As formas utilizadas para narrar o passado irlandês precisam ser lidas com cuidado e reflexão, pois possuem diversas nuances que as distinguem da maneira brasileira de escrever a história. Referências à Irlanda como um “país celta”, por exemplo, embora algo atrativo do ponto de vista do imaginário, geralmente acompanham posicionamentos políticos, princípios epistemológicos e juízos estéticos que podem trazer mais complicações que elucidações. Além disso, “celta” é uma nomenclatura inapropriada para narrar inúmeras questões da história irlandesa (SANTOS & FARRELL, 2011; SANTOS, 2013). O mesmo acontece com formas como “Medieval World”, que também precisam ser historicizadas. Na maior parte dos livros sobre história da Irlanda, as narrativas dão um salto perceptível da “Pré-História” à “Idade Média”, fenômeno que pode ser explicado, pelo menos de duas maneiras: na própria experiência histórica, pelo fato de o surgimento da escrita na Irlanda estar relacionado com a chegada do cristianismo à Ilha, o que faz com que a história irlandesa produzida a partir de documentos escritos tenha seu início associado com igrejas, monastérios, conversão, cuidado pastoral, missionários, santos etc; e por uma tentativa de contextualizar a história irlandesa em relação à Europa continental, que, no século V, não estava mais vivendo uma “História Antiga”, mas sim sua “Antiguidade Tardia” ou “Alta Idade Média” (dependendo da abordagem historiográfica).
É recomendável que o leitor esteja atento a estas questões quando da leitura da obra aqui apresentada, pois em Ireland in the Medieval World Ad 400 – 1000 – Landscape, kingship and religion é possível encontrar referências a fenômenos que ultrapassam os limites de um “Medieval World”, mas, na maioria dos casos, eles estão associados com acontecimentos históricos que envolvem outras sociedades; no que diz respeito à Irlanda, a visão predominante é a de que a História na Irlanda começa com a chegada do cristianismo. Isto é perceptível na parte da obra dedicada ao tema dos Ogans, por exemplo, na qual lê-se que estas inscrições em pedra datam dos séculos V e VI da história irlandesa e que correspondem, portanto, “ao início do período histórico” (páginas 42-44). Esta questão encontra ressonância também na análise sobre a realeza sacra de Tara, que é abordada em um arco cronológico que se estende “da Pré-História ao período Medieval” (página 56). A passagem de tempo demarcada é: “Neolítico, Idade do Bronze, Idade do Ferro, e Primeira Idade Média”. O mesmo raciocínio também aparece quando a autora faz suas comparações entre momentos distintos da sociedade irlandesa. Ela escreve que “as sociedades pré-históricas e medievais não possuem uma distinção incisiva entre os aspectos políticos e os religiosos ou sacros da vida como as sociedades modernas tendem a fazer” (página 59).
É este o salto que interessa destacar aqui, algo que não é frequente na historiografia produzida no Brasil. É difícil encontrar nos livros de história produzidos neste lado do Atlântico uma comparação “pré-histórica” com uma “medieval”, sem qualquer referência à Antiguidade. Assim, apesar das reflexões historiográficas apresentadas na Introdução da obra da autora irlandesa, que atingem nível de excelência, seu “Medieval World” deve ser examinado de forma pormenorizada pelo leitor brasileiro, sobretudo no que diz respeito a uma crítica das formas e das periodizações historiográficas. É a partir de questões assim que o leitor poderá compreender o porquê no site da editora, Fourt Courts Press, na parte dedicada à venda da obra, o título aparece em vermelho destacado “Ireland in The Medieval World, AD 400-1000…” e logo abaixo lê-se que o livro pretende analisar o povo, a paisagem e o lugar da Irlanda no mundo “da Antiguidade Tardia ao Reino de Brian Bórama”.
Edel Bhreathnach graduou-se em Celtic Studies em 1979 e defendeu sua tese de doutorado em 1991, sob a supervisão do professor Francis John Byrne, estudando o que ela chama de Early Irish History. Desde 2013, ela é chefe executiva do Discovery Programme, uma instituição pública irlandesa que, instituída em 1991 como uma iniciativa particular do então Taoiseach Charles J. Haugley, é responsável por investigações arqueológicas. Bhreathnach investiga há algum tempo questões relacionadas com morte e práticas funerárias na Irlanda; a realeza na Pré-História e na Primeira Idade Média; historiografia da escrita da história na Irlanda; a história intelectual da Irlanda Medieval e do início do período moderno; e a história da coleção franciscana irlandesa de manuscritos e livros raros. A autora teve como professores alguns dos principais nomes dos estudos irlandeses na área de história, arqueologia, e literatura, tais como Charles Doherty, Marie Therese Flanagan e Thomas Charles-Edwards, além de seu orientador, já mencionado. Bhreathnach ainda dialogou de forma constante com Elizabeth O’Brien e Muireann Ní Bhrolcháin, além de, para a realização da obra, ter contado com assistência dos monges beneditinos de Glenstal Abbey, Co. Limerick, principalmente para o acesso à biblioteca dirigida pelos mesmos. Importante mencionar estas questões, pois a obra aqui apresentada é resultado da experiência destes vários anos de estudos e discussões, pesquisas, e da publicação de inúmeros artigos sobre o tema, sempre a partir de uma perspectiva pluridisciplinar, característica da formação de Bhreathnach. Por isso, ela consegue, de forma intensa, cumprir o objetivo de abordar vários aspectos da cultura e sociedade irlandesa neste “Medieval World”, ou como na caracterização da Fourt Courts Press “da Antiguidade Tardia ao reino de Brian Bórama”, a partir da análise sistemática e detalhada de manuscritos, monumentos arqueológicos, evidências toponímicas, geográficas, onomásticas; e dialogando com problemáticas antropológicas, folclorísticas, de mitologia comparada etc.
Ireland in the Medieval World Ad 400 – 1000 – Landscape, kingship and religion é dividida em três capítulos. Após uma introdução sobre a tradição da escrita da história na Irlanda Medieval, na qual Bhreathnach aborda as formas irlandesas de reflexão sobre o passado, reunidas a partir de história, mito e tradição no termo gaélico seanchas e na figura de seus historiadores, os seanchaide (página 1-8), no primeiro capítulo, intitulado “The landscapes of early medieval Ireland”, a autora destina 31 páginas à reflexão e sistematização de informações sobre o meio-ambiente natural da Irlanda, com suas paisagens rurais, semi-rurais e urbanas e para compreender a função do comércio desde os polos comerciais tardo-antigos até as cidades costeiras vikings. O segundo capítulo, por sua vez, é dedicado ao estudo dos reinos, seus reis e seu povo (página 40-123). Nesta parte, bem mais extensa que a primeira, o leitor encontrará uma profunda análise dos conceitos de realeza; a função das leis, com suas distâncias e aproximações da realidade irlandesa do período, bem como as obrigações que estas atribuíam aos reis, conferindo-lhes e/ou restrigindo-lhes o poder; a casa real e a extensão da família real, com sua estrutura de parentesco; e a vida e a morte dos reis, tal como os simbolismos e a ritualística envoltos nestes cerimoniais, uma deixa para a última parte da obra. No terceiro e último capítulo (página 130-236), então, há um estudo detalhado da religião e dos rituais, desde antes do cristianismo até a chegada da nova religião, com a introdução do monasticismo na Irlanda, sua estruturação e, paralelamente, as transformações da sociedade irlandesa a partir destas novas práticas religiosas, sociais e culturais. A autora conclui sua obra escrevendo sobre a importância de se estudar a Irlanda no mundo medieval. A historiografia sobre este período da história irlandesa remonta a Eoin MacNeill, que escreveu no início do século XX e é considerado por muitos o “pai” da historiografia irlandesa moderna. Recorrendo e apoiando-se nesta tradição, a explicação que a autora apresenta para justificar os estudos medievais na Irlanda é que, compreendendo a paisagem, a cultura e a sociedade irlandesa destes períodos mais remotos, como é o caso da Idade Média, o passado do país poderá ser melhor apreciado (240-243).
Apesar da concentração nestes três tópicos específicos (a paisagem, a realeza e a religião), de forma alguma a obra de Edel Bhreathnach se restringe a estes aspectos ou os analisa de forma isolada, pois nela há também inúmeras referências a outras particularidades muito importantes da sociedade irlandesa do período, estudadas de maneira sistemática e relacional com o eixo principal da obra. Como exemplo, podem ser mencionados os costumes do cotidiano; a temática do exílio e a presença e função dos estrangeiros na cultura irlandesa; os diversos usos irlandeses da cultura clássica romana e das tradições bíblicas pelos autores irlandeses; e a presença de mulheres e crianças na história irlandesa. O leitor pode estar certo de que trata-se de uma obra a ser lida de forma rigorosa por todos aqueles interessados em conhecer alguns dos acontecimentos fundamentais da história da Irlanda do período abordado.
Referência
SANTOS, D. Forma e narrativa- uma reflexao sobre a problemática das periodizaçoes para a escrita de uma história dos celtas. Nearco (Rio de Janeiro), v. VI, 2013, p. 203-228
FARRELL, E; SANTOS, D. Early Christian Ireland- Uma reflexão sobre o problema da periodização na escrita da História da Irlanda. In: BAPTISTA, L. V; SANT’ANNA, Henrique Modanez de; SANTOS, D. V. C (Orgs.). História antiga: estudos, revisões e diálogos. Rio de Janeiro: Publit, 2011, v., p. 185-213.
Dominique Santos – FURB – Universidade de Blumenau www.furb.br/labeam. E-mail: dvcsantos@furb.br
BHREATHNACH, Edel. Ireland in the Medieval World Ad 400- 1000 Landscape, kingship and religion. Dublin: Four Courts Press, 2014. Resenha de: SANTOS, Dominique. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.1, p. 140-145, 2014. Acessar publicação original [DR]
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