The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe | Miranda Aldhouse-Green
O fenômeno do xamanismo vem atraindo intensamente a atenção de acadêmicos há cerca de duas décadas, além de ser praticado por muitos adeptos em grandes cidades do mundo e até mesmo no Brasil. Neste contexto, a recente publicação dos arqueólogos Miranda e Stephen Aldhouse-Green, The quest for the shaman, é emblemática por realizar uma sistematização do tema, além de apontar várias outras perspectivas para os estudos das práticas mágico-religiosas. Este livro se insere em uma nova perspectiva dos estudos arqueológicos, não tendo apenas uma preocupação com os objetos materiais em si mesmo, mas também preocupados com sua inserção em uma ampla rede de significados sócio-culturais: “O estudo da cultura material, de todo o imenso artesanal de artefatos que fazem parte do cotidiano do ser humano depende, em muitos casos, da interação da arqueologia com outras áreas” (Funari 2003: 85).1 Miranda Jane Green é uma das mais conceituadas celtólogas e especialistas em Idade do Ferro européia, enquanto Stephen Aldhouse-Green é pesquisador de pré-história do Velho Mundo. Além de considerações teóricas advindas do estudo de sítios arqueológicos, mitologia, literatura e história comparada, os autores também investigaram o fenômeno do xamanismo in loco, entre os Mapuche no Chile, utilizando metodologia antropológica.
A introdução (Shamanism, p. 9-18), elabora uma discussão conceitual e bibliográfica sobre o tema. Os autores propõem novas perspectivas de abordagem pelo viés da cultura material e psicológica, preocupando-se mais em tratar o xamanismo como uma visão de mundo do que como um sistema religioso no sentido tradicional. A discussão de que esta prática teria sido uma construção discursiva de acadêmicos foi abandonada,2 em detrimento da concepção de que é um fenômeno relacionado com a feitiçaria, o ritual e o curandeirismo. Também a visão tradicional de que o conceito do transe ou estado alterado de consciência é fundamental para circunscrevermos os cultos xamânicos3 permanece no livro, mas atrelado a recentes estudos de neuropsicologia, simbolismo e performance social. Este último aspecto é tratado com mais detalhes: o “teatro” do xamã é essencial para a construção de sua figura pública, criando condições materiais para a eficácia simbólica de um contato espiritual. Desta maneira, os objetos arqueológicos encontrados no sítio são delineados também dentro desta perspectiva sócio-cultural, procurando reconstruir o fenômeno europeu com analogias vindas da América, Ásia, Austrália e Sibéria.
O segundo capítulo (Beyond the stone Gates, p. 19-64), explora as possibilidades do registro xamânico durante o Paleolítico, contrastando os registros fósseis e materiais com as teorias de William Davies e David Lewis-Williams. Aqui as supostas origens dos cultos estão atreladas diretamente com o nascimento da arte, da consciência de uma cosmologia, enfim, da criação da própria religiosidade humana – uma conseqüência, segundo os autores, da fixação e intervenção de imagens cerebrais. E a capacidade de entrar em transe seria limitada a um pequeno número de pessoas, que passam a controlar a religião ao mesmo tempo em que a sociedade torna-se estratificada. Assim, percebemos uma profícua união teórica entre o pensamento biológico-psicológico com as considerações da arqueologia e da sociologia. A última parte deste capítulo, realiza um interessante debate sobre o fenômeno da therantropia – o último estágio do estado alterado de consciência, segundo a teoria de William Davies, que produziria visões de monstros e criaturas antropomórficas, especialmente relacionada com as narrativas mitológicas e literárias do lobo e do lobisomem.
O capítulo seguinte (Swan’s wings and chamber tombs, p. 65-88), discute o xamanismo durante os períodos Mesolítico e Neolítico, especialmente entre os vestígios megalíticos da Irlanda. Neste momento os autores fazem uso especialmente das pesquisas de Jeremy Dronfield, segundo o qual a arte megalítica (constituída de motivos geométricos, dando destaque para a figura do espiral) teria sido criada para realizar experiências religiosas nas tumbas. Estudando a distribuição, tipologia e identidade dos motivos artísticos, Dronfield criou a hipótese da “experiência do túnel”, associando os estados alterados de consciência e visões da morte com as passagens nas câmaras megalíticas. Apesar de Miranda e Stephen Aldhouse-Green considerarem esta idéia complexa e polêmica (a união entre arte e práticas mortuárias), referenciam a mesma como hipótese em sua sistematização.
O quarto capítulo (Rock and gold, p. 89-110), examina o tema na Idade do Bronze européia. Os principais sítios arqueológicos examinados nesta análise são os provenientes da Escandinávia, especialmente os importantes conjuntos petroglíficos de Bohuslän, Boglösa, Scania e Litslena, todos situados na Suécia. A grande maioria das representações destes locais é figurativa, mostrando em especial cenas de homens dançando, portanto máscaras, equipamentos de guerra, cenas de fertilidade e consagração, barcos, animais e variados desenhos geométricos como círculos raiados. Seguindo certa tradição analítica, os autores dedicam sua interpretação para mitos relacionados com o transcurso solar e os ritos funerários. Alguns objetos que também são associados a motivos celestes e a mitos solares são o cone de Etzelsdorf e o recentemente polêmico disco de Nerbra, ambos da Alemanha, e o carro solar de Trundholm, da Dinamarca.
Os capítulos quinto e sexto (Priests, politics and power, p. 111-142 e Monsters, gender-benders and ritualist in the roman empire and beyond, p. 143-178) examinam com detalhes as fontes arqueológicas da Idade do Ferro e as literárias greco-romanas. Os temas mais explorados pela dupla de pesquisadores são as visões de explorações de outros mundos – típica de relatos de experiências xamânicas durante o transe – e as questões relacionadas com o status dúbio destes praticantes, tanto a nível social quanto sexual. Um dos momentos mais interessantes é o confronto entre o relato clássico de Tirésias com Odin, deus dos escandinavos, especialmente no que diz respeito às suas ambivalências sexuais e o papel de negociadores de outros mundos. Outros relatos igualmente mencionados com destaque são os de Plínio, o velho, Tácito e a Saga de Erik, o vermelho.4 Tanto na literatura romana quanto na celta e nórdica, os autores identificam a importância do triplismo a nível simbólico e cosmológico – refletindo o imaginário religioso original da Eurásia, onde os mitos xamânicos dividem o cosmos em três níveis e nove mundos. A nível material, o triplismo é manifestado especialmente na arte escultural, por exemplo, nas representações de deuses latinos com três faces ou três chifres, e a nível simbólico nas figuras do triskelion, triqueta e valknut, estes últimos da área celto-nórdica.5
O último capítulo (Myths and magic, p. 179-202), detalha várias análises sobre a literatura e mitologia de origem céltica, em especial, as fontes literárias galesas e irlandesas da Idade Média. Diversos personagens dos manuscritos Mabinogi e Táin Bó Cúailnge, como Pwyll, Math, Lleu, Gwydion e Cu Chulainn, são analisados dentro de uma perspectiva de conexões com o xamanismo,6 especialmente em seus contatos com outros mundos e metamorfoses animais. Em outro momento, os autores debatem o tema das profetisas e profetas nas ilhas britânicas, como Fedelma e Cathbadh, estabelecendo algumas relações entre magia e política, entre as quais as advindas da realeza e da sucessão dinástica.7 Também relacionado a poderes proféticos e xamanismo é o fenômeno do druidismo, onde os sacerdotes ligam-se a múltiplas funções no mundo Celta.8 Alguns dos mais peculiares casos de druidismo-xamânico são os denominados “homens pássaros”, profetas que vestiam peles de pássaros, conectados ao simbolismo destes animais como intermediários do outro mundo, do poder sobrenatural e do “vôo xamânico”.
Na conclusão do livro (p. 203-211), talvez o ponto mais importante destacado pelos autores seja a respeito de uma revisão do conceito diacrônico de xamanismo e em problematizar como os elementos tradicionais deste fenômeno mágico-religioso foram manifestados em diferentes modelos de expressão na arte, na sociedade e nas culturas européias. Em particular, a possibilidade de futuros estudos sobre tradições religiosas sobrevivendo abaixo da romanistas e reputadas como superstições na Idade Média, e, de que forma a herança do paganismo foi manipulada ou “filtrada” pelos redatores cristãos dos manuscritos.
O livro possui uma bela e bem cuidada estrutura iconográfica. Dezenas de gráficos, mapas, tabelas, ilustrações e fotografias coloridas e em preto e branco tornam o texto muito mais acessível ao leitor. Em especial, as ilustrações de Anne Leaver reconstituindo as atividades da profetisa Veleda (p. 117) e do uso de runas entre os germanos antigos (p. 123), ambas descritas por Tácito, foram bem pesquisadas.
A obra é recomendável não apenas aos interessados em história da religião e da magia na Antiguidade e Idade Média. É um valioso instrumento reflexivo para os pesquisadores interessados na documentação arqueológica enquanto reflexo de práticas, ideologias e simbolismos sócio-culturais. Neste sentido, a Arqueologia não se torna excludente do conhecimento produzido em outras áreas das ciências humanas, mas cria a possibilidade de uma interação entre as várias vias de interpretação do passado. Investigando o tema do xamanismo dos remanescentes pré-históricos à literatura de origem Celta, Miranda e Stephen Aldhouse-Green também tornam possível o diálogo interdisciplinar, algo muito necessário aos atuais estudos acadêmicos em nosso país.
Notas
1. Um exemplo do recente interesse arqueológico pelos estudos xamânicos: Price (2001; 2004: 109-126).
2. Sobre o xamanismo em geral e sua relação com as religiosidade e mitologias da Europa pré-cristã, conferir a sistematização de alguns debates críticos recentes (como limites metodológicos e conceituais de abordagem, além da questão da construção discursiva da academia), especialmente os vinculados à Antropologia e história da religião: Stuckard (2005: 123-128). Para recentes discussões sobre o xamanismo urbano no Brasil e suas implicações teórico-metodológicas, verificar: Magnani (1999: 113- 140).
3. Para um debate clássico sobre esta perspectiva, conferir: Eliade 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).
4. O historiador Carlo Ginzburg demonstra a sobrevivência folclórica de mitos e símbolos de origem xamânica euro-asiáticas em plena Idade Média, que constituíram a base das imagens sobre bruxaria e o fenômeno imaginário do sabá das bruxas: “um único esquema mítico foi retomado e adaptado em sociedades muito diferentes entre si, do ponto de vista ecológico, econômico e social” Ginzburg (2001: 162).
5. Para um debate sobre o xamanismo entre os germanos, especialmente na Escandinávia da Era Viking, verificar: Schnurbein (2003: 116-138); Langer (2004: 98-102).
6. Para o historiador francês Christian-J Guyonvarc’h (1997: 218-219) é um erro associar o xamanismo aos Celtas, citando como reforço a esse posicionamento o clássico de Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, 1951. Porém, constatamos que neste referido livro (Eliade 1998: 416- 417), o autor cita algumas narrativas confirmando mitos e ritos de caráter extático, portanto xamânicos, entre os Celtas. Também o historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua formidável obra sobre mitos medievais, faz um detalhado levantamento de diversas fontes confirmando o xamanismo céltico: Ginzburg 2001: 111-112, 115-118, 121-123, 128, 191-193.
7. Vários acadêmicos atuais acabam perpetuando fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas em se tratando de temas relacionados com a mulher nas sociedades antigas, especialmente a céltica. Um dos mais correntes destes erros é o vínculo com a utopia do matriarcado: “O dragão pagão é antes de tudo um símbolo de poder; símbolo da mulher que já possuiu um lugar social garantido pelo matriarcado céltico em épocas remotas” (Rocha, 2003). Em uma perspectiva ainda mais equivocada, a pesquisadora canadense Manon Dufour (Mestre em Ciências da Religião pela Universidade de Quebec) analisou os supostos aspectos sacerdotais da mulher celta antigo-medieval por meio da obra literária contemporânea As Brumas de Avalon, além de também defender uma feminilidade sagrada e o matriarcado entre os Celtas, mesclando as teorias de tripartição de Dumézil com um referencial feminista radical e o simbolismo dos arquétipos (cf. Dufour 1999: 5-21). Para um referencial da construção da utopia do matriarcado entre o academismo oitocentista e sua inexistência de um ponto de vista arqueoantropológico para qualquer período da História, verificar a sistematização de Georgoudi (1990: 569-590, 2007: 24-27).
8. A respeito do druidismo entre os Celtas, ver: Lupi 2004: 70-79.
Referências
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Luciana de Campos – Professora Mestra. Doutoranda em Letras UNESP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
Johnni Langer – Pós-doutor em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br
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