Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada | Jacques Le Goff

O livro A la recherche du temps sacré ou, na edição brasileira, Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada foi uma das últimas obras produzidas pelo historiador Jacques Le Goff a ser traduzida para o português. Lançada originalmente em francês no ano de 2011, a produção foi mais uma contribuição do autor para os estudos medievais. O texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 2014, pela editora Civilização Brasileira.

Jacques Le Goff é considerado pela comunidade acadêmica como um dos principais historiadores do século XX. Foi diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales – sucedendo Fernand Braudel – e, ao lado de nomes como Georges Duby, Pierre Chaunu, Le Roy Ladurie, entre outros, esteve à frente da chamada terceira geração da Escola dos Annales. No campo bibliográfico, Le Goff desenvolveu uma vasta produção – entre artigos, capítulos, livros, etc. – dentre a qual podemos mencionar, apenas para citar alguns títulos já traduzidos para o português: Os Intelectuais na Idade Média; O nascimento do purgatório; São Francisco de Assis; Homens e mulheres na Idade Média; A Civilização do Ocidente Medieval. Como reconhecimento de sua atuação, recebeu, em 2004, o prêmio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos.

No livro Em busca do tempo sagrado é analisada a Legenda Áurea (LA), ou, como no título dado na tradução para o português, Lenda dourada, 1 uma compilação de vidas de santos produzida pelo frade dominicano Tiago de Varazze. Datada da segunda metade do século XIII, esta obra obteve grande sucesso, tendo sido a segunda mais copiada no período medieval, perdendo apenas para a Bíblia.

A concepção de tempo desenvolvida por Tiago de Varazze é o objeto central desta obra. Neste sentido, Le Goff defende como hipótese central que a LA é uma suma sobre o tempo, pois o frade teria sido capaz de articular em sua narrativa três diferentes tipos de tempo:

(…) o temporal, quer dizer, o tempo da liturgia cristã, que é um tempo cíclico; o santoral, isto é, o tempo marcado pela sucessão da vida de santos, que é um tempo linear, e por fim o tempo escatológico. Neste último o cristianismo desenvolve o caminho temporal no qual a humanidade caminha até o juízo final. 2

Portanto, para o autor, a intenção do dominicano era asseverar que apenas o cristianismo foi capaz de organizar e sacralizar o tempo para levar a humanidade à salvação. Destarte, toda a análise realizada pelo autor possui como pano de fundo essa questão.

Podemos dividir Em busca do tempo sagrado em três partes.

Na primeira é dada ênfase às questões relevantes sobre o frade e a produção da LA. Le Goff se dedica a identificar a figura de Tiago de Varazze, abordando os dados biográficos disponíveis. Desta forma, são exploradas a sua atuação no seio da Ordem dominicana, da qual foi Prior na província da Lombardia – região de grande importância política e econômica no século XIII – e Mestre Geral interino, e na hierarquia eclesial, pois foi arcebispo de Gênova. Com relação à produção da LA, o medievalista identifica aqueles que teriam sido as suas principais fontes de inspiração: os dominicanos Bartolomeu de Trento e João de Mailly, autores de legendários elaborados na primeira metade do século XIII. Há ainda um breve capítulo destinado aos escritores, e suas respectivas obras, que, aos olhos do medievalista francês, exerceram as principais influências sobre Tiago de Varazze: Agostinho; Ambrósio; Jerônimo; Isidoro de Sevilha; Pedro Comestor, e Bernardo de Claraval.

Na segunda parte, o autor dedica-se a discorrer sobre o prólogo da LA e a apresentar os tempos nos quais a obra estava dividida – descaminho, renovação ou convocação, reconciliação e peregrinação –, e demonstrar como a LA une o “temporal” – tempo da liturgia – com o “santoral” – tempo dos santos.

Na terceira, que abrange a maior parte do livro, são apresentadas, discutidas e analisadas algumas vidas de santos que foram selecionadas dentro do universo de hagiografias da LA, a fim de exemplificar os diferentes tempos da humanidade e da salvação. A estruturação desta parte do livro é semelhante a como Tiago organizou a LA, ou seja, dividindo-a segundo os diferentes tempos que formam “a totalidade do tempo da vida terrestre”, já citados: desvio, renovação, reconciliação e peregrinação. Assim, os capítulos da LA são distribuídos e analisados segundo o tempo a que pertencem. A partir das informações historiográficas disponíveis sobre o santo e/ou seu culto no período medieval, são ressaltadas as relações dos santos com os distintos tempos, tão importantes para o autor.

Como exemplo, podemos mencionar o subitem São Pelágio e a história, na qual Le Goff analisa o penúltimo capítulo da LA. Neste trecho, além de identificar e situar cronologicamente a figura do Papa Pelágio I, que na LA recebe pouquíssima atenção, destaca como Tiago de Varazze valoriza o tempo histórico – outra modalidade de tempo existente explorada pelo historiador. Neste sentido, faz a identificação dos autores das crônicas utilizadas por Tiago como fontes para compor a Vida de São Pelágio – Paulo Diácono, Sigeberto de Gembloux e Vicente de Beauvais –, o que consideramos a principal contribuição do autor para os interessados neste capítulo específico da LA. Cabe ressaltar ainda a referência ao trabalho de Stefano Mula, L’histoire des lombards. Son rôle et son importance dans la Legenda Aurea, um dos poucos existentes sobre Pelágio I.3

A publicação de Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada no Brasil é uma importante contribuição para todos os que se interessam sobre o período medieval. O livro volta-se, sobretudo, àqueles que estão iniciando suas trajetórias acadêmicas e desejam refletir sobre a hagiografia e a pregação mendicantes, os primórdios da Ordem dos Pregadores, as concepções de tempo no medievo e, principalmente, sobre a LA.

Desde 2003, com a publicação da LA em português sob a direção do professor Hilário Franco Jr., as pesquisas que buscam estudar o legendário de Tiago de Varazze têm se multiplicado pelos centros de pesquisa sobre a Idade Média espalhados pelo território nacional. Se apenas um trabalho foi produzido nos cursos de pós-graduação antes de 2003, a tese de doutorado intitulada A cristianização dos mortos. A mensagem evangelizadora de Jacopo de Varazze, de autoria de Néri de Barros Almeida, defendida em 1998, após esse momento, os estudos multiplicaram-se.4

Neste sentido, desde então, foram concluídos no âmbito do Mestrado: Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: os casos de Maria e Madalena (2003), de autoria de Carolina Coelho Fortes; A terminologia do parentesco na Legenda Aurea (2004), de Iara D’Assunção; A Encruzilhada das Idéias [sic]: Aproximações entre a Legenda Áurea (Iacopo da Varazze) e a Suma Teológica (Tomás de Aquino) (2007), de Igor Salomão Teixeira; Os martírios na construção de santidades gendereficadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea (2008), de Priscila Gonsalez Falci; As criaturas do mal na hagiografia dominicana: Uma pedagogia do século XIII (2011), de Tereza Renata Silva Rocha; Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze: representações do feminino (2015), de André Candido da Silva. No Doutorado, só localizamos uma tese: Ver para Crer – Imagem e persuasão nos manuscritos da Légende dorée (Jean de Vignay, séculos XIV e XV) (2015), também de autoria de Tereza Renata Silva Rocha.

Em busca do tempo sagrado possui como principal ponto positivo oferecer um olhar panorâmico sobre a LA. Como Le Goff tem a preocupação de apresentar Tiago de Varazze e suas fontes antes de analisar os capítulos propriamente ditos, a obra se mostra bastante útil aos pesquisadores que estão iniciando suas investigações, pois está repleta de informações sobre o legendário, apresentadas com uma narrativa simples e direta, característica mantida na tradução para o português realizada por Marcos de Castro. Por outro lado, como ressalva, é preciso destacar que a atenção dispensada à questão do tempo pelo autor foi uma opção de pesquisa. Apesar de apresentar suas ponderações com argumentos bem fundamentados, é necessário não perder de vista a multiplicidade de abordagens possíveis de serem realizadas acerca da LA, como pudemos ver, por exemplo, pelos títulos das dissertações produzidas tendo o legendário como fonte. E ainda há um amplo leque de temas e abordagens a serem exploradas.

Notas

1. O tradutor do livro, Marcos de Castro, verteu o nome latino com o qual a obra é mais conhecida, Legenda Áurea, por Lenda dourada. Optamos por denominar essa obra pelo título latino em nossa resenha porque o termo “Lenda” é demasiado impreciso e pode ser associado à ideia de relato duvidoso ou inverossímil, distante do sentido latino do termo, que significava “o que deve ser lido”.

2. LE GOFF, Jacques. Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 18-19.

3. Até o momento de finalização desta obra só identificamos dois textos que se dedicam a analisar a vida de Pelágio: o de Stefano Mula, identificado no corpo do texto, e o de Igor Salomão Teixeira, A vida de São Pelágio ou a escrita da história na perspectiva hagiográfica de Jacopo de Varazze, publicado em A Legenda áurea de Jacopo de Varazze: temas, problemas, perspectivas. São Leopoldo: Oikos, 2015. p. 58-69.

4. A fonte de pesquisa utilizada para identificar esses trabalhos finais foi a Plataforma Lattes.

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva – Professora Adjunta IH-UFRJ.

André Rocha de Oliveira – Aluno de Graduação do IH-UFRJ. E-mail: pem@historia.ufrj.br


LE GOFF, Jacques. Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Resenha de: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; OLIVEIRA, André Rocha de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.16, n.1, p. 242-246, 2016. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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