Em 1635, William Laud, arcebispo de Canterbury e chanceler da Universidade de Oxford, doou à Bodleian Library, biblioteca da universidade, uma série de manuscritos com obras diversas compiladas em diferentes línguas (latim, grego e alguns vernáculos). Dentre eles estava uma coletânea de obras compiladas sob um mesmo códice que tinham uma característica em comum, todas estavam em inglês médio, o vernáculo falado no território insular entre meados do século XII ao XV, período em que linguistas demarcam a transição para o inglês moderno, aquele mais próximo do inglês corrente hoje. Tal códice foi catalogado como Laud Miscellaneous Manuscript, ou, apenas, Laud Misc. MS, e o termo ‘miscellaneous’ (miscelânea) é tema do primeiro ponto crítico levantado por Kimberly K. Bell e Julie Nelson Couch ainda na introdução. Segundo as autoras, a nomenclatura gerou, e ainda gera, interpretações equivocadas por parte de críticos e leitores, que tendem a ler o termo como referência à falta de primor artístico ou de organização do compilador das obras. Todavia, nesse códice, encontram-se algumas das primeiras compilações de obras em inglês médio já catalogadas e o fato do mesmo não incluir textos em outras línguas mostra exatamente a falta de ‘miscelânea’ e uma rígida estruturação e organização, segundo as autoras. Sua característica monolinguística o coloca em destaque no contexto histórico ao qual pertence, uma vez que manuscritos de tal período raramente reuniam obras numa única língua, mas a reconhecida ‘estranheza’ de tal característica linguística deve-se ao fato do inglês médio, naquele contexto, ainda ser percebido e mantido quase que exclusivamente como língua oral, ao contrário do anglo-normando que era lecionado e pautado na escrita.
Em Laud encontram-se a mais antiga versão do The South English Legendary, uma referenciada coletânea de hagiografias de santos insulares e continentais, e duas das primeiras versões dos romances King Horn e Havelok the Dane, os mais antigos romances em inglês médio, além de outras obras religiosas e laicas. A presença das referidas obras primevas daquele vernáculo por si só já agrega enorme valor ao manuscrito, todavia, conforme discute Anne B. Thompson, escrever em inglês médio no século XIII – data de confecção das obras – é considerado uma inovação, dada a relevância do anglo-normando como vernáculo de prestígio, especialmente na corte de Henrique III (1216-1272).[1] Assim segue a introdução de The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative, localizando no tempo e no espaço a produção do manuscrito Laud, partindo do seu processo de catalogação e doação à biblioteca da Universidade de Oxford, passando pelo seu processo de confecção, manutenção e circulação no período medieval.
A obra organizada por Bell e Couch, tema da presente resenha, dedica-se exclusivamente ao estudo do presente manuscrito, reunindo artigos que abordam diferentes metodologias, elencando uma série de ensaios interdisciplinares e intertextuais. O volume divide-se em duas partes, a saber, Part I: The Manuscript and its Provenance, que conta com cinco artigos, e Part II: The Manuscript and its Texts, abrangendo oito artigos, além de doze páginas com imagens de fólios dos diferentes textos do Laud. No anexo segue o sumário com a ordem dos artigos, seus títulos e respectivos autores a fim de que a estrutura da obra se torne mais clara e palpável durante a leitura da presente resenha.
Tal estrutura reflete bastante a intenção analítica das organizadoras; não se tratam apenas de discussões lançadas sobre as especificidades instrumentais e os jargões dos estudos textuais e de manuscritos (Manuscript Studies). Ao contrário, o objetivo da coletânea é trazer à tona uma série de novas perspectivas investigativas que apontam para a complexidade, pluralidade e, não por acaso, unidade do códice como um ‘conjunto’ e não um montante de manuscritos esparsos aleatoriamente reunidos – este último fator sendo, todavia, pertinente a vários dos manuscritos medievais que resistiram até o século XX. Algumas acepções cristalizadas sobre Laud são questionadas não apenas na introdução, mas também em outros ensaios, é o caso da ideia de miscelânea, que transforma-se em contraponto questionado pelo argumento central das autoras de que o códice é, na verdade, um ‘whole book’ [livro como um todo] (p. 7) e também funciona como ponto de partida para os artigos de A.S.G. Edwards, Murray J. Evans e Christina Fitzgerald.
O material reunido na primeira parte do livro centra-se mais no trabalho textual de rastreamento de elementos linguísticos, sintáticos, retóricos (a ‘evocação da performance do menestrel na produção hagiográfica’ presente em Laud, conforme Andrew Taylor; a presença de uma possível ‘autoria masculina’, segundo Christina M. Fitzgerald ) e materiais (datação, constituição física – dimensões, método de agrupamento dos fólios e sua proveniência – e os possíveis ‘rastros’ de sua circulação através de glosas e outras demarcações textuais, temas discutidos por Thomas R. Liszka, Murray J. Evans e A.S.G. Edwards, respectivamente). Já a segunda parte, que concentra a maioria dos textos, introduz o leitor a um universo de perspectivas interdisciplinares e extremamente criativas, porém cautelosas quanto à demarcação de suas metodologias e embasamentos teóricos, sem que tais preocupações tornem os textos autoreferenciais ou quebrados em blocos de “teoria/metodologia” seguido de “análise textual”. O apuramento argumentativo e a flexibilidade com a qual os autores transitam por diferentes referenciais disciplinares fazem da segunda parte, talvez, mais atraente ao pesquisador interessado em trabalhos que versem sobre as especificidades de Laud (ou de um manuscrito medieval, de maneira genérica), sem abusar da proximidade paleográfica para ratificar suas problemáticas, utilizando-a, no entanto, como referência tangencial num movimento analítico que transita entre o dentro e o fora dos textos estudados – isto é, textos e contextos. Ressalto como exemplo de tal iniciativa a análise primorosa de Robert Mills que, em seu ensaio, coloca em diálogo, de forma problemática e provocadora, estudos sobre o corpo, etnia, geografia (numa leitura quase etnogeográfica), linguagem e espiritualidade. O que, à princípio, soa quase como uma colcha de retalhos temática, se transforma, em seu texto, numa cadência coerente e convincente de elementos fundamentais à constituição hagiográfica do The South English Legendary.
Hagiografia e literatura laica, aliás, são constantemente postas lado a lado nos textos de diferentes autores, num intuito discursivo que acompanha, de perto, a própria organização de Laud, na qual dois romances seculares – King Horn e Havelok – aparecem em meio a inúmeras vidas de santos. Muito já se discutiu no âmbito da academia anglo-saxã sobre as proximidades e os afastamentos entre vidas de santos e romances, Neil Cartlidge dedicou especial atenção ao tema. Todavia, o que se discute na obra aqui resenhada não são as proximidades que nós, acadêmicos pós-modernos (ou modernos ou do século XXI), projetamos sobre os dois gêneros textuais, mas, sim, as evidências próprias de cada tipo de texto que os coloca em posição horizontal, tal como nos são apresentados pelo compilador (ou compiladores) de Laud. Uma inversão de olhares que pode parecer irrelevante ou quase tautológica, mas que resulta em significativas mudanças de perspectiva analítica e de sensibilidade sobre hagiografia e romance, gêneros tão próximos, porém tão distantes.
Todos os autores que colaboraram para a confecção do volume são doutores (alguns eméritos) na cadeira de English – disciplina comum nos cursos de English Studies em universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos. A natureza interdisciplinar do referido curso está intimamente vinculada à formação e atuação dos profissionais a ele ligados (e à sua própria localização como cadeira acadêmica), cujos trabalhos transitam entre os campos da História Cultural (e da Leitura) e da análise textual-literária, passando por elementos da disciplina paleográfica. Tal interdisciplinaridade, por vezes super-utilizada, como é o caso dos trabalhos de Robert Mills, Julie Nelson Couch, Susanna Fein e Andrew Lynch, não funciona apenas como força motriz na confecção de The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative, mas, sobretudo, a transforma num conjunto textual de referência para pesquisadores de diferentes disciplinas e contextos acadêmicos (especialmente aos interessados em textos em inglês médio do século XIII e de períodos posteriores), pluralizando não somente os olhares sobre o manuscrito de Laud, mas também refratando o que de mais múltiplo tal manuscrito nos oferece: sua própria ‘essência’ constitutiva e textual.
Anexo
Part I
The manuscript and its Provenance
III. “Very Like a Whale?”: Physical Features and the “Whole Book” in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Murray J. Evans
Part II
The Manuscript and Its Texts
VII. The Audience and Function of the Apocryphal Infancy of Jesus Christ in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Daniel T. Kline
VIII. The Eschatological Cluster – Sayings of St. Bernard, Vision of St. Paul, and Dispute Between the Body and the Soul – in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, J. Justin Brent
XII. “holie mannes liues”: England and its Saints in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108’s King Horn and South English Legendary, Kimberly K. Bell
XIII. Somer Soneday: Kingship, Sainthood and Fortune in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Susanna Fein
Nota
1. Cf. Thompson, Anne B., Robert K. Upchurch e E. Gordon Whatley. Lives in Middle English Collections (Kalamazoo: Medieval Institute Publications, 2004), p. 22
Gabriela Cavalheiro – Doutoranda em Medieval Studies, King’s College London. E-mail: gabriela.cavalheiro@kcl.ac.uk
BELL, Kimberly K.; COUCH, Julie Nelson. The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative. Leiden, Boston: Brill, 2011. Resenha de: CAVALHEIRO, Gabriela. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.2, p. 133-137, 2013. Acessar publicação original [DR]
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