que muitos deles sobejamente conhecidos no Brasil, como no caso dos trabalhos de Stuart Schwartz e outros aqui radicados — Robert Slenes, por exemplo — e contra os quais a autora não poupa críticas: ao primeiro, por defender a centralidade do trabalho para o entendimento da dinâmica da sociedade escravista em oposição a fatores como família, comunidade e religião (p.49); ao segundo, por exagerar na insistência com que os senhores estimulavam seus escravos a se casarem com o fim de controlá-los enquanto cativos (p.56).
Não que estejam ausentes algumas das mais representativas obras produzidas pela nossa academia, mas nesse aspecto, a pesquisa sobre os títulos que poderiam lançar luz sobre o tema abordado não é, nem de longe, exaustiva. Assim, talvez se encontre aí uma outra originalidade do trabalho, da qual o leitor deva extrair algumas conseqüências: a de que se trata de uma abordagem, em boa medida, construída a partir do olhar do especialista estrangeiro, certamente influenciado pela própria compreensão da dinâmica de um país também de passado escravista.
Tal opção, em determinadas passagens, permite que se estabeleçam comparações importantes, ainda que implícitas, com o contexto da América do Norte. Esse parece ser o caso em que a autora reconhece que a precária legitimidade dos senhores sobre seus escravos no Brasil baseou-se na reiteração do direito costumeiro, dispensando, ao contrário do que se observou no norte da América, a produção de um discurso baseado na inferioridade racial (ainda que, vale ressaltar, esse não estivesse de todo ausente, sobretudo no Brasil Imperial). Ou quando afirma que a cultura da sociedade brasileira, por sua herança ibérica, era essencialmente jurídica — no sentido de que a maioria das transações eram autenticadas por documentos legais — diferentemente do que se verificava nos domínios coloniais das metrópoles da Europa Central (p.117-8).
A obra de Laura Graham, por fim, cumpre bem o programa da micro-história, vertente à qual se filia, com o mérito de preencher os vazios entre o particular e o geral, entre as trajetórias individuais e as coletivas, ampliando a aplicação do método para além da história cultural e das mentalidades.
Andréa Lisly Gonçalves – UFOP
[IF]Tácito e a metáfora da escravidão – JOLY (RBH)
JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004, 162p. Resenha de: BENTHIEN, Rafael Faraco; PALMEIRA, Miguel S. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52 , dec. 2006
Há todo um significado especial envolvendo a produção de um livro sobre a metáfora da escravidão no Brasil. Originalmente uma dissertação em História Econômica defendida na Universidade de São Paulo em 2001, esse livro apresenta-se ao leitor como um estudo “da escravidão no Alto Império Romano” e, em especial, da “estreita associação entre política e escravidão” constatada naquela sociedade (p.25). Para nossa sorte, porém, a abrangência de suas questões vai além do recorte anunciado. Fábio Duarte Joly realizou, em verdade, uma instigante pesquisa sobre certas formas de classificação social vigentes no Mediterrâneo do primeiro século depois de Cristo e sobre as relações de poder que as instituem (ou são por elas instituídas). Partindo das obras de Tácito, Joly aborda o fenômeno da escravidão antiga salientando não os usuais recortes econômicos e jurídicos recorrentes na historiografia, mas sim suas decorrências políticas. Tal postura implica o reconhecimento do escravo e do homem livre como categorias de apreensão da lógica das ações sociais. Nesse ínterim, tais termos não servem apenas para nomear estatutos sociais específicos, mas também para localizar e reforçar ideologicamente o suposto lugar de cada indivíduo, seja ele escravo ou não, nos quadros hierárquicos de sua própria sociedade. Eis aí a força e a pertinência desse estudo.
O livro tem seu argumento desenvolvido ao longo de três capítulos, aos quais se somam uma introdução e uma conclusão. A parte substantiva da argumentação é inaugurada com o primeiro capítulo: “História, Retórica e Metáfora em Tácito”. O autor apresenta aí, de forma sucinta, aspectos da biografia taciteana, atentando tanto para lacunas informativas, como para problemas relativos à datação e à preservação dos textos a ele atribuídos. Segue-se então a explicitação do ponto de vista analítico que norteia o trabalho: explorar a lógica social da retórica de Tácito. Esta aposta se traduz aqui no esforço de tomar elementos retóricos não apenas como um dado de estilo — o que, segundo Joly, tem sido a regra nas apreensões desse historiador antigo —, mas como algo passível de ser explicado na relação com seus contextos de produção e recepção. Embora não se possa mapear com precisão a circulação da obra, o autor enfatiza, por meio do que chama de a metáfora da escravidão, o vínculo de Tácito com a elite imperial romana. Sendo as diversas alusões metafóricas às figuras de escravos e libertos um dado naturalizado na obra do historiador, pode-se supor, por meio delas, a abrangência e o significado dessas categorias para o projeto político e a visão de mundo dessa elite.
Em “Escravos e libertos em Tácito”, o segundo capítulo, o autor investiga — a partir, sobretudo, dos Anais e das Histórias — as idéias de Tácito a respeito da instituição servil. A análise então se centra nas referências literais a duas categorias jurídicas e sociais do Principado: libertos e escravos. Joly observa como o historiador antigo situa tais grupos na sociedade romana e quais critérios de classificação social mobiliza. O juízo emitido a respeito tanto do escravo quanto do liberto tem como medida a lealdade (fides) devida respectivamente ao senhor ou ao patrono. Tácito mostrava-se de modo geral hostil a esses dois grupos, pois entendia que ambos agiam, em regra, egoisticamente, e não de acordo com o interesse de senhores ou patronos; saudava, porém, a grandeza do espírito de alguns raros escravos e libertos, os quais teriam se sacrificado em defesa das causas desses mesmos superiores. Tácito tinha, portanto, como bem nota Joly, uma concepção ética da escravidão. Ou seja, o que definia a seus olhos a qualidade do escravo ou liberto era uma maneira de se comportar. Em algumas passagens dos escritos taciteanos, dedicadas à gestão da escravidão, esta instituição aparece também caracterizada como uma relação de dependência “cuja manutenção oscila entre o emprego da violência e da coerção legal e o recurso da cooptação por meio dos benefícios, como a concessão da liberdade” (p.105). Vale dizer: a concepção ética de escravos e libertos, bem como a idéia da escravidão como relação de dependência são as chaves pelas quais Tácito extrapola o sentido literal de tais categorias e, por meio do recurso à metáfora, converte-as em instrumentos de apreensão de práticas sociais e políticas em seu mundo.
Determinar a especificidade desses empregos metafóricos é a proposta do terceiro capítulo, “Tácito e a metáfora da escravidão”. Nele, Joly atenta para o uso das categorias escravo e liberto em dois contextos específicos na obra de Tácito: 1) em sua apreciação da participação política de magistrados e senadores na vida política imperial; e 2) nas práticas administrativas perpetradas por administradores de província. Fica registrada nessas circunstâncias a tensão entre dois pólos: as esferas pública e privada da administração imperial romana. No primeiro contexto, tal embate se dá entre a liberdade de expressão do Senado e o regime patriarcal imposto pela casa imperial. Tácito entende como nociva a concentração de poderes nas mãos do imperador, o que lhe permitiria sobrepor-se às prerrogativas do Senado. Isto, porém, apenas parece viável em função da atuação dos próprios círculos aristocráticos romanos, os quais preferiram tornar a esfera pública uma extensão da casa imperial para disto obterem vantagens materiais. Ao agir assim, sugere o historiador antigo, esses círculos de magistrados e senadores se comportam de maneira egoísta, como típicos escravos e libertos. No segundo contexto, as mesmas questões se fazem sentir na administração provincial. Joly explora uma série de exemplos taciteanos acerca da má utilização de cargos públicos em prol de vantagens materiais particulares. De qualquer maneira, o que parece preocupar Tácito é a possibilidade da instauração de uma tirania irreversível do imperador, inviabilizando eticamente o exercício da liberdade.
Embora os procedimentos metodológicos utilizados no livro e sua conclusão sejam por demais coesos para que lhes sejam dirigidas críticas maiores, é salutar atentar agora para algumas lacunas na análise de Joly. Uma delas é documental. O autor sustenta sua argumentação tanto no vínculo social entre Tácito e a elite imperial romana, como na sua particular forma de apresentação naturalizada da metáfora da escravidão, a qual não requer explicações por parte do historiador antigo. A estes dois suportes poder-se-ia acrescentar mais um: os demais textos de época, ou próximos a ela (Sêneca e Suetônio, entre outros). Joly os cita apenas en passant, sem se permitir exercícios comparativos. Talvez por este viés seja possível definir melhor os vagos contornos que no livro adquire o contexto social da obra tacitiana. A outra falta é conceitual. Joly se vale de conceitos como espaço político, público e privado, cultura política, participação política, entre outros, sem que sinta a necessidade de os definir. Afinal, existe uma cultura política no Principado romano? Caso exista, qual a sua especificidade? E, mais, seria possível aplicar a moderna oposição público/privado para torná-la inteligível? Qual a razão disto?
Deixando de lado essas pequenas lacunas, reconhece-se aqui Tácito e a metáfora da escravidão como um exemplo de trabalho equilibrado no trato com fontes e bibliografia. Ele escapa, assim, aos vícios de uma argumentação por demais colada ao corpus documental e se esquiva de criticar modelos a partir simplesmente de outros modelos, sem referenciar a documentação primária. Há, além disto, a estratégica escolha do tema. “A escravidão antiga”, afirma Norberto Guarinello no prefácio a esta primeira edição, “tem recebido no Brasil um tratamento que, talvez, só seja possível num país que conheceu de perto a experiência dessa forma terrível e extrema de dominação social” (p.15). Com efeito, sendo Fábio Duarte Joly um historiador natural do país da metáfora da escravidão moderna, seu trabalho não atesta somente a vitalidade da História Antiga no Brasil, ou mesmo as vantagens de se fazer uma História Antiga a partir do Brasil, mas demonstra, a despeito do que dizem os profetas da História-disciplina sobre as (im)possibilidades de se conhecer a História-matéria — ora amparados pelo culto à subjetividade, ora apegados à ilusão de poder anulá-la —, ser também graças ao enraizamento social do pesquisador, e nem sempre apesar dele, que a investigação historiográfica produz seus bons frutos.
Rafael Faraco Benthien – Mestrando, FFLCH-USP.
Miguel S. Palmeira – Doutorando, FFLCH-USP.
[IF]Natureza e cultura / Revista Brasileira de História / 2006
O problema dos nossos tempos é que o futuro não é mais como era antigamente.
Paul Valéry
Pensar a relação entre natureza e cultura significa considerar necessariamente o elemento tempo. Assim foi com a mudança cultural fundadora da vida contemporânea, a passagem do tempo intrínseco do homem medieval ao tempo mecânico da Renascença e dos mercadores. Quando se passou a exigir orientação temporalmente exata, uma nova relação natureza e cultura se impôs caracterizando um novo tipo de sociedade.
Hoje, o tempo da história se acelera vertiginosamente. É um tempo marcado, por um lado, pela analogia entre velocidade e exatidão, e, por outro, pelas mudanças, dúvidas e destruições, que contrastam com outros tempos, da permanência, da continuação e da memória. Essas tensões da contemporaneidade têm levado os historiadores a se debruçarem sobre estudos que contemplam a temática natureza e cultura, e o resultado disto é que, por sua vez, este interesse tem causado impactos na disciplina, ampliando horizontes e favorecendo pesquisas alternativas. Enfim, as novas pesquisas têm contribuído para a renovação temática e metodológica, redefinindo, ampliando e favorecendo o questionamento das polarizações dicotômicas.
Entretanto, assim como o Angelus novus de Klee, na seminal metáfora de W. Benjamin — alegoria na qual a tempestade da modernidade arrasta o homem ao progresso, não mais concebido como a panacéia dos males humanos —, o historiador procura pensar o fluxo da evolução histórica a partir dos limites e perspectivas de seu tempo. Ele quer “dominar” o passado, mas ao mesmo tempo é ultrapassado pela força das circunstâncias — esta não permite que sua vontade se concretize.
O resultado desse embate — considerados os limites da área de atuação de que dispomos em nosso periódico — é o que se pode ler neste número da Revista Brasileira de História. Os estudos que aqui apresentamos procuram, cada um a seu modo, ampliar os limites da disciplina e abrir áreas de pesquisa, buscando observar no passado mudanças e permanências, descontinuidades e fragmentações, apresentando possibilidades que se compõem e recompõem continuamente.
Os artigos presentes neste dossiê percorrem vários aspectos da temática natureza e cultura. A partir de relatos deixados por intelectuais formadores de suas disciplinas, tais como Élisée Reclus, Capistrano de Abreu e Caio Prado, Antonil e Rocha Pita, destacam-se os textos de Regina Horta Duarte (“Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Élisée Reclus”), Dora Shellard Corrêa (“Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil”) e Francisco Eduardo de Andrade (“A Natureza e a gênese das Minas do Sul nos livros de André João Antonil e Sebastião da Rocha Pita”).
Tomando a literatura como campo de análise, Valdeci Rezende Borges (“Culturas, natureza e história na invenção alencariana de uma identidade da nação brasileira”) aborda a obra de José de Alencar, e Daniel Faria (“Makunaima e Macunaíma. Entre a natureza e a história”) procura entender a questão do desejo romântico pela natureza como resposta a conflitos políticos contemporâneos.
Cultura material e patrimônio são os eixos pelos quais Maria Clara Tomaz Machado (“(Re)significações culturais no mundo rural mineiro: o carro de boi — do trabalho ao festar (1950-2000)”), Flávia Arlanch Martins de Oliveira (“Padrões alimentares em mudança: a cozinha italiana no interior paulista”), Sandra Pelegrini (“Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental), Silvia Helena Zanirato e Wagner Costa Ribeiro (“Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável”), apresentam reflexões nas quais ações sociais implicam interpretações da relação entre natureza e cultura no tempo.
O ambiente em sua forma mais direta — as estradas, as florestas e os fluxos d’água — compõe o cenário para outros três artigos: Marcos Lobato Martins (“As variáveis ambientais, as estradas regionais e o fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930”); Franciane Gama Lacerda (“Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia”); Glaura Teixeira Nogueira Lima (“O natural e o construído: a estação balneária de Araxá nos anos 1920-1940”).
Seguem-se ainda duas resenhas, compostas por José Eduardo Franco (Jesuítas e Inquisidores em Goa), e Reinaldo Nishikawa (Fronteiras: paisagens, personagens, identidades).
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51, jan. / jun., 2006. Acessar publicação original [DR]
Fronteiras: paisagens, personagens, identidades – GUTIÉRREZ et al (RBH)
GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia; LOPES, Maria Aparecida (Org.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. São Paulo: Olho d’Água, 2003, 300p. Resenha de: NISHIKAWA, Reinaldo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51, jan./jun. 2006.
Podemos entender as complexidades que a palavra “fronteira” pode conter se sua própria constituição se dá muitas vezes em termos historicamente mutantes, difusos, cercada de especificidades? Ou sucede o inverso: as fronteiras se formam por processos semelhantes em lugares diferentes? Essas questões são tratadas na coletânea Fronteiras: paisagens, personagens, identidades, organizada pelos professores Horácio Gutiérrez, Márcia Naxara e Maria Aparecida Lopes. Ao privilegiar as três Américas como escopo (portuguesa, espanhola e inglesa), os autores que compõem o livro demonstram que muitas imagens criadas no “Novo Mundo”, em particular nas áreas de fronteira, esse espaço considerado demograficamente vazio e que acabou se tornando uma forma de legitimar a conquista, já não podem ser tomadas como corretas. A colonização entendida como um processo e as fronteiras como parte central desse processo são as linhas mestras seguidas no livro.
Os autores se comprometem a estudar as fronteiras, provando ser esta uma vertente importante para se entender os complexos mecanismos criados pela aproximação cultural dos diversos povos que conformam o mosaico americano. O estudo, composto por onze artigos, constitui um espaço de discussões para essa diversidade. O livro foi dividido em dois momentos que estão ligados entre si. A primeira parte é dedicada a pensar nas fronteiras como fundadoras de identidades, e segunda, a entender como essas fronteiras transformam as paisagens e os personagens tocados nesse processo.
Considerando que a maioria do território americano começou sua colonização pelo litoral, a expansão para o far west tornou-se um terreno propício para a criação de mitos embasados por ícones criados nessa expansão. As novas fronteiras trouxeram à tona personagens importantes nas suas conquistas. Temos o pioneer americano, o bandeirante brasileiro e o gaucho argentino, personagens que estão intrinsecamente ligados à expansão territorial. Entretanto, essa marcha implicou uma série de contrastes necessários para legitimar a presença do colonizador em terras estranhas. A presença do outro significava, em essência, um contato cultural, social, político e econômico de transformações irreversíveis. O livro em suas várias abordagens estuda esses impactos e procura entendê-los como um processo que engloba as Américas em suas diversas realidades.
A existência de “terras livres” nas Américas foi a justificativa encontrada por diversos colonizadores para legitimar as conquistas. Os artigos publicados neste livro nos mostram que a fronteira significa mobilidade e fluidez, e que não houve apenas uma única noção de fronteira na história das Américas, mas várias. Nos últimos séculos, o continente latino-americano possuía fronteiras diversas, as produtivas (a pecuária, a de metais preciosos), as fronteiras agrícolas (açúcar, café, algodão), e junto a elas, as fronteiras militares, de poder, bem como as lingüísticas e culturais. Essa pluralidade implica entender o longo processo de formação das fronteiras, das identidades criadas no transcurso do tempo e os personagens que se fixaram nessas fronteiras, e transformaram as paisagens existentes nesse caminho.
Os artigos que compõem a obra dão destaque também à importância dos povos “conquistados” e da influência mútua que os povos mantiveram com os colonizadores. Mesmo de uma forma desigual e arbitrária, os habitantes das Américas conseguiram impor certas práticas, certas influência e costumes, o que nos leva a um outro tópico.
Pensar no outro, naquele que faz parte do processo e que muitas vezes é esquecido tornou-se uma porta rica de entrada para o estudo da história e para os historiadores interessados em saber muito mais do que apenas compreender fronteiras como sinônimo de recorte espacial, ou como limites unicamente geográficos. O estudo das fronteiras demonstra que sua complexidade e suas implicações não podem passar despercebidas aos historiadores, uma vez que foram essas fronteiras que muitas vezes moldaram a identidade, as paisagens e a economia dos povos que aqui habitam. Para a compreensão de todos os meandros dessas fronteiras, os autores utilizaram, como seria necessário, variadas fontes de análises, que podem exemplificar-se no estudo de poemas, fotografias, pinturas, e até jornais, textos e relatos, prova de que a história não é estática e nem seus interlocutores.
É interessante perceber o quão ligados estão a fronteira e o sertão, ou o lugar considerado sertão enquanto uma construção histórica. As fronteiras vão ganhando especificidades e legitimidades dependendo de onde se origina tal conceito, e vários artigos que compõem o livro conseguem vislumbrar múltiplas gamas nas diversas regiões das Américas. O livro endossa a importância das transformações econômicas, políticas e sociais relacionadas ao momento em que as fronteiras são criadas e transformadas pela ação do homem.
Em alguns artigos publicados nos últimos tempos, os autores afirmam que a questão da fronteira não é tão discutida na historiografia latino-americana quanto na norte-americana, desconsiderando, segundo esses historiadores, o papel das fronteiras como formadoras das identidades criadas na América Latina. Talvez a publicação deste livro venha a dar resposta a essa afirmação, e demonstrar o interesse dos historiadores latino-americanos para a questão das fronteiras e suas implicações.
Ao fecharmos o livro, temos a impressão de que percorremos os quatro cantos das Américas (Estados Unidos, México, Caribe, Chile, Argentina, Uruguai e o Brasil) e conseguimos entender por que situações tão díspares quanto as colonizações portuguesa e inglesa, por exemplo, acabaram por percorrer o mesmo caminho em direção ao Oeste na tentativa de formar suas fronteiras. Os autores conseguiram mostrar que a conquista territorial nas Américas foi feita com sorrisos, e principalmente com muitas lágrimas. O livro, sem dúvida, vale um bom curso de História.
Reinaldo Nishikawa – USP
[IF]Jesuítas e inquisidores em Goa – TAVARES (RBH)
TAVARES, Célia. Jesuítas e inquisidores em Goa. Lisboa: Roma Editora, 2004, 298p. Resenha de: FRANCO, José Eduardo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51 jan./jun. 2006.
Em torno da complexa problemática da Inquisição moderna no quadro da história cristã ocidental paira um amontoado de noções, visões, imagens, umas distorcidas, outras ambíguas, a maioria delas hipertrofiadas. Estas percepções resultam de ilações simplistas, de associações temáticas e institucionais imprecisas, e ainda de muitos juízos que desconsideram o contexto mental do tempo histórico em que emergiu e vigorou o Santo Ofício como máquina judicial poderosa ao serviço da Igreja e dos poderes políticos que exigiram e subvencionaram a sua erecção.
Entre essas visões cristalizadas e “pré-conceitos” acríticos podemos recordar alguns dos mais recorrentes que não são mais do que o produto de intensivos tempos de propaganda e polémicas que teceram uma “lenda negra” do Santo Ofício e de instituições que colaboram ou conviveram com este tribunal. Essa marcante cultura de propaganda e polémica deu origem a avaliações desfasadas na integração e valorização da Inquisição naquilo que podemos chamar a história universal da repressão.
Eis algumas dessas hiper-focalizações. A exagerada concentração dos juízos em torno dos tribunais da Inquisição ibéricos como sendo muito mais temíveis, violentos e repressivos do que os seus pares de outros países católicos europeus, visão apriorística que tornou os outros tribunais aparentemente mais benignos e mais inofensivos. A excessiva valorização dos tribunais do Santo Ofício como as instituições judiciais que mais usavam de métodos repressivos violentos e atrozes, esquecendo-se que no mesmo período histórico as instituições judiciais do Estado usavam paralelamente de práticas e métodos repressivos tanto ou mais injustos e esmagadores. E ainda a hiper-focalização da atenção crítica nas formas institucionais de Inquisição católica, sonegando-se ou obnubilando-se que nas sociedades protestantes e em sociedades e culturas estruturadas por outros sistemas religiosos também coexistiram e se desenvolveram, naquela mesma época, sistemas e formas de controlo com semelhante grau de vigilância repressiva.
Além destas percepções simplificadas e hiper-focalizadas nos Tribunais da Inquisição católicos, sedimentou-se uma visão mitificada que merece especial menção no quadro da apresentação deste livro. A associação íntima entre Inquisição e a Companhia de Jesus, ou se quisermos, a ideia da jesuitização da Inquisição. Ou seja, a tese de que sempre existiu uma cumplicidade plena entre os Jesuítas e a Inquisição, uma aliança terrível para a ruína do país, para opressão do povo e para o retrocesso do Estado. Esta ideia foi desenvolvida em Portugal pela literatura antijesuítica produzida sob os auspícios do marquês de Pombal e, em particular, ficou bem patente no novo regimento pombalino da Inquisição publicado em 1774, o qual se apresentava como o antídoto desse jesuitismo inquisitorial.1 Essa visão do jesuitismo inquisitorial foi muito reproduzida e propalada pela propaganda antijesuítica ao longo do século XIX e primeiras décadas do século XX. Os Padres da Companhia eram vistos como os mais impiedosos conspiradores contra as liberdades do povo, sendo a sua Companhia uma máquina de guerra lançada contra a nação portuguesa, tendo sido a Inquisição uma criação sua (um decalque judicial da estrutura da Ordem de Loyola). A Companhia de Jesus a teria imposto ao país, e no país se desenvolveu e perdurou sob o controlo férreo da Ordem de Loyola.2
Especialmente a Inquisição atrai com um magnetismo extraordinário, como nenhuma outra instituição, a projecção dos nossos juízos mais recriminadores. No seu repúdio não deixamos de projectar, como que se de uma deflagração do inconsciente se tratasse, os nossos medos e angústias. Nela projectamos o receio bem nosso do regresso dos tempos da tirania, da repressão social, da ausência de liberdade enquanto valor mais caro ao ser humano, o que mais o realiza e o que mais o torna autêntico.
A emergência da Inquisição Moderna, com todo o seu aparato repressivo e a sua ambição omni-controladora desde as práticas sócio-culturais e comportamentais externas até ao fundo mais secreto das consciências, pode ser entendida como uma reacção exacerbada e violenta à fractura crescente que se começou a operar na modernidade entre a esfera espiritual e a esfera secular temporal. As instâncias estruturantes e garantes do regime político-social e mental de Cristandade impuseram um organismo de controlo para fazer face às consequências da ameaça real da perda progressiva do poder unificador do religioso que tudo tecia — as atitudes, os pensamentos, os valores, as opiniões, os afectos — sob um mesmo horizonte de sentido.3
Pensamos ser fundamental reflectir a expansão dos tribunais da Inquisição como reacção poderosa a uma revolução de mundividências que a modernidade trouxe consigo como ponto de chegada de um longo período de gestação medieval da reflexão sobre o homem, o cosmos, a deriva da história e sobre a própria Igreja e o seu julgamento enquanto herdeira (fiel ou infiel) do legado de Cristo. A valorização antropologizante do indivíduo e das suas possibilidades e faculdades de iniciativa e de pensamento, a construção (proporcionada pelas viagens marítimas dos portugueses e espanhóis) da ideia de universalidade e da complexa diversidade cultural, étnica e religiosa do mundo, e paralelamente a agudização de uma consciência histórica teleológica de matriz apocalíptica acentuaram e hegemonizaram a posição dos sectores que alimentavam a tentação uniformizadora de um sistema de ortodoxia doutrinal que o catolicismo da Contra-Reforma enfatizou até ao extremo da intolerância mais anticristã que alguma vez se conheceu na História da Igreja.
Por outro lado, o projecto de constituição de uma instituição judicial com carácter centralizado foi muito desejado por alguns príncipes católicos. Em particular, destacaram-se neste processo os monarcas das coroas ibéricas da época em que curiosamente prosperava o Renascimento e o Humanismo. Esses movimentos culturais que abriram as portas do mundo moderno suscitaram da parte dos “profetas” do puritanismo e da ortodoxia mais vigilante a crítica ao paganismo que teria tomado conta de alguns dos mais destacados produtores culturais dentro da própria cristandade, muitas vezes a expensas dos próprios príncipes eclesiásticos, seus mecenas. Essa onda de “paganização” que invadia os próprios antros da Igreja significou para muitos o prelúdio da vinda do Anticristo e a aceleração do epílogo desastroso da própria história que seria coroada com um severo juízo final, como asseveravam as profecias antigas.
Só na complexidade sócio-mental do dealbar da modernidade é que se pode entender plenamente as razões de fundo que levaram à montagem de um tribunal dessa natureza e dessa dimensão. No fundo, a criação de um tribunal desse género no seio da cristandade moderna traduz a dificuldade dessa mesma cristandade em lidar com a emergência cada vez mais palpável, diversificada e concorrencial do Diferente, quer o Diferente interno (judeus, protestantes, esotéricos…), quer o diferente que se apresentava nos limites das suas fronteiras (gentios, infiéis…).4 Essa “perigosa” aparição e afirmação do Outro, enquanto radicalmente diferente do Nós, como colectividade grupal, étnica, cultural, religiosa ou doutrinal fez tremer a cristandade de tradição medieval que ficou possuída pelo medo de que o seu edifício sócio-religioso e mental fosse seriamente corroído. A Inquisição é a face mais agressiva e violenta desse medo.
No que a Portugal diz respeito, o empenho diplomático de D. João III e dos seus sucessores, à semelhança do que tinham feito os vizinhos reis católicos de Espanha, conseguiu que fosse instalado e subsidiado no país e no ultramar, com a legitimação suprema do poder papal através de bulas, breves e privilégios de vária ordem, a imensa rede de vigilância activa do Tribunal do Santo Ofício e dos seus tentáculos com uma eficácia repressiva sem par na história deste reino. O projecto bem-sucedido de imposição dessa instituição judicial sobre as instituições e forças vivas seculares e religiosas do país não deixou de transportar consigo, para além do desejo de “purificação” doutrinal e moral, o desiderato íntimo de o emergente Estado moderno português possuir uma instância de controlo da consciência colectiva para serviço de um ideário centralizador do poder monárquico que pretendia reforçar-se perante os outros pólos de poder.
De facto, o controlo social, mental, comportamental generalizado através da montagem de uma teia de medo por toda a monarquia, embora sustentada sobre pilares de ordem teológica, não deixou, por isso, de servir de algum modo o ideário centralista monárquico, que assim passou a usufruir de um poderoso instrumento de regulação das formas de pensar, de agir, de manifestar-se publicamente… Também aqui a questão económica não foi uma questão de somenos importância. A prática do confisco de bens permitiu a transferência de capital de bolsos dos investidores e produtores de riqueza para elites de poder tradicionais e para a própria instituição estatal que passavam por dificuldades de adaptação numa época de revolução das fontes clássicas de enriquecimento.5 Da Inquisição, o Estado centralizado moderno e a elite que o sustentava tiraram benefícios em termos de controlo do capital crítico e do capital a ele inerente de desestabilização social, favorecendo a sedimentação de um comportamento colectivo domesticado através de uma implacável pedagogia do medo que veio substituir a genuína pedagogia evangélica da misericórdia como denunciava na cara e na casa do Santo Ofício de Lisboa, Fernando Oliveira (c.1507-c.1582), uma das figuras mais notáveis e originais do humanismo português.6
A realidade histórica é sempre mais complexa do que aquilo que a fazem as simplificações muitas vezes maniqueístas dos nossos juízos. E quando da Inquisição e dos Jesuítas se trata, tanto mais vasta e impetuosa é a tentação simplificante das nossas conclusões.
Mas acima de tudo, o terreno historiográfico do estudo das questões inerentes ao Tribunal do Santo Ofício é aquele em que as análises mais podem correr o risco de serem enfermadas pela paixão do historiador de hoje e pelas marcas da sua mundividência, isto é, do seu horizonte mental e ideológico. Trata-se, com efeito, de um terreno altamente movediço.
A complexidade da análise da problemática que representa a história da Inquisição deve considerar como tarefa crítica preliminar a integração da configuração institucional desse tribunal e da compreensão da sua larga base de apoio sociológico no contexto e na mentalidade do tempo e da sua avaliação no quadro da história comparada das instituições. O esforço de interrogação e de complexificação que o conhecimento histórico exige para abrir horizontes mais largos de compreensão não nos deve impedir, todavia, como pessoas do século XXI, de repudiar e de lamentar a desumanidade que semelhantes instituições promoveram. Mas ficar por aí e não procurar o distanciamento que se exige para fazer uma história complexizante, é acrescentar pouco à construção do conhecimento histórico que deve ser “esse conhecimento das sociedades vivas, nunca o seu julgamento e enquadramento doutrinário”.7
A história é um campo de conhecimento sempre em construção. Para tal urge perfilar cada vez mais corajosamente uma história aberta capaz de integrar e usufruir sem preconceitos dos contributos de outras áreas de conhecimento que possam levá-la mais longe na percepção do homem e do seu percurso através do tempo. A história joga o seu futuro precisamente nesta atitude “ecuménica” de saber aceitar e lidar com os métodos e conteúdo das outras ciências humanas e sociais. Assim a história poderá realizar o sonho de Fernand Braudel que idealizava a disciplina historiográfica como o ponto nodal, o lugar de cruzamento, onde se poderá realizar melhor a síntese interdisciplinar no quadro alargado das ciências do homem.
O historiador é por excelência aquele que deve ter a consciência “antidogmática” de que as suas conclusões são passíveis de serem reformuladas e que os seus juízos são transitórios. A história que ele constrói deve estar sempre aberta a novas abordagens que fazem da historiografia uma realidade dinâmica e aberta. É, por isso, tão actual e tão extraordinária a definição daquela que deve ser a melhor atitude do historiador perante o seu métier e perante os resultados da tecelagem da história estabelecida por Vasco de Magalhães Vilhena há quase cinquenta anos:
Ser historiador, é repudiar a falsa segurança, a certeza tranquila; é nunca renunciar a um íntimo recomeço, jamais desertar da obrigação de um perpétuo reajusto fundamentado que responda a necessidades novas de inteligibilidade. O historiador tem hoje, como nunca tivera até agora, a consciência de não criar para a eternidade … Só há história do imperfeito, do inacabado, do que tende incansavelmente a superar-se. Na medida em que é possível restituí-lo, o “passado” que é ainda presente, sempre se reconstrói.8
A tese de doutoramento de Célia Cristina Tavares que aqui é publicada na íntegra em forma de livro é exemplar à luz daquilo que se espera de um historiador contemporâneo, sério e aberto ao trabalho interdisciplinar. Ousando abordar um objecto difícil e complexo como a Inquisição de Goa na sua relação de colaboração/conflito com os Jesuítas e com outros actores em presença na construção da sociedade cristã goesa, a historiadora oferece uma abordagem inovadora, mostrando as diferentes faces da problemática em questão e, especialmente procurando desconstruir as visões simplificantes que chegaram até nós. As questões estão bem colocadas e a autora procura dar, de diferentes ângulos de visão, um panorama das instituições em estudo de uma forma arguta e com notável espírito se síntese. Assim, Célia Tavares apresenta-nos vários quadros problemáticos que permitem abrir um novo horizonte de compreensão da cristandade indiana: as diferentes metodologias e modelos pastorais em confronto, as divergências existentes entre as ordens religiosas, as visões exógenas das práticas institucionais e sociais da Inquisição. Procura, de um modo sagaz, analisar a formação da lenda negra do Santo Ofício através de narrativas de viagens, os conflitos entre a Inquisição e a Companhia de Jesus e a colaboração dos Jesuítas com a Inquisição, os conflitos no próprio seio da Inquisição e no seio da própria Ordem de Santo Inácio…
Escrita de uma forma elegante e clara, mas sem descurar o rigor, este livro, apesar de ter sido elaborado para servir de prova de doutoramento, apresenta-se de leitura agradável capaz de encantar um público mais alargado que não só os especialistas na matéria, que muito poderá usufruir com esta síntese bem elaborada e documentada de aspectos importantes da presença portuguesa no Oriente.
A leitura desta obra aguça-nos a consciência de que a verdade histórica é uma verdade sempre em construção,9 uma verdade inacabada que cada geração faz e refaz à luz dos seus quadros epistemológicos e dos seus métodos e interesses científicos próprios.
Ao concluir a leitura deste livro que o leitor agora tem entre mãos fiquei com o sabor estimulante de que “a história permanece paixão, empenho e deslumbramento”.10 Por isso, a história enquanto ciência do passado continua com muito futuro.
Notas
1 Cf. FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. Metamorfoses de um polvo: religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX). Lisboa, 2004.
2 Para uma desconstrução desta imagem perfeita da cumplicidade entre os Jesuítas e a Inquisição ver FRANCO, José Eduardo. “Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações no Brasil e no Oriente (Sécs. XVI-XVII)”, in Relações Luso-Brasileiras. Revista Convergência Lusíada, v.19, 2002, p.220-34; e FRANCO, José Eduardo; VOGEL, Christine. Monita Secreta (Instruções secretas dos Jesuítas): história de um manual conspiracionista. Lisboa: Roma Editora, 2002.
3 Cf. MOURÃO, José Augusto. “Da funesta liga do trono e do altar — A afecção (anti)clerical”, in ABREU, Luís Machado de; MIRANDA, António José Ribeiro (Coord.) Actas do colóquio sobre Anticlericalismo Português: história e discurso. Aveiro, Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2001. p.27.
4 Ver BETHENCOURT, Francisco. “Rejeições e polémicas”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.) História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p.49ss.
5 Cf. TORGAL, Luís Reis. A Inquisição: aparelho repressivo e ideológico do Estado. Separata da Revista Biblos, Coimbra, n.51, 1975, p.637; e COELHO, António Borges. Cristãos-novos judeus e os novos argonautas, Lisboa: Caminho, 1998.
6 Cf. FRANCO, José Eduardo. O mito de Portugal: a primeira História de Portugal e a sua função política, Lisboa: Roma Editora, 2000. p.57.
7 MACEDO, Jorge Borges de. “Dialéctica da sociedade portuguesa no tempo de Pombal”, in Como interpretar Pombal? Lisboa/Porto: Edições Brotéria e Livraria A.I, 1983. p.16.
8 VILHENA, Vasco de Magalhães. Filosofia e história, Separata do capítulo publicado em Panorama do pensamento filosófico. Lisboa: Cosmos, 1956. p.181-2.
9 Cf. GOODMANN, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: Edições Asa, 1995.
10 ALMEIDA, A. A. Marques de. “A escrita da história: questões de teoria e de problematização”, in Clio, v.5, 2000, p.17.
José Eduardo Franco – Centro Faces de Eva – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa.
[IF]Poder: Tramas e Tensões / Revista Brasileira de História / 2005
O meu passado não é mais meu companheiro Eu desconfio do meu passado.
Mário de Andrade
Se, em seu tempo, o perspicaz Mário encontrou razões para estranhar o passado, que se dirá de nós, historiadores neste limiar do século XXI? Dir-se-á que, além do passado, também estranhamos o nosso futuro. Dir-se-á que nos tornamos ainda mais instáveis! Entretanto, seguimos pensando, e produzindo, em meio a perplexidades cada vez maiores. Que a mesma luz do poeta / historiador clareie as precárias certezas em que nos pautamos!
Caminhando assim em consonância com os limites do seu tempo, a RBH completa uma trajetória de cinqüenta números. Cabe destacar sua importância sedimentada na área e suas contribuições para a produção historiográfica.
Tendo como marco a edição regularizada dos anos 90 para cá, as questões do poder — justamente as que nos permitem enfrentar o passado como companheiro — ocuparam cerca de 25 por cento dos dossiês anteriores. Com a presente edição voltamos mais uma vez os olhos para esse tema, com o dossiê “Poder: Tramas e Tensões”.
Diante das contemporâneas dúvidas e desconfianças que envolvem a todos no que diz respeito às questões do poder, da política, do fazer política e da ética, enfrentamos os desafios do presente publicando trabalhos que procuram desvendar tramas de poder no passado. Entretanto, os artigos aqui apresentados não são fruto da descrença no presente, pois se localizam num quadro de preocupações recentes, desvendando segredos encobertos por evidências inexploradas, fundamentados em extensa pesquisa, levando à frente o desafio de clarear imagens do passado e suas permanências na contemporaneidade.
Por tudo isso, os artigos do presente dossiê percorrem necessariamente caminhos variados. Partindo de eventos mais recentes e caminhando em direção ao passado mais remoto, publicamos os seguintes trabalhos: o artigo de Angelo Segrillo dedica-se a refletir sobre as contradições e dilemas do movimento comunista na Rússia atual; Adriano Luiz Duarte revisita o quebra-quebra de ônibus e bondes ocorrido na cidade de São Paulo em agosto de 1947, para entender a relação entre demandas populares e o fornecimento regular do serviço de transportes; a política como espetáculo da Ação Integralista Brasileira é o assunto de Rogério Souza Silva; Ricardo de Aguiar Pacheco, refletindo sobre a conjuntura política de Porto Alegre na década de 1920, estuda o processo de modernização das relações sociais; Aldrin A. S. Castellucci relaciona a primeira greve geral na Bahia às tramas de poder construídas entre a organização sindical e a cisão interoligárquica; Ivan de Andrade Vellasco discute aspectos da construção do Estado Imperial e os conflitos cotidianos, focalizando o sistema de justiça particularmente na comarca do Rio das Mortes; Juarez Donizete Ambires procura entender a atuação missionária e administrativa do jesuíta flamengo Jacob Roland na América Portuguesa; e, ainda dentro do dossiê, o artigo de Ricardo de Oliveira adota como foco a cultura política do Antigo Regime, revelando a trama das esferas públicas e privadas.
Outros três artigos versando sobre temáticas diversas são também publicados neste número. Luiz Roncari trata da formação de Machado de Assis como escritor, o seu modo muito próprio de se relacionar com o leitor e os controles do Estado Imperial; Klaas Woortmann examina a noção de selvagem no pensamento medieval e sua relação com o sentido de história; e Fábio Franzini salienta um dos aspectos menos conhecidos da história do futebol no Brasil: a inserção da mulher num universo quase exclusivamente masculino.
Além de artigos, a RBH oferece interessantes resenhas aos seus leitores: Vitor Izecksohn apresenta o livro Fear & memory in the Brazilian army & society; Francisco Silva Noelli indica sua leitura de Relatos do Descobrimento do Brasil—as primeiras reportagens, e Cláudia Maria Ribeiro Viscardi analisa a obra O Brasil Republicano.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, jul. / dez., 2005. Acessar publicação original [DR]
O Brasil Republicano – FERREIRA; DELGADO (RBH)
FERREIRA, Jorge Ferreira; DELGADO, Lucilia de Almeida N. (Org.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v.1, 446p.; v.2, 376p.; v.3, 432p.; v.4, 432p. Resenha de: VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.
É usual na historiografia brasileira e internacional a organização de publicações que agreguem artigos em torno de um tema comum, principalmente quando esse foi objeto de variadas pesquisas acumuladas ao longo dos anos anteriores. Trata-se não só de um processo de reunião de paradigmas compartilhados, em meio à vasta variedade de enfoques, mas, sobretudo, de uma possibilidade de reflexão sobre o que se avançou, até então, nas pesquisas acerca de um mesmo tema. Em geral, tais coletâneas possuem caráter revisionista. Destaca-se, neste âmbito, a consagrada obra organizada por Sérgio Buarque de Holanda e Boris Fausto intitulada História Geral da Civilização Brasileira. Nela foi reunido um conjunto de artigos — de autoria de variados pesquisadores — separados temática e cronologicamente, disponibilizando aos leitores uma síntese das pesquisas mais recentes publicadas sobre a História do Brasil, naquele período. Essa iniciativa pioneira fazia parte de um projeto concebido na Europa, cujo carro-chefe era a História Geral das Civilizações de Maurice Crouzet e René Taton. Muitos daqueles textos do “HGCB” — conforme a coleção ficou conhecida pelo público leitor — tornaram-se referências obrigatórias para pesquisas posteriormente realizadas, e fizeram parte da formação de boa parte dos historiadores hoje em atividade. O mesmo se pode dizer da coletânea Brasil em Perspectiva, organizada por Carlos Guilherme Mota em 1968, e dos 50 Textos de História do Brasil, publicado em 1974, sob a coordenação da Professora Dea Ribeiro Fenelon, para citar apenas dois exemplos mais marcantes. Todas essas iniciativas revelavam o vigor da produção historiográfica brasileira, expondo as mais recentes reflexões da academia nacional sobre os diversos períodos de nossa História.
A década de 1990 deu continuidade à reunião de grandes sínteses, desta vez, mais preocupada em atingir um público mais amplo, o dos professores e estudantes do ensino médio, propiciando-lhes o acesso às revisões historiográficas mais recentes sobre temas clássicos da História do Brasil. Aqui destacamos a iniciativa da Professora Maria Ieda Linhares, responsável pela organização de A História Geral do Brasil, que abarca os períodos colonial, imperial e republicano até o ano de 1984. Francisco Iglesias, prefaciando a obra, já apontava para o seu caráter inovador, afirmando ter sido a primeira iniciativa a incorporar na renovação do ensino de História o que mais avançado se escrevia sobre a História do Brasil.
Com a virada do milênio, duas obras inauguram a sistematização de textos organizados por períodos cronológicos, tendo por base exclusivamente o período republicano. Trata-se de A República no Brasil de Ângela de Castro Gomes, Dulce Pandolfi e Verena Alberti (2002), e a Coleção, objeto desta resenha, O Brasil Republicano, organizada pelo Professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, e pela Professora Lucília Neves Delgado, da Universidade Federal de Minas Gerais e, atualmente, da PUC-Minas.
A coleção O Brasil Republicano apresenta um caráter bastante inovador por ser mais plural em relação às anteriormente citadas. Este pluralismo resulta da diversidade de formação e atuação profissional dos quarenta e quatro autores reunidos em torno do tema. Pela primeira vez no Brasil, agregam-se historiadores vinculados a vinte e quatro instituições de ensino superior e/ou centros de pesquisa diferentes e que atuam em dez estados da Federação. Claro que isto só foi possível em razão do crescimento e da descentralização da pesquisa e da pós-graduação em História, ocorridos nas duas últimas décadas, e da agregação dos pesquisadores nos eventos científicos nacionais promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH) e demais associações existentes. Esse pluralismo, afortunadamente, não resultou na junção de análises regionais. O que surpreende é que autores das mais diversas regiões do país reuniram-se para discutir eixos temáticos nacionais, independentes das regiões em que se originaram ou nas quais atuam.
A pluralidade reflete-se, também, na variedade de enfoque dos temas que compõem os artigos. Segundo os organizadores afirmam, o eixo central é a questão da cidadania, desdobrada em dois sub-eixos, a saber: o cerceamento da prática cidadã e a resistência contra a exclusão política e social. Em todos os volumes o leitor poderá encontrar textos que enfocam, direta ou indiretamente, a questão da cidadania. Para o atendimento das discussões acerca desta temática, os artigos foram divididos cronologicamente em quatro períodos, seguindo a tradicional divisão proposta pela História Política Brasileira: primeiro volume: O tempo do liberalismo excludente (1889-1930); segundo volume: O tempo do nacional-estatismo (1930-1945); terceiro volume: O tempo da experiência democrática (1945-1964); e quarto volume: O tempo da ditadura (de 1964 a fins do século XX). A opção pela divisão tradicionalmente usada como referência se justifica pelo público alvo ao qual se destina a obra: alunos de graduação e alunos e professores de ensino médio. Não só os programas ou matrizes de competência do ensino médio se organizam a partir dessa cronologia republicana, como também, a maior parte dos nossos currículos de graduação o faz.
Assim, os quarenta e dois artigos que compõem a coleção apresentam uma interessante diversidade temática. Em seu conjunto existem dezenove artigos de História Política, nove de História Cultural, oito de História Social e cinco de História Econômica. O volume dois apresenta uma divisão mais eqüitativa, propiciando ao leitor uma visão bem diversificada dos acontecimentos do período. Nele, o leitor poderá encontrar reflexões sobre o Integralismo, sobre as experiências comunistas, sobre a política cultural do Estado Novo, sobre a organização das classes trabalhadoras, sobre a política-econômica predominante no período, além de textos excelentes sobre os intelectuais, a literatura e o cinema, por exemplo. Em todos os volumes ocorre uma distribuição mais ou menos eqüitativa entre esses campos de atuação dos historiadores. A concentração em História Política é, porém, bastante nítida. Mas, reflete a produção nacional da área sobre o período republicano. Além do que, por se tratar de uma análise sobre a História Contemporânea brasileira, associa-se naturalmente à História Política, em razão de ter esta, por objeto, eventos de mais curta duração. Essa opção não fragiliza, de maneira alguma, o conjunto da obra. Ao contrário, nos dá um retrato fiel dos resultados das pesquisas mais recentes sobre o período.
Segundo os organizadores da obra, ela tinha por um de seus objetivos principais o de disponibilizar em uma só coleção um conjunto de informações importantes para a formação de alunos que, em geral, têm dificuldade em adquirir livros. Acredito que o fim seja nobre e que os organizadores foram felizes em fazer esta opção. Ao mesmo tempo, destacam que a coleção tinha por propósito apresentar ao público vinculado ao ensino médio a oportunidade de ter acesso às renovações historiográficas, resultantes de pesquisas recentes produzidas pelas universidades. Este objetivo também é muito louvável, dado que a maior parte dos professores de História do Brasil se “atualiza” com base nos livros didáticos a que têm acesso, os quais, na grande maioria das vezes, demoram muitos anos para incorporar as mais recentes pesquisas produzidas pela academia. Ambos os objetivos foram atingidos.
Destaca-se na obra a inclusão, ao fim de cada volume, de uma bibliografia geral bastante atualizada e de uma filmografia, composta de uma relação de títulos com suas respectivas fichas técnicas. Este material será certamente de grande valia para professores e alunos de História em seus mais diferentes níveis.
Mas uma resenha não se faz só de reconhecimento de mérito. É preciso destacar os problemas para o aperfeiçoamento de iniciativas como essa. O primeiro problema observável é a dificuldade encontrada pelos organizadores em agregar um número muito grande de temas e pesquisadores sem que deixassem de ocorrer repetições de conteúdo ou até mesmo algumas contradições entre artigos em um mesmo volume. No primeiro volume esse problema esteve bem visível. O período que se interpõe entre a proclamação da República e a gestão de Campos Salles foi abordado factualmente em pelo menos cinco artigos diferentes. Em alguns deles, o eixo central (Cidadania) sequer foi tangenciado. Para uma leitura de artigos em separado, esse problema desaparece. Mas, para uma leitura do conjunto da obra, ele se torna muito evidente.
Um segundo problema a ser destacado é que nem todos os articulistas conseguiram atingir o objetivo proposto, ou seja, levar ao público leitor um conhecimento atualizado sobre o seu objeto. Alguns artigos limitaram-se a resenhar produções historiográficas já revistas, repetindo conteúdos que ainda se encontram presentes nos livros didáticos. Isso ocorreu, sobretudo, nos textos que não resultaram de pesquisas empíricas de seus próprios autores ou naqueles que se limitaram a resumir pesquisas antigas anteriormente feitas por eles próprios, mas que já foram revistas por outros que lhes sucederam, sem que as revisões tivessem sido incorporadas ao novo texto. Este problema, porém, encontra-se em poucos artigos e não prejudica a qualidade do conjunto da coleção.
Um terceiro problema detectado foi a ausência de ilustrações suficientes em artigos cujos objetos eram as próprias imagens. Muito embora reconheçamos as dificuldades impostas pelos editores visando ao barateamento da obra, as ilustrações, em alguns casos, eram indispensáveis ao entendimento dos objetivos dos autores.
Por fim, o ideal era que cada livro contivesse uma apresentação específica, ou seja, um texto introdutório responsável pela “amarração” dos artigos. A presença de uma apresentação específica para cada um dos quatro volumes auxiliaria o leitor a relacionar os diferentes temas abordados a respeito de cada período e poderia apresentar uma visão geral introdutória que facilitaria muito o acompanhamento dos textos, principalmente quando o leitor for o estudante de ensino médio.
A despeito desses problemas, como leitora e principalmente como professora de graduação em História, considero essa obra um relevante trabalho de síntese que pretendo recomendar a meus alunos e colegas. Certamente, contribui para atenuar uma das maiores dificuldades da área de Ciências Humanas no Brasil: a precariedade de nossas bibliotecas e a falta de recursos financeiros de nossos alunos. E consegue, na maior parte dos temas, oferecer ao leitor uma leitura agradável e atualizada acerca de temas clássicos da História Republicana.
Ao mesmo tempo, considero essa Coleção um marco na historiografia brasileira pelo seu caráter inovador e pluralista. A diversidade regional de seus autores e a variedade temática refletem uma convivência possível e harmônica de nossa comunidade acadêmica, rompendo com guetos e descortinando novos horizontes para jovens historiadores que, mesmo estando fora do eixo Rio—São Paulo, demonstram a pujança da historiografia nacional recente.
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi – Universidade Federal de Juiz de Fora — UFJF.
[IF]Relatos do descobrimento do Brasil — as primeiras reportagens – GUIRADA (RBH)
GUIRADA, Maria Cecília. Relatos do descobrimento do Brasil — as primeiras reportagens. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, 305p. Resenha de: NOELLI, Francisco Silva. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.
O diário de Pero Lopes de Sousa, escrito entre 1530 e 1532, é uma fonte de grande importância para a história da fase inicial de exploração do Brasil meridional e da foz do rio da Prata, sendo o segundo documento oficial português conhecido a ser escrito em terras brasileiras. Foi descoberto na Biblioteca Real do Paço da Ajuda, em 1839, depois de estar “escondido” por cerca de trezentos anos. O diário teve dez edições em língua portuguesa, entre 1839 e 1989, mas apenas três foram realizadas a partir da transcrição direta do manuscrito encontrado na Ajuda, a saber: 1) 1839, por Francisco Adolfo de Varnhagen; 2) 1956, por Jaime Cortesão; 3) 1968, por Jorge Morais-Barbosa. Todavia, o códice não é o diário original, mas uma “cópia incompleta e pouco cuidada do que teriam sido as anotações de Pero Lopes”, escrita com letra do século XVI.
A 11ª edição do diário, publicada em Portugal no ano de 2001, por Maria Cecília Guirado, é a melhor de todas, por tratar-se da primeira edição crítica do manuscrito da Ajuda e por apresentar ao leitor, especialista ou leigo, uma série de informações relevantes sobre o contexto da viagem e da redação do diário de Pero Lopes. Esta avaliação resultou de uma cuidadosa e erudita abordagem interdisciplinar, muito contemporânea, entre jornalismo, filologia, semiótica e história, mais o suporte da paleografia, com objetivo de “dar um tratamento jornalístico-semiótico … sem esquecer-se de retirar destes textos quadros significativos sobre a evolução das relações de alteridade, do enfrentamento civilizacional entre indígenas e portugueses”. Além do diário, Guiarado apresenta duas análises curtas, mas importantes abordagens jornalísticas da carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, e da História da Província de Santa Cruz, publicada em Lisboa por Pero de Magalhães Gandavo, em 1576.
O enfoque central da obra é a questão da comunicação no período do descobrimento, sobre os objetivos dos cronistas ao elaborar suas narrativas e relatórios de viagem. Da competente análise de Guirado, vimos surgir um contexto em que os navegadores e os encarregados de tomar posse das novas terras estavam muito preparados em relação aos conhecimentos da época. Vemos exemplos de matemáticos portugueses, como Pedro Nunes, que em 1537 estava preocupado em aliar teoria e prática, escapando do empirismo utilitário: “manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria, que são as cousas de que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos”.
A edição crítica do diário de Pero Lopes é, sem dúvida, a grande contribuição de Guirado às pesquisas e aos pesquisadores dos descobrimentos portugueses. Antecedendo a transcrição paleográfica, vemos uma descrição detalhada do códice da Ajuda, a história completa das dez edições anteriores e a explicitação pormenorizada dos critérios usados na transcrição paleográfica, uma verdadeira aula para orientar iniciantes e profissionais em tarefas dessa natureza. A transcrição é acompanhada de várias notas de rodapé, com esclarecimentos pertinentes, e dos símbolos utilizados nos códigos de transcrição da topografia do manuscrito. Da mesma maneira procede na explicação detalhada dos fundamentos teóricos e dos procedimentos práticos utilizados para elaborar os critérios da edição crítica, incluindo regras para “regularização da epiderme gráfica” e aspectos para fixação da ortografia, em outra aula construída com erudição e fluidez literária.
O texto crítico do códice vem acompanhado de notas de rodapé com explicações sobre detalhes da redação e, com muita propriedade, do cotejo in loco com as variantes de texto encontradas nas edições anteriores. A autora explica que, ao fazer tal procedimento, as anotações “poderão ajudar o leitor a compreender o processo desta edição crítica”.
O texto crítico é seguido por um glossário de “termos de marinharia”, do “léxico comum caído em desuso e outros termos”, dos personagens citados e dos topônimos, baseado em atestações buscadas no mais completo conjunto de obras sobre os referidos assuntos. A inclusão desse aparato é de grande valia, pois é um complemento fundamental para a compreensão exata e completa do diário.
Se a edição crítica realizada por Maria Cecília Guirado passará a figurar como a melhor publicação do diário, é preciso lembrar que a segunda edição de Eugênio de Castro (1940) é a mais completa análise e interpretação, talvez definitiva, sobre o itinerário descrito no diário de Pero Lopes de Sousa. Ambas as obras, em razão do alto nível alcançado pelos seus autores, devem ser consideradas como consulta obrigatória para aqueles que pesquisam sobre as primeiras décadas da presença portuguesa na América do Sul.
Francisco Silva Noelli – Laboratório de Arqueologia, Etno-História e Etnologia, Universidade Estadual de Maringá – UEM.
[IF]Fear & Memory in the Brazilian Army & Society – SMALLMAN (RBH)
SMALLMAN, Shawn C. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society. Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 2002, 265p. Resenha de: IZECKSOHN, Vitor. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.
A influência do exército na política brasileira se estende da segunda metade do século XIX até o início da década de 1980. A abrangência das intervenções militares esteve sujeita a debates intermináveis, a maioria dos quais procurou explicar as causas do golpe militar de 1964 e os 21 anos de ditadura que se seguiram por meio dos conflitos do final do período monárquico, especialmente a chamada “Questão Militar”. Para isso muitas vezes procurou-se encontrar as raízes da intervenção militar, que foram identificadas em aspectos particulares da vida da instituição, destacando-se aí os estudos sobre a formação educacional dos oficiais e as pesquisas sobre suas alianças com os aliados civis, em geral aqueles incompatibilizados com a democracia.
Os arranjos internos e informais que moldaram boa parte do comportamento dos oficiais não constituíram um tema central para os historiadores da instituição. O livro em questão tenta preencher essa lacuna. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society, do historiador norte-americano Shawn C. Smallman, baseia-se na utilização de fontes manuscritas inéditas e em entrevistas com militares de facções diferentes, buscando enfatizar o papel desempenhado pelas estruturas informais que moldaram ambos: o comportamento político do exército e a versão institucional de sua história. O autor define essas estruturas como “as regras não escritas, organizações, convicções e crenças que moldam o poder sem sanção oficial ou recursos governamentais” (p.5).
Smallman analisa a gênese e a consolidação das estruturas informais durante o período de 1889 a 1954. Partindo de uma posição secundária durante a maior parte do período monárquico, o exército pôde derrubar o regime e proclamar uma República em nome da ordem e do progresso. Apesar do seu papel proativo no golpe de 1889, faltou ao exército, durante décadas, um programa claro para unificar facções diferentes em torno de algumas demandas básicas. Essa debilidade institucional tornou a luta para manter o controle hierárquico sobre os soldados, suboficiais e oficiais rebeldes uma tarefa muito mais violenta e personalizada do que normalmente se supõe. De fato, na falta de uma ideologia militar consistente, influências externas, divergências pessoais e divisões políticas constantemente debilitaram a realização dos procedimentos formais, sujeitando o exército à instabilidade. Smallman argumenta que, em resposta a essa vulnerabilidade, aqueles que ocuparam o topo da hierarquia constantemente empregaram a violência, a tortura e o suborno para controlar a instituição.
Os procedimentos que possibilitaram à hierarquia forjar sua própria versão da memória institucional do exército devem muito ao medo e à prática do esquecimento. Muitos episódios de violência, assim como acusações de corrupção, foram apagados da história oficial. Outros episódios, como a revolta de 1935, foram convenientemente manipulados para justificar os meios brutais de punição das facções derrotadas. Outros ainda, como a repressão sistemática aos membros da facção nacionalista, desapareceram dos registros.
O livro contesta a visão de um exército unido e coeso, deixando clara também a extensão de preconceito racial no interior da instituição. De acordo com Smallman, desde a década de 1920, foram poucas as oportunidades para a ascensão de suboficiais, um caminho que contrasta com a situação dos primeiros anos da República. Além disso, negros, judeus e outras minorias foram sistematicamente discriminados nas seleções para o oficialato. As evidências apresentadas vão contra o discurso histórico/institucional que vê o exército como um oásis para as boas relações entre brasileiros de todas as classes, cores e credos.
Outro ponto polêmico tratado pelo livro é a caracterização de relações pessoais como o recurso fundamental para a construção de alianças e a formação de grupos políticos. Este aspecto é particularmente bem delineado na descrição do processo em que a hierarquia passou de uma posição estatista, calcada na defesa do papel proativo do Estado na atividade econômica, para um posicionamento mais internacionalista no decorrer da década de 1940, no rescaldo da aliança militar com os Estados Unidos (capítulos 3 e 4). Partindo de uma pesquisa minuciosa em fontes primárias, ancorada a uma síntese bem feita da literatura, Smallman demonstra que o pragmatismo e as alianças pessoais foram geralmente muito mais essenciais à formação de facções que a identificação ideológica ou um sistema de convicções. De fato, os oficiais do exército eram menos dependentes das conexões políticas externas que os civis trabalhando em posições estatais, mas esta situação, por si só, não constituiu um antídoto contra um nível alto de clientelismo endógeno. Nem o exército foi uma instituição total, isto é, fechada em si mesma e dotada de uma mentalidade inteiramente independente do contexto externo, nem os seus procedimentos funcionais conseguiram ser inteiramente burocratizados.
O ponto central do livro é o destaque dado ao papel da corrupção no estabelecimento de vínculos pessoais entre os altos escalões da hierarquia, a alta burocracia e os interesses empresariais. A corrupção militar sempre foi tolerada pelas elites civis, na medida em que era vista como uma fraqueza que poderia ser funcional para a subordinação do exército. Porém, a ascensão de oficiais para posições estratégicas nos empreendimentos estatais aumentou a escala da corrupção, reforçando as ligações entre esses oficiais e setores da comunidade empresarial. A instituição de tribunais especiais e o uso habitual da coação, freqüentemente imobilizaram qualquer tentativa de investigação, tornando a corrupção uma atividade segura para os oficiais que estavam no topo da carreira. Neste aspecto particular, o livro poderia ter discutido um pouco mais as relações entre as facções militares e os partidos políticos estabelecidos durante o regime de 1946. Isto teria permitido um melhor delineamento entre a corrupção propriamente dita e o acesso a posições de poder na estrutura estatal, especialmente a presidência e as diretorias de autarquias. Talvez não fosse o propósito do autor vincular esses aspectos às estruturas externas, mas o exército não se encontrava num vácuo e um pouco mais de debate sobre as conexões não prejudicaria sua argumentação, mesmo que o objetivo continuasse sendo o de manter o foco nos condicionamentos internos e na coesão do grupo. Mais atenção para a política nacional teria reforçado os aspectos informais particulares da instituição durante esses anos cruciais, contrariando tendências tradicionais que minimizam a importância da experiência democrática de 1946. Qual foi o papel da politização das facções nas disputas internas entre os nacionalistas e internacionalistas? Como esses oficiais percebiam o seu papel como coadjuvantes nas disputas político-partidárias da época? A simples redução da competição às polaridades da guerra fria não é capaz de dar conta da extrema complexidade política do período, da qual a corporação não se encontrava alheia.
Fear & Memory fornece uma descrição detalhada sobre as motivações dos oficiais do exército durante a segunda metade do século XX. A arqueologia das estruturas informais presta especial atenção para as reordenações internas no intuito de explicar a ação militar, mostrando que a amnésia coletiva permaneceu como a política oficial do exército durante anos. O trabalho localiza os sinais de descontentamento do exército na Guerra do Paraguai, analisando a política da instituição ao longo do processo que desembocou no envolvimento com a modernização autoritária e com o anticomunismo feroz das décadas de 1940 e 1950. Nessa perspectiva, a violência sistematicamente empregada contra os civis durante a longa ditadura 1964-1985 teria sido primeiramente gestada no interior da própria instituição, através de uma ação de contenção sistemática dos soldados e dos dissidentes. Vale perguntar se a pesquisa precisaria descer a um passado tão distante quando seu foco estava concentrado nos anos 40. A ênfase na longa duração nem sempre é compatível com a análise da estrutura de alianças pessoais e do oportunismo individual, enfatizados pelo autor, e acaba reproduzindo a tendência tradicional de buscar as origens da crise na Questão Militar.
Apesar destas ressalvas, o livro apresenta perspectivas novas para o estudo de muitos aspectos internos da instituição, mostrando que a complexidade dos eventos pode ser deslocada muitas vezes para as paixões e motivações pessoais, sinalizando para a importância do desígnio humano na análise dos obstáculos que esse setor da burocracia estatal estabeleceu para impedir o exercício pleno da democracia.
Vitor Izecksohn – Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ.
[IF]Café Manduca — uma história recontada – CALDEIRA (RBH)
CALDEIRA, Oswaldo Caldeira. Café Manduca — uma história recontada. Belém: Secult/Oswado. Caldeira Prod. Cinematográficas, 2004, 128p. Resenha de: LEITE, Mirian Lifchitz Moreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.49, jan./jun. 2005.
Oswaldo Caldeira, cineasta premiado e crítico de cinema, é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu roteiro “As histórias de Alice”, inspirado na vida de Manduca, seu avô, foi premiado no Concurso Petrobrás Cultural 2004/2005 e está em fase de pré-produção.
O livro que ora apresento é a história da família do autor. Publicado com uma diagramação incomum, que chega a dificultar sua identificação, reconta as histórias do Café Manduca, temperadas pelo prazer com que o autor se dedicou à montagem das imagens. Estas provêm de documentação primária, quadros, fotografias, das entrevistas de amigos e contemporâneos, de notícias e anúncios de jornais. Resultam de uma pesquisa cuidadosa, procurando reconstituir o Café Manduca e outras iniciativas de seu avô, através dos anos, das gerações, e das cidades em Portugal e no Brasil.
Hoje, estudos multidisciplinares construíram pontes para que palavra e imagem se complementem, quando a capacidade de sugestão da imagem consegue suprir o poderoso estímulo do que não foi dito, e o texto alimenta e aprofunda o que a imagem sugeriu. São estas combinações de texto e imagens que merecem uma leitura crítica deste livro e das perplexidades que ele traz para o leitor.
A experiência de Oswaldo Caldeira com imagens fixas (as fotografias) e imagens em movimento (documentários históricos) está aqui transposta para uma História da Família. O autor tenta se ocultar por trás das inúmeras vozes que ressoam, mas não as desdobra ou generaliza numa interpretação. Restringiu-se a uma literal montagem, que reconta os textos jornalísticos e os depoimentos, intercalando as imagens literárias, plásticas e fotográficas que embelezam o livro.
A mobilização dos inúmeros colecionadores espalhados por toda Belém, professores, jornalistas, garçons, estudantes e curiosos que cercavam a esquina, ou o “canto” escolhido por Manduca para a instalação de seu Café, é que permitiu a reconstituição do cotidiano do movimento do estabelecimento e das ruas ao redor, com sua Casa de Leilões — que se anunciava como situada defronte ao Café Manduca —, além de livrarias, arquivo, jornais e escolas, com uma população masculina atuante, já que sua localização central fazia-o participar do que quer que acontecesse na cidade.
A quantidade e a qualidade das colaborações obtidas diversificaram por demais o andamento e o foco narrativo. Talvez num documentário cinematográfico, com um tempo reduzido de exposição das imagens ao espectador, ficando umas como fundo e outras em primeiro plano, essa diversidade do material não perturbasse a leitura. Num livro em que se vêem ou lêem as imagens e os depoimentos isolados, uns dos outros, essa diversidade dificulta a absorção do sentido. Ao folhear essas belas páginas, pode-se ficar em dúvida sobre do que é que se trata. Da beleza bucólica de Portugal? Da imigração dos portugueses no início do século XX? Da família Corrêa da Silva? Dos empreendimentos e das idéias de Manuel Corrêa da Silva? Da situação sanitária de Santos antes da construção do porto? Da condição sanitária de Belém, antes da eletrificação e das posturas municipais de higiene? Da mobilidade dos imigrantes?
O livro foi escrito por um cineasta e o material reunido era-lhe precioso demais para admitir um peneiramento. Vai sendo apresentado por partes, com diferentes estilos e através de imagens e textos. O personagem principal é o avô Manoel Corrêa da Silva — apelidado de Manduca desde o nascimento em Galafura, Portugal —, rodeado principalmente de mulheres muito corajosas.
Veio para o Brasil com 9 anos de idade, quando seus pais deixaram Portugal em busca de melhores condições de vida. Desembarcaram, com muitos outros portugueses, em Santos, antes da construção das Docas e das reformas urbanas que a tornariam o grande porto do café. Sem preparo algum, Manduca viu-se órfão numa cidade desconhecida, pois o trabalho na remoção do lodo do porto vitimou o pai através da febre amarela. Ajudou, desde então, o sustento da mãe e dos irmãos com os trabalhos pesados e sem horário com que podia arcar, mal chegando a ter uma escolarização digna desse nome.
Quando fez 21 anos, em 1899, casou-se com uma conterrânea de 14, capaz de ir contra a vontade dos pais para escolher o seu par. Apenas com a força da mocidade e a vontade de vencer enfrentaram a vida em comum longe de suas raízes.
Em 1901 Manduca resolve tentar a vida em Belém do Pará, que vivia o surto da borracha e era, então, das principais cidades brasileiras. Ele e a mulher trabalharam intensamente da madrugada até a noite, cozinhando, empurrando carrinho de entregas, ajudando conterrâneos em açougues e padarias e mostrando-se capazes de enfrentar qualquer tipo de adversidade — para juntar dinheiro.
A decisão e o empenho em melhorar a vida e a crença na capacidade de trabalho deram a eles uma mobilidade, uma capacidade de adaptação e uma sabedoria, independente de suas condições sociais e de escolaridade. Essa melhoria de vida incluía sempre, em quase todos os casos, a ambição de fazer os filhos estudar, fosse nas capitais, nos seminários ou na Europa.
A solidariedade entre imigrantes portugueses fica bem expressa em seus contactos para conhecer a situação econômica e sanitária das cidades brasileiras, como ao se tornar empregado e sócio dos patrícios, estabelecidos anteriormente. Manduca tem garçons portugueses, e o menino de 14 anos, que lhe foi recomendado para o Café, ali ficou por toda a vida, terminando por se tornar seu sócio. A sugestão de que prometera ao pai levar adiante o plano de ascensão social, e a Carolina, dar a ela o que ela quisesse, quando Manduca nada tinha além da juventude e da força de trabalho, simbolizam uma ambição positiva, que só poderia trazer resultados, para aquele homem de um metro de cinqüenta e nove centímetros de altura, por ser ele de uma inteligência extraordinariamente empreendedora.
Antes de abrir o seu café, no centro comercial de Belém, Manduca estudou com o maior empenho o local e as condições em que a sua iniciativa teria êxito: a roupa e a limpeza dos empregados, o capricho do serviço, com tudo brilhando, o modelo original das xícaras, a qualidade dos produtos oferecidos, a necessidade do tratamento cordial dos fregueses e da apresentação de novidades. Rodeado por redações dos principais jornais, Manduca pôde verificar nos exemplares deixados no Café que todos os vizinhos, das duas ruas, faziam anúncios de seus negócios. Discutiu com os jornalistas a eficácia e as vantagens que um anúncio poderia trazer. Verificou que não só se tornaria conhecido de muito mais pessoas, além das que já freqüentavam seu café, como se destacaria dos concorrentes. Além disso, teria melhor relacionamento com os diretores dos principais jornais de Belém. Iniciou, então, uma série de anúncios personalizados, chamando a atenção para a excelência do estabelecimento e para as novidades com que contribuía para o conforto de seus freqüentadores. Acompanhando o progresso tipográfico dos jornais, os anúncios foram crescendo e, de pequenas notas, passaram a tomar maior espaço e ser ilustrados por desenhos das melhorias introduzidas para aperfeiçoamento de seus produtos: a importação de um técnico do Sul, para a moagem do café, os carrinhos comprados para sua distribuição e uma bem montada vaccaria, que posteriormente torna-se um estábulo, com endereço próprio, para garantir a qualidade do leite. Mesmo sendo o café um ambiente exclusivamente masculino, aparece uma figura de mulher saboreando o produto distribuído pela cidade.
Em 1908 foi publicado O Pará Manufactureiro, redigido para a Exposição Nacional. Pretendia reunir todos os produtos das indústrias agrícolas e pastoris, manufatureiras e outras, de artes liberais, para avaliar as forças produtivas do país numa exposição no Rio de Janeiro. Nessa publicação o Café Manduca apareceu como o mais afamado e popular estabelecimento de beneficiar café de todo o Norte do país.
A partir de então, a vida de Manduca se transformou. Adquiriu propriedades no Rio de Janeiro e passou a freqüentar a Igreja Presbiteriana, e foi, com toda a família, batizado nessa crença. É a partir de então que se faz registrar de terno e gravata, sempre em imagens obtidas nos principais fotógrafos das cidades (Rio de Janeiro e Porto), atestando sua ascensão social. Depois dos anúncios, são as fotografias que passam a registrar a sua memória e a de sua família, com notas que comunicam entre os “Fatos e Comentos” do jornal O Puritano (Rio de Janeiro) da Primeira Igreja Presbiteriana, os novos filhos e as novas iniciativas. Na cidade do Porto, para onde se retirou em 1914, fundou o Portugal Evangélico que, mais do que recuperar uma fábrica de calçados falida a que deu o nome de Atlas, era uma renovação improvável do menino descalço e analfabeto, que aos nove anos se viu órfão e encarregado de cuidar da mãe e dos irmãos em Santos.
Essa História Recontada é construída pela complementaridade do texto visual e do texto verbal. Os aspectos da pobreza, do sofrimento e da doença ficam atenuados pelos recursos tecnológicos da fotografia bem utilizados: o ângulo, a cor, a distância, a ausência do odor e a dissimulação da sujeira. Em Café Manduca, a beleza e a tranqüilidade das imagens iniciais das margens do Doiro e da Igreja de São Vicente de Galafura são acentuadas pelas passagens poéticas de Miguel Torga. Já as belas reproduções do porto de Santos, em 1882 e 1888, do artista local Benedicto Calixto, com aquela floresta de mastros e a harmonia da vista do casario santista de anos depois, velam inteiramente a situação de insalubridade daqueles mangues, antes das obras de saneamento e da construção do porto, onde uma epidemia de febre amarela foi completada por um surto de varíola. Os cortiços onde iam-se amontoando os imigrantes ficam soterrados no colorido dos quadros. A fotografia em preto e branco de imigrantes, com seus sacos e baús e fisionomias carregadas, que o livro também apresenta, é mais representativa da situação penosa que o texto depois revela, sobre a instalação precária e a mobilidade dos recém-chegados.
No início do século XX, o chefe de família resolve se transferir de um lugar para outro, de Santos para Belém, de Belém para o Rio de Janeiro, do Rio para o Porto, em Portugal, sem que os membros da família saibam o que o levou a tomar as resoluções e as mudanças de casa e de país.
Os depoimentos não revelam apenas apresentações subjetivas de freqüentadores do café, mas demonstram como sua localização, no centro comercial e político de Belém, foi um fator decisivo para o sucesso. Em seus 55 anos de vida, o café foi um local privilegiado de sociabilidade masculina, reunindo personagens que o consideravam sob diferentes óticas. A freqüência de políticos e jornalistas o tornou cenário de reflexões e intrigas, tendo até havido a ameaça de ser fechado por suspeita de ser um centro de conspirações. Os Vilhena, que ficaram com o café quando Manduca voltou para Portugal, ainda mantiveram essa situação — eram chamados de Os Manducas e criaram um time de futebol, o Manduquinha Futebol Clube.
Os retratos envelhecidos, reunidos do interior do café e preservados por Orlando Vilhena, filho do sócio de Manduca, são registros dos empregados e de uma figura mítica que passara a fazer parte dele: o engraxate e corredor que recitava a Divina comédia e era o próprio historiador da casa. A profusão de documentos, fotos e recortes de jornal que Orlando Vilhena proporcionou ao neto de Manduca significava para ele a história da família Vilhena, pois o pai viera com 14 anos e ali ficou até o fim da vida. Diversificou a produção da casa com charutos e polpa de tamarindo, e observou que a presença de jornalistas, estudantes de engenharia e políticos já começava a ser diferenciada pela companhia das mulheres que agora trabalhavam nos escritórios.
Nessa parte do livro as fotografias pouco acrescentam, tanto os instantâneos do interior do café quanto as fotos coloridas das ruas ao redor. Algumas, como a que ilustra “o crime da barba inacabada”, é uma reprodução de um jornal que só nos revela o uso cotidiano das palhetas (chapéu de palha urbano, da década de 1930). O texto, habilmente composto pelo autor com as diferentes versões dadas ao episódio, é que nos informa sobre o evento fatal para José Avelino, presidente da União Auxiliadora dos Estivadores do Lloyd Brasileiro, que interferiu desastradamente num conflito das facções baratistas e frente-unistas.
Os depoimentos são uma fonte riquíssima para o conhecimento da história dos jornais de Belém, de seus personagens e de seu funcionamento precário, dependente da política local e dedicado à preservação das ocorrências locais.
Esta leitura do livro de Oswaldo Caldeira, empreendida para demonstrar a complementaridade dos textos verbais e dos textos visuais, termina privilegiando o texto verbal de um especialista em imagens em movimento. É, contudo, um exemplo significativo de que é preciso avaliar a adequação da imagem ao que se quer transmitir, e de que às vezes o texto verbal é a melhor opção. Antes ainda, é preciso conhecer a intenção do autor: a procura do melhor meio de transmitir os resultados de sua pesquisa. Mas as análises que a Antropologia nos ensina não são as únicas formas de combinar adequadamente imagens e palavras para aperfeiçoar a compreensão do material publicado. É possível querer unicamente reunir imagens que correspondem à memória do autor. É também possível ter o desejo de fascinar o leitor pela beleza ou pelo pitoresco das imagens. Ocorre também o caso de desejar desmentir pela imagem o que o texto verbal expressou, ou complementar-lhe o sentido.
Miriam Lifchitz Moreira Leite – Pesquisadora aposentada de História Econômica, assessora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, Depto. de Antropologia, FFLCH/USP; autora de livros e artigos sobre História das Mulheres e Epistemologia da Imagem.
[IF]História e manifestações visuais / Revista Brasileira de História / 2005
Civilização da imagem, da ilusão. Civilização da invenção, da razão. Situações antitéticas? É opinião corrente que vivemos uma época em que as imagens caracterizam, limitam, simbolizam, arrogam sentidos, enfim, definem as relações sociais. É também consenso que isso tudo nos amedronta, coloca-nos diante do imprevisível: imagens virtuais, mundos fictícios…
Eis aqui um assunto do qual a RBH quer participar por meio de um dossiê inovador para as suas páginas: história e manifestações visuais. Por isso a Revista abre esta edição com duas matérias em chaves de leituras opostas, mas complementares. Primeiro, uma entrevista de Alain Corbin a Laurent Vidal, na qual fica inteiramente revelado o historiador da paixão pela história, da história das sensibilidades e das imagens banais do cotidiano. Depois, um artigo de Boris Kossoy, uma conferência luminosa, sobre os intrigantes desafios interpretativos que as imagens encerram, e sobre os esforços investigativos e reflexivos em desvendar a fotografia, no que ela revela e silencia.
Seguem-se artigos que tratam de variadas temáticas, tendo sempre a história como seu sistema constitutivo, o que de resto é a matéria básica desta publicação, e as imagens, em movimento ou não, como veículos e suportes de idéias. Ana Maria Mauad — “Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem” — trabalha com fotografia e política; Artur Freitas — “Arte e movimento estudantil: análise de uma obra de Antonio Manuel” — cuida da relação entre artes plásticas e política; Cássio da Silva Fernandes — “As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte de Franz Kugler” — analisa história da arte e mudança social; Eduardo Morettin — “Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso” — relaciona cinema e história social; Sheila Schvarzman — “Ir ao cinema em São Paulo” — investiga cinema e comportamento no início do século passado; Luciana Rossato — “Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris” — estuda conexões entre arte e conhecimento científico; Jean Luiz Neves Abreu — “Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos ex-votos mineiros do século XVIII” — conjectura sobre a produção e o consumo da arte popular. Por fim, publica-se uma resenha de livro de Oswaldo Caldeira que mescla cinema e reminiscências.
O número da RBH que o leitor tem em mãos encerra o ciclo administrativo deste Conselho Editorial. Escolhemos dedicar os quatro números concernentes ao período aos temas história / cidades, história / poder, história / conhecimento e história / imagem. Diante das perplexidades que contemporaneamente se apresentam ao entendimento da história, procuramos seguir as diretivas mais singulares de nossa profissão. Isto é, estudar com afinco os textos oferecidos à publicação e dar publicidade àqueles que mais estimulassem a reflexão.
Se as virtudes cívicas contribuem para a boa vida de todos, as virtudes editoriais devem contribuir para o aprimoramento de toda a comunidade de professores e pesquisadores.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.49, jan. / jun, 2005. Acessar publicação original [DR]
Saberes históricos e pedagógicos / Revista Brasileira de História / 2004
A presente edição da RBH, mais uma vez, comporta um dossiê a propósito de saberes históricos e pedagógicos. No número 46, de 2003, fizemos um comentário que merece aqui reprodução: “Apenas considerando o início dos anos 90 e os dias atuais, isto é, 32 números editados, a RBH publicou principalmente dossiês de teoria de história ou historiografia, cerca de 25% do total — o que atesta vivamente que o ofício do historiador, seus métodos e dificuldades, apresentam-se como a preocupação mais constante da comunidade”.
É possível que tal preocupação com as questões teóricas decorra da tentativa de administrar a mais recôndita aspiração do historiador: a de lidar positivamente com a imprevisibilidade do conhecimento. O futuro não está compreendido pelo passado, e essa indeterminação angustia aquele a quem, por profissão, cabe confrontar o conhecimento adquirido com o devir. Toda e qualquer comunidade humana toma decisões sobre o seu futuro, e não o faz optativamente. Somos todos obrigados, para o bem e para o mal, a optar. Daí o lugar especial destinado à imaginação nos estudos históricos. É pelo trabalho simultâneo da imaginação e da razão que o historiador encontra motivos para a refutação de sua instabilidade de princípio.
Procedendo dessa forma, isto é, publicando sucessivos dossiês sobre questões teóricas da disciplina, a RBH tem aberto freqüentemente espaço para a aventura do saber, lidando sempre com o entender e o ensinar a história. Neste número, como em outros precedentes, contamos com a parceria de eficientes e inspirados autores para discutir aspectos teórico-metodológicos da historiografia contemporânea, que se constituem, muitas vezes, em impasses da nossa ciência. Os três primeiros artigos do presente número da RBH, a seu modo, avaliam os ditos impasses. Norberto Guarinello abre o volume discutindo conceitos como tempo histórico, estrutura e ação, a partir da perspectiva do tempo cotidiano. Numa leitura que pode se constituir em diálogo e contraponto ao artigo anterior, Carlos Zacarias, em “A dialética em questão”, busca demonstrar que uma determinada tradição marxista nunca deixou de promover sínteses essenciais ao método dialético. Em “Testemunho, juízo político e história”, Fernando Kolleritz analisa as propriedades características do gênero testemunhal, descrevendo as situações ideológicas que presidiram a recepção de depoimentos sobre os campos de concentração nazistas e comunistas.
Ocupando um espaço privilegiado, seguem-se sete artigos nos quais o tema do ensino de história constitui a preocupação primordial. Claudefranklin Santos e Terezinha Alves de Oliva recuperam e analisam um livro de leitura, o Através do Brasil, que, procurando fortalecer a identidade nacional, sintetizou um ideal pedagógico brasileiro do início do século XX. Cuidando de tema semelhante, Sonia Miranda e Tania de Luca, em “O livro didático de história hoje”, constroem uma breve radiografia do livro didático contemporâneo e apontam algumas temáticas centrais que têm ocupado o cenário relativo ao saber histórico escolar. Lucia Guimarães aborda o IV Congresso de História Nacional, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1949, com o intuito de avaliar a sua contribuição à historiografia nacional. Laerthe Abreu Jr. analisa o caderno de recortes sobre educação do Diario Official do Estado de São Paulo, nos anos 30 e 40 do século XX. Sua intenção é mostrar indícios das práticas escolares que aparecem e se destacam em meio aos textos sobre aspectos legais da educação. A tentativa de construção de um Código disciplinar para a História no Brasil é o assunto privilegiado por Maria A. Schmidt, em artigo que põe em foco a obra didática de Jonathas Serrano (1855-1944), professor de História do Colégio Pedro II. Luiz Cerri, em “Saberes históricos diante da avaliação do ensino”, trata da influência que o ENEM exerceu, como prática avaliativa privilegiada durante o anterior governo federal, na organização do currículo do Ensino Médio. E, ainda dentro da seção destinada ao conhecimento pedagógico, Paulo Martinez estuda questões ambientais presentes no conhecimento histórico escolar.
Além desses, mais três artigos, versando sobre temáticas externas ao dossiê, completam a presente edição. São eles: “Almas em busca da salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII)”, de Eliane Fleck; “Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa de Lavradio”, de Fabiano V. dos Santos; e “O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX”, de João Carlos de Souza.
Fiel à sua tradição, portanto, a RBH abre espaço para uma aliança entre a imaginação e a razão histórica. Mas o faz esquivando-se do perigo de tomar por real o que é produto da imaginação. O caminho para o desfazimento da aludida confusão parece estar contido na separação entre duas formas de imaginação, e na escolha daquela que, procedendo por hipóteses as quais ela se esforça para validar, afasta imediatamente as conclusões em diametral oposição à experiência vivida.
Assim, a atividade científica em história — para a qual a RBH pretende se constituir em veículo de divulgação — é o protótipo da imaginação cotidianamente confrontada pela experiência. E, em nosso caso, essa experiência nos vem pelo profícuo relacionamento entre nossos autores e nossos leitores.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004. Acessar publicação original [DR]
La marche des idées – histoire des intellectuels, histoire intellectuelle – DOSSE (RBH)
DOSSE, François. La marche des idées – histoire des intellectuels, histoire intellectuelle. Paris: La Découverte, 2003. 339p. Resenha de: RODRIGUES, Helenice. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004.
Em momentos de crise e de impasse, nos quais a nebulosidade do pensamento e das ações impossibilita uma inteligibilidade política, a “intelligentsia” francesa tende a se auto-atribuir uma missão. Do “caso Dreyfus” à guerra da Bósnia, passando por Maio de 68 e pela guerra da Argélia, a “intelligence” esteve presente em todas as frentes de combate do século XX, em nome do dever de uma “consciência crítica”. No entanto, as mutações históricas e intelectuais dessas últimas décadas modificaram radicalmente a tradicional imagem do intelectual: a representação do indignado, militante e crítico, cedeu lugar à figura e à cultura do especialista e do chamado “intelectual midiático”.
Ao lado de uma história intelectual e dos intelectuais, François Dosse, nesse recente livro, retraça, em filigrana, uma história da história dos intelectuais, mostrando, através de uma vasta literatura, as imbricações que subtendem sua relação com o espaço público, a história e os esquemas de pensamento. Revisitando as diversas publicações francesas e estrangeiras sobre esses dois domínios, o autor apresenta um importante trabalho de síntese. Embora estruturadas separadamente, a história dos intelectuais e a história intelectual, em razão mesmo de suas indeterminações e indistinções epistemológicas, se justapõem ao longo desse livro, revelando assim o caráter interativo e transversal desses dois objetos.
Paralelamente a uma história dos intelectuais, desenvolvida na França a partir da década de 1980, emerge uma história intelectual tendo por ambição elucidar as obras intelectuais na sua historicidade. Esse “obscuro objeto” que constitui a história intelectual surge, segundo o autor, do intercruzamento de uma história das idéias, de uma história das mentalidades e de uma história cultural. Com efeito, a sua gênese encontra-se na própria tradição epistemológica francesa: a história do pensamento cientifico (Koyré, Bachelard, Foucault), assim como no projeto arqueológico desse último: o pólo crítico e hermenêutico.
Menos preocupado com definições e com problemáticas, François Dosse opta por mostrar as diversas tendências dessa história intelectual: contextualismo (Skinner), semântica histórica (Kosseleck), hermenêutica (Ricoeur), assinalando a necessidade, para a sua prática, de ultrapassar as análises internalistas e externalistas. Para tal, a hermenêutica, como método, parece constituir uma das suas condições de possibilidade: “Cabe à história intelectual como à história dos intelectuais a interrogação da vida das idéias através de um vai-e-vem constante entre o passado e as questões que formulamos, ao passado, a partir do presente”.
Ora, tributária do contexto histórico nacional, a história dos intelectuais, na versão francesa, apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de uma abordagem política, tendo por principais referenciais os engajamentos, as gerações e os lugares institucionais. Do ponto de vista ético, o intelectual é, antes de mais nada, portador de valor, de engajamento e de missão.
A pluralidade de acepções semânticas sobre o objeto “o intelectual” conduzem François Dosse a explorar os trabalhos de autores clássicos que, de maneira diversa, pensaram a relação do intelectual com o poder. De Benda a Said, passando por Sartre e Gramsci, esse autor apresenta um vasto panorama de análises onde se combinam, igualmente, comentários críticos sobre as obras e sobre os autores. Esse “obscuro objeto”, no contexto intelectual francês, remete, fatalmente, ao modelo do “caso Dreyfus” e às representações, positivas ou negativas, de um engajamento político. Complementando essa abordagem histórica dos intelectuais, os estudos sociológicos inspirados nos trabalhos de Pierre Bourdieu contribuem, sobretudo, para a elucidação das redes de poder e dos mecanismos de produção de idéias, fortemente dependentes dos lugares de enunciação (estudos comparativos entre “campos” intelectuais diversos). Mas, se essa perspectiva sociológica, como pretende François Dosse, revela seus limites, a história dos intelectuais, fundada na versão da história política, por sua vez, não permite a apreensão da própria produção intelectual.
Ora, a atividade intelectual encontra-se presente, segundo o autor, nas modalidades diversas de leitura e de apropriações de textos. A propósito, como ele bem salienta, a teoria de recepção de Hans Jauss é, por exemplo, fundamental em um trabalho de apreensão da produção intelectual. Nesse sentido, a nova história cultural francesa (em forma da história do livro, da edição, da recepção, dos símbolos e da prática cultural, por exemplo), pela própria complexidade da sua abordagem, possibilita explorar as diversas maneiras de pensar e representar o mundo. Desse modo, “a atividade intelectual na história cultural” (um dos capitulos, a nosso ver, mais pertinentes) permite uma melhor compreensão das múltiplas interações entre essas duas fronteiras: cultura e intelecto. Através de diferentes obras, intermediárias entre a história cultural e a intelectual, François Dosse apresenta exemplos de sua prática: os lugares de elaboração e de produção cultural (Carl Schorske em Viena, fim de século), os momentos de apropriação e de recepção de autores estrangeiros (Elias, Weber, Freud, Hegel), e a complexidade mesmo do ato de leitura (Menocchio de Carlo Ginzburg).
Outra variante da história intelectual, a história dos conceitos, em suas diferentes versões (a escola de Cambridge, a semântica histórica com Reinhart Kosseleck e a história conceitual da política, com Pierre Rosanvallon), situando-se nas margens de uma história da epistemologia, da filosofia política e da disciplina história, é tributária de contextos intelectuais diversos. François Dosse percorre esses diferentes campos de investigação, mostrando como a partir de um corpus de textos já tidos por esgotados (os textos de Maquiavel, por exemplo), “a posição enunciativa e a natureza dos destinatários dos mesmos sugere profundos deslocamentos de sentido”. Significativa da guinada hermenêutica, essa abordagem questiona o pensar e o agir nas sociedades passadas e presentes.
Se, como mostra o autor, a escola de Cambridge é passível de críticas em razão de um certo historicismo, o desenvolvimento mesmo da história conceitual no mundo anglo-saxão, graças às contribuições da “linguistic turn”, contribuiu, substancialmente, para uma abordagem mais filosófica da história política. A história intelectual, por exemplo, ilustrada através dos trabalhos de Rosanvallon sobre a democracia, apresenta-se sob a forma de uma “história conceitual do político”. François Dosse destaca a importância particular da “begriffsgeschichte”, pelo viés dos trabalhos de Reinhart Kosseleck e da sua difusão nos países ocidentais. Aliás, a influência dessa corrente intelectual se manifesta, atualmente, através da formação de uma rede internacional de pesquisadores.
Domínio incerto e hesitante, a história intelectual, como conclui o autor, pressionada entre uma lógica diacrônica da história das idéias e sincrônica das cartografias e dos cortes socioculturais, reveste uma “indeterminação epistemológica”. Para os leitores que conhecem os trabalhos anteriores desse autor em história intelectual, essa conclusão, no entanto, parece insuficiente, uma vez que ela exclui toda tentativa de questionamento metodológico e epistemológico. Apesar de se tratar de um livro de referência em história intelectual, a “marche des idées”, talvez pela sua própria proposta, não responde às expectativas daqueles que a praticam e que buscam, através dela, novas respostas.
Helenice Rodrigues da Silva – Résidence Les Récollets, 150-154, rue du Faubourg Saint Martin, 75010 Paris, Tel: 00 – 33 153262149.
[IF]Experiências Urbanas / Revista Brasileira de História / 2003
A Revista Brasileira de História, a RBH da Anpuh, chega ao seu 46° número cada vez mais fortalecida pelo prestígio que os historiadores brasileiros lhe atribuem. Ao longo de sua trajetória, já contada em décadas, a RBH publicou centenas de autores nacionais e estrangeiros, contribuindo para a divulgação de temas e teses importantes para a historiografia. A RBH foi, também, dirigida por dezenas de professores universitários que, em suas participações nos Conselhos Editoriais, orientaram a entrega ao público de artigos de excelência científica. O levantamento dos assuntos tratados nesses textos pode apontar, guardadas as limitações relativas, os interesses mais enfocados no período de sua existência. Apenas considerando o início dos anos 90 até os dias atuais, isto é, os 32 últimos números editados, a RBH publicou principalmente dossiês de teoria da história ou historiografia, cerca de 25% do total — o que atesta vivamente que o ofício do historiador, seus métodos e dificuldades, apresentam-se como a preocupação mais constante da comunidade. Espaço pouco inferior ocuparam os dossiês sobre política — nacional, internacional e / ou teórica — indicando a questão do poder como sempre parceira dos caminhos do pensamento. Como temática de época, registrando o encontro com objetos historiográficos menos tradicionais, os assuntos de gênero e família aparecem em terceiro lugar entre os dossiês mais publicados. Mas não se restringem a estes nomeados os temas centrais do período: tratou-se também de ensino da história, de religião, de viagens, de escravidão, de artes, de ciências, de migrações, de história da América etc.
Levando em consideração essa distribuição temática que a história do periódico legou, o Conselho Editorial que ora passa a dirigir a RBH, houve por bem reafirmar a conveniência de dar continuidade ao andamento editorial já consolidado, acrescentando como parâmetros a atenção com problemas sugeridos pela conjuntura e a cobertura de dossiês / temáticas ainda não aquinhoados pelos números anteriores.
É nesse sentido que apresentamos o número que está em suas mãos. Nele concentram-se artigos sobre Experiências Urbanas, justamente numa circunstância social em que tanto nossas vidas nas pequenas ou médias aglomerações humanas, como nas metrópoles globais, merecem reflexão e cuidado especiais. O pensamento histórico que o dossiê atual oferece, percorre caminhos variados que vão de Campina Grande ao Rio de Janeiro, de São Paulo a Piracicaba ou São José do Rio Preto, passando pela cidade de Goiás, tudo dentro de um registro temporal significativo: a passagem do século XIX ao XX, incluindo sua primeira metade. Um espaço de tempo caracterizado pela criação das condições para o Brasil atual. Esses estudos da vida urbana atravessam temas variados: Mônica Schpun esquadrinha a São Paulo de Mário de Andrade, para captar uma sensibilidade talvez perdida; Fábio Sousa estuda a atribulada reforma urbana de Campina Grande, para entender a teatralização do poder que acompanhou “o advento das cidades modernas no Brasil”; André L. Paulillo avalia “as relações que a administração pública estabeleceu com saberes escolares e práticas educativas”, no Rio de Janeiro dos anos 20 do século passado; Graciela Oliver e Tamás Szmrecsányi examinam o “processo de ressurgimento da agroindústria canavieira paulista”, lançando luzes sobre o crescimento daquela atividade num período em que a crise do café ocupava as atenções; Maria da Conceição Silva discute a atuação do “clero no sentido de normalizar o comportamento das pessoas por meio da celebração do casamento na cidade de Goiás”; e Airton Cavenaghi apresenta o cotidiano da São José do Rio Preto de seus primórdios, por meio da análise de fotografias.
Os artigos que se seguem ao dossiê ocupam-se de diplomacia (Eugênio V. Garcia), política (Sandro Coelho), historiografia (José A. Cavenaghi), colonização (André F. Rodrigues) e violência (Myrian S. dos Santos), formando um verdadeiro panorama diversificado dos interesses historiográficos contemporâneos. Entre si, no entanto — e somados aos artigos componentes do dossiê — configuram um número da RBH integralmente dedicado ao estudo da história ou historiografia brasileiras.
O próximo número desta revista, que circulará em meados de 2004, cuidará do Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), numa tentativa, uma vez mais, de abrir suas páginas para o entendimento da cultura política que cercou a relação entre democracia e autoritarismo, entre vida pública e privada, naquela turbulenta quadra da vida nacional. Os números seguintes tratarão da produção e divulgação de saberes históricos e pedagógicos, e da relação entre história e manifestações visuais, incluindo o estudo das fontes concernentes.
A definição dessas temáticas, a partir da análise dos pregressos dossiês, acompanha a reformulação da identidade visual da RBH, que agora ganha uma personalidade única e reconhecível para o período de vigência do atual Conselho Editorial.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003. Acessar publicação original [DR]
Migração Portuguesa no Brasil – LOBO (RBH)
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Migração Portuguesa no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2001, 367 pp. Resenha de: SZMRECSÁNYI, Tamás. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, july 2003.
As migrações internacionais permanentes constituem processos históricos cuja duração via de regra ultrapassa o prazo de uma geração para se completar. Este axioma foi devidamente assimilado por Eulália Lobo em seu belo livro sobre a imigração de portugueses no Brasil durante o período republicano. Apesar da singeleza do seu título, esta obra traz uma valiosa contribuição não apenas ao estudo desse tema específico, mas também à compreensão das numerosas relações econômicas, culturais e políticas existentes entre os dois países.
Trata-se da versão revista e ampliada de um estudo de História Social, originalmente publicado na Espanha em 1994, e cujo conteúdo faz jus ao merecido renome da autora. Seus três capítulos, de tamanhos desiguais, seguem esquemas parecidos e se referem a três fases distintas do mesmo processo. Todos se iniciam por um retrospecto histórico, econômico e demográfico, seguido por análises de interação política e cultural dos dois países, abrangendo a literatura, as artes e as ciências tanto do Brasil como de Portugal. Seus textos são complementados por numerosas tabelas estatísticas e por uma sugestiva iconografia.
O maior, e talvez o melhor de todos os capítulos é o primeiro, relativo à fase de ascensão das migrações portuguesas para o Brasil no período republicano, a qual se estende do final dos anos 1880 ao início da quarta década do século XX. Nele figura um pormenorizado exame dos fatores de expulsão e de atração que condicionaram os referidos movimentos migratórios: de um lado, a crise social ocasionada por más colheitas e pela concentração fundiária em Portugal, acrescida pelo desejo de fugir do serviço militar daquele país; e de outro, o deslanche do desenvolvimento essencialmente capitalista da economia brasileira depois da Abolição.
Até a época da Primeira Guerra Mundial, esse desenvolvimento manteve-se centrado na cidade do Rio de Janeiro, destino final da maioria dos imigrantes portugueses então aportados no País. Os principais atrativos do Brasil situavam-se na identidade de língua e de religião, enquanto os do Rio de Janeiro diziam respeito a uma ampla oferta de empregos, freqüentemente junto a empresas pertencentes a compatriotas ou seus descendentes, assim como aos salários que aí eram pagos, na época superiores aos de Portugal e de outras regiões brasileiras.
Seguem-se a estas considerações algumas interessantes análises da participação lusa no capital comercial, industrial, financeiro e imobiliário das principais cidades do País, entre o final de século XIX e o início da década de 1930, bem como do peso da mão-de-obra de origem portuguesa na força de trabalho dos setores secundário e terciário da economia brasileira durante o mesmo período. Em ambos os casos, as melhores informações referem-se ao Rio de Janeiro, e são como um todo bastante representativas. Por meio delas, fica-se sabendo da ampla inserção de empresários portugueses não apenas no comércio, mas também na indústria —notadamente de tecidos, nos serviços de transporte urbano, na construção civil e nos bancos, bem como das grandes exportações de gêneros alimentícios de Portugal para o Brasil antes de 1914. Por outro lado, imigrantes portugueses e seus descendentes constituem uma parte ponderável da mão-de-obra dos mesmos setores e ramos, e ainda da estiva portuária do Rio de Janeiro e de Santos. Por isso mesmo tiveram uma ampla participação nas lutas sociais da época.
Mas a maior parte deste capítulo, como dos seguintes, é dedicada ao exame da interação cultural luso-brasileira em áreas como a literatura, o teatro, a cultura popular e operária, a música (erudita e popular), a arquitetura, as artes plásticas e a historiografia, sem esquecer os vários movimentos associativos dedicados à congregação e integração dos migrantes de determinadas regiões portuguesas, bem como à assistência social e educacional dos mais carentes. Em todas essas análises, por vezes muito longas e talvez demasiadamente circunstanciadas, a autora dá provas de um amplo domínio das fontes que utiliza, e também de uma diversificada erudição e de uma sensibilidade estética bastante desenvolvida. Nelas aparecem com destaque as convergências e divergências das literaturas dos dois países, a influência portuguesa nos diversos gêneros e autores do teatro brasileiro, as cantigas e danças populares de origem ibérica, a atuação dos arquitetos Luis de Morais Júnior, no Rio de Janeiro, e Ricardo Severo de Fonseca, em São Paulo, assim como as contribuições do caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro e do historiador João Lúcio de Azevedo.
No segundo capítulo, mais curto que os outros dois, a autora examina a fase de declínio da imigração portuguesa para o Brasil, que ocorreu entre 1930 e 1950. Um declínio devido em boa parte à crise econômica internacional dos anos trinta e ao transcurso da Segunda Guerra Mundial, e que foi acompanhado de acentuada diminuição do comércio entre os dois países. Mas que não impediu que as relações culturais entre eles acabassem sendo reforçadas, tanto por força de certas iniciativas governamentais de parte a parte, como devido à presença no Brasil de importantes intelectuais portugueses fugitivos do salazarismo.
Entre as iniciativas governamentais, destacou-se a inauguração em 1935 do Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura em Lisboa, seguida pela realização no Itamaraty em 1937 de um ciclo de conferências sobre as relações entre os dois países. E no final desse último ano foi inaugurada a Sala Brasil, que mais tarde se transformaria no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra. Também tiveram destaque as negociações intergovernamentais que acabaram levando à Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Já no âmbito puramente intelectual, não podem deixar de ser mencionadas as atividades e obras da famosa pintora Maria Helena Vieira da Silva e do historiador Jaime Cortesão. No campo da literatura marcaram época os romances sobre emigrantes portugueses no Brasil do escritor Ferreira de Castro, e nas ciências sociais deu-se o surgimento do luso- tropicalismo de Gilberto Freyre.
Finalmente, no terceiro capítulo, também bastante longo devido às suas numerosas tabelas e à presença de três anexos, Eulalia Lobo analisa a fase mais recente das migrações de portugueses ao Brasil, bem como a evolução das relações econômicas e culturais ente os dois países a partir do término da Segunda Guerra Mundial. Tanto estas relações como a retomada da emigração portuguesa para o nosso país foram intensamente condicionadas pela evolução dos regimes políticos respectivos, que só voltariam a ser convergentes na segunda metade da década de 1980. Até então, predominaram em Portugal as lutas contra a ditadura salazarista e as guerras de independência das colônias africanas, enquanto no Brasil os dezoito anos de democracia liberal do pós-guerra foram seguidos por duas décadas de regime militar.
Dentro desse contexto, as relações econômicas mantiveram-se em nível baixo, ao contrário das relações culturais, que continuaram intensas, e da emigração portuguesa (e depois também afro-portuguesa) para o Brasil, a qual voltou a ser crescente nos anos sessenta e setenta. Mais tarde, com o ingresso de Portugal na Comunidade Européia, e com a prolongada crise econômica brasileira, iniciou-se um fluxo até então inédito, e cada vez mais intenso, em sentido contrário.
No plano cultural, merece ser destacada a presença e participação literárias de expoentes como Jorge de Sena e Adolfo Casis Monteiro, assim como o surgimento da obra e as importantes visitas de José Saramago. Enquanto o intercâmbio no campo teatral e nos meios de comunicação social sofria os efeitos da censura e das pressões políticas dos regimes autoritários de ambos os países, foram se consolidando e intensificando os contatos científicos e tecnológicos, particularmente com o LENNEC, o famoso Laboratório Nacional de Engenharia Civil de Lisboa.
Nas suas conclusões, muito sucintas e lamentavelmente ocultas entre os anexos do terceiro capítulo e a bibliografia geral, a autora expõe modestamente os principais resultados alcançados pelo seu trabalho. Esses resultados são bastante significativos, não apenas por terem ampliado nossos conhecimentos a respeito da imigração portuguesa no Brasil durante o período republicano, sobre a inserção destes migrantes na sociedade brasileira, bem como as contribuições econômicas e culturais por eles trazidas e/ou disseminadas, mas também por terem aberto o caminho para novas linhas de investigação e para o uso de fontes até agora pouco utilizadas.
De um modo geral, o trabalho editorial do livro poderia ter sido melhor cuidado. A cronologia e as abreviaturas deveriam figurar no início e não no final da obra. As tabelas menores poderiam ter sido inseridas no texto como ilustrações da argumentação desenvolvida. A fonte do primeiro anexo não está datada; no segundo não consta qualquer fonte; o terceiro, muito pequeno, poderia também ter sido inserido no texto respectivo; e o quarto parece estar completamente deslocado, dizendo respeito ao primeiro capítulo, e não ao terceiro. Trata-se de deficiências que não chegam a diminuir o valor do livro, apenas contribuindo para dificultar sua leitura. Vamos torcer para que possam ser sanadas numa terceira e definitiva edição da obra.
Tamás Szmrecsányi – Instituto de Geociências da UNICAMP.
[IF]Os protagonistas anônimos da História: micro-história – VAINFAS (RBH)
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 115pp. Resenha de: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, july 2003.
No Brasil, o ensino universitário de história ainda carece de boa bibliografia teórica produzida por autores nacionais, em que pese o número crescente de traduções de especialistas estrangeiros. A boa repercussão alcançada pelo livro Domínios da História (org. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, Campus, 1997), certamente deve ter estimulado o professor Ronaldo Vainfas a fazer uma nova incursão na área de teoria e metodologia da história. Melhor dizendo, a aprofundar algumas reflexões que deixara encaminhadas ao concluir aquela obra, que nos últimos anos tornou-se referência no ensino da disciplina. Refiro-me ao recém-lançado Os protagonistas anônimos da História: micro-história, onde Vainfas examina esse gênero historiográfico surgido na Itália, a propósito da coleção dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988. Vale lembrar que a micro-história opera com escala de observação reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. Neste sentido, contempla, sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas — referidas geográfica ou sociologicamente —, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão. O certo é que essa corrente historiográfica foi muito mal compreendida, ora tomada como história cultural, ora confundida com a história das mentalidades e com a história do cotidiano. Ou, então, percebida como expressão típica de uma história descritiva, de viés marcadamente antropológico, que renunciou ao estatuto científico da disciplina, invadiu o território da literatura, rompendo de vez as fronteiras da narrativa histórica com o ficcional. Não seria exagero afirmar que ainda hoje a micro-história carrega o estigma de história menor, atacada principalmente pelos defensores dos modelos macrossociais de análise. Mas, como afirma Hans Medick, rebatendo tais críticas, se small is beautiful isto não significa banalizar a história, nem desconectá-la de contextos mais amplos.
Ronaldo Vainfas dispõe-se a desfazer essa intrincada teia de equívocos. E, de fato, alcança seu intento. Assim, no primeiro capítulo, apresenta um panorama da trajetória dos estudos históricos no século XX, detendo-se especialmente na historiografia francesa tributária do movimento de Annales. Dialoga com este quadro conceitual para demonstrar o que a micro-história não é, evidenciando as razões pelas quais a prática microanalítica não pode ser definida apenas em função dos temas de pesquisa, mas sim em relação a seus objetos e às metodologias por ela utilizadas. Desfeito didaticamente o imbroglio, o autor parte para identificar O berço da micro-história (capítulo 2), mostrando as linhagens dessa vertente historiográfica praticada por historiadores italianos, franceses, ingleses e norte-americanos, com ênfase no papel desempenhado pelos italianos e na importância da revista Quaderni Storici e da mencionada coleção Microstorie. Resgatadas as origens teóricas, o autor parte para exemplos concretos. No capítulo terceiro — A micro-história em cena, resume alguns enredos de livros emblemáticos do gênero, a começar pelo clássico O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, seguindo-se de O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zenon Davis; Atos impuros, de Judith Brown, e A herança imaterial, de Geovannni Levi. Essas breves sínteses servem de mote para o exame do modo como se opera a narrativa microanalítica e a discussão das fronteiras que a separam da narrativa ficcional. Em seguida, no capítulo quarto, sugestivamente denominado A micro-história nos bastidores, privilegia o estudo do aparato conceitual empregado pela micro-história, a escolha de temas, a problemática da redução de escala na descrição densa, bem como a delimitação dos objetos de estudo em termos de espaço e de temporalidade. Finalmente, à guisa de conclusão, o professor Vainfas aponta os contrastes entre as abordagens macrossociais e as microanalíticas, discute as possibilidades e os limites de compatibilização entre ambas, oferecendo ainda uma extensa bibliografia comentada, com tudo já que se publicou no País a respeito da microanálise, inclusive trabalhos de historiadores brasileiros que fizeram incursões no gênero.
Longe de fazer proselitismo em defesa do gênero, Vainfas aproxima-se dos encaminhamentos propostos pela historiadora norte-americana Natalie Zenon Davis, um dos ícones da micro-história. Segundo Davis, é inquestionável a natureza complementar dos dois tipos de análise. A tarefa que se impõe aos estudiosos consiste, pois, em investigar métodos de interpretação e de narrativa que possam dar conta no texto escrito do entrecruzamento e das tensões entre o pequeno e o grande, entre o social e o cultural. Ou, que venham a explorar as conexões possíveis entre esses dois níveis de experiência historiográfica, conforme sugere Georg Iggers na sua mais recente contribuição, Historiography in the twentieth century: from scientific objectivity to the postmodern challenge. Seja como for, estudantes e pesquisadores, sem dúvida, irão se beneficiar da leitura dessa obra assentada em sólida argumentação teórica, mas de exposição agradável, repleta de exemplos e de comentários bem-humorados.
Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[IF]O Ofício do Historiador / Revista Brasileira de História / 2003
O Ofício do Historiador, denominação cara a Marc Bloch, foi o título escolhido para o dossiê do último número da RBH preparado pelo atual Conselho Editorial. Desta vez, a proposta do dossiê não estabelece limites tão rígidos e, de várias maneiras, alcança os demais artigos, conferindo maior homogeneidade a todo o volume.
Este número tem outras peculiaridades. Aproxima gerações, pois ao lado de autores seniors — como Ulpiano Bezerra de Meneses – estão jovens pesquisadores em início de carreira — como Rebeca Gontijo ou Fabio Duarte Joly. Atravessa fronteiras geográficas, colocando ao lado de historiadores brasileiros, quatro outros que trabalham no exterior e que prepararam artigos especialmente para a revista: dois no México — Carlo A. Aguirre Rojas e Regina A. Crespo; um na Argentina — Hernán Sorgentini; e outro na Alemanha — Débora B. Alves. Este é um claro sinal do quanto a RBH se firmou como pólo de qualidade atraindo a atenção para além dos limites nacionais.
Os artigos que compõem o dossiê apresentam abordagens de natureza teórica ou historiográfica. O de Ulpiano Bezerra de Meneses, que abre o número, dialoga com a História da Arte, a Antropologia Visual, a Sociologia Visual, propondo “algumas premissas para a consolidação de uma História Visual”. Em seguida, o de Diana Gonçalves Vidal e Luciano Mendes de Faria Filho analisa a constituição do campo da História da Educação no Brasil e da construção de uma certa identidade, ainda que multifacetada e plural, do historiador da educação. Os textos de Carlos A. Aguirre e de Hernán Sorgentini refletem criticamente sobre a relação entre produção do conhecimento histórico, memória e tradição, detendo-se ambos no trabalho de Carlo Ginzburg. Rebeca Gontijo escolheu estudar Manoel Bomfim com a intenção de captar este “pensador da História” na Primeira República brasileira. As fontes para o historiador são discutidas por Débora B. Alves que indica os problemas particulares suscitados por cartas de imigrantes alemães escritas nas “distantes” fazendas fluminenses e publicadas em jornais alemães na metade do século XIX.
Os artigos que se seguem também nos conduzem ao cruzamento de outras fronteiras. O texto de Regina Crespo estuda as viagens ao Brasil de dois intelectuais mexicanos, José Vasconcelos e Alfonso Reyes que, depois da “descoberta” da “outra” América Latina, estabelecem rotas de aproximação entre os dois países. Beatriz Domingues reflete sobre os escritos de dois jesuítas mexicanos, Venegas e Clavijero, a respeito da “longínqua e árida” Baixa Califórnia, no século XVIII, que nos levam a dimensionar encontros culturais e religiosos muito particulares. Indicando como os temas e questões da História Antiga continuam controversos, Fábio Joly dialoga e discorda da historiografia sobre Columela, mostrando que a perspectiva desse autor em torno da organização do trabalho escravo na propriedade rural na Roma imperial se apóia não apenas em critérios econômicos mas também políticos.
Entrando no espaço brasileiro, Marcus Carvalho retoma a questão da atuação de agentes sociais (no caso provenientes das camadas subalternas) e suas relações com a haute spolitique partidária, num momento histórico conturbado, a Insurreição Praieira de 1848. No período contemporâneo, Joana Pedro, ao estudar a memória das mulheres sobre sua vivência com os contraceptivos, proporciona o encontro da experiência privada de cada uma delas com o espaço eminentemente político das propostas de planejamento populacional em nosso país. Fechando este número, uma importante entrevista de Jacob Gorender a Waldir Rampinelli, sobre o PCB; e as resenhas que, como sempre, contribuem para uma profícua discussão historiográfica.
O Conselho Editorial, com muito pesar, recebeu a notícia do falecimento da grande historiadora brasileira, Alice Piffer Canabrava, ex-presidente da ANPUH e fundadora da Revista Brasileira de História. Assim, decidiu prestar sua homenagem a ela, dedicando-lhe este número da revista.
In Memoriam
Alice Piffer Canabrava (1911-2003)
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, jul, 2003. Acessar publicação original [DR]
Revista Brasileira de História | São Paulo, v.17, n.34, 1997 / v.23, n.45, 2003.
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.23 n.45 São Paulo jul. 2003
Apresentação
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Dossiê
- Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares | Meneses, Ulpiano T. Bezerra de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- História da educação no Brasil: a constituição histórica do campo (1880-1970) | Vidal, Diana Gonçalves; Faria Filho, Luciano Mendes de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- El queso y los gusanos: un modelo de historia critica para el analisis de las culturas subalternas | Aguirre Rojas, Carlos Antonio | · resumo em Espanhol | Inglês | · texto em Espanhol | · Espanhol ( pdf )
- Reflexión sobre la memoria y autorreflexión de la historia | Sorgentini, Hernán | · resumo em Espanhol | Inglês | · texto em Espanhol | · Espanhol ( pdf )
- Manoel Bomfim: “pensador da história” na Primeira República | Gontijo, Rebeca | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cartas de imigrantes como fonte para o historiador: Rio de Janeiro Turíngia (1852-1853) | Alves, Débora Bendocchi | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Cultura e política: José Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-1938) | Crespo, Regina Aída | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os nomes da revolução: lideranças populares na Insurreição Praieira, Recife, 1848-1849 | Carvalho, Marcus J. M. de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração | Pedro, Joana Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Política missionária e secular em escritos jesuíticos sobre a Baixa Califórnia no século XVIII | Domingues, Beatriz Helena | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Espaço, poder e escravidão no De Re Rustica de Columela | Joly, Fábio Duarte | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Entrevista
- O PCB e sua atuação nos anos 50: Waldir José Rampinelli entrevista Jacob Gorender | | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Migração portuguesa no Brasil | Szmrecsányi, Tamás | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os protagonistas anônimos da história: micro-história | Guimarães, Lucia Maria Paschoal | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. Bras. Hist. v.22 n.44 São Paulo 2002
Apresentação
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Dossiê
- Olhares estrangeiros: viajantes no vale do rio Mucuri | Duarte, Regina Horta | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Grand Tour: uma contribuição à historia do viajar por prazer e por amor à cultura | Salgueiro, Valéria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos | Doré, Andréa | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Histórias (co) movedoras: História oral e estudos de migração | Thomson, Alistair | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os funerais de “anjinho” na literatura de viagem | Vailati, Luiz Lima | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Além do Estado e da ideologia: imigração judaica, Estado-Novo e Segunda Guerra Mundial | Cytrynowicz, Roney | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória | Silva, Helenice Rodrigues da | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A Inconfidência Mineira e Tiradentes vistos pela imprensa: a vitalização dos mitos (1930-1960) | Fonseca, Thais Nívia de Lima e | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria | Rodeghero, Carla Simone | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- América Nuestra: Glauber Rocha e o cinema cubano | Villaça, Mariana Martins | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo | Oliveira, Ricardo de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Raízes do riso. A representação humorística na História brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio | Luca, Tania Regina de | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O pensamento mestiço | Gil, Antonio Carlos Amador | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Antigo regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) | Graça Filho, Afonso de Alencastro | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina | Almeida, Vasni de | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.22 n.43 São Paulo 2002
Apresentação
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Dossiê
- Escrevendo Cartas: Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI | Torres Londoño, Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Tensões entre os Visitadores Eclesiásticos e as Irmandades Negras no Século XVIII Mineiro | Eugênio, Alisson | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Inquisição, religiosidade e transformações culturais: a sinagoga das mulheres e a sobrevivência do judaísmo feminino no Brasil colonial – Nordeste, séculos XVI-XVII | Assis, Angelo Adriano Faria de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Palavra de púlpito e erudição no século XIII: A Legenda aurea de Jacopo de Varazze | Souza, Néri de Almeida | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os pentecostais: entre a fé e a política | Souza, Etiane Caloy Bovkalovski de; Magalhães, Marionilde Dias Brepohl de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Em outra coisa não falavam os pardos, cabras, e crioulos: o “recrutamento” de escravos na guerra da Independência na Bahia | Kraay, Hendrik | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A Cidade Perdida da Bahia: mito e arqueologia no Brasil Império | Langer, Johnni | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Terras Indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850 | Moreira, Vânia Maria Losada | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Sabina das Laranjas: gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular, 1889-1930 | Seigel, Micol; Gomes, Tiago de Melo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Ensino de História e Nação na Propaganda do “Milagre Econômico” | Cerri, Luis Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense – 1889-1928 | Silveira, Anny Jackeline Torres | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O populismo e sua história: debate e crítica | Borges, Vavy Pacheco | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Uma estranha ditadura | Cardoso, Heloisa Helena Pacheco | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Representações: Contribuições a um debate transdisciplinar | Pelegrini, Sandra C. A. | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX | Martinez, Paulo Henrique | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.21 n.42 São Paulo 2001
Apresentação
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Dossiê
- Imágenes marcadas a fuego: representación y memoria de la Shoah | Sánchez Biosca, Vicente | · resumo em Português | Inglês | · texto em Espanhol | · Espanhol ( pdf )
- “A grande Argentina”: um sonho nacionalista para a construção de uma potência na América Latina | Beired, José Luis Bendicho | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções | Junqueira, Mary A. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Uma república entre dois mundos: Inconfidência Mineira, historiografia e temporalidade | Furtado, João Pinto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Almuthasib: considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias | Pereira, Magnus Roberto de Mello | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII | Pijning, Ernst | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Tempos do Recife: representações culturais e configurações urbanas | Pontual, Virgínia | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Urbes industrializada: o modernismo e a paulicéia como ícone da brasilidade | Pinto, Maria Inez Machado Borges | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Quando o teatro tece a trama: apontamentos históricos na dramaturgia de Jorge Andrade | Arantes, Luiz Humberto Martins | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Da senzala ao cortiço : história e literatura em Aluísio Azevedo e João Ubaldo Ribeiro | Dalcastagnè, Regina | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Duas fontes documentais para o estudo dos preços dos escravos no Vale do Paraíba paulista | Marcondes, Renato Leite; Motta, José Flávio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Crítica e crise | Magalhães, Marionilde Dias Brepohl de | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O Mistério do Samba | Gomes, Tiago de Melo | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A pobreza no Satyricon de Petrônio | Vizentin, Marilena | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas | Rodrigues, André Figueiredo | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.21 n.41 São Paulo 2001
Apresentação
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Artigos
- Da estatística política à sociologia estatística. Desenvolvimento e transformações da análise estatística da sociedade (séculos XVII-XIX) | Martin, Olivier | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O nascimento da sociologia na universidade francesa (1880-1914) | Mucchielli, Laurent | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A mesma fé e o mesmo empenho em suas missões científicas e civilizadoras: os museus brasileiros e argentinos do século XIX | Lopes, Maria Margaret | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910-1995) | Castel, Pierre-Henri | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O Deus do progresso: a difusão do cientificismo no movimento operário gaúcho da I República | Schmidt, Benito Bisso | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cultura e tecnologia: a constituição do serviço telegráfico no Brasil | Maciel, Laura Antunes | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Lógicas da antropotecnia: mensuração do homem e bio-sociologia (1860-1920) | Blanckaert, Claude | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A sereia amazônica dos Agassiz: zoologia e racismo na Viagem ao Brasil | Kury, Lorelai B. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Ciência, religião e Ilustração: as academias de ensino dos dissentes racionalistas ingleses no século XVIII | Soares, Luiz Carlos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- De aspecto quase florido. Fotografias em revistas médicas paulistas, 1898-1920 | Silva, James Roberto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Da transmissão hídrica a culicidiana: a febre amarela na sociedade de medicina e cirurgia de São Paulo | Teixeira, Luiz Antônio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Aconteceu, virou manchete | Andrade, Ana Maria Ribeiro de; Cardoso, José Leandro Rocha | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenha
- La maladie de Chagas. Histoire d’un fléau continental | Salomon, Marlon Jeison | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.21 n.40 São Paulo 2001
Apresentação
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Dossiê Estado e Controle Social
- Halbwachs no Collège de France | Mucchielli, Laurent; Pluet-Despatin, Jacqueline | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Minha campanha para o Collège de France | Halbwachs, Maurice | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do Tiradentes | Callari, Cláudia Regina | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Entre Mussolini e Plínio Salgado: o Fascismo italiano, o Integralismo e o problema dos descendentes de italianos no Brasil | Bertonha, João Fábio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Getúlio e a seca: políticas emergenciais na era Vargas | Neves, Frederico de Castro | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Representações cômicas da República no contexto do Getulismo | Flores, Elio Chaves | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Ser marrano em Minas Colonial | Novinsky, Anita | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Profetas e santidades selvagens. Missionários e caraíbas no Brasil colonial | Pompa, Cristina | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Peregrinação, conquista e povoamento. Mito e “realismo desencantado” numa hagiografia medieval portuguesa | Souza, Néri de Almeida | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A terra dos Brasis: um tapete de Flandres jamais visto | Assunção, Paulo de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Crianças à prova da escola: impasses da hereditariedade e a nova pedagogia em Portugal da fronteira entre os séculos XIX e XX | Boto, Carlota | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- América Latina no século XIX: tramas, telas e textos | Funes, Patrícia | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920 | Figueiredo, Aldrin Moura de | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937) | Cytrynowicz, Roney | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio | Rampinelli, Waldir José | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.20 n.39 São Paulo 2000
Apresentação
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Dossiê Brasil, Brasis
- As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era Vargas | Garfield, Seth | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira | Rocha, Antonio Penalves | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Portugal no Brasil: a escrita dos irmãos desavindos | Serpa, Élio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo mercantil da Amérca Portuguesa | Osório, Helen | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro | Morettin, Eduardo Victorio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira | Napolitano, Marcos; Wasserman, Maria Clara | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Retrato de uma ausência: a mídia nos relatos da história política do Brasil | Miguel, Luís Felipe | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- História e música: canção popular e conhecimento histórico | Moraes, José Geraldo Vinci de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Octavio Paz: as trilhas do Labirinto | Rezende, Antonio Paulo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Infância, higiene e saúde na propaganda (usos e abusos nos anos 30 a 50 ) | Brites, Olga | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação | Machado, Maria Helena Pereira Toledo | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850 | Ricci, Magda | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea | Moreira, Maria de Fátima Salum | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.19 n.38 São Paulo 1999
Apresentação
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Dossiê: Identidades/Alteridades
- Cultura marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX) | Rodrigues, Jaime | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- O princípio da fronteira e a fronteira de princípios: filhos ilegítimos em Cuiabá no século XIX | Peraro, Maria Adenir | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A saracura: ritmos sociais e temporalidades da metrópole do café (1890-1920) | Koguruma, Paulo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Para um aprofundamento historiográfico: discutindo o separatismo paulista de 1887 | Adduci, Cássia Chrispiniano | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História | Laville, Christian | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Cultura de massas e representações femininas na paulicéia dos anos 20 | Pinto, Maria Inez Machado Borges | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A criança no Estado Novo: uma leitura na longa duração | Pereira, André Ricardo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A apostasia comunista: a subjetividade como política | Kolleritz, Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Artigos
- Das representações míticas à cultura clerical: as Fadas da Literatura Medieval | Morás, Antonio P.V. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- A escola primária como tema do debate político às vésperas da República | Boto, Carlota | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
- Entre retratos e cadáveres: a fotografia na Guerra do Paraguai | Toral, André Amaral de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português | · Português ( pdf )
Resenhas
- HOMET, Raquel. Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario. | Souza, Néri de Almeida | · texto em Português | · Português ( pdf )
Sumário | Rev. bras. Hist. v.19 n.37 São Paulo Set. 1999
Apresentação
Dossiê: Infância e Adolescência
- Imagens em conflito: infâncias em mudança e o estado de bem-estar social na Suécia. Reflexões sobre o século da criança | Sandin, Bengt | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- O abandono de crianças ou a negação do óbvio | Trindade, Judite Maria Barboza | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Crianças e escolas na passagem do Império para a República | Schueler, Alessandra F. Martinez de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha | Moura, Esmeralda Blanco Bolsonaro de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais e ideológicos da assistência à infância no Brasil | Wadsworth, James E. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A inimputabilidade e a impunidade em São Paulo | Morelli, Ailton José | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Silenciar os inocentes: medidas punitivas para a recuperação de menores em estabelecimentos disciplinares mantidos pelo Estado (1945-1964) | Ertzogue, Marina Haizenreder | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Artigos
- Viagem pelo imaginário do interior feminino | Del Priore, Mary | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Lugares malditos | Pesavento, Sandra Jatahy | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Entre a melancolia e a exaltação: povo e nação na obra de Plínio Salgado | Dutra, Eliana Regina de Freitas | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Anos 1960: Caio Prado Jr. e “A Revolução Brasileira” | Reis, José Carlos | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Novas leituras para antigas lutas: representatividade e organização coletiva entre trabalhadores do ABC Paulista – 1964/1990 | Almeida, Antônio de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Resenhas
- MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da criança abandonada | Venâncio, Renato Pinto | · texto em Português
- WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888) | Moura, Denise | · texto em Português
- GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto | Bertonha, João Fábio | · texto em Português
Sumário | Rev. bras. Hist. v. 18 n. 36 São Paulo 1998
Apresentação
Dossiê 1: Ensino de História: Novos Problemas
- Instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar | Stephanou, Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A CENP e a criação do currículo de História: a descontinuidade de um projeto educacional | Martins, Maria do Carmo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Quando os discursos não se encontram: imaginário do professor de história e a reforma curricular dos anos 80 em São Paulo | Ricci, Claudia Sapag | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Representações e linguagens no ensino de história | Zamboni, Ernesta | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Formação da Alma e do Caráter Nacional: Ensino de História na Era Vargas | Abud, Katia Maria | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- NON DUCOR, DUCO: A ideologia da paulistanidade e a escola | Cerri, Luis Fernando | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Estado Novo: projeto político pedagógico e a construção do saber | Almeida, Maria das Graças Andrade Ataíde de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Ouvindo o Brasil: o ensino de história pelo rádio – décadas de 1930/40 | Dângelo, Newton | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Dossiê 2: Do Império de Portugal ao Império do Brasil
- Centros e periferias no mundo luso-brasileiro,1500-1808 | Russel-Wood, A. J. R. | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro | Bicalho, Maria Fernanda | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios do século XVIII: o processo de sedimentação da elite paulistana | Blaj, Ilana | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822 | Gouvêa, Maria de Fátima Silva | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824 | Carvalho, Marcus J. M. de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A adesão das Câmaras e a figura do Imperador | Souza, Iara Lis Carvalho | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Pátria do cidadão: A concepção de pátria/nação em Frei Caneca | Lyra, Maria de Lourdes Viana | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Resenhas
- MANFREDI, Silvia Maria. Formação Sindical no Brasil: história de uma prática cultural | Rodrigues, Kátia Sousa | · texto em Português
- HORSFALL, Nicholas. La cultura della plebs romana | Funari, Pedro Paulo A | · texto em Português
Sumário | Rev. bras. Hist. v. 18 n. 35 São Paulo 1998
Apresentação
Dossiê: Arte e Linguagens
- Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60) | Contier, Arnaldo Daraya | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate | Napolitano, Marcos; Villaça, Mariana Martins | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Mimetismo e Recriação do Imaginário Medieval em Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e en La Diestra de Dios Padre de Enrique Buenaventura | Queiroz, Tereza Aline Pereira de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Quadros em movimento: O uso das fontes iconográficas no filme Os Bandeirantes (1940), de Humberto Mauro | Morettin, Eduardo Victorio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Ars Anarchica: Arte, Vida e Rebeldia | Norte, Sergio Augusto Queiroz | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Uma Idéia de Metrópole no Século XIX | Azevedo, Ricardo Marques de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- As Artes de um Negócio: no Mundo da Técnica Fotográfica do Século XIX | Grangeiro, Cândido Domingues | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Poemas de mármore: Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi | Migliaccio, Luciano | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Redefinindo o Conceito de Imagem | Fabris, Annateresa | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Artigos
- A Pesquisa sobre Identidade e Cidadania nos EUA: da Nova História Social à Nova História Cultural | Weinstein, Barbara | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros Delitos – São Paulo 1870/1920 | Mazzieiro, João Batista | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Técnica, Trabalho e Natureza na Sociedade Escravista | Araújo, Hermetes Reis de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Deusdedit, Joakim, seus livros e autores | DeNipoti, Cláudio | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Nacionalismos e reforma agrária nos anos 50 | Moreira, Vânia Maria Losada | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Ocupações de Áreas Urbanas em São Paulo: Trajetórias de Vida: Linguagens e Representações | Souza, João Carlos de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Afinal, de que tradição eles estão falando? | Hecker, Alexandre | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Resenhas
- Ide por todo Mundo:A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892. | Almeida, Vasní de | · texto em Português
- O Brasil na América:caracterização da formação brasileira | Iokoi, Zilda Márcia Grícoli | · texto em Português
- Cidade:Os Cantos e os Antros | Moura, Denise A. Soares de | · texto em Português
Sumário | Rev. bras. Hist. v. 17 n. 34 São Paulo 1997
Apresentação
Dossiê: Travessia: Migrações
- Pacto Social e Luta Operária em Schio | Verona, Antonio Folquito | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Familismo e Ética do Trabalho: O Legado dos Imigrantes Italianos para a Cultura Brasileira | Colbari, Antonia | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A Família e o Impacto da Imigração (Curitiba, 1854-1991) | Machado, Cacilda da Silva | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Buenos Aires, Cidade, Política, Cultura | Coggiola, Osvaldo | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Andantes de Novos Rumos: A Vinda de Migrantes Cearenses para Fazendas de Café Paulistas em 1878 | Moura, Denise Ap. Soares de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Uma História Sonhada | Costa, Cléria Botêlho da | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Documento
- Um Visitante do Rio de Janeiro Colonial | França, Jean M. Carvalho | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Artigos
- Os Últimos Carijós: Escravidão Indígena em Minas Gerais: 1711-1725 | Venâncio, Renato Pinto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A Cultura clerical e a folia popular | Gaeta, Maria Aparecida Junqueira Veiga | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no Brasil | Magalhães, Marionilde Dias Brepohl de | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
- Frente Popular, Modernização e Revolução Passiva no Chile | Aggio, Alberto | · resumo em Português | Inglês | · texto em Português
Resenha
- Pólvora y Tintas:Andanças de Bandoleros Anarquistas | Silva Jr, Adhemar Lourenço da | · texto em Português
Entre a história e a liberdade: (Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo) – RAGO (RBH)
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: (Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo). São Paulo: UNESP, 2001. 368 p. Resenha de: LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003.
Margareth Rago teve uma oportunidade raríssima: conversar com Luce Fabbri na casa dela, em Montevidéu. Enquanto a autora italiana (1908-2000) se empenhava em terminar de escrever a biografia de seu pai, Luigi Fabbri (1877-1935), relata à brasileira etapas de sua vida e o desenvolvimento de suas idéias.
Apesar da diferença de aproximadamente 40 anos, a historiadora brasileira e a italiana tinham, como professoras universitárias, um universo de discurso comum. Partilhavam inúmeras idéias e aspirações, não só políticas como educacionais. Encontraram as condições ideais para uma troca produtiva de idéias, raramente atingida em entrevistas comuns.
Assim como a biografia de Luigi Fabbri estava inserida na história do anarquismo europeu, a de Luce insere-se na do anarquismo europeu e sul-americano. Houve, portanto, não apenas a oportunidade de comparar experiências, como também a possibilidade de discutir o processo de trabalho que estavam realizando. As duas recuperavam, através de vida intelectual, uma história de que eram representantes e que tem sido desmerecida, deformada e ocultada pela história dos poderosos.
Para Luce, os instrumentos de trabalho e as fontes provinham de amigos de infância, textos escritos, documentos recolhidos através da vida organizados por critério diversos dos da história oficial. Para Margareth Rago, com um gravador e um computador, bolsas de estudo e visitas sucessivas à casa, à biblioteca e ao arquivo de uma anfitriã erudita, tão interessada no seu, como no trabalho da jovem anarquista.
As duas estavam conscientes de estar revelando aos contemporâneos o sentido da libertação social do anarquismo, que vem sendo desprezado como utopia pré-capitalista e soterrado sob o título de utopias românticas. Esta corrente de elos históricos vem desde Malatesta (1853-1922), que no maior Congresso Anarquista, em Amsterdã, em 1907, já teria apresentado o então jovem Luigi como seu “filho.” Esta, amigo de Malatesta até a morte, encarregou-se de sua biografia. O anti-autoritarismo fundamental do anarquismo, a sua busca de uma liberdade solidária e fraternal como um meio de vida e a rejeição os poderes macros e micros da vida social vêm sendo revelados em inúmeras de suas faces por esses biógrafos sucessivos. E agora, através das línguas italiana, castelhana e portuguesa, pelas duas militantes contemporâneas.
A casa em que Luce nasceu tinha um ambiente de compreensão e liberdade sem imposições externas — nem de opiniões, nem de atitudes, nem de religiões. Eram todos antiautoritários e solidários. Nem sequer o anarquismo lhes foi imposto. O pai explicou aos filhos os seus pensamentos a respeito, pediu-lhes que refletissem sobre isso e decidissem quando se sentissem capazes de fazê-lo. Luce estudou Letras na Universidade de Bolonha e seu irmão tornou-se marceneiro, sem qualquer ingerência em suas vocações, nem apelos aos seus gêneros. O pensamento de cada um era respeitado, o que é comprovado pela contestação que Luce, ainda muito jovem, fez ao pensamento de Malatesta, já figura proclamada do pensamento anarquista.
Nessa casa de uma harmonia invejável, Luce teve contato desde muito cedo com os amigos de seu pai, um professor primário e depois secundário, criador de uma Biblioteca popular para os operários, por volta de 1917. Esses contatos constituíram um outro perfil de educação, além da educação formal pequeno-burguesa, e revelou a sua vocação teórica em trabalhos de literatura, história e crítica política que publicava nos jornais criados pelos amigos de seu pai.
O respeito a essa vocação fez com que sua mãe, e depois no Uruguai, seu marido — um operário italiano imigrado e autodidata — a eximissem das “obrigações femininas” da vida privada (com comida e crianças) para que pudesse desenvolver sua vocação. Neste sentido, não passou pelos problemas de gênero que sufocaram inúmeras feministas, proibidas de estudar, proibidas de pensar e de trabalhar fora, consideradas como elementos de Segunda classe. A questão feminina não se apresentava como prioritária em suas reflexões. Considerava que resolvido o problema social, o sexual estava automaticamente decidido. Mais tarde, retomou a questão verificando a possibilidade das mulheres, habituadas a administrar situações não-lucrativas, como cuidar de crianças, de velhos e doentes, serem mais capazes de administrar as associações solidárias.
Sofreu desde a infância as injustiças e os temores provocados pela perseguição política infringida ao seu pai pela polícia fascista. Viver vigiada pela polícia foi uma experiência de toda a vida. Seu pai perdeu o cargo de professor, conquistado em concurso, por não Ter jurado fidelidade ao fascismo italiano, o que ela veio a repetir por ocasião de seu doutoramento na Universidade de Bolonha, com uma tese sobre o geógrafo anarquista Eliseé Reclus.
Perderam assim o direito a ter passaporte, e para sobreviver foram obrigados a sair clandestinamente da Itália, através do auxílio de núcleos anarquista capazes de se articularem sob a truculenta polícia fascista.
Nas mais difíceis condições e deixando para trás o irmão, a família Fabbri emigrou para Montevidéu, onde uma grande população de italianos imigrados os acolheu e auxiliou.
Luigi Fabbri sofreu muito com o afastamento do filho e da terra em que sempre vivera e da qual se afastara obrigado. Luce ainda moça, conhecendo a língua e com um entusiasmo militante, teve condições de aproveitar as características sociais do país a que tinha chegado, com suas associações e ateneus, além de um clima bem mais ameno que o de Bolonha. Ademais, veio a encontrar aí, em sua própria casa, o marido. Trabalhou inicialmente como professora de História, e mais tarde, na Universidade, pôde voltar-se para sua paixão pela literatura italiana, que nunca a abandonara.
Em Montevidéu, formara-se a Comunidad del Sur e uma editora, a Nordan-Comunidad, que funcionavam de acordo com os princípios anarquistas, de autogestão, incorporando a tecnologia contemporânea. A liberdade individual era cultivada como meio de criatividade e desenvolvida por formas educacionais alternativas, através de jornais, panfletos e trabalhos que levavam em conta pensamentos e sentimentos dos componentes da comunidade.
Uma questão mal estudada e que preocupou Luce Fabbri foi o autodidatismo dos trabalhadores. A necessidade de absorver o conhecimento com que ela conviveu desde muito cedo e a sede de instrução que sentiu entre homens e mulheres, sem oportunidade de contar com educação formal, que freqüentavam a Biblioteca Popular, depois de um dia de dez horas de trabalho estafante, estimularam os seus esforços didáticos e suas reflexões dirigidas para a auto-educação. “Caracteres e importância del autodidactismo obrero”, que publicou em Brecha, jornal de Montevidéu, em 1998, foi apenas uma de suas abordagens desse aspecto da educação.
Intercalando as entrevistas com cenas do convívio diário, Margareth Rago nos apresenta uma obra restauradora da confiança no ser humano e em sua capacidade de viver o presente. Embora disfarce as dificuldades da tarefa interlingüística a que se propôs com um entusiasmo contagiante, é possível constatar o esforço exigido para organizar uma bio-bibliografia de tais proporções e de tal conteúdo.
Mostra claramente como a idéia de anarquismo não deve ser pensada como ponto fixo ao qual se deve chegar, mas como um caminho a seguir, como Luce escreveu em 1952, em La Strada. Esse caminho que Luce continuou a percorrer pela vida afora, sempre preocupada em inventar um presente que permitisse a descoberta e a criação de novas alternativas. O conhecimento do passado e das tradições nos é necessário como solo onde é possível enraizar-se e fortalecer-se, para politizar constantemente as palavras e reconhecer o seu poder e a magia da produção poética por sua capacidade criadora. Ao trabalhar sobre a reforma do secundário, insistiu no ensino da língua castelhana em todos os graus, como o grande instrumento de comunicação e congraçamento.
Escrito como tese para obtenção do título de livre-docência, ele deve ser lido mais como um ato de militância e de esperança no momento presente.
Miriam Lifchitz Moreira Leite – Universidade de São Paulo.
[IF]E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos – NEGRO; SILVA (RBH)
NEGRO, A. L.; SILVA, S. (orgs.) E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. Resenha de: SECRETO, María Verónica. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003.
“Mentes que anseiam por um platonismo asseado logo se tornam impacientes com a história real.”
E.P. Thompson.
Peculiaridades dos ingleses é mais do que uma tradução. Na epígrafe, Christopher Hill diz sobre E. P. Thompson: “sua influência mundial sobre os estudantes de história tem sido incalculável“. Nenhuma frase ilustraria melhor o significado deste livro. Uma versão “doméstica” da Unicamp circulava faz alguns anos por iniciativa dos tradutores, quando realizavam o mestrado em história da Unicamp. Tratava-se de um texto para fins didáticos e de estrita circulação interna. Naquela versão antecipou-se a realização de um artigo de Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro sobre Thompson. Este viu-se concretizado no artigo que integra a parte introdutória da coletânea em questão, sendo intitulado “As peculiaridades de E. P. Thompson,” (e que também traz a autoria de Paulo Fontes). Previa-se a tradução de “Folclore, antropologia e história social,” igualmente incluído junto com “Nota sobre ‘As peculiaridades dos ingleses,'” “A história vista de baixo,” “Modos de dominação e revolução na Inglaterra” e “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'”
O artigo de Sérgio Silva “Thompson, Marx, os marxistas e os outros,” e o de Hobsbawm, “E. P. Thompson” (este último escrito por ocasião de sua morte) complementam essa parte introdutória.
Historiador, socialista, poeta, ativista, orador, escritor, marcado pela sua origem, pela tradição e pelo critério de lealdade, são algumas das adjetivações que Eric Hobsbawm dedica a Thompson.
Entre os adjetivos adjudicados por Hobsbawm talvez tenha esquecido o de empirista. “Peculiaridades de E.P. Thompson” inicia com uma epígrafe do próprio Thompson, fortemente marcado por sua negação das filosofias da história ou das visões teleológicas. Supondo que a história seja um túnel por onde corre um trem expresso rumo a uma planície ensolarada, e no qual vivem gerações de passageiros que nascem e morrem sem ver a luz, o interesse do historiador deverá centrar-se na qualidade de vida, no sofrimento e satisfações daqueles que vivem e morrem nesse tempo não redimido; escreveu…
Poderíamos resumir as peculiaridades inglesas com uma frase do autor: “aconteceu de um jeito na França e de outro na Inglaterra”. A comparação surge no contexto do debate em que é produzido o artigo que denomina a coletânea “As peculiaridades dos ingleses.” Três artigos representantes da nova corrente da New Left Review (dentro da tendência iniciada na década de 1960) são o marco da construção de Thompson: “Origins of the present crisis” de Perry Anderson; “The British political elite” e “The anatomy of the Labour Party,” de Tom Nairn. Quando observada a partir da perspectiva francesa, a história inglesa apresentaria três importantes falhas: 1 – caráter prematuro e incompleto da revolução do século XVII. Conseqüentemente, a burguesia industrial não conseguiu obter a hegemonia mantendo uma relação simbiótica com a aristocracia terra-tenente; 2 – esta revolução do XVII foi impura porque impregnada de questões religiosas. A burguesia satisfez-se com a “ideologia do empirismo,” pela qual o legado intelectual da revolução teria sido quase nulo. Por último, uma revolução burguesa prematura deu lugar a um, outrossim, prematuro movimento da classe trabalhadora. O marxismo chegou tarde para esses trabalhadores, enquanto em Outros Países o marxismo arrebatou a classe trabalhadora.
Para responder a estes argumentos, Thompson entra num tema mais do que clássico: as origens e a natureza do capitalismo inglês.
Analisando essas origens, Anderson e Nairn não podem aceitar a noção de uma classe agrária rentier ou empresarial como uma verdadeira burguesia. Thompson recorre para resolver esta questão ao próprio Marx, que trata largamente do capitalismo agrário e do farmer como um capitalista industrial. O que houve no século XVIII, diz Thompson, foi uma redefinição capitalista do estatuto básico da propriedade, bem como da racionalidade da produção e das relações produtivas. Com um tom irônico, Thompson diz que é impossível compreender as origens do capitalismo inglês se esquadrinhamos as “províncias atrasadas” com olhos parisienses.
Em meados do século XVIII, Thompson localiza um momento chave da transição quando cada vez mais integrantes da gentry deixaram de se ver como beneficiários de rendas e benefícios estáveis, e passaram para um papel mais agressivo em busca de lucro, seguindo a lógica de receitas crescentes. Detalhe relevante, o autor não deixa de reparar que a revogação da economia moral não foi obra da burguesia industrial, mas dos interesses agrários.
Podemos voltar àquela frase “aconteceu de um jeito na França e de outro jeito na Inglaterra” porque Thompson nos lembra que a mistura capitalista-agrária inglesa foi excepcional, e se não há lugar para esta no modelo, o que deve ser mudado é o modelo. Segundo o autor, o que incomoda Anderson e Nairn é a passagem do capitalismo agrário e mercantil do XVIII para o capitalismo industrial do século XIX.
A Revolução Francesa não foi típica. Thompson se opõe ao modelo que concentra a atenção sobre um episódio dramático, “A” revolução, que se constitui em tipo ideal.
CIÊNCIAS NATURAIS, ECONOMIA POLÍTICA E LINGUAGEM EMPÍRICA
Como tínhamos adiantado, uma das caracerísticas da via inglesa, segundo Anderson e Nairn, foi o “empirismo cego”. A burguesia inglesa não teria transmitido impulsos de libertação à classe trabalhadora, nem valores revolucionários, só teria transmitido germes mortais do utilitarismo.
Conseqüência do que “realmente aconteceu” — o diferencial thompsoniano — a Revolução Inglesa foi disputada em termos religiosos porque a religião importava. Anderson e Nairn, diz Thompson, prefeririam que a Revolução tivesse ocorrido não em torno da religião, mas contra qualquer religião, desprezando o fato de que o protestantismo permitiu a expansão do racionalismo. Outro fato: não existia um enclave intelectual independente, mas uma multiplicação de enclaves intelectuais. Na Inglaterra de final do século XVIII e no XIX havia uma forte tradição de dissidência. Esta tradição não seria capaz de gerar um Marx, mas sem ela Marx não teria escrito O Capital. Esta tradição ainda foi capaz de gerar um Darwin. Podemos lembrar que quando o capitão Fitz Roy contatou Darwin para o acompanhar na expedição científica, o fez com o intuito de que o jovem cientista demonstrasse a existência do dilúvio e sua universalidade. As provas lhe ditaram o contrário. Darwin é, segundo Thompson, o resultado de três séculos de cientistas naturais britânicos e, em questão de décadas, foram postos à disposição do público conhecimentos que até então estiveram vedados. O conhecimento que “deveria” ter sido arrancado das mãos do padres e os enunciados de Darwin “deveriam” ter gerado uma grande crise, mas não aconteceu assim, entre outras coisas porque Darwin lançou sua teoria da evolução ante um público protestante e pós-baconiano.
Outras duas heranças ideológicas da revolução são salientadas por Thompson para contrapor àquela do utilitarismo denunciado por Nairn e Anderson: a tradição democrático-burguesa e a economia político-capitalista, esta última decorrente das limitações que a teoria mercantilista impunha a agricultores e manufatureiros. “Bacon expeliu Deus das Ciências Naturais. Adam Smith expeliu-O da teoria econômica.”(127) Foi esta contribuição que fez com que a burguesia industrial não se interessasse por teoria política: esta não importava. Thompson pergunta-se: Como ignorar este dado quando Marx dedicou a obra de sua vida para derrubar essa teoria de Smith?
Por todos os argumentos anteriores, Thompson nega a existência de uma ideologia empírica, embora não negue a importância do idioma empírico que tem sustentado o realismo do romance inglês e tem servido às Ciências Naturais.
MODELOS, METÁFORA E MOVIMENTO ECONÔMICO
Sobre os modelos como metáfora do processo histórico, diz que a história não se torna história até que não haja um modelo, já que “tudo o que aconteceu” não pode ser apreendido. Porém o modelo não deve condicionar a seleção das evidências. O problema para Thompson não está em adotar um modelo, mas na metáfora escolhida pelo marxismo para exprimir a relação entre ser social e consciência social: a metáfora base—superestrutura leva ao esquematismo e ao reducionismo. O desafio é encontrar um modelo que abarque a dialética humana, no qual a história não apareça de maneira voluntariosa nem fortuita, nem determinada.
Apresenta-se o problema de como entender o movimento econômico. Evidentemente que descarta a possibilidade de causação última. Thompson re-significa o termo econômico, afastando-o da representação usual, mas não a única, de econômico como forças produtivas e relações produtivas e indica o caminho hoje percorrido por sociólogos e antropólogos de entrelaçamentos das relações econômicas e não-econômicas das sociedades; pelo que é perigoso pensarmos num movimento econômico como oposto a um movimento cultural e moral. Caracterizando William Morris como exemplo, quando este escreveu sobre a “baixeza moral inata” do sistema capitalista o fez pensando no capitalismo como relações fundadas em formas de exploração que eram simultaneamente econômicas, morais e culturais. Por um momento se permite pensar que “base” não seja uma metáfora inadequada, mas, ainda assim, teríamos que entendê-la como não apenas econômica; mas cultural, historicamente constituída (embora este fato possa ser descrito em linhas gerais como econômico).
Composta com “os outros artigos”, a segunda parte da coletânea apresenta:
1) “A história Vista de Baixo”: trata-se de um estado da questão sobre a história social britânica; sempre nos termos das “peculiaridades do arquipélago”, diferente dos países com tradições revolucionárias ou populistas (nos quais a retórica da democracia teria saturado suas historiografias).
2) “Modos de dominação e revoluções na Inglaterra.” Novamente o termo de comparação é a França. Trata-se de uma crítica ao modelo de evolução histórica cujo motor é constituído por rupturas ou crises, partindo da idéia de que n’O Capital Marx se baseou no caso da Revolução Industrial inglesa, mas nos aspectos políticos guiou-se pela experiência francesa. Este último modelo apresenta uma série de crises com modelo de imposição hegemônica, enquanto o modelo inglês é de dominação contínua de uma burguesia fundiária.
3) “Folclore, Antropologia e História Social.” Das mais esperadas traduções, neste artigo Thompson apresenta algumas questões da relação da história com a antropologia e o folclore, questões levantadas a partir de sua experiência de pesquisa. Afirma ter sido levado a um diálogo com a antropologia, não nos termos de construção de modelos, mas na identificação de problemas. A busca de fontes sobre costumes levou-o a se aproximar dos folcloristas. Discorre sobre noções e conceitos como rituais, normas, teatro, tabus, terror, mediações sociais.
Volta a tratar da inadequação da metáfora base—superestrutura, sem questionar a centralidade do modo de produção, mas sim a idéia de descrever um modo de produção em termos unicamente econômicos sem considerar as normas, a cultura e os conceitos sobre os que se organiza um modo de produção.
4) “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'” Este derradeiro texto aborda o tema de forma sintética através de oito pontos: 1-a necessidade de considerar classe como categoria histórica; 2-a constatação de que uma grande parte do discurso sobre a classe ocorre no nível teórico; 3-em muitas abordagens predomina a visão estática de classe; 4-classe é uma categoria histórica ainda para o próprio Marx d’O capital; 5-recuperar a classe como categoria histórica permitirá aos historiadores realizar observações empíricas além de utilizá-la como categoria heurística; 6-heuristicamente classe é inseparável de “luta de classes”. Este último conceito é prioritário, já que traz embutida a idéia de processo, é um conceito histórico que indica movimento. “Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real;” 7-a classe configura-se segundo o modo em que os homens vivem as relações de produção, segundo suas experiências no conjunto das relações sociais; 8-sobre a “falsa consciência”, é uma construção absurda dos partidários das elites. A consciência designa uma cultura global desprendida da formação da classe, que não pode ser nem verdadeira nem falsa.
A publicação brasileira de “As peculiaridades dos ingleses e outros artigos” responde a uma necessidade acadêmica e política, duas instâncias que não se separam. Compõem esta coletânea textos de grande densidade conceitual que nos alertam sobre os perigos das simplificações. A mais atacada delas: a metáfora base—superestrutura. Mas outra leitura também é possível, sobretudo sabendo do convencimento que a respeito desta última afirmação têm os leitores thompsonianos: a economia não pode ser abolida. Ela está presente em todas as construções e explicações dos artigos, na forma de economia cultural e socialmente construída.
Em 1933, por motivos semelhantes aos de Thompson, Caio Prado tentava explicar a evolução política do Brasil e escrevia sobre o instante do nascimento da nação brasileira:
Erradamente entenderam alguns, que nossas condições fossem idênticas ou mesmo semelhantes às daquelas nações. Basta lembrar que as idéias do sistema político adotado por nossos legisladores constitucionais exprimem na Europa as reivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial e industrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é o contrário que se dá no Brasil. São aqui os proprietários rurais que as adotam contra a burguesia mercantil daqui ou do reino.1
Talvez seja esta uma “peculiaridade brasileira” bem próxima da inglesa, no que diz respeito às origens agrárias do capitalismo, e que evidentemente tampouco se “encaixa” no modelo francês.
Aconteceu de um jeito na Inglaterra e de outro no Brasil. Na ilha, disseram Anderson e Nairn, um capitalismo prematuro deu origem a uma burguesia apática æ serva da arcaica tradição aristocrática æ, e a burguesia então deu origem a um proletariado subordinado, sem vocação hegemônica. No Brasil, se diz que um tardio capitalismo se viu construído por um Estado forte, que tomou o lugar da burguesia, porque que esta “falhou” em ser revolucionária. Como resultado, predominou a arcaica tradição oligárquica e o Estado subjugou a classe trabalhadora. Se a mistura capitalista-agrária brasileira não foi única, mas certamente excepcional, e se não há lugar para ela no modelo, o que deve ser mudado é o modelo.
Nota
1 PRADO, Caio, Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Editorial Brasiliense, 1999, p. 54.
María Verónica Secreto – Departamento de História-UFC.
[IF]Viagens e Viajantes / Revista Brasileira de História / 2002
O dossiê Viagens e Viajantes está composto por cinco artigos. Desnecessário afirmar a relevância e o interesse do tema para a área de História. Todos os artigos se apóiam em relatos ou diários de viajantes que visitaram diversas partes do mundo, do Brasil à Austrália. A construção das diferenças e o sentimento de estranhamento compõem diálogos identitários reveladores e instigantes.
O cerne das análises dos autores, no entanto, difere. Regina Horta Duarte e Andréa Doré mostram o olhar estrangeiro que elabora uma visão “de fora” sobre o interior do Brasil no século XIX, no primeiro caso, e sobre a Índia no século XVI, no segundo. Valéria Salgueiro mostra como no século XVIII se inauguram os fluxos de viagens por prazer, que, segundo a autora, se constituem nas matrizes do turismo de lazer e de cultura no presente. Luis Lima Vailati busca a contribuição dos relatos de viajantes para entender os temas da infância e da morte no Brasil do século XIX. Alistair Thomson trabalha com as contribuições da História Oral para os estudos da migração, particularmente entre a Grã-Bretanha e a Austrália, indicando a importância dos relatos pessoais para se entender os problemas sociais das migrações na atualidade.
Os demais artigos deste número, ainda que bastante particulares em suas temáticas, apresentam muitos pontos de contato. O texto de Roney Cytrynowicz polemiza com a historiografia sobre o anti-semitismo no período do Estado Novo. Mostra como a comunidade judaica engendrou estratégias sofisticadas para enfrentar a lei e a ideologia daquele período. Helenice Rodrigues da Silva discute, pensando sobre o Brasil, o valor simbólico das comemorações nacionais e os processos de construção e de transmissão de uma memória social. Ainda na trilha das comemorações nacionais, Thaís de Lima e Fonseca toma a Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes para analisar as apropriações da imprensa, entre as décadas de 1930 e 1960, do mito do herói e de seu “sacrifício” insistentemente associado a supostos herdeiros.
Carla S. Rodeghero faz uma análise comparativa das perspectivas católicas anti-comunistas no Brasil e nos Estados Unidos no período da Guerra Fria, mostrando as diferentes formas que elas assumem nos dois países. Mariana Martins Villaça também escolhe a comparação, enfocando as ligações entre o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos e o cineasta Glauber Rocha, analisando ainda, a repercussão de sua obra entre os cineastas cubanos nas décadas de 1960 e 1970. O artigo de Ricardo de Oliveira reflete sobre as conflituosas relações entre os conceitos de sertão e de nação na monumental obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, no centenário de sua publicação.
As resenhas algumas solicitadas pelo Conselho Editorial e outras enviadas pelos sócios também serão, sem dúvida, do maior interesse dos leitores.
Para finalizar, agradecemos ao apoio da FAPESP que contribuiu para a publicação deste número da RBH.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002. Acessar publicação original [DR]
Tempos do Sagrado / Revista Brasileira de História / 2002
O dossiê Tempos do Sagrado que a Revista Brasileira de História ora publica responde ao crescente interesse demonstrado pelos historiadores por temas relacionados à religião e religiosidade. Prova disto é o fato de duas importantes revistas da área — Tempo e Estudos de História — terem organizado recentemente edições em torno dessas questões. A contribuição de nossa revista se apresenta marcada por uma particularidade: as temáticas abordadas, sempre baseadas em pesquisas originais se estendem por diversos tempos históricos, entre os séculos XIII e XX.
Os três primeiros artigos formam um grupo dedicado a pensar os conflituosos encontros entre, de um lado, europeus católicos e, de outro, indígenas, negros e judeus. Fernando Torres Londoño analisando as cartas escritas pelos missionários a seus superiores, no eixo formado por Portugal, Itália, Índia e Brasil, mostra como foi construído e definido o projeto jesuítico missionário para a evangelização dos indígenas, com base nos escritos de Santo Inácio de Loyola. O texto de Alisson Eugênio discute as vivências culturais de negros que se associavam em irmandades religiosas em Minas Gerais do século XVIII, desvendando as tensas relações entre a Igreja e as irmandades negras, atravessadas por uma complexa gama de práticas, que iam das negociações às ameaças, especialmente no referente aos recursos financeiros para as festas. O artigo de Ângelo Adriano Faria de Assis, tomando a Visitação do Santo Ofício, entre 1591 e 1595, pesquisa as resistências judaicas no Brasil colonial do século XVI. Demonstra como, entre os neoconversos, as mulheres — tornadas guardiãs das tradições religiosas após a proibição do exercício público do culto judaico — foram as principais acusadas pela Inquisição.
Segue-se o estudo de Néri de Almeida Souza que analisa a Legenda aurea (coletânea de 182 legendas baseadas em vidas de santos e em mistérios do ano litúrgico cristão), organizada a partir de diversas fontes pelo dominicano Jacopo de Varazze, no século XIII. A autora enfatiza as diferenças entre a cultura religiosa erudita escrita pelos grandes teólogos e seus leitores muito menos instruídos, situando Jacopo de Varazze no quadro dessas disputas. Fechando o dossiê, Etiane C. B. de Souza e Marion B. de Magalhães apresentam os movimentos pentecostais latino-americanos na atualidade. Indicam como tais movimentos exerceram forte atração sobre as camadas mais pobres da população, de forma a inaugurar uma prática religiosa singular. Também discutem as relações particulares entre os pentecostais e o mundo da política institucionalizada.
Cinco outros artigos sobre temáticas diversas e originais completam esta edição. O estudo de Hendrik Kraay analisa o recrutamento de escravos e de homens de cor livres ou libertos para fazer parte das forças que lutaram contra os portugueses na Bahia, em 1822 e 1823. O artigo também apresenta a participação desses soldados negros no Levante dos Periquitos, em 1824, e a repressão por parte do governo imperial. O texto de Johnni Langer refere-se à construção do mito da cidade perdida da Bahia, a mais conhecida fábula arqueológica do Brasil. Esta se inicia com a entrega ao IHGB de um manuscrito encontrado por Manuel Ferreira Lagos, na Livraria Pública da Corte, em 1839, que discorria sobre a descoberta de minas de prata no interior da Bahia, no século XVI. O artigo de Vânia Maria Losada Moreira estuda o impacto da Lei de Terras de 1850 sobre os direitos territoriais indígenas. Trabalhando com o Espírito Santo, mostra como a Lei propicia a expulsão das populações de índios de suas terras, fechando-lhes praticamente todas as alternativas de acesso à propriedade. O artigo de Micol Seigel e Tiago de Melo Gomes trata do desalojamento, em 1889, de uma quitandeira, a Sabina das Laranjas, da porta da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, lugar em que costumava trabalhar. Apresentando a reação em favor da mulher por parte dos estudantes, os autores discutem as práticas cotidianas raciais e de gênero. O artigo de Luis Fernando Cerri está centrado nas relações entre propaganda, política e ensino de História. Escolhendo peças publicitárias de instituições públicas e privadas durante a ditadura militar brasileira, particularmente durante o chamado “milagre econômico”, o autor analisa esses anúncios e os toma como ponto de partida para ouvir pessoas comuns em torno da questão da identidade nacional. Este número traz, ainda, um conjunto de resenhas que, sem dúvida, serão do interesse do leitor.
Um mea culpa se faz necessário. No último número da RBH, por razões técnicas, foram omitidos, na relação dos nomes que compõem nosso Conselho Consultivo, os dos professores Luís Reis Torgal e Serge Gruzinski que, no entanto, continuam a nos honrar com seu apoio. Erro corrigido nesta edição.
Finalmente agradecemos, mais uma vez, ao CNPq pelo auxílio recebido, sem o qual esta publicação não seria possível.
Conselho Editorial
Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002. Acessar publicação original [DR]