Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje. Richard Henning.
Nos bancos escolares, aprendemos que o nome do nosso país, Brasil advém da abundância de determinada madeira existente no litoral, chamada pau-brasil onde se extraia um corante vermelho de grande valor comercial na Europa que entrava no Renascimento, mas ainda respirava ares medievais. Este corante púrpura, como nos esclarece Sérgio Buarque de Holanda na clássica obra da historiografia brasileira Visão do Paraíso, “desde o século IX era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de Brasil e verzino” (Holanda, 1994: 173). Desde o Oitocentos, alguns estudos já demonstravam que o nome Brasil não proveio da cor da madeira em brasa, mas teria raízes mais antigas, provenientes de mitos celtas. Constante na cartografia européia dos séculos XIII ao XVI, a fabulosa ilha de Hy-Brazil possivelmente foi inspiração para que o imaginário português preterisse esse nome aos oficiais Vera e Santa Cruz, de caráter mais político e religioso: “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado” (Souza, 2004: 35). As denominações burocráticas cederam lugar à terminologia mítica, apesar de posteriormente alguns autores coloniais acreditarem que este nome teria advindo da madeira homônima, um engano que se perpetua até nossos dias. Durante os anos 1940 a 1960, alguns estudos historiográficos fizeram levantamentos preliminares e algumas conclusões sobre as raízes deste passado filológico (a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e Gustavo Barroso), acabaram não criando outras pesquisas ou influenciando novas perspectivas. Em 2000, em um pequeno verbete para o livro Dicionário do Brasil colonial, o historiador Ronaldo Vainfas afirmou que o vocábulo Brasil teria provindo do imaginário europeu pré-cabralino e que teria sido utilizado pelos portugueses como mito geopolítico. Desta maneira, as referências sobre o tema nunca passaram de pequenas citações ou estudos rápidos, não originando dissertações ou teses, nem mesmo artigos mais detalhados ou a busca de fontes confiáveis nos arquivos europeus.
É neste contexto que foi publicado o livro Uma ilha chamada Brasil, do jornalista Gerlado Cantarino. Aproveitando-se da falta de interesse genérico dos acadêmicos e dentro de uma perspectiva estritamente comercial, Cantarino publicou uma obra que peca pela linguagem extremamente coloquial, pela falta de seriedade documental e pelo grande apelo esotérico e mesmo fantasioso de seu autor.2 Mitos tradicionais do Ocidente, como a Atlântida, a presença de fenícios e vikings na América do Sul3 , entre outros, foram tratados como fatos ou possibilidades, em detrimento da “verdade oficial” mantida pela academia, num tom verdadeiramente conspiratório especialmente pelos antigos escritores de 1850 a 1940. Uma ideologia típica desde o século XIX: tentar demonstrar o verdadeiro passado nacional, originando o que muitos denominam de “Arqueologia Fantástica” ou “Neodifusionismo”, teoria que procurou demonstrar o contato transoceânico entre os europeus e americanos antes das viagens de Colombo e Cabral. Reciclando antigas narrativas de autores coloniais, estes teóricos afirmavam que diversos povos, entre eles hebreus, africanos, escandinavos e fenícios, haviam estado no Brasil e América do Sul há vários séculos. Para isso baseavam-se em supostas inscrições misteriosas encontradas nas florestas ou sertões (na realidade, arte pré-histórica dos indígenas) ou enviadas para os grandes centros (como as famosas inscrições fenícias, que com o tempo provaram ser apenas falsificações)4. Com o início do século XX, todas estas teorias demonstraram ser apenas idéias fantasiosas, sem comprovações arqueológicas e carregadas de preconceito, racismo e intolerância pelo verdadeiro passado brasileiro, o povoamento indígena. A citação de Cantarino do livro Antiga História do Brasil, de Ludwig Schwennhagen – onde afirmava que o sítio de “7 Cidades” no Piauí seria o vestígio de uma antiga cidade fenícia, na realidade, formações geológicas naturais – beira simplesmente o ridículo (Cantarino, 2005: 85-86). A reiteração da famosa pedra da Paraíba (2005: 92-93), supostamente encontrada em 1872, já foi estudada por vários especialistas, tanto epigrafistas quanto historiadores, que demonstraram ser uma fraude realizada no Brasil Imperial. Até nossos dias, existem diversos escritores, quadrinistas e roteiristas de cinema que empregam essas idéias neodifusionistas, procurando convencer o grande público de que este passado mítico realmente existiu. Infelizmente, o jornalista Geraldo Cantarino perpetua esse procedimento, criando obstáculos para que um estudo realmente sério e acadêmico possa ser efetuado sobre as origens celto-irlandesas do nome do nosso país, esse sim passível de estudo e que infelizmente foi tema apenas de abordagens parciais. O caminho para pesquisas futuras está aberto, mas resta o cuidado para os investigadores não serem atraídos para referências enganadoras e sem qualidade, a exemplo do livro Uma ilha chamada Brasil.
O jornalista Geraldo Cantarino se dispôs a desenvolver uma extensa pesquisa sobre as origens celtas do nome Brasil e, como autor da pós-modernidade tanto suas leituras e pesquisas mereciam ser mais densas e profundas como exige o período em questão – há menções à obra de autores consagrados, como Capistrano de Abreu e Gustavo Barroso – e não se fixar em autores praticamente desconhecidos e a panfletos como citados no primeiro capítulo da obra: “(…) e encontrei-me, outra vez, com aunt Caitlín que havia feito uma cópia do material distribuído na palestra de Tralee” (Cantarino, 2004: 19) esquecendo-se de pesquisas já consolidadas como a realizada nos anos 1950 por Sérgio Buarque de Holanda e que se mantém atuais.
Logo no prefácio de Uma ilha chamada Brasil, encontramos alguns problemas que denotam o desconhecimento do autor ao tratar do tema. Na página 13, o autor escreve: “(…)observatórios lunares abandonados que, embora inativos, repousam em isolamento esplêndido ao longo do litoral ocidental celta” (Cantarino, 2004: 13 – grifo nosso). Há aqui uma informação equivocada, que o leitor desconhecendo que os celtas foram povos que habitavam a Europa desde a Ásia Menor (Galácia) até a Irlanda, podem acreditar que só este último país foi um reduto celta, como, atualmente muito esotéricos querem acreditar e, pior ainda, difundir essa falsa idéia. Um outro equívoco ainda relacionado à Irlanda diz que o Brasil deve seu nome à Irlanda (Cantarino, 2004: 14). Existe uma confusão feita pelo autor, pois este nome não está associado ao folclore irlandês, mas sim aos celtas que originalmente habitaram aquele país. Mais grave ainda é observar que estas informações constantes no prefácio da obra foram escritas por um autor escocês!
A narrativa de Cantarino vai se construindo de forma extremamente informal e jocosa utilizando a primeira pessoa do singular, transparecendo que o autor está escrevendo um diário e tratando o leitor como um infante recém alfabetizado, que descobre o prazer de descobrir um novo texto. Há ainda um tom “memorialista” na narrativa extremamente parcial e não condizente com a linguagem jornalística que o autor parece quer empregar em sua obra. Ainda no primeiro capítulo há uma menção aos irlandeses que durante o século XIX migraram para o Brasil fugindo da grande fome. Este episódio foi tema de um artigo intitulado “Cego furor homicida”, escrito pelo editor Christopher Burden e publicado na revista Nossa História. O artigo em questão é muito mais completo e elucidativo do que a descrição de Cantarino e apresenta qual foi a verdadeira razão da presença irlandesa nas terras brasileiras durante o Primeiro Império.
A narrativa que em primeira instância propunha-se a apresentar aos leitores uma abordagem séria das origens celto-irlandesas do nome Brasil vai-se construindo como obra de ficção e não como narrativa jornalística comprometida com a realidade e nem como um relato histórico sério já que o autor utiliza-se de construções condizentes com as narrativas ficcionais:
“Zarpei rumo ao desconhecido. (…) Desviei da correnteza por onde passa a história oficial para percorrer antigos atalhos e rotas marginais, inclusive aquelas por onde fluem as águas mágicas do realismo fantástico. Pelo caminho, fadas, semideuses e figuras mitológicas surgiram na minha frente em aparições virtuais” (Cantarino: 2004, 37).
A jocosidade utilizada pelo autor para tratar de temas que são fontes de estudos como o realismo fantástico e a mitologia de pesquisadores como Fraçoise Le Roux e Christian Guyonvarc’h que dedicaram suas pesquisas para comporem trabalhos detalhados e extremamente sérios sobre a mitologia celta aqui parecem serem estes temas daqueles que insistem em descobrir uma outra verdade que parece se apresentar somente aos esotéricos. Cantarino, a exemplo da máxima da célebre série de TV dos anos 1990 “Arquivo X”, busca a verdade lá fora e não a aprofunda nas obras sérias dedicadas ao tema e nem apresenta novas perspectivas realmente comprometidas com a cientificidade. A descrição apresentada da ilha de Hy-Brasil não aparece como a de um paraíso, mas sim de um lugar recorrente nas narrativas infantis:
“É a morada escolhida por fadas, dragões e deuses aposentados. Ou, ainda, duendes, gnomos e antigas tribos, quando não mais encontram um lugar para ficar no mundo contemporâneo” (Cantarino, 2004: 43).
Afirmando que Hy-Brasil é o local escolhido pelos “deuses aposentados” o autor parece, mais uma vez caracterizar a ilha mítica como um objeto a ser explorado apenas pela ficção não merecendo ser o foco de estudo de historiadores e mitólogos, por exemplo.
Mas, infelizmente os equívocos do autor não transparecem apenas nas análises e interpretações sobre as origens celtas do nome Brasil, pois também ele transmite ao leitor dados errados sobre pesquisadores quando afirma ser paulista a arqueóloga Niède Guidon (Cantarino, 2004: 73). A pesquisadora em questão é francesa e trabalha no Brasil há muitos anos realizando pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí onde luta bravamente contra as intempéries e os parcos recursos governamentais para manter um dos grandes legados do homem pré-histórico brasileiro.
Uma idiossincrasia cometida pelo autor é denominar celta como raça: “(…) definir o que passou a ser chamado Raça Celta” (Cantarino, 2004: 112). Do ponto de vista da Antropologia moderna, o conceito de raças está ultrapassado, só existe uma raça há cerca de 30 mil anos na Terra, o Homo sapiens sapiens. Os celtas podem ser definidos por um conceito etno-lingüístico, como um povo falante de uma mesma língua indo-européia.
O capítulo seis do livro, intitulado “Significado religioso”, se detém a uma longa descrição de narrativas das viagens de São Brandão e sua busca pelo Paraíso. O autor ao apresentar versões da Navigatio não procura analisá-las em profundidade, apresentando ao leitor as impressões sobre a busca do paraíso de Hy-Brasil que foram construídas por poetas desde a Idade Média até o século XIX. Não há análise ou discussão densa acerca das narrativas destas viagens, somente traduções livres e pequenas conclusões inócuas sobre a busca do paraíso terreal, seja pelo santo ou por aqueles que enveredam na leitura.
Há um capítulo dedicado as representações de Hy-Brasil nas diversas artes como sugere o título “Arte e Literatura” onde o autor mais uma vez apresenta uma relação da várias representações que a busca da ilha paradisíaca recebeu desde da Idade Média até a contemporaneidade. Especificamente em um parágrafo Cantarino traça um paralelo entre a ilha de Avalon que, segundo Jean Markale trata-se de “uma ilha maravilhosa da tradição céltica, uma espécie de terra das bem-aventuranças onde há maçãs que dão frutos o ano todo e que explica seu nome derivado de uma palavra galesa e bretã, aval, maçã” (Markale, 1999: 29). O simbolismo da “Ilha das Maçãs” ou o paraíso celta foi bem analisado no artigo “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha paradisíaca” de Adriana Zierer. Neste texto, a pesquisadora de estudos célticos faz não só uma análise pormenorizada do simbolismo da maçã nas artes plásticas e na literatura como também as representações de Avalon em diversas narrativas de origem celta e, principalmente no mito arturiano.
O tema das origens celtas do nome Brasil é, ainda, infelizmente pouco explorado por pesquisadores brasileiros, sejam eles historiadores ou críticos literários e, este desinteresse muitas vezes abre precedentes para que diletantes façam pesquisas com qualidade sofrível ou, pior sem qualidade alguma e a divulguem e perpetuem estereótipos e imagens fantasiosas. A obra em questão enquadra-se nesta descrição. Há ainda muito a ser pesquisado tanto sobre as origens celtas do nome da Terra brasilis como das raízes medievais que estão presentes e impregnadas na cultura popular e no cotidiano deste os tempos da colônia e que são constantemente desprezados pelos pesquisadores, que parecem ainda relutar em aceitar que somos fruto de uma mentalidade medieval.
Geraldo Cantarino em sua pesquisa pecou pelo uso excessivo da linguagem coloquial que é inadmissível numa pesquisa mesmo que essa seja de popularização. As descrições tornam a obra ainda mais enfadonha e denotam falta de critério por parte do autor na escolha das suas fontes. Esperamos que os estudantes universitários que ora iniciam suas pesquisas nos estudos celtas (que segundo alguns somente poucos escolhidos merecem realizá-los, o que ao nosso ver é um erro) não se inspirem nesta obra e muito menos a tomem como referência.
Notas
1. A presente resenha recebeu a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer (PD-USP, bolsista da FAPESP). Conceitos e idéias integrantes do texto são de co-autoria do colaborador.
2. Outro autor que recentemente retoma as teorias neo-difusionistas é o explorador norte-americano Jim Woodman, em duas obras: Ancient New World: A Journey Across Medieval América. Xlibris Corporation, 2001 e The ancient inscriptions of Paraguay. Epigraphic Societu, 1989. No primeiro livro (pp. 75-82), o pesquisador analisa o mito da ilha Hy-Brazil e no segundo, supostas inscrições existentes no Paraguai que ele interpreta como sendo de origem Celta. Por sua vez, o francês Jacques de Mahieu interpretava as ditas inscrições como sendo de origem Viking. Na realidade, elas têm origem pré-histórica indígena, sendo, portanto, fantasiosa qualquer outra interpretação. Em uma série de fotografias em um site que atualmente não está mais disponível em conteúdo pela internet (Arthur Franco: A Idade das Luzes e os Megalitos de HyBrasil), o esotérico gaúcho Arthur Franco tentava demonstrar que no Rio Grande do Sul encontravam-se diversos megálitos gigantescos, alguns com até 100 metros de altura, supostamente realizados pelos Celtas em incursões pelo Brasil. Pelo exame nas fotografias, percebemos que se tratavam de formações geológicas naturais, tomadas como artificiais. No Brasil e na América, existem casos de megalitismo, mas de origem indígena com dimensões modestas, sem nenhuma relação com o de origem européia e muito menos Carnac e Stonehenge. Este autor também publicou uma obra de cunho esotérica com conteúdo parcialmente disponível na internet: A idade das luzes. Porto Alegre: Editora Wodan, 1997 (Disponível em: http://www.bibliotecavirtual.pro.br/historia/hebreus4.html Acessado em 20 de setembro de 2006). Outro pesquisador brasileiro que defende a presença Celta no passado brasileiro é Luiz Caldas Tibiriçá, sem nenhuma comprovação científica por parte da comunidade acadêmica. Sobre suas pesquisas ver: http://www.terra.com.br/istoegente/50/testemunha/index.htm . Acessado em 20 de setembro de 2006. A internet ainda disponibiliza vários textos sobre o encontro de inscrições Celtas (ogâmicas) na América, todas sem nenhuma viabilidade científica: Irish in América before Columbus http://www.aislingmagazine.com/aislingmagazine/articles/TAM17/Columbus.html Acessado em 20 de setembro de 2006.
3. Para considerações sobre os Vikings na América do Norte, ver Langer, 2006: 28-30; sobre os navegantes nórdicos no Brasil pré-cabralino, do qual não ocorre nenhuma evidência científica até nossos dias, vide Langer, 2004: 22-25.
4. A respeito da antiga teoria de que navegadores fenícios e hebreus teriam estado no Brasil e do qual não existem comprovações arqueológicas, ver os estudos de Langer, 2002: 87-108; 2003: 75-102. Sobre os conceitos racistas, eurocêntricos e preconceituosos destas antigas teorias, ver Langer, 2001: 222-228.
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