Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff

Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.

Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo.

“Há tempo para tudo” diz o versículo bíblico do Eclesiastes, mas como indaga Santo Agostinho nas suas Confissões: “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente?” É sobre essas e outras respostas -pelo menos no que concerne ao Medievoque Jacques Le Goff discorre no livro Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho,e cultura no Ocidente, publicado originalmente em 1977, com o título Pour un autre Moyen Âge: temps, travail et culture en Occident:18 enssais, uma coletânea de ensaios escritos de 1956 a 1976, onde o autor traça, como ele diz no prefácio: ”sem anacronismos, restitui algumas chaves para nossas origens…”

Nele o autor lança uma nova luz de como se pensar a Idade Média, onde é necessário rever diversos conceitos cristalizados nas mentes tanto daqueles que pesquisam, como daqueles que se interessam por esse período histórico, conceitos como trabalho, tempo e cultura foram revisitados e analisados sob a ótica da Etnologia aliada à História, que segundo o autor traz ao historiador determinadas estruturas sociais esquecidas, ampliando sua visão social, assim como noções de classe, de grupo e de categoria. Le Goff utiliza ainda instrumentos da Psicanálise e da Economia, e até mesmo do Estruturalismo para a compreensão de alguns conceitos e abordagens.

A obra é dividida em quatro partes: I. Tempo e trabalho, II. Trabalho e sistemas de valores, III. Cultura erudita e cultura popular, IV. Para uma antropologia histórica.

No decorrer da produção, Le Goff dá importantes direcionamentos sobre análise de documentos sob a perspectiva de uma antropologia histórica, através de fontes diversas: obras de literatura laica, hagiografias, manuais de confessores, estatutos universitários, entre outros; mesmo com diversos materiais, o autor em alguns casos relata a ausência de fontes e de monografias sobre alguns objetos.

Na primeira parte, logo no primeiro capítulo, o autor discute sobre Michelet e a influência da sociedade de seu tempo para a construção de sua visão sobre a Idade Média, revelando, nessa análise, a importância da cultura e sociedade na escrita do historiador. Nos capítulos seguintes, são tratados assuntos sobre a tempo e o trabalho, as visões que valorizavam e as que rebaixavam essa atividade, a ligação da organização social com ele – ofícios lícitos e ilícitos – e a influência dele na manutenção e fracção do sistema social tripartido, além de sua ligação com as ideologias construídas e balizadas na fundamentação econômica. E como o discurso acerca da atividade profissional é moldado de acordo com as demandas econômicas e sociais.

Faz ainda uma rica observação sobre os camponeses, essencialmente trabalhadores e como a literatura reflete uma imagem modulada de acordo com os interesses de determinados grupos sociais que intencionalmente “apagam” a existência de camadas socais vistas por eles como indignas de nota.

Essa supressão será flagrante no caso do camponês, o que demonstra o pouco realismo social expresso nas manifestações artísticas do período, já que o homem do campo é uma figura sempre presente em todo o Medievo e, quando aparece, é retratado com as tintas menos favorecedoras possíveis, é o ignorante, o rústico, o selvagem, o atrasado. Conhece-se um vasto campo iconográfico, constituído por vitrais, afrescos, estatuária e mesmo iluminuras ilustrativas dos códices monásticos medievais em que os camponeses são retratados como figuras obesas, de aparência frívola e ingênua, contrária às representações iconográficas dos demais ordines do período, quase sempre sisudos, penitentes e esbeltos, algumas vezes em grau acentuado.

Na segunda parte, o trabalho permanece na altercação, dessa vez ligado aos meios universitários, à cidade e ao poder público. Nesse capitulo é feita a discussão com diversas questões-problema: Qual a função do saber cientifico na sociedade medieval? Ele deve ser vendido, já que é um dom dado por Deus? É um oficio? Como a universidade medieval se vê? São várias as indagações erigidas e respondidas. Um ponto a ser atendido nesse capitulo é o uso de dados quantitativos, valores e listas de despesas que enriquecem a exposição, em claro exemplo prático da articulação da História Social e da Cultura com a mais tradicional e então muito contestada História Econômica baseada no método quantitativo e serial para o elenco e a problematização do corpus documental.

Nesse item vê-se a mudança de olhar sobre o trabalho pela Igreja, este deixa de ser penitência para se tornar um meio de salvação, atitude mental agasalhada, desde os primórdios da Primeira Idade Média (séculos IV-VIII), pela dinâmica cotidiana cenobítica dos monges beneditinos, cuja ordem foi fundada em 529 por Bento de Núrcia, tendo o mesmo composto a Regra, em 534, à luz do dístico Ora et Labora. Deus criou o mundo com seu trabalho e por isso o homem que tem um trabalho determinado concedido por Deus é aceito, pois ele exerce sua atividade assim como Adão antes da Queda.

Na terceira parte, a cultura na Idade Média é discutida, sua ligação com as tradições, e a divisão entre cultura clerical e cultura popular, posta em evidência. O conceito de cultura é aqui representado como um divisor social; através dela, Le Goff analisa os ritos, permanências, mentalidade e construções do imaginário do homem medieval, percorre a vida dos santos, visões oníricas sobre o Oceano Índico e observa a literatura para encontrar simbologias e ciência (como fato de cultura). Neste ponto, faz-se uma leitura e, em certa medida, apropriação das ideias e dicotomias trabalhadas por Mikhail Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais(1957). Este mesmo itinerário foi percorrido por seu aluno e hoje um dos grandes nomes da História Medieval no Brasil e no mundo, Hilário Franco Júnior, que pensou uma categoria analítica nova: a cultura intermediária.

Aborda a literatura com mecanismos da Psicanálise, em busca de traços que revelem elementos da mentalidade individual e coletiva.

Na quarta parte, mais densa e metodológica, o autor trata da relação entre História e Etnologia, sua contribuição importante na busca de estruturas sociais daqueles que foram esquecidos pela ideologia dominante, a valorização do cotidiano e dos objetos ligados a ele, a promoção da cultura material, dos gestos, dos objetos e das tradições. Apesar disso, o autor alerta para os limites da Etnologia, que devem ser respeitados, e para não cair na armadilha de uso equivocado, dá diversas recomendações de como usá-la.

Le Goff analisa o rito de vassalagem, explicando seu andamento, aqui se percebendo que o autor usa uma fala descritiva, semelhante à do antropólogo que analisa cada objeto, gesto e coincidência do rito em vários lugares. Outra abordagem interessante é a comparação dessa tradição a diferentes cerimonias extra-europeias.

O que é o tempo? Como se pode medi-lo? Pelos relógios cada vez mais precisos, pela passagem do sol no movimento de translação, ou pela sucessão das estações do ano? O tempo passou de um constante suceder de dias e noites, para algo valorativo, até mesmo imperdível, pois “tempo é dinheiro” e as sociedades passaram a acreditar tão piamente nessa máxima que este elemento antes divino, se torna físico e controlável. Trata-se do processo histórico acelerado, nos ambientes urbanos medievais, em plena revivescência comercial, da matematização do tempo e da perda do monopólio de seu controle pelos setores do clero, em especial os monges.

Tempos heterogêneos, diria Fernand Braudel, com temporalidades diversas. Essa complexidade de visões temporais fazia parte da sociedade dinâmica medieval, que a cada momento se adaptava a novas estruturas, ressignificando saberes e adquirindo outros, às vezes de forma fluida, às vezes com certa resistência.

Esse tempo plural se configurava numa coexistência de vários tempos, seja o tempo da Igreja, baseado nas escrituras, onde o tempo é de Deus, contado a partir da Criação, que controla a natureza e suas estações, os momentos de vida e morte, é infinito, eterno, incontável e perfeito.

Junto a ele existe o tempo histórico, cronológico, marcado por eventos baseados em mudanças nas estruturas sociais, culturais e econômicas, mais dinâmico, que requeria uma rápida adaptação, era exigente, escasso e suscetível a modificações em sua medição e em seus usos.

Tempos coletivos, com diversas durações que suprem e complementam as diversas teias de relações do homem medieval. Poderia ele viver as várias contagens ao mesmo tempo? O homem medieval o fazia, não sem precisar lidar com as demandas de cada um. Inicialmente, vivia-se com o tempo de Deus e sua contagem diária embasada nas passagens das horas litúrgicas, com as novas organizações socioeconômicas, o tempo ganha novas facetas, sem perder a primeira, e se torna o tempo da bolsa (onde minutos serão essenciais para o sucesso ou fracasso de quem dele se utiliza), o tempo das transações econômicas, dos ritos, das festas, das viagens, da ciência.

O homem que usa o tempo se torna seu senhor, o racionaliza, mecaniciza, laiciza e se liberta, fazendo dele instrumento de sua atividade econômica. Mas sem deixar de observar o tempo de Deus, que de certa forma concede uma adaptação de sua forma, dando ao homem a possibilidade de ser cristão e negociante, sem contradições na alma e no trabalho.

Trabalho que foi visto sob diversas faces no decorrer da história, podendo ser atividade física ou intelectual, meio de sustento como uma pratica econômica que preza a eficiência e a produtividade.

Foi emblema de uma classe e rejeitado por outras, era sinal de rebaixamento social, ou diferenciação, penitência ou salvação, nunca deixado à margem das mudanças socioeconômicas da humanidade.

A ideologia dominante em grande parte do Medievo não favorece o trabalho, sobretudo o humilde ligado à sobrevivência. Somente com as pressões das novas classes essa visão será revista e a condenação ou não do trabalho será avaliada caso a caso, mudando concepções de vida aliadas à novas estruturas sociais.

Estruturas essas acompanhadas no que concerne à cultura, interesse do autor que faz uma relação dela com as sensibilidades e o imaginário do homem medieval, além das representações do cotidiano contidas nos ritos, afinidades analisadas na obra, sobre as divisões de cultura clerical e cultura laica, dando assim uma outra abordagem à geralmente analisada cultura erudita x cultura popular.

Le Goff traz aqui as definições e subdivisões da cultura clerical, que além do campo teológico, tem grande relevância na cultura intelectual, que congrega a burocracia pública, e a produção de cunho político. Essa cultura advinda do clero se expande de forma uniforme enquanto a cultura popular passou, segundo o autor, por “um retrocesso” voltando às mentalidades e crenças tradicionais primitivas.

A cultura eclesiástica se aproxima da cultura folclórica- resistente à primeira-graças a estruturas mentais pareadas, como a visão entre material e espiritual e essa convergência ajuda nas táticas de evangelização.

A cultura domina o tempo. Quando este era somente de Deus, era medido pelas horas litúrgicas, pelas estações do ano, quando se reconfigura com a ascensão do trabalho na cidade, ocorre a racionalização das horas. Calendários e relógios são a conexão humana do tempo, novas temporalidades surgem.

Na obra, Le Goff chama atenção para o silêncio infligido deliberadamente a diversas categorias como mulheres, crianças, os mercadores, prostitutas, entre outros. No meio desses “outros”, estão os trabalhadores, pessoas que vivem do “suor do rosto”, praticantes de uma atividade vista sob vários juízos, nem sempre favoráveis, que ajudaram no “apagamento” desses não somente nas obras escritas como também na epigrafia e arqueologia.

Só sendo encontrados após específicas perguntas às fontes existentes, produzidas pelo estrato social dominante, vendo seu contexto social e as estruturas sociais envolvidas na sua construção.

Novos surgimentos ocorrem, atividades que demandam mão de obra, o trabalho se reconfigura, deixa de ser somente para a subsistência e também se volta ao lucro, o trabalhador vai para a cidade, se torna mestre no seu oficio, e junto com outros companheiros se corporifica, pressiona por seus direitos e os consegue.

Muda a visão acerca do trabalho manual, artesanal, não somente as mãos do guerreiro serão bem vistas, as daquele que produz de tudo também serão, com a ajuda de sua confraria consegue o aval da Igreja para as suas atividades

Que são cada vez mais reconhecidas na cidade, que cresce e traz consigo o saber, representado pelas Universidades, que primeiro formavam clérigos, depois também formam funcionários públicos, financiados pelas nascentes monarquias centralizadoras, que com sua força econômica sobrepujam a Igreja na posse da instituição, que se modifica de acordo com a demanda econômica e se converte num mecanismo governamental. A cultura intelectual se volta para o saber político, enquanto a cultura clerical tenta uma aproximação com a cultura popular e consegue em parte, atingindo seu objetivo de chegar ao povo para a evangelização, não sem resistências. Ambas utilizam, às vezes, o mesmo objeto e o utilizam de acordo com suas ideologias, na construção de suas tradições e na formação de seu imaginário.

Le Goff mostra a dinâmica desse período e a riqueza de abordagens que podem ser utilizadas em sua análise, e que não se precisa ficar preso a objetos que estão “na superfície”, pode-se ir atrás daqueles que foram silenciados e de certa maneira trazê-los à tona. O grande vigor intelectual desta coletânea de ensaios, ao fim e ao cabo, a torna ainda indispensável e atual para os medievalistas de profissão e os interessados em História da Cultura de modo geral, pois se trata de uma abordagem inédita e desafiadora dos limites tradicionais do fazer historiográfico.

Elisângela Coelho Morais – Mestranda PPGHIS-UFMA/Bolsista. E-mail: Capes elishst@hotmail.com


LE GOFF, Jacques. Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Resenha de: MORAIS, Elisângela Coelho. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.16, n.2, p. 323-329, 2016. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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