O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.
As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).
Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.
Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.
O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.
O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.
Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).
O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]
Nota
1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.
Referências
ALDHOUSE-GREEEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman: shapeshifters, sorcerers and spirit-healers of Ancient Europe. London: Thames & Hudson, 2005.
CORRÁIN, Donnchadh Ó. Ireland, Wales, Man, and the Hebrides. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. London: Oxford Press, 1997, pp. 83-109.
ELLIS, Peter Berresford. Mujeres druidas. In: Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001, pp. 105-130.
GREEN, Miranda. The World of the Druids. London: Ed. Thames and Hudson, 1997.
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine 4, 2002, p. 07-09. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 20 de setembro de 2006.
_____ Mitos e verdades sobre um povo guerreiro. Universo fantástico da Idade Média 1 (1), 2003, pp. 31-33.
LANGER, Johnni & CAMPOS, Luciana de. Mini-curso: história da Irlanda Celta e Viking. Resumos, II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais. Assis: UNESP, 2006, pp. 58.
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RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. (org.). The Celtic world. London: Routledge, 1996, pp. 636-653.
Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
RUTHERFURD, Edward. Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin. São Paulo: Record, 2006. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. A História da Irlanda, dos Celtas ao Medievo1. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 122-124, 2006. Acessar publicação original [DR]
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