Uma iniciativa como esta das organizadoras é sempre bem-vinda: informa-se na Introdução que estas Atas representam a recolha de um Colóquio e, por sua vez, de vários seminários realizados por e em favor de alunos do mestrado em Literatura Portuguesa Medieval, não só do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como de outras universidades portuguesas, os quais, ao longo de 1999-2001, tiveram por tema de estudos a “matéria de Bretanha”. É, de fato, louvável oferecer tal oportunidade a futuros pesquisadores que, sob a orientação de nomes conhecidos como Irene Freire Nunes, Ivo Castro, José Carlos Ribeiro Miranda, Ana Sofia Laranjinha e outros, além de um convidado “estrangeiro”, Michelle Szkilnik, têm a chance de prosseguir na carreira tomando por base modelos de investigação rigorosos e cientificamente respeitados. Cumprimentos às organizadoras pela abertura, nem sempre usual nos meios acadêmicos.
Contudo, por isto mesmo, por seu caráter de sumário heterogêneo, a obra é qualitativamente desigual – risco, ao que parece, conscientemente abraçado, pois também referido na Introdução. Nem se poderia esperar o contrário: dificilmente um mestrando teria a experiência crítica de Irene Freire Nunes, a quem se deve a edição de A Demanda do Santo Graal (cópia portuguesa), de 1995, trabalho que, embora não substitua o de Magne, a ele se acrescenta como consulta obrigatória; ou de Ivo Castro, que há anos vem preparando a edição do José de Arimatéia, igualmente destinada a somar-se à de H. H. Carter, a mais conhecida; ou, ainda, de José Carlos Ribeiro Miranda, cujas teses, aliciantes e revolucionárias, acerca da organização cíclica da Vulgata e da Pós-Vulgata, em diálogo cerrado com as propostas até então indiscutíveis de Fanni Bogdanow, têm suscitado tanta polêmica. Por enquanto, pelo que se deduz da maioria das comunicações recolhidas, seus autores estão antes para aprender com eles que para ombreá-los em perspectivas analíticas. O que não desmerece, reitere-se, a participação do grupo, disposto a enfrentar as teias extremamente complexas da matière – para cujas profundezas míticas Ana Paiva Morais chamou a atenção (p.125).
Compreensíveis as discrepâncias, mas nem por isso livres de reparos, a começar pelos lugares-comuns, espécie de estigma do assunto desde que dele se apossou a mídia, o cinema americano e uma certa imaginação popular aficcionada por fadas, duendes e dragões. Aqui, nas Atas, não se extrapola, é evidente, para a banalização; porém, elas não se isentaram de retornar à repisada idéia de que o Amadis de Gaula propõe uma cavalaria humanizada, cortesã, em consonância com a “revolução” provençal do século XII e como contraponto à elevada espiritualização da Demanda e ao paradigma ascético representado por Galaaz (p. 105); ou também à desgastada constatação de que a carnalidade de Lancelote, plena de erotismo e de sensualidade, espelho às avessas do grandioso filho bastardo, está atrelada a sentimentos cristãos de culpa, castigo, remorsos, reincidências, contrição – empecilhos em muito responsáveis, no plano simbólico, pela decadência de Artur e pela destruição do reino de Logres (p. 267); ou, ainda, à intrigante concepção da figura feminina, ora vítima de um discurso misógino, tendo Eva como respaldo emblemático, ora heroína de um discurso enaltecedor, abrindo espaço para a Virgem Maria e para uma série de reformas por que passava a Igreja na Idade Média Central (p. 69). Conclusões como estas não podem mais ser pontos de chegada, mas de partida, são pertença daquela já extensa bibliografia de fundo que deve assessorar qualquer projeto de trabalhos na área. Conhecê-la bem evita não só a repetição indesejável, como as comparações esdrúxulas do tipo de “um artigo de jornal, Tristão e Isolda, duas novelas camilianas e sociologia de Luhmann” (p. 277) – único texto da obra que realmente não precisaria estar ali.
O longo artigo de Irene Freire Nunes (20 páginas), “Merlin, o elo ausente” (p. 29), não traz grandes novidades enquanto “tese” – sabe-se, hoje, que o mito de Merlin veio se constituindo por etapas, das tradições orais às recriações literárias, e que a figura é “elo” indispensável na lógica estrutural de todo o ciclo – mas é utilíssimo, porque repassa várias vertentes que concorreram para a edificação do poderoso mago no imaginário coletivo, bem como resenha os principais estudos que foram, a pouco e pouco, montando o quebra-cabeças. O mesmo se pode dizer do ensaio de Ivo Castro, “Sobre a edição do Livro de José de Arimatéia” (p. 59) – uma defesa contundente, e justa, do minucioso labor filológico que exige a preparação de qualquer desses textos, a exigir não só o domínio de um vasto instrumental técnico, de teor comparativo, mas também boa dose de ousadia, de sensibilidade perceptiva e de criatividade. Embora bem provido das duas condições, como demonstra sua dissertação de doutorado apresentada à Universidade de Lisboa em 1984, o autor confessa dúvidas que, ao final do artigo, desnudam o quanto ainda se tem por avançar, por responder, por “demandar”: que lugar ocupa no estema da Estoire o manuscrito francês [do José de Arimatéia] que serviu de exemplar à tradição peninsular? Quem trouxe para Portugal os manuscritos da Estoire, da Queste e da Mort Artu, e possivelmente do Merlin, terá trazido outros (Lancelot, Tristan)? A “coesão” da “matéria de Bretanha”, cada vez mais documentada, será “retrato” da realidade ou “miragem”? (p. 68). Neste sentido – o das indagações que estimulam – José Carlos Roberto Miranda tem uma bela proposta sobre o papel de Elaim, o Branco, filho de Boorz, muito menos “estrela” que seu casto pai, na continuação da linhagem de Lancelote, depois que seu “duplo” Galaaz (nas palavras de Miranda) assume de vez a condição angélica. A pujante formulação, se suscitar interesses mais amplos, pode ser encontrada em Galaaz e a ideologia da linhagem (Lisboa: Granito, 1998), onde José Carlos relaciona a organicidade do universo arturiano e a questão sociológica linhagística própria de uma estrutura feudal como a da Baixa Idade Média. E para encerrar o rol de colaborações que movem à verticalização dos diálogos, continuam fundamentais as análises genológicas (p. 125, em que pese à opção por hermetismos de linguagem), as devassas do plano simbólico (p. 81, p. 145, p. 241) ou, como fez Michelle Szkilnik, de modo original, as localizações das chamadas “personagens secundárias”, cujo papel vai muito além de simples “mediadoras” na narrativa.
Como se percebe, comutados “prós” e “contras”, as Atas sobre A matéria de Bretanha em Portugal prestam à causa serviço de mérito. Quando menos por recolocar, no centro da arena, tema tão mais polissêmico quanto mais cindido entre a visão ligeira, incompatível com a realidade histórica de curta e longa duração em que todo o ciclo se insere, e a visão acadêmica, que muitas vezes peca por excesso oposto, em seu anseio de “precisão”, ao subestimar as diversas e quase sempre obscuras camadas culturais compactadas na matière. As coordenadoras estiveram atentas ao equilíbrio de linhas, o que já de si recomenda a obra.
Lênia Márcia Mongelli – Universidade de São Paulo / ABREM. E-mail: mongelli@dialdata.com.br
NEVES, Leonor Curado; MADUREIRA Margarida e AMADO, Teresa. (Coordenadoras). Matéria de Bretanha em Portugal. Lisboa: Colibri, 2001. Resenha de: MONGELLI, Lênia Márcia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 64-65, 2003. Acessar publicação original [DR]
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